“O fotojornalista é um contador de histórias e ele está na linha de frente, nos mostrando o que está acontecendo no mundo”, afirmou uma vez a crítica de fotografia Simonetta Persichetti. A fotografia, através de uma linguagem não textual, pode evocar memória, pode ser uma personificação da natureza das ideias questionadoras, a replicação de uma espécie de estado vago que se encontra fora até da linguagem. Neste momento, através da promoção de sentimentos diretos de identificação, empatia ou desaprovação, ela pode driblar as barreiras nacionais que constroem, por cada país, uma resposta muito particular de prevenção e combate à pandemia de Covid-19.

Pelo entrelace de camadas de significado, as imagens transmitem temas universais como morte, vida, amor e medo, mesmo que, pelo momento, sempre acompanhados de um tema suspenso que é o vírus. Esse, como o filósofo Jacques Derrida ensina, é por definição, o estranho, o outro, o estrangeiro. Cria-se uma barreira entre um “nós” – incontamináveis – e um “eles” – os que estão propensos a contrair o vírus. Nesse cenário, o bom fotojornalismo tenta eliminar tal barreira simbólica e discursiva por meio de registros que criem uma conexão com quem observa e contempla as imagens. E mesmo que não tenham função de documento – como o documentarista francês Claude Lanzmann diria: se você sente necessidade de uma prova, por exemplo, fotográfica, é porque já está na vertente negacionista – esses registros ajudam a retirar a questão de uma dimensão particular e levá-la a uma dimensão pública, colaborando para a informação e até mesmo atenuando um sentimento de pânico.

Tendo essas considerações em mente – como também a impossibilidade de apresentar uma “face do vírus” – a arte!brasileiros realizou uma seleção de trabalhos fotojornalísticos notáveis. São registros vindos do Peru – com Rodrigo Abd -, do Irã – com Newsha Tavakolian e Arash Khamooshi, da França – com Jean Gaumy – e do nosso país – com Victor Moriyama, Hélio Campos Mello e Cristina de Middel.

Presença humana e a barreira fantasma

“Nós, fotógrafos, devemos ter uma proximidade emocional com a história que estamos retratando nesses momentos dramáticos. E nossa câmera deve ser a ferramenta para reduzir essas distâncias que surgem da pandemia. As fotos nos unem como profissionais com as pessoas, e os produtos dessa união, que são fotografias, unem os leitores à vida de milhares de fotografados”, afirma Rodrigo Abd.

Mas como ter proximidade quando não é possível chegar fisicamente perto dos respectivos retratados? Cristina de Middel conta que qualquer forma de interação se tornou muito mais difícil por conta de uma “ideia pairante” de desconfiança. No seu caso, a barreira linguística duplicou o esforço – Middel é espanhola mas vive em Itacaré, no Nordeste do Brasil, com o marido Bruno Morais -, “percebi muito rapidamente que seria difícil para mim trabalhar em Itacaré, porque eu pareço uma gringa e não falo português adequado, então as pessoas eram um pouco rudes e ninguém queria ser fotografado ou mesmo falar comigo”. Uma de suas estratégias para não pensar no quão frustrante é não poder viajar e explorar o país como uma fotógrafa é refletir em seu trabalho sobre a situação que estamos vivendo sem sair de sua casa, seu bairro ou sua cidade. Não só a sua segurança, mas a de outras pessoas é algo desafiador nesse processo criativo.

O brasileiro Victor Moriyama concorda, ao notar que “por mais que nós tomemos os cuidados, há sempre uma preocupação, um medo de contrair o vírus, de contaminar outras pessoas, isso é extremamente preocupante: você ser um transmissor silencioso”. Para ele, o risco de contágio faz com que fotografar no meio da pandemia traga um perigo análogo ao de cobrir um conflito, embora o compromisso com o jornalismo o mantenha motivado a continuar. Moriyama integrou a iniciativa Covid Latam, criada pelo fotógrafo Sebastian Gil Miranda, que une 18 fotógrafos de 13 países na América Latina com o propósito de fornecer uma cobertura mais ampla e concreta, como também apoiar o trabalho desses profissionais.

Cobrindo o Covid no Irã, Arash Khamooshi reflete sobre o valor histórico da fotodocumentação da crise: “As fotos que tiramos durante a pandemia para capturar esses momentos definitivamente terão um valor maior no futuro. O mundo moderno não passou por nada assim. Talvez possamos compará-lo à pandemia de gripe de 1918, mas estamos experimentando algo diferente”. Ele relata que teve que se adaptar a todas as medidas de segurança: máscara e luvas o tempo todo. Mas revela que se tivesse que se aproximar para ter um retrato mais autêntico ele faria o necessário. “Talvez seja isso que gera empatia, não apenas com o retratado, mas também com quem vê a fotografia”.

Tal proximidade não é apenas física. Em seus trabalhos publicados nesta matéria, Rodrigo Abd lida com o tema da morte, tanto em seus registros nos cemitérios Nueva Esperanza e El Angel quanto na missa rezada pelo Arcebispo Carlos Castillo. Ao retratar temas delicados como esse, ele preza: “Sempre tente se aproximar deles [os retratados] antes de começar a fotografar”. Abd confessa que isso o ajudou a ser bem-vindo a fotografar um momento de muita dor que é um enterro. “No cemitério de Nueva Esperanza, conversei bastante com os parentes das vítimas fatais de Covid-19. É essencial para mim explicar às pessoas a importância da fotografia para criar uma memória histórica sobre o que acontece conosco como sociedade. Isso abre portas, os parentes entenderam muito bem, por exemplo.”

Embora tenham abordagens diferentes, esses fotógrafos compartilham uma característica que é evitar o uso do choque como recurso narrativo. Fazendo isso eles negam dizer o que nós devemos sentir e nos permitem sentir coisas que nós não entendemos muito bem, como afirmou a teórica cultural Susie Linfield. “Às vezes, tenho que ser direto com o meu público através das minhas imagens para alertá-los” afirma Khamooshi, complementando: “Eu não acho que é preciso fazer uma imagem chocante para mostrar isso. Em geral, a presença de pessoas nas minhas fotos é muito determinante”. Essa escolha, para Abd faz com que a leitura das imagens pelo observador seja enriquecida, porque nos força a pensar sobre o registro, ao contrário das imagens meramente descritivas que “convidam a um consumo rápido e passivo”.

Veja as fotos a seguir:

Foto: Jean Gaumy, Fécamp, França. 22 de março de 2020.

Nossa filha Marie e seus filhos ficaram confinados, infectados com o vírus por 12 dias. Doze dias difíceis. Marie ficou febril e privada de sono, assumiu bravamente seu papel enquanto nós, avós, só conseguíamos nos aproximar da janela deles. Viemos o mais rápido possível, mas não era para entrar na casa deles. Naquele dia, tivemos a surpresa de encontrá-los tocando violoncelo. Estavam finalmente melhorando.

Foto: Rodrigo Abd. Cemitério Nueva Esperanza, Lima, Peru. Maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Um fotógrafo de rua vende fotos para os parentes de Adrian Tarazona Manrique, 72, que morreu devido à Covid-19, durante seu enterro no cemitério Nueva Esperanza, nos arredores de Lima, Peru. Em 2013, visitei o cemitério de Nueva Esperanza pela primeira vez e encontrei um de seus trabalhadores, Juan Luis Cabrera, coveiro. Ele diz que nunca trabalhou tanto quanto nos últimos meses. Ele continua trabalhando, tentando fazê-lo com alegria, apesar da dor e desolação que é sentida no ar.

Foto: Rodrigo Abd. Cemitério El Angel, Lima, Peru. Maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

A família e os amigos dos que morreram sofrem duas vezes como resultado da perda de entes queridos e da incapacidade de se despedir intimamente. Apenas poucos membros da família podem comparecer; a grande maioria dos mortos é cremada em solidão.

Fotografia Covid
Foto: Rodrigo Abd. Cemitério Nueva Esperanza, Lima, Peru. Maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Noly Suarez segura uma cruz durante o enterro de seu irmão Flavio Juarez, 50 anos, que morreu de Covid-19, no cemitério Nueva Esperanza, nos arredores de Lima. O cemitério Nueva Esperanza está entre os maiores do mundo, com mais de um milhão de túmulos, e está localizado em um dos bairros mais pobres de Lima. Ele cresce dia após dia, cheio de parentes dos falecidos com o coração partido devido à súbita perda de seus entes queridos.

Foto: Rodrigo Abd. Lima, Peru. Junho de 2020. Cortesia do fotógrafo.

No sábado, 13 de junho, uma missa sem precedentes foi realizada sem os paroquianos, a catedral estava cheia de retratos de mais de 5.000 pessoas que morreram de Covid-19. O arcebispo Carlos Castillo declarou-se ‘agradavelmente e profundamente surpreso com a resposta do nosso povo’ ao realizar esta despedida coletiva. Em seguida, ele criticou o sistema de saúde peruano: ‘ele se baseia no egoísmo e nos negócios, e não na misericórdia e na solidariedade com as pessoas’.

Foto: Newsha Tavakolian. Teerã, Irã. Março de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Um ano após a morte do pai, Behrooz, Newsha e a irmã foram colocar flores no túmulo. Elas haviam planejado uma grande cerimônia com convidados e comida, mas tiveram que cancelá-la quando o surto de coronavírus se espalhou pelo Irã. “Foi muito triste, mas o que podemos fazer? Decidimos ir ao cemitério Behest-e Zahra de Teerã. Os iranianos adoram visitar seus entes queridos e, especialmente, nas semanas que antecedem o Ano Novo”. O cemitério, normalmente muito movimentado durante o ano novo iraniano, parecia estranho e abandonado. “O medo está em toda parte. Medo da morte, medo do futuro. Medo de um ano terrível pela frente”.

Foto: Newsha Tavakolian. Teerã, Irã. Março de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Observar, em frente à janela, a árvore que floresce no jardim deixa Jila, mãe de Newsha, feliz. Com a pandemia, ela passa boa parte do tempo na mesa da cozinha olhando para fora ou assistindo TV. Newsha conta que um dia o telefone dela tocou, era uma senhora que tinha errado o número. Independentemente disso elas conversaram por uma hora e descobriram que ambas haviam perdido seus maridos no ano passado. “Minha mãe desligou e riu. ‘Eu me sinto bem’, disse ela”.

Foto: Newsha Tavakolian. Teerã, Irã. 2020. Cortesia da fotógrafa.

A irmã da autora, cansada de ficar dentro de casa, veste uma máscara facial para jogar badminton com as amigas. Newsha tem saído de casa para fotografar. Ela diz que no Irã, o povo está acostumado a crises e se adapta rapidamente a novas realidades. A fotógrafa conta que coloca luvas de látex, uma máscara sobre a boca e o nariz e carrega um higienizador antisséptico na bolsa de sua câmera.

Foto: Arash Khamooshi. Teerã, Irã. Maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Dentro de seus carros, as pessoas lêem o Alcorão, durante o Ramadan, na Noite do Destino, Laylat al-Qadr; a celebração marca o começo da revelação do Alcorão ao profeta Maomé no Monte Hira, em Meca.

Fotografia Covid
Foto: Arash Khamooshi. Teerã, Irã. Março de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Na véspera do Ano Novo Persa, uma estação de ônibus na capital do Irã fica vazia em razão das medidas do governo para conter a disseminação do novo coronavírus.

Foto: Cristina De Middel. Itacaré, Brasil. 7 de maio de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Cadeiras são colocadas do lado de fora da agência local do banco do governo, distribuindo a ajuda financeira fornecida às famílias afetadas pela Covid-19

Foto: Cristina De Middel. Itacaré, Brasil. 18 de abril de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Brinco com um certo senso de confusão e surpresa, tentando associar imagens a significados que não são convencionais. Para mim, uma boa imagem é aquela que você não sabe como reagir: engraçada e triste, ridícula e bonita, ofensiva e tenra … as combinações são infinitas.

Fotografia Covid
Foto: Cristina De Middel. Itacaré, Brasil. 18 de abril de 2020. Cortesia da fotógrafa.

Ednaldo Cardoso (44) é o sacerdote da única igreja católica em Itacaré. Ele é bastante progressista, tem uma banda de música, bebe cerveja. Sua igreja foi fechada nas últimas 3 semanas, mas ele se manteve disponível para quem precisasse de conselhos espirituais via Whatsapp. Ele não pode confessar, mas pode ouvir e tentar apaziguar seus paroquianos à distância.

Foto: Victor Moriyama. São Paulo, Brasil. 17 de março de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Comprador em uma feira orgânica no Parque da Água Branca, em São Paulo. O Brasil confirmou neste dia a primeira morte por Covid-19.

Foto: Victor Moriyama. São Paulo, Brasil. 20 de março de 2020. Cortesia do fotógrafo.

O florista Valdemir da Silva encomenda as flores de sua barraca enquanto aguarda o fechamento total das lojas na cidade de São Paulo.

Fotografia Covid
Foto: Victor Moriyama. São Paulo, Brasil. 18 de maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Passageiros na Estação da Luz durante o horário de pico.

Foto: Victor Moriyama. São Paulo, Brasil. 8 de maio de 2020. Cortesia do fotógrafo.

Tallytta Ferreira, de verde, faz as unhas em uma manicure no bairro de Paraisópolis.

 

Foto: Hélio Campos Mello. São Paulo, Brasil. 2020. Cortesia do fotógrafo.

Fundado na França em 1971, o MSF – Médicos Sem Fronteiras trabalha pelo mundo e atende vítimas de conflitos, de desastres naturais e de flagelos como o ebola e agora o coronavírus. Nesta imagem, uma de suas médicas atende a população mais vulnerável ao Covid-19, em São Paulo. Em 2015 eram 15.905 homens, mulheres e crianças que moravam nas ruas. Segundo censo encomendado pela prefeitura da cidade em 2019 e recentemente divulgado, aquele número cresceu para 24.344. E a imensa maioria deste número assustador – são quase 25 mil pessoas sem casa para morar! – não está lá por escolha própria.

 

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