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EAV Parque Lage lança inscrição para programas de formação gratuitos

O edifício do Parque Lage. Foto: Ana Lauriano/Flickr
O edifício do Parque Lage. Foto: Ana Lauriano/Flickr

Nesta segunda-feira, dia 19 de abril, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage lançou o edital para a terceira edição do seu programa de formação gratuita. Os interessados podem se candidatar, até o dia 2 de maio, para dois cursos, cada um com 15 vagas e duração de oito meses. Pela primeira vez, os alunos contarão com uma bolsa mensal de permanência no valor de R$ 300.

O primeiro curso é voltado a pessoas interessadas em conhecer ou se aproximar do campo da arte, sem necessidade de experiência prévia. Nele, o programa será dividido em quatro módulos, com orientação e acompanhamento pedagógico de Camilla Rocha Campos e Natália Nichols, e terminará com a realização de um projeto coletivo. Já o segundo é voltado a artistas que já tenham trabalhos em desenvolvimento. Neste, a seleção será feita a partir da análise de portfólio dos interessados, que também devem preencher o formulário disponibilizado no edital. Ao final do curso, sob a orientação da professora Clarissa Diniz e do curador Ulisses Carrilho, os alunos realizarão um projeto de exposição como trabalho de conclusão.

Carrilho revela que os programas do EAV Parque Lage partem de “um anseio de pensar alternativas a uma ideia fixa de grade curricular… Pensar o quão adaptável pode ser esse currículo e quanto o sistema artístico, em franca transformação, está disponível para novos sujeitos e novas formas que os artistas cotidianamente inventam para o mundo”.

“Com nossos programas gratuitos de formação, queremos contribuir para ampliar o acesso ao campo da arte e da cultura, a partir de novos olhares, vivências e posturas”, destaca Yole Mendonça, diretora da EAV Parque Lage.

O currículo da edição 2021 dos programas foi elaborado levando em consideração as restrições sanitárias impostas pela pandemia, com aulas e práticas desenvolvidas para os meios virtuais.

Saiba mais no site do EAV Parque Lage. Acesse este link.
Leia também entrevista com Yole Mendonça, clique aqui.

“A Última Floresta” fecha o Festival É Tudo Verdade e retrata a força dos Yanomami

Cena de "A Última Floresta". Foto: Pedro Márquez / Divulgação.
Cena de "A Última Floresta". Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

O Festival É Tudo Verdade 2021 acabou no domingo, 18 de abril, com o filme A Última Floresta, de Luiz Bolognesi. Antes de ser selecionado como filme de encerramento do maior festival de documentários da América Latina, a obra já havia composto a mostra Panorama da Berlinale deste ano, sendo a única produção brasileira no prestigiado festival alemão. Foi lá também que o filme anterior de Bolognesi, Ex-Pajé, recebeu a Menção Especial do júri para documentário original na edição de 2018. Entre eles, no entanto, há uma grande diferença – são quase obras dísticas. No primeiro, a história parte de Perpera, um pajé destituído de suas forças como resultado da interferência da igreja evangélica em sua tribo. Os Paiter Suruí, dos quais Perpera é integrante, são habitantes da terra indígena Sete de Setembro, em Rondônia, e viveram isolados até 1969. Perpera tinha 20 anos quando seu povo fez o primeiro contato com os brancos. Até aquele momento, ele era o seu pajé. Com entrada dos brancos e a condenação do xamanismo, Perpera viu-se obrigado a abandonar suas práticas ancestrais, interrompeu suas rezas e parou de tocar as flautas sagradas; como resultado disso, ele relata a cólera dos espíritos da floresta.

Enquanto filmava Ex-Pajé, o diretor lia A Queda do Céu, livro escrito a partir das palavras do líder Yanomami Davi Kopenawa, contadas – ou melhor, narradas – ao etnólogo e escritor Bruce Albert, com quem nutre uma longa amizade de mais de 40 anos. Ainda no feitio do filme, Bolognesi sentiu a necessidade de fazer um documentário que mostrasse o contrário de Ex-Pajé, ou seja, retratar um grupo indígena onde o xamã está na plenitude dos seus poderes. Na figura de Kopenawa, o diretor encontrou a chave para este projeto, decidindo incluí-lo no processo criativo do documentário, não apenas como uma personagem. Logo no começo de A Última Floresta sente-se uma estranheza que se manifesta na inquietação para saber como o filme consegue chegar tão perto e de forma tão orgânica. Parte desse feito vem de Kopenawa. Logo na pré-produção, o xamã manifestou a Bolognesi que não queria fazer um filme sobre vítimas, ou um clichê romântico. “Somos um povo muito forte, muito bonito e temos muita saúde”, teria dito, segundo contou o diretor em uma conferência à AFP.

A inclusão do xamã na construção do documentário forçou a equipe a pensar como a linguagem cinematográfica e o modo de vida Yanomami poderiam se polinizar no filme. Nesse sentido, uma barreira era o fato dos Yanomami não distinguirem sonhos do que nós reconhecemos como real. “Para eles, e a maioria dos povos indígenas do Brasil, não há uma separação entre o que é mundo real e o que é sonho. A gente separa, o lugar das lendas é guardado numa caixa como se fosse algo falso. Para eles, o que acontece de noite, durante o sonho, é verdadeiro. O índio pode ter passado a noite voando como uma coruja ou ter acordado muito cansado por ter fugido de um jaguar”, relata Bolognesi a Márcia Bechara, da RFI. “Na verdade, muitas das coisas que acontecem de dia, eles só compreendem à noite”, diz. Na mesma entrevista, Bolognesi detalha: “Decidimos então filmar de um modo indígena, filmando também sonhos e tratando num nível de realidade onde não se separa o que é realidade, o que é sonho, o que é magia, o que é mito, o que é documentário clássico, o que é documentário encenado. Na verdade, é tudo uma grande mistura, o que traduz a maneira com que eles lidam com isso”.

Davi Kopenawa em cena de "A Última Floresta". Foto: Divulgação.
Davi Kopenawa em cena de “A Última Floresta”. Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

Na árdua luta para proteger suas tradições, mesmo sendo gravados, os Yanomami ainda retém aspectos dela para si. Na cerimônia mostrada em A Última Floresta, por exemplo, pode-se intuir o que ocorre enquanto o xamã se comunica com os espíritos, mas nada é revelado, não há legendas, é um momento em que o espectador compreende a ocorrência do ritual e se contenta em presenciá-lo através do filme. Sobre esse episódio, a João Pedro Soares, do Deutsche Welle, Bolognesi conta: “Eles falam e cantam o tempo todo. Eu perguntei ao Davi e a outros xamãs: vocês podem contar o que está sendo falado e cantado para legendarmos? Eles responderam que não, e o filme não tem essa legenda”. Ele complementa que “percebemos a força daquilo, mas não temos capacidade e nem nos é permitido compreender o que está sendo dito”. O diretor explica ainda que pelo que lhe foi contado pelos Yanomami, nos rituais, o xamã se torna uma espécie de antena. “O espírito fala em primeira pessoa, através da boca dele, com os outros xamãs e com a comunidade.”

O diretor atribui a conquista de poder gravar o rito, em A Última Floresta, ao relacionamento de confiança criado com Kopenawa e a tribo, um processo longo, de quatro semanas, com descobertas, interações, conflitos e encantamentos. A sensibilidade da equipe toda, muito pequena, de seis pessoas, é ressaltada, assim como é a escuta de Pedro Márquez, cinegrafista que também trabalhou em Ex-Pajé e cujo papel neste filme foi central.

Cena de "A Última Floresta". Foto: Pedro Márquez / Divulgação.
Cena de “A Última Floresta”. Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

“Estávamos encantados com a realidade Yanomami: uma mulher fazendo um cesto, uma criança tomando um banho, um caçador em ação, alguém fazendo uma mochila de folha de palmeira – tudo tinha muita poesia. Não podíamos ser crus e despoetizar essa narrativa. Tínhamos algumas dificuldades”, relata Bolognesi a Camila Gonzatto, em entrevista para o Goethe Institut. “Buscamos fazer uma cinematografia que respeitasse a beleza da pele deles, que aproveitasse as palhetas beges das cestas, o colorido das redes. Sempre com o cuidado de não forçar a mão. Buscamos uma fotografia que restabelecesse a poiesis do ser Yanomami”, conta sobre o trabalho de Márquez. Junto disso, era necessário encarar a história “sem também o falso purismo: tem chinelo Havaianas, short, celular, vários elementos ali, mas profundamente conectados com o epicentro semântico da sua cultura, a expressão estética da sua cultura. Está tudo muito vivo ali”.

O que ameaça suas tradições é a entrada do homem branco. Há urgência; nunca não houve. Mas agora há demasiada urgência à medida que enfrentam a invasão, em terras Yanomami, de cerca de 20 mil garimpeiros ilegais, acusados de destruir florestas e poluir os rios com mercúrio. Mesmo preservadas – em teoria -, o presidente Jair Bolsonaro defende sua exploração, ao mesmo tempo que questiona a extensão das reservas Yanomami. Em curto prazo, o metal pesado utilizado na mineração ilegal mata os peixes e os animais que bebem a água do rio e ainda pode contaminar os indígenas que se banham naquelas águas. A longo prazo, a falta de alimento e a aparente saída fácil pelo garimpo tenta os jovens a abandonar suas tradições e abandonar a tribo, algo que apavora Kopenawa.

“Omana escondeu o minério embaixo da terra para ninguém mexer. Os brancos reviram a terra para tirar petróleo, ouro… E libertam os espíritos maléficos. A fumaça da doença se espalha. As doenças e o veneno podem aumentar. Omama nos deu esta floresta para cuidar.”

 

Para Gerardo Mosquera, é preciso libertar-se de uma identidade latino-americana reducionista

arte latino-americana
O crítico e curador cubano Gerardo Mosquera. Foto: Divulgação
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O crítico de arte e curador cubano Gerardo Mosquera. Foto: Divulgação

É possível falar em arte latino-americana? Certamente sim, considerando a produção realizada nas várias regiões do território que chamamos de América Latina, com suas características históricas, culturais e sociais que por vezes se cruzam, por outras se distanciam. Mas é possível falar em “uma” arte latino-americana? De modo algum, segundo o crítico e curador cubano Gerardo Mosquera, já que um pensamento totalizante nega o espaço da pluralidade, dos contrastes, diferenças, conflitos e contradições.

“É claro que há uma identidade, não a nego, mas a vejo como um espaço aberto, em processo, relacional e sobretudo de autoconsciência”, afirma Mosquera, 75, cofundador da Bienal de Havana nos anos 1980, conselheiro de destacadas instituições como a Rijksakademie van Beeldende Kunsten (Amsterdam) e com importantes passagens pelo New Museum (Nova York) e pela PHotoEspaña (Madri), entre outros.

Se por um lado Mosquera reafirma a importância que teve a criação de uma ideia de “arte latino-americana” – como resultado de processos coloniais e pela necessidade de legitimação e contraposição aos centros hegemônicos mundiais -, por outro ele critica, de modo enfático, uma espécie de neurose que a cultura latino-americana teve em relação à identidade. “Não pode ser como uma prisão, algo redutor, pois isso significa negar a esta produção a possibilidade de acesso a uma arte universal”, afirma.

O crítico propõe, portanto, novos conceitos como a “liberação da identidade” e o “a partir daqui”, que seria um posicionamento posterior à antropofagia, no qual não é preciso mais mirar ao norte para captar e ressignificar referências, mas partir dos próprios contextos locais – sem a necessidade de estampá-los ou representá-los diretamente. “O contexto se torna um locus centrífugo, a partir de onde se constrói o ‘internacional’ sem constrangimentos, com um sentido tanto de pertencimento quanto de agência”, escreve Mosquera em seu texto de introdução do livro 20 em 20, Os artistas da próxima década: América Latina (organizado por Fernando Ticoulat e João Paulo Siqueira Lopes, da Act.).

Mosquera falou à arte!brasileiros em razão do lançamento do livro, que se dedica ao trabalho de 20 artistas do continente: Ad Minoliti, Adriano Amaral, Alia Farid, Carolina Caycedo, Dalton Paula, Frieda Toranzo Jaeger, Gabriel Chaile, Gala Porras-Kim, Iván Argote, Jill Mulleady, Johanna Unzueta, Jota Mombaça, Katherinne Fiedler, Naufus Ramírez-Figueiroa, Pia Camil, Reynier Leyva Novo, Sheroanawe Hakihiiwe, Tabita Rezaire, Tania Pérez Córdova e Yuli Yamagata. Mas o curador também expandiu a conversa para outros temas relativos à sua pesquisa e ao contexto atual da pandemia de coronavírus, ressaltando ainda a necessidade de a arte contemporânea se abrir cada vez mais a um público não especializado.

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“América Invertida”, 1943, de Joaquín Torres García. Foto: Reprodução

Vivendo entre Cuba e Espanha, Mosquera se encontra em Madri desde o início da pandemia, já que ainda não conseguiu voltar a Havana – “onde tenho minha casa e minha biblioteca”, conta. O crítico acaba de lançar o livro Arte desde América latina (y otros pulsos globales) e assina a cocuradoria da recém-inaugurada Trienal da Imagem de Guangzhou, na China. Leia abaixo a íntegra da entrevista.

ARTE! – Em seu texto de introdução ao livro 20 em 20, assim como em diversas outras publicações e palestras, você fala sobre a possibilidade (ou não) de identificar uma arte latino-americana. Como lidar com essa questão?

É claro que existe uma arte latino-americana se chamarmos assim a arte que é produzida no território nomeado América Latina. Mas dizer isso é uma coisa simplista. O problema é se pensamos a arte latino-americana como uma entidade distinta em si mesma. E aí surgem outras questões, como a própria definição territorial de América Latina, que é polêmica. Ela inclui, por exemplo, o Caribe Anglófono, o Caribe Neerlandês, mas também a diáspora latino-americana em todo o mundo, principalmente nos Estados Unidos, que tem hoje a segunda maior população de falantes da língua espanhola, atrás apenas do México. Se calcula que existam cerca de 50 ou 55 milhões de hispano-falantes nos EUA. Há, ainda, muitos falantes de português.

Dito isso, a definição de uma arte latino-americana se viu afetada historicamente por uma vontade totalizante, de criar grandes relatos e sínteses, não somente em respeito à arte, mas à cultura da região de modo geral. E isto surge como resultado de uma atitude de afirmação própria, primeiro frente ao empreendimento colonial europeu – porque depois das independências no século 19 ainda houve várias tentativas de recuperação das colônias por parte das metrópoles – e depois, no século 20, frente aos EUA, seu poder e sua ingerência nos assuntos do sul. Então essas são as causas da criação desta identidade, mas isso levou a uma hiperbolização destes relatos totalizantes que acabou ocultando as diferenças, os conflitos e as contradições para poder criar uma entidade única da América Latina. E hoje em dia tendemos a pensar mais nos fragmentos, incompatibilidades e contradições, ao invés de tentar aplanar e resumir.

Creio ainda que no caso da arte latino-americana houve um problema, que também afetou outros países do sul, subalternos, que é o de colocar essas práticas artísticas dentro de um gueto, de valoração, de circulação e de consumo. É como se fosse negada a esta produção a possibilidade de acesso a uma arte “universal” – que seria a arte dos centros hegemônicos -, condenando-a a um bairro, a um gueto, classificando-a apenas como arte latino-americana, arte mexicana, arte brasileira. Assim como se pode dizer da arte africana, arte árabe etc. E aí há um uma discussão que não é apenas de caráter cultural, mas é um problema prático também, que é o de lutar por uma legitimação geral, não deixar essa legitimação restrita a um circuito hegemônico, e poder participar de uma circulação verdadeiramente internacional da arte.

E isso não significa dizer que a arte produzida no Brasil deva deixar de ser chamada de brasileira, mas que não seja apenas enquadrada nesta classificação. Eu tenho insistido muito, no meu trabalho, que se deve primeiro olhar a arte, o trabalho, e só depois olhar o passaporte, e não o contrário. Mas acho que neste ponto já se avançou muito. E acho que a criação da Bienal de Havana foi um marco importante, no sentido de criar um espaço outro de valoração, de investigação e de lançamento das artes feita onde, naquele momento, se chamava de terceiro mundo. E há ainda os processos de globalização na economia, nas comunicações, pois a situação melhorou muito também neste sentido, sobre a base da reflexão teórica de críticos, curadores e da própria prática artística.

Neste ponto, acho que a arte brasileira foi paradigmática, porque penso que ela teve menos essa preocupação, essa espécie de neurose da identidade latino-americana, e pôde se pensar mais em termos internacionais. Talvez como resultado da Bienal de São Paulo, que começa em 1951, mas também por outros motivos.

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Trabalhos de Dalton Paula estampados no livro “20 em 20”. Foto: Guilherme Sorbello/ Divulgação

ARTE!Em seu texto você cita como uma das grandes responsáveis pela “invenção” da ideia de uma arte latino-americana a crítica argentina Marta Traba. E apesar de reafirmar a importância desta perspectiva, você fala de suas limitações e da necessidade posterior de “liberação da identidade” – um momento em que se rompeu esta ideia totalizante de uma arte da região. Poderia contar um pouco mais deste processo?

Sim, é precisamente isso que estávamos falando. É claro que há uma identidade, não a nego, mas a vejo como um espaço aberto, em processo, relacional, de autoconsciência e sobretudo como um lugar de elucidação. Não a vejo como uma prisão, como algo redutor, então trata-se de nos libertarmos desta obsessão que a cultura latino-americana teve com a identidade, que é também resultado de complexidades de nossa formação e de preocupações que vêm desde o século 19. Resultado de questionamentos sobre se somos europeus, se somos europeus de segunda, se somos indígenas, afrodescendentes, mestiços… e assim por diante. Tem um conto do [escritor argentino] Jorge Luis Borges em que uma personagem nórdica pergunta a um colombiano: “O que é ser colombiano?”. E ele responde: ”Um ato de fé”. E acho que é uma afirmação que pode se estender a toda a América Latina e que fala justamente dessa neurose identitária. Claro que isso com o tempo foi sendo superado e hoje, sobretudo depois da chegada do pensamento pós-moderno – em que se pensa mais em termos de fragmentos, de micropolítica etc. – as coisas mudaram.     

ARTE!Então essa “obsessão” com a identidade não deixa de ser resultado do colonialismo, ou seja, uma proteção, uma tentativa de se contrapor aos países do norte…

Exatamente. E por isso a importância da obra de Marta Traba, ao criar essa identidade, é também a de legitimar a produção daqui. Pois prevalecia, a partir dos centros hegemônicos, uma visão da arte latino-americana como um simples derivado da arte ocidental. Não se levava a sério, e Traba defendeu sobretudo esse caráter próprio da arte latina-americana, o que foi muito importante porque dava a ela um valor frente a quem não via sua importância. E essa definição de “arte latino-americana” ainda hoje pode ter uma utilidade tática, pela solidariedade que ela implica e como uma plataforma de lançamento. Um exemplo é o extraordinário trabalho realizado por Mari Carmen Ramirez, porto-riquenha radicada nos EUA, que tem criado e estado à frente de departamentos de arte latino-americana em importantes museus, criando coleções e difundindo a arte da região. Mas ela não faz isso com uma mentalidade de gueto, e sim como uma plataforma para introduzir essa produção no universo norte-americano – acadêmico, institucional etc.  

ARTE!Quando você fala da pluralidade, da diversidade da produção latino-americana, apresenta também o conceito de “a partir daqui”, que seria um novo paradigma para se pensar a arte do continente. O que seria este conceito?

É uma noção em termos de dinâmicas culturais em uma época ide internacionalização da cultura. É uma ideia que responde ao que me parece ser não apenas a prática mais atual da arte latino-americana, como se pode ver no livro 20 em 20, mas também a prática em outros âmbitos também subalternos aos grandes centros de poder. E significa que ao invés das estratégias de apropriação e ressignificação cultural – que foram sintetizadas de forma tão clara e poética pela antropofagia -, existe hoje uma construção direta de uma arte internacional, que fala uma língua que permite comunicar-se mundo afora a partir de uma diferença de culturas, experiências, contextos, imaginários e agendas. Ou seja, é uma projeção, já não é um contexto como representação. E é uma prática que se refere mais à maneira de fazer os textos do que de representar os contextos. Em muitos casos, eu tenho a impressão de que conseguiria identificar uma instalação feita por um artista brasileiro, e não porque ela exponha diretamente o candomblé ou o samba, por exemplo, mas pela maneira de fazer a instalação, a maneira de fazer um texto artístico. Até mesmo porque a morfologia das instalações de arte recebeu uma ampliação extraordinária de suas possibilidades de comunicação por parte de artistas brasileiros. E isso para mim é o que predomina hoje, e é um processo diferente da antropofagia.

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“A Point of View”, 2019, do colombiano Iván Argote. Foto: Lance Gerber/ Divulgação

ARTE!Não é mais preciso olhar ao norte, aos EUA ou Europa, como ponto de partida…

Exatamente. E repare que isso estava ocorrendo até em termos de posicionamento físico, geográfico. Não faz tanto tempo, algo como duas décadas, que um artista que quisesse ter uma circulação de alto nível internacional precisava viver em Nova York, em Londres, em Berlim. E agora isso é cada vez menos necessário. Veja no Brasil, por exemplo, Cildo Meireles, Adriana Varejão, Ernesto Neto, José Damasceno e tantos outros, são artistas que têm uma legitimação internacional de alto nível e permanecem vivendo no país. E isso tem a ver com esse “a partir daqui”. 

ARTE!  Falando sobre as pesquisas dos artistas, como por exemplo os que estão no livro 20 em 20, há uma série de temas muito atuais e importantes que permeiam a produção contemporânea, incluindo o passado colonial, racismo, questões de gênero, violência de Estado, entre outros. Você já criticou, em outros momentos, a arte que torna-se excessivamente ilustrativa ou didática, porque ela se converteria em propaganda ou pedagogia, mas também sempre defendeu que a arte pode tratar de todos os temas. Como tem visto o modo como estes assuntos têm aparecido nos trabalhos? Há algo de panfletário ou, pelo contrário, um ponto de vista original que não poderia existir em outras linguagens não artísticas?

Um dos valores que vejo nesse livro é que a seleção se preocupou não apenas com uma arte que tenha um valor em si mesma, de circulação internacional, mas também por mostrar a diversidade das práticas artísticas no continente. Diferentes experiências, imaginários e agendas artísticas, desde uma arte que trata diretamente de temas sociais e políticos – mas claro que de modo artístico, não panfletário -, até artistas interessados em investigações de caráter mais formal. E essa é uma diversidade que vemos na América Latina e também a nível global. Repare que os “ismos” desapareceram, já não há “ismos”, e isso tem a ver justamente com essa grande diversidade que existe. Então, como curador, também não me interessa seguir uma linha fechada, mas precisamente ressonar a polifonia da arte. Me interessa esse sentido polifônico, assim como o caráter centrífugo da arte, sua possibilidade de sair de si mesma e tocar aspectos muito diversos da vida, da cultura, da sociedade, da natureza, do planeta, de tudo. E essas características fazem com que eu me identifique muito com as práticas atuais da arte na América Latina. Porque existe internacionalmente também uma arte que acaba por se fechar dentro de si mesma. Um tipo de “auto-referência” que ainda existe muito, mesmo que cada vez menos. E na América Latina sinto que há menos isso, talvez porque nosso contexto seja tão forte, rico culturalmente, mas com tantos problemas, e os artistas tendem a responder a isso.    

ARTE! – Sobre esta “auto-referência”, e talvez por conta dela, há também um costume de se associar a arte contemporânea a um lugar elitista. Você mesmo disse certa vez que a arte contemporânea acaba falando muitas vezes apenas para iniciados, mas ela tem a capacidade de se abrir a um público mais vasto. Como enfrentar esse desafio? Depende dos artistas, curadores, instituições?

É um trabalho conjunto, no qual a educação tem um peso muito grande. Uma educação também em torno da arte. Mas acho também que os artistas e nós, curadores, às vezes nos esquecemos de enfatizar, de ativar, essa possibilidade que a arte contemporânea tem de se abrir a públicos mais amplos, em virtude de sua flexibilidade metodológica e morfológica. Para que a arte não esteja dogmatizada em cânones redutores, que são de interesse apenas de uma elite especializada, mas que ela seja aberta. E ela está de fato se abrindo, se multiplicado, e temos mesmo que tratar dessa ampliação e comunicação.

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“Here Comes the Sun”, 2019, da mexicana Pia Camil. Foto: Enid Alvarez/ Solomon R. Guggenheim Foundation

ARTE! – Neste sentido, o mercado de arte ainda é espaço mais afastado do grande público, não é?

Sim, mas também podemos tentar pensar as feiras como um espaço mais compartilhado com o público, onde essa comunicação seja possível. Às vezes as feiras podem ser como um guarda-chuva onde cabem outros tipos de atividades que vão num sentido mais cultural, não estritamente de mercado. E podemos pensar também que existem muitos espaços independentes, feitos na base, digamos, por artistas e curadores. Espaços sem fins lucrativos, que buscam inclusive um impacto social maior. E também existe um mercado que é bom, boas galerias que tratam de se abrir, de buscar um alcance maior. 

ARTE!Falando neste assunto, gostaria de voltar um pouco ao livro 20 em 20 e perguntar sobre este vínculo do próprio livro com o “mercado”. A publicação é financiada por um banco (BTG Pactual) e organizada por uma consultora de arte (Art Consulting Tool). Não pode soar um pouco conflituoso as mesmas pessoas que investem e orientam sobre colecionismo assinalarem quem são os “artistas da próxima década”?

Este tipo de debate pode surgir em vários âmbitos. Isso aparece inclusive em bienais, quando se escolhe artistas que estão muito vinculados à galerias, com força no mercado, e questiona-se se as bienais não deveriam dar mais espaço para novas buscas, ou para artistas que não tenham ainda tanta visibilidade… De todo modo, acho que o que este livro faz é exercer um ato curatorial, que serve mesmo para consulta – considerando inclusive o fato de que há uma consultoria por trás. Ali está a assinatura deles, a especificação de que a escolha dos artistas é um recorte, então eu não acho que haja um conflito de interesses, nem que seja algo que aponte para artistas com quem eles especificamente trabalhem, com fins lucrativos. São de fato artistas muito diversos e que já tem um espaço no mercado. E esta é a proposta do livro.

ARTE!Sim, e este recorte de que você falou, o fato de escolher 20 artistas e apontá-los como “os” artistas que marcarão a década, isso não soa um pouco perigoso, reducionista?

No meu texto de introdução eu digo inclusive que poderiam ser feitos outros livros, entre eles um com artistas latino-americanos muito importantes e que não tiveram esse êxito no mercado internacional. Mas os próprios curadores do livro disseram publicamente que se poderia fazer vários livros como este, que este é um recorte possível. E acho que é um modo também de dar projeção ao livro, afinal estamos em uma época muito midiática, não é?

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“Así desaparecemos”, 2019, da brasileira Jota Mombaça. Foto: Cortesia da artista

ARTE! – Por fim, falando do contexto atual com a pandemia de coronavírus, queria te perguntar um pouco como você tem trabalhado, enquanto crítico e curador, e como tem visto a situação da classe artística de um modo geral. Em um momento em que assuntos de saúde, econômicos e sociais se tornam preponderantes, há o risco de a cultura ser vista como algo secundário? Ou pelo contrário, ela mostra ainda mais a sua importância?

Acho que, na verdade, neste momento em que estamos vivendo o confinamento, com tantas limitações, nos tornamos mais conscientes do quão necessária é a arte. O que seria de nós, isolados, sem literatura, sem música, sem fotos e imagens para ver em nossos telefones e computadores… E fica muito óbvia a importância da arte para que possamos inclusive sobreviver, em condições tão difíceis como esta. Sabemos que além do dano causado pelo vírus aumentou muito a depressão entre as pessoas, e a cultura e a arte são fundamentais para ajudar a combater isso. E claro, nos afetou muito o fato de não poder ir a um museu, a uma exposição. Mas repare que o comércio de arte, mesmo que tenha caído, se manteve forte; museus abriram as portas – com controles e limitação de público; exposições online foram criadas; ou seja, buscou-se maneiras para que as artes visuais pudessem circular.

E mesmo com uma situação tão difícil, vejo que muitos artistas e curadores têm mantido as suas práticas. Há poucas semanas inaugurou em Guangzhou, em Canton (China), a Trienal da Imagem de Guangzhou de 2021, da qual sou cocurador. E todo o trabalho desta trienal, focada em fotografia e vídeo, eu fiz à distância. Inclusive não pude estar lá nem para a inauguração. Agora, penso que isso também demonstra o quanto, com toda nossa ganância, não estávamos utilizando os meios eletrônicos e digitais em todas as suas possibilidades. Estamos na época da comunicação à distância e ficou claro que podemos fazer muito com esses recursos. Mas é claro que eles não substituem o contato presencial com as pessoas e o contato vivo com a obra de arte.

Agentes culturais de Campinas formam rede colaborativa e promovem evento virtual

No dia 24/04, como parte da programação do CLAI, o Xilomóvel - Ateliê Itinerante oferece uma oficina ao vivo com demonstração de impressão de xilogravuras e a criação de um painel. Foto: Ligia Minami

Aulas, performances, intervenções urbanas, demonstração de técnicas e exibições de fotofilmes e videoarte, tudo à distância de uma tela. Integralmente produzida por artistas visuais residentes em Campinas, o primeiro evento do Circuito Livre de Arte Independente da cidade (CLAI Campinas) acontece virtualmente entre os dias 17 e 29 de abril de forma gratuita pelas redes sociais do projeto.

Em 2020, 17 espaços e iniciativas autogeridos ligados às artes visuais se uniram em um projeto em rede na cidade do interior de São Paulo. O objetivo principal do grupo é seguir movimentando a cena cultural nos difíceis tempos pandêmicos, servindo de apoio tanto para as instituições quanto para os artistas da cidade. Após meses de atuação independente, o projeto tem seu primeiro evento (virtual), viabilizado com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. 

Porém, se engana quem pensa que a intenção de construir uma iniciativa em rede surgiu com a eclosão do coronavírus. A ideia ronda Maíra Endo, editora-curadora do HIPOCAMPO, desde 2015, quando ela se desligava do Ateliê Aberto, espaço de arte independente que encerrou suas atividades em Campinas naquele ano. “Percebi como os espaços e iniciativas de arte auto-organizadas dependem de redes de colaboração, de relações de dependência estratégica, para sobreviverem”, explica.

Entre 2015 e 2020, Maíra viu a cena de arte independente crescer. “Vale lembrar que, já há muitos anos, o circuito institucional das artes visuais em Campinas, formado por instituições públicas e privadas, encontra-se reconhecidamente falido, incapaz de atender às necessidades dos artistas. A cidade tampouco comporta galerias de arte contemporânea, ou seja, não existe um mercado. Em Campinas, quase tudo, em termos de artes visuais, acontece no circuito auto-organizado”, afirma.

Foi nesse cenário, com uma cena emergente, que a curadora notou que não estava sozinha em sua ideia. Outros gestores também pensavam em um projeto em rede e estavam dispostos a construir esses vínculos. Foi nas conversas com Ana Angélica Costa, artista e gestora da Casa de Eva, e Teresa Mas, arquiteta e gestora do Pavão Cultural, que a articulação de um agente coletivo deixou de ser apenas mais uma das ideias guardadas na gaveta. 

A construção do projeto

“Inicialmente, nossa ideia era promover a FLAI – Feira Livre de Arte Independente de Campinas, na intenção de movimentar a cena de artes visuais e gerar renda para os artistas”, conta Teresa. Para isso, iniciaram um mapeamento dos espaços de arte da cidade, de forma a encontrar possíveis parceiros para a empreitada. “Nesse momento, percebemos o quanto o circuito de arte em Campinas era desarticulado: havia muita coisa sendo produzida e exibida, mas quase não havia trocas entre espaços e agentes, com algumas poucas exceções”, conta Ana. 

Porém, em meio à sua concepção, o projeto deparou-se com um imprevisto: a pandemia de coronavírus. Previsto para o segundo semestre de 2020, ele precisou ser repensado.  “Conforme foi ficando claro que a pandemia forçaria o fechamento dos nossos espaços, que não haveria possibilidade de montar a FLAI e que muitos artistas independentes poderiam estar em dificuldades, convidamos aqueles espaços que fariam parte da feira para uma conversa sobre como poderíamos nos ajudar nesse momento difícil”, compartilha Teresa.

A necessidade da organização coletiva ficava ainda mais clara, pelas novas dificuldades a serem enfrentadas nos períodos de isolamento e distanciamento social. Por isso, buscaram conhecer melhor a proposta e realidade de cada um dos espaços, para estruturar a rede de apoio. “Esse processo foi incrível para percebermos a multiplicidade tanto em termos físico, financeiro e de forma de atuação, o que torna as trocas de experiências ainda mais ricas: tem espaço que existe há 30 anos, com artistas com ampla experiência na cidade de Campinas, e iniciativas que abriram no início da pandemia, com gente jovem e com muita vontade de fazer a coisa acontecer mesmo em contextos tão adversos como o que estamos vivendo”, compartilha Ana.

Hoje, o Circuito Livre de Arte Independente de Campinas é formado por 17 espaços independentes e coletivos autogeridos. Sendo eles: AT|AL 609, Ateliê/8, Ateliê CASA, Ateliê Oráculo, Casa de Eva, Clubinho Eulina, Estúdio Casa Ímpar, Fêmea Fábrica, Folha, HIPOCAMPO, Instituto Pavão Cultural, Nave na mata, Rabeca Cultural, Sílvia Matos Ateliê de Criatividade, Torta, TOTE Espaço Cultural e o Xilomóvel – Ateliê Itinerante.

Como primeira ação, o projeto buscou dar visibilidade aos espaços e gestores através de um perfil de Instagram do CLAI – no qual cada membro pode compartilhar sua produção com os seguidores dos demais. Então, veio a possibilidade de se inscrever no edital Ações em Rede da LAB. “Foi o gatilho para que realmente pudéssemos viabilizar essa ação conjunta que agora realizamos”, conta Teresa. Através do edital, o coletivo em rede conseguiu edificar seu primeiro evento, com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, montando uma programação gratuita com conteúdos concebidos por artistas e gestores de Campinas. 

O projeto original previa a realização do evento CLAI na Praça, com atividades presenciais oferecidas em áreas públicas, e do CLAI Aberto, um roteiro de visitas aos locais integrantes do circuito. Porém, o agravamento da pandemia e o aumento das restrições à circulação de pessoas exigiu a adaptação ao formato virtual e conversão das visitas em um mini documentário em vídeo – que será exibido no último dia do festival.

“O circuito de arte de Campinas certamente é muito mais forte hoje do que há um ano e o CLAI certamente foi fundamental neste sentido. É muito diferente trabalhar sozinho e saber que temos uma rede de apoio e trocas com a qual podemos contar”, conclui Ana. 

Para quem ficou interessado, disponibilizamos abaixo a programação completa do Circuito Livre de Arte Independente de Campinas, a ser transmitida pelos perfis de Instagram e Youtube do projeto. 

No dia 25/04, a performance coletiva “TEMPO CORPO versus TEMPO VIRTUAL”, com a artista Cecília Stelini do AT|AL 609, conta com participação virtual do público. Foto: Mateus Stelini

Programação


17/04 | sábado

11h – Videoaula: Tudo é Desenho (ou pelo menos pode ser…), com o artista visual Marcelo Moscheta, do Ateliê/8. Inspirado em escritos de artistas como Cildo Meireles, Richard Long, De Kooning e outros, a aula aberta vai tratar do desenho e sua realização em diferentes suportes, técnicas e formatos;

17h – Videoarte: 128 dias, da artista visual Estefania Gavina, do Ateliê CASA. A partir da proposta original da intervenção Divindades Inumanas, a artista explora em seu jardim e ateliê fragmentos de instantes da vida cotidiana, construindo poeticamente seu olhar para o tempo presente e a finitude da vida;

18/04 | domingo

11h – Intervenção urbana: pintura ao vivo de um mural com o artista visual Fabiano Carriero, do Ateliê Folha, e participação da artista visual Eduarda Ribas. As pinturas de Carriero trazem arquétipos de nossa brasilidade, levando as cores e dores do povo para a rua.

20/04 | terça-feira

20h – Fotofilme: Sessão Festival Hercule Florence I, que tem como matriz e inspiração a invenção isolada da fotografia no Brasil, em Campinas, por Hercule Florence, em 1833.

21/04 | quarta-feira

20h – Fotofilme: Sessão Festival Hercule Florence II.

22/04 | quinta-feira

20h – Fotofilme: Sessão Festival Hercule Florence III.

23/04 | sexta-feira

20h – Videoarte: Sessão HIPOCAMPO. Fundado em 2016, o HIPOCAMPO dedica-se à construção de um acervo público, multidisciplinar e digital, hoje formado por cerca de 250 peças de autoria de mais de 40 colaboradores.

24/04 | sábado

14h30 – Oficina: Impressão e colagem de painel em lambe-lambe, com os artistas Luciana Bertarelli, Marcio Elias e Simone Peixoto, do Xilomóvel Ateliê Itinerante. Oficina ao vivo com demonstração da impressão de xilogravuras e criação de um painel de 3×3 metros em lambe-lambe.

18h – Performance: Consumindo Kairós, com o artista visual MIRS Monstrengo, do Estúdio Casa Ímpar. MIRS propõe uma performance ao vivo, trazendo elementos simbólicos coletivos e de sua poética que tratam de diferentes concepções da ideia de tempo nos dias atuais.

25/04 | domingo

11h – Videoaula: Câmeras Obscuras, com Ana Angélica Costa, artista visual e gestora da Casa de Eva. A partir da proposta original da intervenção Uma árvore com frutos estranhos, em que uma série de pequenas câmeras obscuras pendem dos galhos de uma árvore, será explicado o processo de formação da imagem pelo princípio da câmera obscura.

17h – Performance coletiva: TEMPO CORPO versus TEMPO VIRTUAL, com a artista Cecília Stelini, do AT|AL 609 – lugar de investigações artísticas. Uma ação que questiona a presença física e a presença virtual de um corpo, evidenciando situações que nos são impostas. Quando o corpo físico é realmente necessário? Realizada pela plataforma Zoom em tempo real, com participação do público. Inscreva-se para a performance coletiva clicando aqui.

29/04 | quinta-feira

20h – Mini documentário sobre os Espaços Membros do CLAI. Vídeo que mostra os espaços e iniciativas participantes do Circuito Livre de Arte Independente de Campinas e substitui o CLAI Aberto, evento que faria a visitação presencial aos espaços em um passeio de bicicleta. Transmissão pelo YouTube, com participação dos gestores dos espaços pelo chat. Duração: 30 minutos.

Três filmes em destaque no Festival É Tudo Verdade 2021

Leila Mustafa, em foto de Jean-Matthieu Gautier, durante as gravações de "9 Dias em Raqqa". Foto: Divulgação É Tudo Verdade.
Leila Mustafa, em foto de Jean-Matthieu Gautier, durante as gravações de "9 Dias em Raqqa". Foto: Divulgação.
Cartaz do Festival É Tudo Verdade 2021. Foto: Divulgação.
Cartaz do Festival É Tudo Verdade 2021. Foto: Divulgação.

Em 2021, o Festival É Tudo Verdade fica mais uma vez longe das salas de cinema, por conta da pandemia. Realizada em formato inteiramente virtual, a edição deste ano exibe sessões digitais até este domingo, 18 de abril, dia da cerimônia de premiação. Se por um lado a saudade do ambiente físico dos cinemas é um revés, o ponto forte de um festival disponível na web é o acesso. Para assistir aos filmes basta entrar no site www.etudoverdade.com.br. Lá, vá em “Programação”; ao clicar no filme desejado o visitante será direcionado para a página do festival na plataforma de streaming Looke, e então é só começar o filme. Entre os 69 selecionados para o festival deste ano, os filmes 9 Dias em Raqqa, Mil cortes e Vicenta são alguns dos que merecem ser vistos. Embora tenham temporalidades diferentes e produções de países distintos, os três são sobrevoados por temas comuns, caros ao debate político contemporâneo: os direitos da mulher, a liberdade de imprensa e a importância do jornalismo para a manutenção das democracias.

9 Dias em Raqqa

O título de 9 Dias em Raqqa se refere exatamente ao tempo disponibilizado à jornalista francesa Marine de Tilly para conhecer Leila Mustafa, atual prefeita de Raqqa.

Capturada primeiro pelo Estado Islâmico em março de 2013, a cidade foi palco de grandes conflitos durante a guerra. Eventualmente, o grupo extremista expulsou tanto os simpatizantes da oposição quanto do regime Assad da região. Lá, proclamaram a criação de um califado sob a lei da sharia e, em 2014, fizeram de Raqqa a nova capital na Síria.

Foi apenas em 17 de outubro de 2017 que lideranças militares curdas anunciaram que a cidade havia sido libertada e o EI teria sido expulso da região. Foi nesse momento que Mustafa engajou-se na política, iniciando sua participação nos conselhos civis. Galgando espaço entre os chefes das tribos que ditavam as ordens na Síria, ela tornou-se prefeita com apenas 30 anos. Engenheira por formação, Leila encabeçou a reconstrução de sua cidade e foi imbuída também com a tarefa reconciliatória dentro dessa zona arrasada. “O importante é que agora estamos livres do pesadelo que é o EI, mas lembramos do que passamos, e de viver em medo constante… O nosso povo merece mais que isso, na verdade”, confessa Leila.

Leila Mustafa, em foto de Jean-Matthieu Gautier, durante as gravações de "9 Dias em Raqqa". Foto: Divulgação É Tudo Verdade.
Leila Mustafa, em foto de Jean-Matthieu Gautier, durante as gravações de “9 Dias em Raqqa”. Foto: Divulgação.

No documentário, dirigido por Xavier de Lauzanne, a prefeita é apresentada aos poucos. A cada dia que Marine passa com ela, mais peças da sua história são confiadas ao espectador, da mesma forma gradual que Leila as revela à jornalista. Assim, Marine se ocupa de uma zona crepuscular entre interlocutora (e narradora) e coadjuvante, o nosso intermediário até a personagem de seu livro. Enquanto coadjuvante, as próprias angústias da jornalista aparecem na tela: a despedida da família, a preocupação com sua segurança, a barreira linguística, as consequências emocionais de estabelecer um elo com a sua retratada. “A Leila é tão jovem… É pouco tempo, muito pouco tempo para uma biografia. Mas nesse contexto, quantas vidas ela já viveu?”, ela se pergunta, chegando à conclusão que talvez a sua vida privada esteja sendo sacrificada em meio ao seu dever político: “Sua vida pessoal não existe, o seu carro é um alvo… Leila segue adiante sem se preocupar consigo”.

Como prefeita, sua primeira decisão junto ao Comitê de Cultura e Arqueologia foi restaurar a praça central – local que ficou conhecido, no auge da presença do califado, como “o cruzamento da morte” – e sua memória. “Não reconhecíamos mais as ruas que frequentávamos diariamente”, conta Leila a Marine.

Na cidade, também foram retiradas mais de oito mil minas terrestres deixadas pelo EI e até meados de 2019, 300 mil residentes retornaram à cidade. Embora a estabilização ocorra aos poucos, Marine lembra, no final do filme, que após a expulsão do EI, Raqqa foi sendo esquecida pelos jornalistas, e pela ajuda internacional.

Mil Cortes

Se em 9 Dias em Raqqa a ameaça é a do extremismo, em Mil Cortes, da diretora Ramona S. Diaz, ela aparece materializada no populismo de Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas desde 2016.

Ambos os filmes estão situados sob o guarda-chuva do jornalismo, e da sua proteção. No entanto, enquanto o primeiro permite uma abordagem menos endurecida de Marine de Tilly e Leila Mustafa, o último adota como forma a reportagem clássica, com inserções de dados, gráficos, notícias e filmagens de arquivo – algumas sendo imagens de choque. Essas ferramentas ajudam a entender melhor a complexa narrativa do crescimento de Duterte nas Filipinas, sua política de ódio e o ataque à mídia, em especial, ao Rappler, site de notícias fundado e liderado pela jornalista Maria Ressa, ambos indigestos ao ditador. Sua perseguição a Ressa e seu veículo ficou escancarada quando, no ano passado, a jornalista foi presa por violar a controversa legislação contra “difamação cibernética”, embora o texto que teria levado à condenação tivesse sido publicado seis meses antes da lei entrar em vigor.

Maria Ressa por Molses Saman, para a revista TIME. Foto- Magnum Photos : TIME Magazine.
Maria Ressa por Molses Saman, para a revista TIME. Foto- Magnum Photos : TIME Magazine.

Desde da eleição de Duterte e o início de sua guerra às drogas, o Rappler vem denunciando os abusos do presidente; “A guerra contra as drogas se tornou uma guerra contra os pobres… Tínhamos uma equipe que saía todas as noites e voltava para casa tendo contado pelo menos oito cadáveres à noite”, conta Maria. A principal bandeira de seu governo acabou resultando em 12 mil mortes, muitas de pessoas pobres e usuárias de drogas ilícitas, mas que não tinham ligação com o tráfico. A jornalista lembra que “todo mundo que questionava esses assassinatos nas mídias sociais era automaticamente banido”. 

Pia Ranada, setorista do Palácio de Malacanang para o Rappler, cobre Duterte desde seu período como prefeito. Ela aponta que já nessa época havia uma reputação por ser um “punho de ferro”. Patricia Evangelista, repórter investigativa do portal, ressalta, no documentário, a ligação precisa desse aspecto e a eleição do presidente: “Já houve outros presidentes e outros governos, e as vidas deles [da população] não melhoraram. Duterte chega e ele oferece não apenas mudança, ele oferece vingança. ‘Quem quer que tenha feito isso com você, eu vou acabar com ele’”.

Comum aos demais governos populistas, Duterte oferecia uma imagem de alguém excluído dos círculos políticos da elite em Manila, considerado marginalizado, “um político insignificante”. Outra similaridade é o ataque à mídia; em um pronunciamento do presidente à União, Duterte acusava o Rappler de forjar sua identidade e ser uma empresa comandada por estadunidenses (Maria é filipina, mas cresceu nos EUA). “Uma semana depois do presidente fazer isso nós recebemos nossa primeira intimação”, relata Maria, e lembra: “Eu recebia em média 90 mensagens de ódio por hora”. Em outra ocasião, dirigindo-se a Pia, Duterte afirma que “repórteres têm a liberdade de criticar, mas irão para a cadeia por seus crimes”.

Diante disso, o Rappler começou a reunir dados e investigar as contas que atacavam a mídia. Assim, Ressa e sua equipe encontraram uma máquina do ódio, que utilizava de contas falsas, militantes e pessoas contratadas para fazerem ataques online coordenados. “26 contas podem influenciar até outras 3 milhões”, Ressa explica, tentando ilustrar a dimensão do perigo. Para denunciar isso ao mundo, Maria entra em uma frenética jornada de reuniões internacionais que – muito parecido com Leila Mustafa – quase anulam sua vida privada. Em 2018, a jornalista foi eleita uma das pessoas do ano pela revista Time, angariando algum suporte internacional.

Nos Estados Unidos, em um dos encontros registrados no filme, ela afirma: “Acho que, primeiramente, o que acontece nos EUA acontece com o restante do mundo. Para resolver isso, é preciso agir e vou dar dois motivos para tal. Passei um tempo com o delator da Cambridge Analytica, Christopher Wylie. O delator disse que testaram táticas de como manipular vocês no nosso país. E em outros países do hemisfério sul. Se funcionasse em nossos países então eles importariam para os seus”. Seu alerta é para a “morte por mil cortes” que a democracia vem sofrendo. “Quando houver um número suficiente de cortes, a democracia estará tão fraca, que acabará morrendo”.

Vicenta

A história contada no argentino Vicenta, filme de Dário Doria, começa em 2006, com a personagem título descobrindo que Laura, sua filha mais nova e portadora de deficiência mental, havia sido estuprada por um tio e estava grávida. Junto com Valeria, a filha mais velha, Vicenta precisa conseguir que Laura possa abortar. Afinal, sendo uma criança, como poderia já ser mãe?

Still de "Vicenta". Foto: Divulgação.
Still de “Vicenta”. Foto: Divulgação.

O documentário ganha certa momentum agora, tendo em vista que em dezembro de 2020 a Argentina aprovou o aborto legal e seguro para gestações até a 14ª semana. A decisão foi conquistada com muitos anos de luta, e o caso “LMR vs. Estado Argentino” contribuiu para impulsioná-la.

O tema do documentário é substancioso e urgente, mas seu formato também merece reconhecimento. O filme é inteiramente realizado com animação de bonecos e sua história é contada por uma narradora (Liliana Herrero) que não se dirige ao público de forma direta; onisciente e onipresente, ela conversa com Vicenta, ao invés disso. Com a escrita e a gravação bem executadas, esse elemento do filme torna-se um ás para a contação da história e contorna bem uma das barreiras para o seu feitio: o fato de que seus protagonistas não desejavam aparecer nele. “Como tornar essa história visível sem as duas principais ferramentas dos documentários, a entrevista e o registro direto?”, questionou o fundador e diretor do festival, Amir Labaki. 

O filme acompanha todo o processo de Vicenta, da descoberta da gravidez de Laura até o labiríntico processo com o Estado, “as próximas semanas serão idas e vindas ao tribunal. Para Laura, faltar à escola; para Valeria e para Vicenta faltar ao trabalho. Ir e voltar. Ir e voltar, uma vez e mil vezes”. Da apresentação de uma queixa, em 2011, ao comitê de direitos humanos da ONU ao ato de reparação pública a LMR, em dezembro de 2014.

Na resposta apresentada lia-se: “O comitê de direitos humanos da ONU em abril de 2011 considera que a falta de diligência do estado em garantir o direito legal a um procedimento exigido só por mulheres constituiu, em primeiro lugar, uma violação do direito à igualdade. Considera que a obrigação imposta a LMR de continuar sua gravidez constitui um tratamento cruel e inumano”.

Com isso, o comitê concluiu que o estado deveria reparar Laura, incluindo uma indenização, e tomar medidas para que violações desse tipo não ocorressem no futuro. Em resposta, o Estado deveria apresentar medidas para tal em um prazo de 180 dias. Finalmente, em 2014, a reparação chegou, oito anos depois, e a narradora pergunta a Vicenta: “Quanto dura um abuso de um tio? E das instituições? Quanto dura um dia Vicenta? E um ano? E oito?”.

Feira do Livro da Unesp: dicas do que aproveitar

A terceira edição da Feira do Livro da Unesp está sendo realizada virtualmente, tendo em vista a impossibilidade de realização presencial durante a pandemia de Covid-19. O evento ocorre até o dia 11 de abril de 2021, domingo, às 23h59. Os livros vendidos na feira oferecem, no mínimo, 50% de desconto. Apesar do revés de não poder acontecer presencialmente, o formato digital da feira ajuda a aumentar o seu alcance e também o acesso às obras que estão sendo vendidas. Mas o que aproveitar na feira? Para ajudar nosso leitor com essa escolha, arte!brasileiros perguntou às editoras Autêntica, Cobogó e Ubu quais edições são imperdíveis para quem gosta de arte, cultura, filosofia e o estudo do pensamento crítico como um todo.

No campo dos livros de arte, a biografia do grande pintor modernista Alberto da Veiga Guignard é uma das dicas da Autêntica. Também da editora, O realismo impossível, de André Bazin, lembra que, quando discutimos o cinema, “devemos sempre falar de efeitos de realidade, em vez de reprodução do real“. Falando em real, Slavoj Žižek o interroga na publicação descrita por Christian Dunker como um guia de bolso para iniciar sua jornada através do pensamento do filósofo esloveno. Dunker, aliás é um dos organizadores – junto de Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa, Rose Gurski – da obra coletiva Sonhos Confinados: O que sonham os brasileiros em tempos de pandemia, uma ontologia do tempo presente a partir dos sonhos.

“Ler este livro é uma imersão no pensamento do autor e não há como sair ileso. Sua escrita fere, queima e nos arremessa num turbilhão de pensamentos e sensações”, escreveu Eugênio Lima sobre o livro Pele Negra, Máscaras Brancas de Frantz Fanon, para a arte!brasileiros #53. Lançado pela Ubu no ano passado, é uma das obras que a editora recomenda para a aproveitar na feira. Outra escolha da editora é A invenção da cultura, onde Roy Wagner radicaliza a reflexão sobre o polêmico conceito de cultura, a partir da ideia de invenção. Seguindo no papo cabeça, Big Tech – A ascensão dos dados e a morte da política, de Eugeny Morozov, é essencial para (tentar) entender o capitalismo de vigilância; para quem gostou do artigo Os robôs serão os artistas do futuro? – publicado na última edição de arte!brasileiros – Big Tech aprofundará algumas das questões abordadas brevemente no texto.

Espaços de trabalho de artistas latino-americano, da Editora Cobogó, permite ao leitor viajar mentalmente e conhecer 27 ateliês diferentes sem sair do isolamento. Memórias da Plantação, obra importante de Grada Kilomba, também pode ser encontrada na feira do livro. A obra é uma compilação de episódios cotidianos de racismo, escritos sob a forma de pequenas histórias psicanalíticas. “Das políticas de espaço e exclusão às políticas do corpo e do cabelo, passando pelos insultos raciais, Grada Kilomba desmonta, de modo incisivo, a normalidade do racismo, expondo a violência e o trauma de se ser colocado como outro“. Lançado recentemente, No tremor do mundo – ensaios e entrevistas à luz da pandemia, organiza uma reflexão multidisciplinar acerca do momento presente da pandemia, não deixando de abordar, também, o pensamento produzido pela tragédia.

Will robots be the artists of the future?

IA e arte Ai-Da Robot
Ai-Da at Abu Dhabi Art. Image: Creative Commons.

On october 25, 2018, the renowned auction house Christie’s put up for sale a work made with an Artificial Intelligence (AI) program. Portrait of Edmond Belamy ended up being auctioned for $ 432,500 (approximately R$ 2.5 million) – about 45 times its estimated value. In place of the artist’s name, however, the blurred portrait was signed with the equation used to generate it. This fact was also used by Christie’s to increase the murmur about their own auction; in a text published by the house it was reported: “This portrait is not the product of a human mind”. However, the formula used by the AI to generate Portrait of Edmond Belamy was created by the human minds that integrate the Parisian art collective Obvious. Regardless, the work was the first to use an AI program to go under the hammer at a large auction house, attracting significant media attention and some speculation about what Artificial Intelligence means for the future of art.

"Portrait of Edmond de Belamy", artwork by Obvious. Image: Reproduction from the website of Christie's. All rights reserved to Obvious.
“Portrait of Edmond de Belamy”, artwork by Obvious. Image: Reproduction from the website of Christie’s. All rights reserved to Obvious.

For the past 50 years, artists have used AI to create, marks Ahmed Elgammal, a doctoral professor in the Department of Computer Science at Rutgers University. According to Elgammal, one of the most prominent examples of this is the work of AARON, the program written by Harold Cohen; another is the case of Lillian Schwartz, a pioneer in the use of computer graphics in art, who also experimented with AI. What, then, sparked the speculations mentioned above about Portrait of Edmond Belamy? “The auctioned work at Christie’s is part of a new wave of AI art that has appeared in recent years. Traditionally, artists who use computers to generate art need to write detailed code that specifies the ‘rules for the desired aesthetic’”, explains Elgammal. “In contrast, what characterizes this new wave is that the algorithms are set up by the artists to ‘learn’ the aesthetics by looking at many images using machine-learning technology. The algorithm then generates new images that follow the aesthetics it had learned”, he adds. The most used tool for this is GANS, an acronym for Generative Adversarial Networks, introduced by Ian Goodfellow in 2014. In the case of Portrait of Edmond Belamy, the collective Obvious used a database of fifteen thousand portraits painted between the 14th and 20th centuries. From this collection, the algorithm fails in making correct imitations of the pre-curated input, and instead generates distorted images, notes the professor.

It’s entirely plausible that AI will become more common in art as the technology becomes more widely available”, says art critic and former Frieze editor, Dan Fox, in an interview for arte!brasileiros. “Most likely, AI will simply co-exist alongside painting, video, sculpture, performance, sound and whatever else artists want to use”, he adds. Fox also points out that we must not forget that “the average artist, at the moment, isn’t able to afford access to this technology. Most can barely afford their rent and bills. This world of auction prices is so utterly divorced from the average artist’s life right now that I think you have to acknowledge that whoever is currently working with AI is coming from a position of economic power or access to research institutions”. While enthusiasm for Portrait of Edmond Belamy may be lulled by motives for progress and yearning for “the future” and innovation, the art critic indicates that, behind the smoke and mirrors, in the end, “AI will be of interest to the art industry if human beings can make money from it”.

Can a robot be creative?

In the year following the sale of Christie’s, Ai-Da was completed. Named after Ada Lovelace – an English mathematician recognized for having written the first algorithm to be processed by a machine – she describes herself as “the world’s first ultra-realistic robot artist with Artificial Intelligence”. Ai-Da explains that she draws using the cameras implanted in her eyes, in collaboration with humans, she paints and sculpts, and also makes performances (check here). “I am a contemporary artist and I am contemporary art at the same time”, acknowledges Ai-Da, only to later pose the question that her audience should already be asking: “How can a robot be an artist?”. Although the question may seem intricate at first, there is another level of this issue that is more challenging: “Can a robot be creative?”

Still in 2003, author and scientific journalist Matthew Hutson explored the topic in his master’s thesis at the Massachusetts Institute of Technology (MIT). In Artificial Intelligence and Musical Creativity: Computing Beethoven’s Tenth, he argues that “computers simulate human behavior using shortcuts. They may appear human on the outside (writing jokes, fugues, or poems) but they work differently under the hood. The facades are props, not backed up by real understanding. They use patterns  of arrangements of words and notes and lines. But they find these patterns using statistics and cannot explain why they are there”. Hutson lists three main reasons for this: “First, computers work with different hardware than the human brain. Mushy brains full of neurons and flat silicon wafers packed with transistors will never behave the same and can never run the same software. Second, we humans don’t understand ourselves well enough to translate our software to another piece of hardware. Third, computers are disembodied, and understanding requires living physically in the world”. On the latter topic, he ponders that particular qualities of human intelligence result directly from the particular physical structure of our brains and bodies. “We live in an analog (continuous, infinitely detailed) reality, but computers use digital information made up of finite numbers of ones and zeroes”.

Ai-Da Self-portrait I, 2019. Artwork by Ai-Da. Image: Ai-Da Robot Project / Reproduction from Ai-Da's website.
“Ai-Da Self-portrait I”, 2019. Artwork by Ai-Da. Image: Ai-Da Robot Project / Reproduction from Ai-Da’s website.

When asked whether the 2003 thesis holds up after almost two decades, Hutson responds to arte!brasileiros that even today he wouldn’t necessarily describe AI’s current artistic outputs as creative, even if it’s visually or semantically interesting, because it doesn’t understand that it’s making art or expressing something deeper. As Seth Lloyd, professor of mechanical and physical engineering at MIT, would put it, “raw information-processing power does not mean sophisticated information-processing power”. Philosopher Daniel C. Dennett explains that “these machines do not (yet) have the goals or strategies or capacities for self-criticism and innovation to permit them to transcend their databases by reflectively thinking about their own thinking and their own goals”. However, Hutson reiterates, “these may be human-centric concepts. AI may evolve to be just as creative as humans but in a completely different way, such that we wouldn’t recognize its creativity, nor it ours”.

Can culture lose jobs to AI?

“Nowadays, when cars and refrigerators are jammed with microprocessors and much of human society revolves around computers and cell phones connected by the Internet, it seems prosaic to emphasize the centrality of information, computation, and communication”, denotes Lloyd in an article for Slate. We have reached a point of no return, and for the next century, the question about the creativity of machines is just one of many uncertainties regarding technology. More palpable, for now, is the possible unemployment crisis triggered by the advances in AI along with robotics.

As an example, a 2013 study conducted by researchers at the University of Oxford found out that nearly half of all jobs in the U.S. were at risk of being fully automated in the next two decades. On a global scale, by 2030, at least twenty million manufacturing jobs can be replaced by robots, according to a more recent analysis by Oxford Economics. This 2019 analysis also warns of the greater risk of repetitive and/or mechanical work opportunities – “where robots can carry out tasks more rapidly than humans” – being eliminated, while jobs that require more “compassion, creativity, and social intelligence” are more likely to continue to be performed by humans. As the art world is not only composed of curators and collectors, it needs to be concerned as well. Earlier this year, during the pandemic, Tim Schneider, market editor for Artnet, warned of this: “What happens when you combine mass layoffs, a keenness to minimize in-person interactions for health reasons, and tech entrepreneurs’ willingness to heavily discount their devices so they can secure potentially lucrative proof of concept in the cultural sector?

Bringing the qualitative optic to the quantitative one presented by Oxford Economics, the historian and philosopher Yuval Noah Harari would add to the equation the nature of the work and its specialization: “Say you shift back most production from Honduras or Bangladesh to the US and to Germany because the human salaries are no longer a part of the equation, and it’s cheaper to produce the shirt in California than it is in Honduras, so what will the people there do? And you can say, ‘OK, but there will be many more jobs for software engineers’. But we are not teaching the kids in Honduras to be software engineers”.

Agents or tools? AI and ethics

Estimates related to automation appear to be more reasonable. Beyond them, it is difficult to have a clear picture for the future of AI, whether in terms of creativity or consciousness. “Technological prediction is particularly chancy, given that technologies progress by a series of refinements, are halted by obstacles and overcome by innovation”, says Lloyd. “Many obstacles and some innovations can be anticipated, but more cannot”.

For Dennett, in the long run, “strong AI”, or general artificial intelligence, is possible in principle but not desirable. “The far more constrained AI that’s practically possible today is not necessarily evil. But it poses its own set of dangers”, he warns. According to the philosopher, we do not need artificial conscious agents – to what he refers to as “strong AI” – because there is “a surfeit of natural conscious agents, enough to handle whatever tasks should be reserved for such ‘special and privileged entities’”; on the contrary, we would rather need intelligent tools.

As a justification for not making artificial conscious agents, Dennett considers that “however autonomous they might become (and in principle they can be as autonomous, as self-enhancing or self-creating, as any person), they would not—without special provision, which might be waived—share with us natural conscious agents our vulnerability or our mortality”. In his statement, he echoes the writings of the father of cybernetics, Norbert Wiener, who, cautiously, reiterated: “The machine like the djinnee, which can learn and can make decisions on the basis of its learning, will in no way be obliged to make such decisions as we should have made, or will be acceptable to us”.

Regarding the ethical development of AI, the co-director of the Stanford University’s Human-Centered AI Institute, Fei-Fei Li, states that it is necessary to welcome multidisciplinary studies of AI, in a cross-pollination with economics, ethics, law, philosophy, history, cognitive sciences and so on, “because there is so much more we need to understand in terms of AI’s social, human, anthropological and ethical impact”. Still in the academic field, Hutson suggests that “conferences and journals could guide what gets published, by taking a technology’s broader impact into account during peer review, and requiring submissions to address ethical concerns”. Alongside, he points out, funding agencies and internal review boards at universities and corporations could step in to shape research at its nascent stage. At the stage following the publication of scientific findings, “regulations could ensure that companies don’t sell harmful products and services, and laws or treaties could ensure that governments don’t deploy them”.

*Modifications were made to the article for clarity.

Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi: muito além da história de um casarão

Ioiô, nhô ou nhonhô, segundo o dicionário Houaiss, eram termos utilizadas pelos escravizados e seus descendentes para tratar, com reverência, os homens brancos, especialmente patrões e proprietários. Diminutivo de sinhô, nhonhô se referia mais comumente aos homens mais jovens da casa grande. Mas, apesar de se relacionar a tempos distantes, de escravidão e colonialismo, não se pode dizer que a história e simbologia destas palavras estejam guardadas apenas na memória de um passado longínquo do Brasil. Um dos exemplos disso é a existência, no centro da maior cidade do país, de um palacete chamado, ainda hoje, Casarão de Nhonhô Magalhães, uma mansão que agora inspira o novo trabalho dos artistas Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi, Nhonhô – “esse nome neutralizado no vocabulário comum, cotidiano, como é o colonialismo no Brasil”, afirma Beiguelman.

“A palavra [nhonhô] e as dinâmicas de poder que a atravessam perduram no tempo e nas relações sociais ecoando na história de uma elite europeizada e enriquecida pelo café, que urbanizou São Paulo”, diz o início do texto que percorre o vídeo de cerca de 9 minutos – uma “biografia possível de um palacete”, nas palavras de Solange Farkas, diretora do Videobrasil Online, plataforma onde o trabalho fica exposto até 18 de abril. A história do casarão se mistura à história de Nhonhô Magalhães – o barão do café, banqueiro e empresário Carlos Leôncio de Magalhães (1875-1931) -, mas também nos diz muito sobre a história de São Paulo, de suas elites, e da própria formação do Brasil moderno.

Realizado a partir das técnicas da fotogrametria – um processo de construção de um espaço virtual através de fotografias, como explica Sartuzi – e da modelagem em 3D, somadas à colorização por inteligência artificial e à sonorização composta por algoritmos, o vídeo apresenta, com sua “estética tecnológica”, uma atmosfera permanentemente tensa, elétrica e um tanto fantasmática. Sem corpos ou vozes humanas (a própria narração é feita apenas através de legendas), o clima criado se relaciona diretamente à própria história – um tanto hermética e obscura – do casarão.

Situada no bairro de Higienópolis – a “cidade da higiene” onde a elite paulista se refugiava e buscava recriar o modo de vida das metrópoles europeias -, a mansão foi construída entre os anos 1920 e 1930 por Nhonhô Magalhães para ser sua residência familiar. Com 2.000 m2 e cerca de 40 cômodos, construída no chamado estilo arquitetônico eclético e inspirada em construções francesas, a casa ficou pronta já após a morte do cafeicultor e foi o lar de sua esposa e de cinco de seus filhos. Ao longo das décadas seguintes, o edifício – que para alguns ganhou fama de palacete amaldiçoado – se tornou repartição pública, foi tombado como patrimônio histórico e, em 2005, arrematado pelo Shopping Higienópolis em um leilão, com a condição de que fosse mantida uma área para uso cultural. Em 2020, essa área – com entrada apenas pelos fundos da casa – passou a ser ocupada pelo Paço das Artes.

Segundo os artistas, essa história, aqui brevemente resumida, levanta uma série de discussões sobre a mentalidade das elites patriarcais – coloniais ou burguesas -, as transformações urbanas e sociais da cidade, a promíscua relação entre interesses públicos e privados no país e uma visão da cultura como acessório. Assim, a ideia do vídeo “é tomar a arquitetura como dispositivo, não apenas como um prédio em si. A partir de um instrumento e de uma arquitetura particular, transformar aquilo num enunciado discursivo”, explica Beiguelman.

Presença da ausência 

Mas como fazê-lo quando os artistas se deparam com uma série de lacunas de informações, não só documentais, e com a própria impossibilidade de acessar todo o espaço arquitetônico da casa – seja pelo contexto da pandemia, seja pela falta de autorização dos atuais proprietários do edifício? A solução foi explicitar estas ausências, como conta Beiguelman: “Acho que o vídeo inteiro é uma presença da ausência, em todos os sentidos. Os vazios vistos nas imagens em 3D são também uma presença das interdições. Nós não tivemos acesso à casa”. E ela completa: “Tem ainda a presença da ausência de muitas informações. Foi usado um vasto arquivo de documentos, mas a narrativa inclui lapsos, fantasias e ficções”.

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Cena de “Nhonhô”. Foto: Reprodução

Neste sentido, segundo Sartuzi, o uso da fotogrametria ganha ainda mais sentido: “Pois nessa técnica, quando existem pontos em que falta informação, seja pela luminosidade insuficiente ou por outras ausências, o computador não computa aquele ponto, resultando em uma paisagem fragmentada. E isso entra no nosso vídeo junto a esse fosso de falta de informação, a tudo isso que a gente não teve acesso”.

O uso das tecnologias – com Gabriel Francisco Lemos e Bernardo Fontes na equipe – decorrente das pesquisas artísticas tanto de Beiguelman quanto de Sartuzi, não se dá, portanto, de modo gratuito, mas surge para dar conta desta história complexa que decidiram contar. “A tecnologia faz parte de um método de trabalho nosso que não tem uma relação nem tecnofóbica nem tecnofílica, não tem nada da técnica pela técnica, não é uma moda. Esse uso respondeu, inclusive, às possibilidades de fazermos um vídeo nesse contexto: duas pessoas que nunca trabalharam juntas, em meio à uma pandemia, e que se encontraram fisicamente somente uma vez no casarão”.

A colorização feita a partir da inteligência artificial (IA), por sua vez, resultou em uma paradoxal “tonalidade europeia” para uma história passada no Brasil, o que foi intencionalmente mantido pela dupla. Após pesquisar dezenas de programas de colorização por IA, criados para a reconstituição de imagens do passado, Beiguelman percebeu que o resultado era sempre de cores e luzes encontradas nos países do Norte – “já que todo o treinamento dessas ferramentas é feito com grandes arquivos digitalizados europeus”. “Então o resultado é que migrou para dentro do vídeo uma luz que não é produzida aqui, o que deu essa camada que decidimos manter porque, paradoxalmente, ela reproduz o olhar que essas elites tinham sobre si”. E ela conclui: “A IA entrou como mais uma voz de leitura desse emaranhado de colonialismo, elitismos e estrangeirismos que continuam entre nós”.

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Página do Videobrasil Online, onde está disponível também uma conversa com os artistas. Foto: Reprodução

Acervo de Rossini Perez é foco de nova mostra online do Museu Lasar Segall

Rossini Perez em sua residência e ateliê em Copacabana (Rio de Janeiro), 2019. Foto: Arturo Bonhomme.
Rossini Perez em sua residência e ateliê em Copacabana (Rio de Janeiro), 2019. Foto: Arturo Bonhomme.

Em homenagem ao artista Rossini Perez, falecido aos 89 anos, em março de 2020, o Museu Lasar Segall revela a pluralidade de sua obra, conhecida essencialmente pela gravura, na exposição Arqueologia da Criação: Uma imersão no acervo-ateliê de Rossini Perez.

Realizada em formato online, a retrospectiva poderá ser acessada até 1º de julho de 2021 no site www.arqueologiadacriacao.org. Através de um passeio por suas galerias virtuais, a mostra propõe percursos imersivos, com áudios, vídeos e imagens, “para que o visitante se sinta próximo ao artista, como se estivesse manipulando as gavetas de seu ateliê”, como conta a curadora Sabrina Moura. Arqueologia da Criação, aliás, surge como resultado de um intenso trabalho de pesquisa e de convivência com o artista, iniciado em 2017 por Moura. 

“Eu estava estudando a arte senegalesa dos anos 1970 quando descobri que Rossini ajudou a implantar uma oficina de gravura na Escola Nacional de Belas Artes de Dacar naquela época. Na primeira vez em que visitei seu ateliê, queria conhecer as histórias de sua passagem pelo país africano. Mas ele fez questão de me mostrar as colagens que vinha fazendo”, conta a curadora. “Nos encontros seguintes, apresentou outros trabalhos e materiais que guardava em seu acervo. Quando percebi, já tinha sido pega pela armadilha que é o labirinto da memória e da produção artística de Rossini”, relembra.

Rossini Perez em Paris, 1965. Acervo pessoal
Rossini Perez em Paris, 1965. Acervo pessoal

Rossini Quintas Perez nasceu em 1931, na cidade de Macaíba (Rio Grande do Norte). Ele se mudou em 1942 para o Rio de Janeiro, onde testemunhou importantes acontecimentos da cena artística da então capital federal. Em 1951 frequentou a Associação Brasileira de Desenho e teve aulas com o pintor Ado Malagoli. No ano seguinte, foi aluno de Iberê Camargo e, no próximo, de Fayga Ostrower. Ainda em 1953, participou da 1º Exposição Nacional de Arte Abstrata, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ). Na década de 1960, mudou-se para Paris onde conviveu com a vanguarda dos artistas brasileiros sediados na França. Entre eles, Lygia Clark, Arthur Luiz Piza, Sérgio Camargo, Antônio Bandeira e Frans Krajcberg. De 1970 e 1990, o artista esteve em Portugal, Senegal, México, entre outros países, realizando exposições e montando oficinas de gravura. De volta ao Brasil, foi professor no Centro de Criatividade da Fundação Cultural do Distrito Federal, em Brasília, em 1978, e no Ateliê de Gravura do MAM/RJ, de 1983 a 1986.

Revisitar sua obra, de acordo com Moura, tem “um valor notável para as instituições, que têm buscado rever seus acervos e coleções, pois coloca em xeque a própria ideia de uma modernidade central”. Além disso, “o artista guardava seus registros como um arquivista. Tudo era minuciosamente identificado e ordenado. Essa espécie de ‘febre arquivística’ levanta um debate crucial sobre os acervos brasileiros, num momento em que nossos espaços de memória têm sido fragilizados”, diz a curadora. 

Esse cuidado permitiu que Rossini realizasse, alguns anos antes de falecer, uma série de doações para diversas instituições, como o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o Museu de Arte do Rio (MAR), a Pinacoteca do Estado de São Paulo e a Biblioteca Mário de Andrade, entre outros.

Em 10 de junho será lançada uma publicação criada a partir da organização da mostra que abordará aspectos inéditos sobre a obra de Rossini Perez, com textos de Sabrina Moura, Cláudia Rocha (Museu Nacional de Belas Artes), Maria Luisa Távora (UFRJ), Juliana Maués (Unicamp) e Marisa Ribeiro (UFPB).

Assista aqui ao evento de lançamento da exposição.

Jaider Esbell e uma apresentação através do jenipapo

Jaider Esbell em performance na exposição "Apresentação : Ruku" na Galeria Millan, em São Paulo. Foto: Renata Chebel / Galeria Millan

Como pode uma árvore ser uma pajé? Essa é uma das reflexões que o artista e curador Jaider Esbell busca suscitar em Apresentação : Ruku. Reunindo cerca de 60 obras – entre pinturas, objetos e desenhos- na Galeria Millan, a exposição individual coloca o jenipapo em foco, convida o público a dialogar com os saberes que envolvem a planta e as culturas indígenas que os disseminam, e vai além de uma proposta meramente etnográfica.

Apresentação : Ruku parte da mais recente pesquisa do indígena da etnia Makuxi. “Eu e minha mestre estávamos pesquisando o jenipapo [também conhecido como ruku], antes dela falecer em decorrência do Covid-19. A árvore é comum em grande parte do território brasileiro e tem propriedades medicinais. Além disso, é ela que gera a tinta mais popularmente usada para pintura corporal”, conta. A partir desses estudos, Jaider decidiu experimentar outros suportes para essa tinta: não mais o corpo, mas a tela e o tecido.

O artista acredita que a mostra pode ser um ponto de partida para estabelecer diálogos com o nosso agora, falando de território, identidade e da tradição dentro do contexto contemporâneo, criando também uma conexão entre as diferentes realidades que convivem nesse mundo atual. 

Vista da exposição individual de Jaider Esbell “Apresentação : Ruku”, em cartaz na Galeria Millan. Foto: Felipe Berndt / Galeria Millan

Apresentando tradições 

Como propõe o título da mostra, a coleção de obras exposta no Anexo Millan busca apresentar o ruku. A planta é vista por diversas etnias indígenas como uma árvore-pajé, por seu potencial medicinal, de proteção e cura – física e espiritual. “Ela é uma pajé em si mesma, mas precisa de um mediador para criar conexão conosco, precisa do artista para conectá-la a esses mundos aparentemente apartados”, conta Jaider. E brinca: “A árvore não vai levantar, sair andando e dizer ‘eu sou pajé, tenho conteúdo’, ela precisa das pessoas que conhecem minimamente a sua trajetória para apresentá-la”. 

Porém, para muitos ainda é difícil compreender como uma planta pode ser vista dessa forma. “Para essas pessoas, ela é só uma árvore, que pode dar no máximo frutos, sombra e lenha. Acredito que falar que ruku é uma pajé seja uma forma de convidar as pessoas a ir além das paredes brancas cheias de obras que temos na galeria.” Assim, sugere uma abertura aos saberes dos povos originários.  

A proposta de compartilhar esses conhecimentos aparece em continuidade aos recentes estudos do artista sobre o txaísmo. “Txái, a grosso modo, é uma saudação para acolher uma pessoa em sua família. Ao acolher, você abre seu mundo para ela, partilha seu espaço, sua vida, suas dores e alegrias. Essas partilhas muitas vezes se fazem em volta do trabalho e no feitio das medicinas. Apresentação : Ruku não deixa de ser um txaísmo também, porque é a abertura de uma medicina, e é um convite para o outro – o branco – dialogar com a gente e a gente dialogar com eles”, explica. 

Apresentando identidades

Isso nos leva a uma segunda camada de compreensão da mostra. O jenipapo é popularmente conhecido por fornecer uma tinta usada em pinturas corporais, como forma de expressão e proteção. “Quando a gente aplica nos nossos próprios corpos, está também corporificando uma mensagem: seja de que estamos em luto, em guerra, ou em festa – e se estamos em festa informa se estamos solteiros, casados, a região em que a gente vive etc.”, explica. Se através da arte Jaider apresenta a árvore, é através da tinta gerada por seu fruto que o jenipapo apresenta o artista e algumas das facetas de sua cultura. 

O título da mostra, então, refere-se também à uma outra apresentação, ligada à “nossa necessidade de nos auto apresentarmos enquanto povos originários, usufruindo e ocupando esses lugares de destaque das artes, circulando por esses espaços de potências centrais”, compartilha o artista. 

“A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade”, Jaider Esbell, 2021. Foto: Cortesia Galeria Millan e artista

Para reforçar essa ideia, Jaider assina também a curadoria da mostra, contando com assistência da antropóloga Paula Berbert, com quem desenvolve trabalhos há anos. “O fato de eu assumir a curadoria acaba sendo uma questão também política, para edificar um protagonismo. É muito importante que os povos indígenas protagonizem esses espaços da arte que antes eram impensados e impensáveis para nós – e ainda o são, porque ainda há uma indagação preconceituosa sobre a possibilidade de um índio fazer obra e não só artefato”, afirma. E acrescenta: “Essa é uma forma, no campo da pesquisa prática, de construir evidências midiáticas e gerar precedentes para que nos encorajemos como povos e como artistas, para que saibamos que podemos usufruir plenamente das estruturas de mundo”.

Através da curadoria, Jaider consegue melhor expor ao público os diferentes conceitos que permeiam as obras. Um cuidado essencial, a seu ver, pois “é inegável que esteja havendo uma exposição muito maior da diversidade indígena atualmente, e ela é positiva, mas não deixa também de ser delicada e até perigosa”. Para ele, ainda existe um risco de os artistas indígenas serem tirados de cena pelo sistema da arte dominante. “Por isso temos trabalhado com muito cuidado para não deixar o assunto cair no modismo, não deixar que as instituições de arte continuem com uma função meramente etnográfica, que é simplesmente ir nas aldeias, pegar um cocar e expor sem dizer o que é esse cocar, pra que ele serve, como foi feito, em que ocasião deve ser usado. Pois com essa visão você desconecta mais uma vez as realidades e torna novamente um fetiche que reproduz estereótipos.”

Assim, Apresentação : Ruku busca ser mais do que uma introdução, configurando-se como um convite para o diálogo e para uma nova forma de enxergar o mundo e se relacionar com ele, em especial durante e após esse momento crítico. Como finaliza Jaider Esbell: “Desde antes do tempo vir a ser tempo, as plantas partilham entre si a maestria da vida: são portas para portais de mais mistérios. Hoje em crise, humanos, que nos achamos, ainda temos, talvez, as últimas chances de nos conectarmos ao todo. Uma moita de mato, por menor que seja o ramo, contém ali todo o antídoto para o veneno que é a megalópole. Isso nem deveria ser segredo, embora ainda seja – segregação.”

SERVIÇO
Apresentação : Ruku
Anexo Millan: Rua Fradique Coutinho, 1416, São Paulo, SP
A exposição ficará em cartaz até 10 de abril de 2021*
Segunda a sexta, 10h às 19h, sábado, 11h às 15h

*A exposição está temporariamente fechada, seguindo os protocolos sanitários estabelecidos pelo Governo de São Paulo em decorrência da pandemia de coronavírus.