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Previsões (possíveis) para o mercado da arte em 2021

Previsões para 2021. Foto da Art Basel em Miami Beach. Cortesia da feira.
Foto da Art Basel em Miami Beach. Cortesia da feira.

Na ressaca de 2020, o mundo da arte começa a retomar calendários e estabelecer estratégias reformuladas após um ano de eventos sendo adaptados por conta da pandemia e feiras migradas em formatos híbridos com o online. A incerteza ainda cerca qualquer planejamento para o ano que começa, mas mesmo assim alguns especialistas em arte e mercado deram suas apostas para 2021. Em sua coluna Gray Market, o editor da seção de mercado no Artnet News, Tim Schneider, calcula que as principais feiras de arte de 2021 acontecerão conforme planejado: Frieze New York (5 de maio), Art Basel Hong Kong (21 de maio), Frieze Los Angeles (26 de julho), Armory Show (9 de setembro) e Art Basel Miami Beach (dezembro). 

“Se você está contando pontos, isso significa que as duas únicas feiras importantes que estou advertindo são a Art Basel em Basel (prevista para sair em 14 de junho, mas postergada recentemente para 23 de setembro) e a Frieze London / Masters (com lançamento previsto para 13 de outubro)”. Por que essas duas exceções? Schneider explica que a Suíça fez jus à sua reputação em 2020 por estar entre os países mais exigentes e restritos do mundo no que se refere à regulamentação de eventos presenciais durante a crise. “Considere os desafios que já estamos vendo com a distribuição de vacinas e restrições de viagens internacionais relacionadas à saúde, e posso ver os funcionários do governo potencialmente forçando a Art Basel a atrasar um pouco seu principal evento”, ele supõe. 

Já sua ressalva com a Frieze London / Masters recai sobre a estratégia de vacinação adotada pelo Reino Unido: o governo pretende oferecer vacinas a 15 milhões de pessoas – acima de 70 anos, profissionais de saúde – em meados de fevereiro e milhões a mais de pessoas com mais de 50 anos e outros grupos prioritários até a primavera. Só no outono o resto da população adulta receberá uma vacina, justamente para quando a ocorrência da Frieze London está planejada. O mesmo período no ano passado marcou um novo acréscimo no nível de transmissões, algo que poderia ser novamente um empecilho. “A cautela poderia obrigar os funcionários da Frieze a mudar a feira de seu formato tradicional no Regent’s Park para o mesmo modelo distribuído da Frieze Los Angeles 2021”, indica o editor.

Com todo o zelo para a última edição da Frieze de 2021, por que Schneider está confiante com a ocorrência da primeira, em Nova York, ainda em maio? Uma resposta pode ser a oferecida por Victoria Siddall, diretora do conselho da feira na metrópole americana. Em entrevista ao colunista do The New York Times Scott Reyburn, Siddall já havia sinalizado que “Nova York é uma das poucas cidades onde você pode realizar uma feira para 60 galerias internacionais sem ter que contar com um grande público internacional. Há tantos colecionadores na cidade”. Ela afirma: “É uma feira muito menor, mas parece certa para o primeiro semestre.”

Há de se esperar para 2021 uma redução no número de feiras frequentadas pelos galeristas? Talvez sim. A galerista de Marianne Boesky, também de Nova York, planeja atender metade das feiras às quais comparecia há cinco anos, por exemplo, ressaltando que a necessidade de frequentar os eventos e seu encarecimento gradual levaram-na a um ponto em que a comparação entre a receita da galeria e as despesas gerais em feiras de arte – sem contar horas de trabalho -, quase não atingiam o ponto de equilíbrio.

Previsões 2021. O leiloeiro Oliver Barker presidindo os leilões eletrônicos globais da Sotheby's. Cortesia da Sotheby's.
O leiloeiro Oliver Barker presidindo os leilões eletrônicos globais da Sotheby’s. Cortesia da Sotheby’s.

Para além da permanência das feiras presenciais, Schneider se arrisca entrevendo um aumento nos leilões online devido a um número de compradores dispostos a gastar (“livremente, mas não de forma imprudente”) depois de um ano em que reduziram os luxos; sua aposta é que finas obras de arte serão vendidas em leilão, embora “troféus não façam parte do pacote”.

E como ficam os famigerados viewing rooms? “Minha sensação é que, uma vez que até mesmo a programação física limitada entrou em cena, manter um programa digital simultâneo tornou-se uma proposta cada vez mais de alto esforço / baixa recompensa para revendedores com recursos modestos”, explica o editor. Ele complementa notando que caso feiras de arte virtuais continuem após o retorno de suas contrapartes ao vivo, “alguns desses negociantes vão decidir que o ciclismo contínuo de suas próprias salas de exibição online não vale mais a pena, especialmente se eles ainda puderem participar de feiras virtuais”.

Sejam os viewing rooms ou leilões virtuais, para a consultora de arte Emily Tsingou: “O legado duradouro de 2020 será que a confiança em um formato puramente digital não é a solução para o futuro do mercado de arte”, como dito em entrevista ao The Art Newspaper.

LEIA MAIS: Na edição #53 de arte!brasileiros foi publicada uma reportagem que traçava um panorama do mercado da arte no Brasil em 2020, escutamos galeristas e outros agentes do mercado nacional, colocando em cheque tais adaptações ao ambiente virtual e se elas haviam sido benéficas, ou não. Confira acessando este link.

Pinacoteca inaugura mostra de Fayga Ostrower, uma das pioneiras da gravura abstrata

Para iniciar a sua programação de 2021, a Pinacoteca de São Paulo abre, no dia 1° de fevereiro, a mostra Fayga Ostrower: Imaginação Tangível, individual de uma das mais destacadas artistas do Brasil no século 20. Com 130 trabalhos, a exposição traça um panorama da produção de Fayga Ostrower (1920-2001), pioneira da gravura abstrata no país, nascida na Polônia e naturalizada brasileira após sua chegada ao Rio de Janeiro em 1934.

A exposição, com curadoria de Carlos Martins, faz parte das celebrações do centenário de nascimento da artista – “autodidata, inovadora e múltipla em suas realizações” – e está organizada a partir dos principais interesses que norteavam sua pesquisa. Segundo o texto de apresentação da mostra, “o público poderá apreciar a pluralidade das obras que se relacionavam com a literatura, estamparia e arquitetura, ampliando os limites tradicionais das técnicas de xilogravura e gravura em metal, criando um vocabulário muito particular”.

Fayga Ostrower
Ilustração para a capa de “Invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima, 1952. Foto: Isabella Matheus/ Pinacoteca de São Paulo

Em um primeiro núcleo, a exposição perpassa os anos de formação de Fayga, onde é visível o uso das narrativas literárias e a inspiração em livros para criar imagens e aprimorar o aprendizado da gravura. Nesse período, a artista ilustrou livros como O Cortiço, Invenção de Orfeu e Terra Inútil. O segundo momento da mostra apresenta o período em que Fayga Ostrower passa a obter reconhecimento nacional e internacional, e no qual ela dá uma grande virada em sua carreira – na década de 50, a artista abandona a figuração e parte para abstração e para composições mais livres.

O terceiro período contemplado pela exposição, em núcleo intitulado Expressões Gráficas, mostra a aproximação de Fayga, já no final dos anos 60, com outras técnicas de trabalho, como serigrafia e litografia. Estão aí também os cartazes de divulgação das exposições de Fayga, desenhados pela própria artista. “Ela tinha essa curiosidade de imagem impressa, sem preconceito. O que interessava era a multiplicação da imagem, fazer uma proposta visual que possa e tenha caráter, mesmo que multiplicado sobre o papel por qualquer tipo de mídia”, afirma Martins no texto de divulgação.

Fayga Ostrower
“Bambús”, 1953, serigrafia sobre tecido. Foto: Isabella Matheus/ Pinacoteca de São Paulo

Uma das mais destacadas artistas brasileiras de seu tempo, Fayga Ostrower recebeu o Grande Prêmio Nacional de Gravura da Bienal de São Paulo (1957) e o Grande Prêmio Internacional da Bienal de Veneza (1958), além de prêmios nas bienais de Florença, Buenos Aires, México e Venezuela. Para a exposição na Estação Pina, um catálogo bilíngue (português e inglês) foi produzido com imagens das obras da Fayga, mostrando sua trajetória e reunindo textos de Carlos Martins e de Adélia Borges.

*Leia também “Acervo Radical”, texto de Fabio Cypriano sobre a nova disposição da coleção da Pinacoteca do Estado.

Serviço: Fayga Ostrower: Imaginação Tangível
Estação Pinacoteca – 2° andar
Largo General Osório, 66 – Santa Ifigênia
Gratuito (a entrada só é permitida com a reserva pelo site www.pinacoteca.org.br)

 

 

Arte sul-coreana dos tempos do Antropoceno ganha espaço no Videobrasil Online

Cena de "Sound Graden", de Jeamin Cha. Foto: Divulgação

Já faz alguns anos que, de modo crescente, as discussões em torno do Antropoceno se tornaram pauta fundamental na pesquisa e produção de artistas contemporâneos ao redor do mundo. Se temáticas como a destruição da natureza já estavam presentes nas artes visuais há mais tempo, a urgência da crise ambiental e a consolidação de um novo conceito – que se refere ao período em que a ação humana na natureza é tamanha e tão destrutiva que passa a representar uma ameaça à própria vida no planeta – se mostraram incontornáveis na criação artística realizada nas mais variadas linguagens e suportes. 

Dentro deste contexto, ainda parece raro no mundo ocidental, e no Brasil mais especificamente, um olhar atento para a produção oriental referente a esses temas, em países como, por exemplo, a Coreia do Sul. “Desde o início, o objetivo desse projeto curatorial era mostrar o Antropoceno não ocidental”, conta Juhyun Cho, curadora da mostra Antropoceno: Coreia x Brasil 2019-2021, em cartaz desde o começo de janeiro na plataforma Videobrasil Online. Suprir parte desta lacuna, portanto, é um dos objetivos da exposição, que reúne contundentes trabalhos audiovisuais de seis artistas coreanas contemporâneas: Hayoun Kwon, Sanghee Song, Ji Hye Yeom, Jeamin Cha, Eunji Cho e Song Min Jung.

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Cena de “Future Fever”, de Ji Hye Yeom. Foto: Divulgação

A data presente no título se refere ao início, em 2019, de um projeto mais amplo de cooperação entre a Associação Cultural Videobrasil e o Ilmin Museum of Art, em Seul – do qual Cho é a curadora chefe -, que apresentou uma mostra de artistas brasileiros no museu coreano. A segunda exposição, com os trabalhos dos artistas coreanos, seria realizada presencialmente no Brasil em parceria com o Sesc, mas acabou migrando para a nova plataforma do Videobrasil por conta da pandemia de Covid-19. Apesar da mudança forçada, o novo formato se mostrou coerente com a pesquisa da curadora coreana – bastante focada na relação entre arte e novas mídias – e com o suporte dos trabalhos, que misturam principalmente filmagens e animações 3D. 

Para Cho, a apresentação dos 11 vídeos – “altamente narrativos” e com duração entre 5 e 35 minutos – em ambiente virtual, permitindo ao visitante número irrestrito de acessos, a qualquer horário ao longo de um mês, “parece ser vantajosa para entregar mensagens ao público, que pode viver uma imersão e apreciação mais completa”. De fato, a disponibilidade de tempo parece favorecer a mostra, dada a densidade dos trabalhos, com narrativas por vezes fragmentadas e com múltiplas camadas de apreciação, em um emaranhado de visões sobre as questões sociais e geopolíticas da Coreia, mas também relacionadas às questões globais contemporâneas.     

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Cena de “Sound Graden”, de Jeamin Cha. Foto: Divulgação

Apesar dos diferentes temas tratados, a percepção sobre um mundo distópico legado ao futuro pelo Antropoceno percorre a maior parte dos trabalhos. Segundo Cho, “são artistas que operam na fronteira entre normalidade e aberração, em obras que, de formas diferentes, baseiam-se no documental”. O ficcional e os traços de surrealismo que surgem nos filmes e animações não deixam de estar conectados a realidades conflituosas enfrentadas no mundo, especialmente em regiões periféricas ou por grupos desfavorecidos. “Os trabalhos não apresentam a visão utópica de que este mundo capitalista será derrubado ou se tornará melhor, eles mostram a cegueira ou o lado invisível da crise e da realidade que enfrentamos”, afirma. “Os artistas estão falando diretamente sobre a crise e sobre quem está sofrendo com ela, por meio de fatos históricos e narrativas de ficção cientifica”, explica.

Entre os universos retratados surgem histórias passadas em lugares como a DMZ (Zona Desmilitarizada entre as Coreias do Sul e do Norte), os hospitais, ruas e estádios de Seul, as estradas do interior do país ou o mar de seu litoral, mas também em um povoado na Nigéria, em Paris ou em áreas da Amazônia brasileira. Há ainda lugares não identificáveis, vistos em épocas passadas ou futuras – por vezes com estética semelhante a de videogames – e referências a Leviatã, a Inteligência Artificial, a psicologia, ao militarismo e ao feminismo. 

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Cena de “Wild Seed”, de Min Jung Song. Foto: Divulgação

Mulheres coreanas 

Em consonância com o enfoque dado há mais de 30 anos pela Associação Cultural Videobrasil à produção artística do chamado Sul Global – termo referente a países ou grupos marginalizados no quadro geopolítico global -, a aproximação entre Brasil e Coreia permite traçar diálogos ainda pouco vistos nas instituições culturais de ambos os países. “Acima de tudo, pensei que a solidariedade centrada em cada área era significativa para que os objetos de discriminação, exclusão e alienação que a modernidade e o capitalismo global criaram pudessem adquirir uma nova identidade”, explica Cho.

Para Solange Farkas, diretora do Videobrasil, “é de grande relevância mostrar para o público sul-americano as visões filosóficas, políticas e ecológicas de mulheres artistas coreanas que exploram com extrema habilidade a relação entre a terrível crise global em curso e o impacto da atividade humana em nosso planeta”. O fato de serem apenas artistas mulheres, ressaltado por Farkas, não deixa de estar associado à busca pela visão dos grupos menos favorecidos, como explica a curadora coreana: “Eu também queria mostrar como o patriarcado do capitalismo explorou as mulheres e a natureza, e como é importante construir uma coalizão global com vítimas da corrida ocidental pela acumulação de capital, incluindo trabalhadores, povos originários e várias minorias sujeitas à opressão e discriminação pela sociedade moderna. Mas é claro que eu não acho que apenas artistas mulheres podem construir esta solidariedade”.

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Cena de “A Night with a Pink Dolphin”, de Ji Hye Yeom. Foto: Divulgação

Ao fim do período de um mês no ar, no dia 1º de fevereiro, Antropoceno: Coreia x Brasil 2019-2021 dá lugar na plataforma do Videobrasil a outra exposição concebida em parceria por Farkas e Cho, uma individual de Ayoung Kim. Uma das mais destacadas artistas contemporâneas do país asiático, Kim foi a representante da Coreia do Sul na 56a Bienal de Veneza de 2015, teve importantes mostras individuais no Festival de Melbourne e no Palais de Tokyo (Paris), além de ter participado de diversas bienais e festivais de cinema ao redor do mundo.

Segundo Cho, Ayoung Kim apresenta, em vídeos, performances e instalações, questões contemporâneas como a história coreana moderna, a política do petróleo, o imperialismo territorial e a movimentação do capital no mundo. Em suas experimentações, a artista apresenta ainda um vasto trabalho com arquivos e com desenvolvimento de dados e evoca formas pouco familiares de ler, ouvir e pensar sobre as condições do mundo. A mostra será a quarta a ocupar o espaço do Videobrasil Online, inaugurado em setembro com o documentário Abdoulaye Konaté – Cores e Composições, seguido pela exposição Sacudimentos, de Ayrson Heráclito, e da mostra coletiva Antropoceno, das artistas sul-coreanas.

Um outro céu sobre uma mesma terra

"Refúgio" (2020), Arissana Pataxó. "Uma obra que remete ao luto, mas também à luta, pois mesmo em meio ao caos das mortes e sofrimento do luto, muitos povos foram atingidos por conflitos e tensões por conta da luta pelo território. No centro, traz uma pessoa como se tivesse de saída, procurando um refúgio", conta. Foto: Cortesia da artista/Divulgação

Ameaças de invasão territorial, desmatamento e exploração de recursos ambientais são apenas alguns dos muitos conflitos listados no Mapeamento de Violações dos Direitos Indígenas no Nordeste do Brasil. A pesquisa é um dos componentes de Um outro céu, projeto que une arte a estudos de ecologia política e antropologia para colocar em foco a luta indígena brasileira. Realizado por uma organização em rede, ele é ligado a professores e estudantes das Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e Universidade de Sussex na Grã-Bretanha.

Um mapa interativo repleto de símbolos que remetem a grafismos indígenas é o nosso primeiro contato com o projeto, ao entrar no ambiente virtual onde está exposto. Elaborados pelo artista e designer Denilson Baniwa, os desenhos designam diferentes tipos de conflito, e nos permitem localizar especificamente as batalhas vividas pelas populações de cada território. Ao lado delas, pequenas imagens nos permitem enxergar outro aspecto dessas mesmas localidades: a arte. É clicando em cada uma dessas fotografias que somos redirecionados às obras que compõem a exposição Um outro céu.

“Onde há conflito, também há arte. Territórios indígenas são territórios de guerra contra a conquista, de resistências anticoloniais, de retomadas, de reocupações, de criação e recriação de mundos, de arte”, apontam os coordenadores na descrição da plataforma online. E assim ocorre. Para a artista e professora Glicéria Tupinambá essa relação estabelecida entre arte e luta por território é um dos grandes diferenciais da iniciativa. “A visão de fora, geralmente é só para o belo, para a arte indígena. Mas assim não entendem quais conflitos influenciam ou acabam com esse belo.” 

Jurema Machado, Felipe Tuxá e Felipe Milanez, professores e coordenadores do projeto, contam que essa foi uma das maiores preocupações durante a elaboração do site. Era importante que os visitantes fossem além da contemplação das obras e entendessem os contextos que envolvem esses artistas, principalmente no momento atual. “Você olha os trabalhos artísticos e tem acesso a uma narrativa de muita dor, uma narrativa da Covid-19 dentro de um contexto extremamente conflituoso que não começou com a pandemia e nem vai acabar com ela. Você vê a exposição e depois fecha o site, segue com a sua vida. Mas aqueles conflitos não cessaram de acontecer”, explica Felipe Tuxá. Por isso, os coordenadores julgavam importante unir as imagens das obras às suas explicações e relacioná-las às tensões e ao momento de pandemia. Para Glicéria, é isso que dá ainda mais força ao projeto, pois é pela arte que ele consegue dar mais visibilidade às causas ali retratadas: “A arte tem uma linguagem mais acessível, então chega a um outro contexto, a um outro grupo, a um outro olhar”. 

Entre academia e ação política

Porém, não foi com a arte que Um outro céu teve início. Ainda muito antes do resultado que vemos hoje, um grupo de professores conseguiu financiar pela Academia Britânica uma pesquisa em rede internacional: o Desenvolvimento “Sustentável” e Atmosferas de Violências, coordenado por Felipe Milanez (UFBA) e Mary Menton (Universidade de Sussex). Nas discussões dentro do projeto, surgiu a ideia do Mapeamento das Violações aos Direitos Indígenas no Nordeste do Brasil, hoje financiado pela Universidade de Sussex, na Grã-Bretanha, e coordenado por Felipe Cruz Tuxá (Uneb), Felipe Milanez (UFBA), Jurema Machado (UFRB) e Mary Menton (Universidade de Sussex). “Quando estávamos no auge do mapeamento fomos atravessados pela Covid-19”, conta Machado. 

A iniciativa então crescia. À princípio, passaram a desenvolver uma nova frente, um plano de pesquisa emergencial para investigar os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas. Mas, para os envolvidos, algo ficava ainda mais claro neste momento, os conflitos, unidos ao descaso frente as populações indígenas na pandemia de coronavírus, tinha (e tem) nome: genocídio. O momento intensificava a necessidade de visibilizar as violências sofridas e eles trabalhavam neste sentido. Porém, um ponto não era abarcado pelo projeto: “A gente precisava pensar: no meio de um processo de genocídio, como os povos indígenas vão sair disso e se reconstruir?”, compartilha Felipe Milanez. “Não teria como trabalhar pensando numa alternativa que não fosse em diálogo com as artes. Então passamos a trabalhar com artistas das comunidades indígenas como interlocutores, como pessoas com um pensamento de enfrentamento a esse genocídio, com uma visão de outros mundos, de um outro céu”, conclui. 

Desse diálogo, nasceu a exposição que dá nome ao projeto interdisciplinar. Quinze artistas de diferentes etnias foram convidados a participar e receberam um prêmio de 2 mil reais por suas produções. “Quisemos ter pessoas que são conhecidas e se reconhecem como artistas, bem como artistas que são vistos nas suas comunidades como aquelas pessoas que são muito especiais em fazer coisas se encantarem”. Hoje, a exposição conta com Arissana Pataxó, Eduarda Yacunã Tuxá, Glicéria Tupinambá, Olinda Yawar Tupinambá, Edivan Fulni-ô, Leide Pankararu, Lindaura Xukuru-Kariri, Ziel Karapotó, Benício Pitaguary, Reginaldo Kanindé, Arawi Suruí, Irekran Kayapó, Kryt Gavião Akrãtikatejê, Isael Maxakali e Ailton Krenak; e traz obras diversas, com cantos, desenhos, vídeos, mantos sagrados, poemas, cerâmicas, entre outros, caminhando entre expressões artísticas, políticas e espirituais, cruzando essas esferas e as costurando em uma só expressão.  

Entre arte e guerra

“É muito pungente que não é uma coisa apenas de uma expressividade artística. Acho que tem muito mais do que essa dimensão. Tem essa dimensão da guerra, é essa dimensão da luta, é essa dimensão do cotidiano que se repete na pandemia, dia após dia de quarentena”, diz Felipe Tuxá. E destaca: “Não dá para pensar Covid num mundo indígena sem pensar autodeterminação, soberania dos territórios e extrapolar todos esses limites do formato clássico do que é considerado arte”.   

Como explica o professor, ao pensarmos os conflitos vividos pelas populações indígenas, os territórios tornam-se centrais – são unidade comum tanto das lutas com garimpeiros, dos desmatamentos, como da pandemia. “Uma coisa que é importante marcar é que os conflitos que mapeamos vem principalmente da luta pela terra, da disposição dos povos indígenas de não abandonarem nunca seus territórios. Então se você perceber, as obras também têm muita relação com isso”, explica Jurema Machado. A exposição de certa forma reflete e intensifica essa busca por um outro céu – mais apurado nas realidades indígenas e menos genocida – sobre essas mesmas terras.

“Acho que não existe exposição de arte indígena, feita por um indígena, descontextualizada. A partir do momento que fazemos uma exposição, já estamos lutando contra uma sociedade que acha que não podemos ser artistas”, afirma Benício, participante da mostra e liderança jovem do povo Pitaguary. Para ele, a arte une-se à luta diretamente. “Acho importante mostrar que os indígenas estão presentes e ocupando esses espaços. A arte é mais um meio de estar ocupando, resistindo e fazendo uma luta”, explica. 

Mas outro aspecto de Um outro céu corrobora essa ocupação. Todos os estudantes pesquisadores bolsistas envolvidos nas propostas acadêmicas são de etnias indígenas. “Nos últimos dez anos, percebemos muita entrada de estudantes indígenas nas universidades, mas eu, particularmente, via os estudantes ali, mas não os via nos grupos de pesquisa, com bolsa de iniciação científica, por exemplo”, conta Jurema Machado. Felipe Tuxá faz coro. “De um modo geral a gente passa por um processo de marginalização muito forte na universidade e de uma lógica que tenta definir quais são os lugares previstos para nós lá dentro”, conta o professor universitário, que ingressou na faculdade em 2005, sendo um dos primeiros dentro de políticas afirmativas. Mas explica que a decisão de optar por apenas bolsistas indígenas é mais complexa do que parece. 

“No Giro do Maracá”, de Benício Pitaguary. “O maracá é como se fosse um universo dentro de uma cabaça, e as sementes como se fossem os planetas e as estrelas. Quando giramos o maracá, estamos agitando esse universo e gerando energia. Então, pra gente, o maracá é um artefato de muito poder, porque ele tem essa capacidade de afastar as energias ruins e chamar os espíritos bons. Eu quis representar que nesse momento de pandemia, o que une os povos indígenas são as orações desse giro do maracá”, conta. Foto: Cortesia do artista/Divulgação

“Fazemos isso não só por ser um projeto sobre indígenas, mas por entender o potencial de enunciação de um sujeito indígena falar sobre sua própria realidade. Ninguém está criando nada novo, a gente está apenas adequando essas ferramentas que foram tão excludentes no passado e continuam sendo. Vemos isso como uma potência de criação de um outro tipo de conhecimento”, diz. Felipe Milanez explica que na própria proposta apresentada à Universidade de Sussex, a escolha por bolsistas indígenas não foi uma política afirmativa, mas uma escolha metodológica, uma proposta de agregar uma nova forma de conhecimento e uma outra qualidade de olhar ao projeto. Ao lado de colaboradores não bolsistas (entre indígenas e não indígenas), os estudantes foram responsáveis pelo mapeamento das violações dos direitos das comunidades, conversando com lideranças dos diferentes povos, com contatos que já tinham nas regiões e, por vezes, com antropólogos que trabalham nas áreas. Além disso, fizeram contato com outras aldeias para entender os impactos da Covid sobre as diferentes etnias. Sempre em atividades coletivas, “porque nós, povos indígenas, sempre pensamos e trabalhamos na coletividade. Essa coletividade é o que nos fortalece a sempre seguir”, explica a bolsista Daniela, monitora do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, de seu povo, graduanda do curso de Museologia na UFRB e membro do Coletivo de Estudantes Indígenas na universidade.

“Acho isso um ponto muito importante, no sentido de dar autonomia dos povos indígenas fazerem suas próprias pesquisas e artes da maneira que achamos que deve ser feito, não em uma forma colonial”, aponta Benício Pitaguary. “Por muitas vezes somos só sujeitos de estudo. Hoje, com todo o nosso conhecimento fora e dentro das aldeias, sabemos que podemos ser os próprios agentes da nossa história”, afirma Daniela Jenipapo-Kanindé. E complementa: “Essa experiência me fez entender que nós é que temos que contar a verdadeira história dos nossos povos e não apenas ouvi-las vindo de outros pesquisadores não indígenas. Nós conhecemos as dores, porque muitas vezes passamos por situações parecidas, e isso faz com que tenhamos a liberdade de contar com mais precisão.”

Para Raquel Jenipapo-Kanindé, graduanda em Serviço Social pela UFRB e membro do coletivo identitário na universidade, a participação de indígenas tanto na exposição quanto no levantamento de dados é essencial para fortalecer a luta pelos territórios. “Esse projeto é também enfrentamento, porque a partir do momento que a gente registra e estuda isso, cria nossas próprias estratégias para que possamos ir de encontro com os homens brancos, com as pessoas que querem tomar nossa terra, nossas águas e nossas matas”.

Frame do filme “Equilíbrio”, de Olinda Yawar Tupinambá. “Equilíbrio foca na problemática ambiental e em como a civilização tem usado do planeta de forma hostil e desarmônica. ‘Equilíbrio’ é um alerta do espírito das matas para a humanidade”, conta a jornalista, cineasta, performista e ativista ambiental. Foto: Reprodução

Para um outro céu, um olhar sobre a terra

É nesse intercâmbio entre artistas e pesquisadores; entre academia, política e arte que traçam-se as possibilidades de visibilização das lutas e das expressividades. Mas Um outro céu segue em aberto. Hoje, o mapeamento cobre algumas das violações na área de atuação da Apoinme (territórios do nordeste, Espírito Santo e Minas Gerais), além do sul e sudeste do Pará. A perspectiva é de expandir: “É importante justamente para trazer à tona todas as violações que esses povos vêm sofrendo, porque muitas comunidades muitas vezes são invisibilizadas pelos próprios violadores. Eles tentam calar o nosso povo”, conta Daniela Jenipapo Kanindé. 

Se interessou? Acesse o projeto clicando aqui.

Eduardo de Jesus comenta “Parallel”, de Jiwon Choi, no novo Acervo Comentado Videobrasil

Cena da obra "Parallel", de Jiwon Choi. Foto: Reprodução

O curador e professor de Comunicação Social da UFMG Eduardo de Jesus comenta, no novo episódio do Acervo Comentado Videobrasil, a obra Parallel, da sul-coreana Jiwon Choi, trabalho que foi apresentada na 20a edição do Festival Sesc_Videobrasil, em 2017. “Trata-se de um potente filme ensaio em torno de questões da vida social contemporânea da Coreia do Sul”, conta o curador em seu depoimento.

O novo episódio da série é lançado no mesmo momento em que a instituição promove a mostra coletiva Antropoceno: Coreia x Brasil 2019-2021, na plataforma VB Online, com trabalhos de seis artistas sul-coreanas e curadoria de Juhyun Cho.

Nas palavras de Eduardo de Jesus, Parallel “de um lado busca um testemunho contundente das experiências vivenciadas pelo avô da artista na guerra da Coreia, por outro reproduz processos midiáticos que quase estruturam as formas subjetivas típicas da contemporaneidade na Coreia do Sul. Uma profusão de signos típica do sistema midiático”. Deste modo, a obra da jovem artista coreana – com trajetória consistente nas linguagens audiovisuais – faz um paralelo entre dois períodos da história do país, deixando claro continuidades e diferenciações no tempo.

“Isso fica bastante nítido em passagens em que ela aproxima a ambiguidade de sentidos da palavra shot entre ‘atirar’ ou ‘tirar foto’, para produzir uma espécie de reflexão em torno da excessiva produção de imagens na sociedade contemporânea e ao mesmo tempo o intenso processo de militarização pelo qual a Coreia atravessa, desde a guerra”, afirma Jesus. O próprio nome do filme, Parallel (paralelo, em português), também remete à divisão entre Coreia do Sul e do Norte e à DMZ (Zona Desmilitarizada da Coreia), faixa que divide os dois países.

Surge também com intensidade o universo do K-Pop – no filme a própria artista constrói uma banda de K-pop, na qual ela performa todos os integrantes do grupo. Para Jesus, fica claro estar em questão uma luta em busca da identidade. “Se naquele primeiro momento da guerra a questão era a democracia, agora é a identidade”. E ele conclui: “É bem interessante o modo com que a artista constrói uma critica bastante contundente, usando os próprios elementos da cultura midiática para elaborar essa crítica”.

Assista aqui também o depoimento dado pela artista ao Videobrasil em 2017 sobre Parallel. “Eu estou apresentando a cultura coreana contemporânea, resultante da Guerra da Coreia e da cultura popular coreana”, afirma. Ao falar da luta de seu avô, de seus pais e da cultura contemporânea da Coreia da Sul, a artista conclui: “Precisamos aprender mais uns com os outros, apenas escutar e dialogar mais”.

O avô da artista em cena do filme. Foto: Reprodução.

Ainda não conhece o Acervo Comentado?

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Confira os outros episódios neste link.

Sobre Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.

“FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil-Portugal” no Sesc Pompeia

FARSA - sesc pompeia

“Como sentimos a linguagem nos dias de hoje?”. Essa é uma das perguntas que guiou Marta Mestre e Pollyana Quintella na curadoria de FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil-Portugal, mostra em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo.

Aproximando propostas experimentais das décadas de 60/70 da produção de artistas que emergiram no século XXI, no Brasil e em Portugal, FARSA dá ênfase ao poder da linguagem e às estratégias de desconstrução da mesma, em países que compartilham uma língua que foi simultaneamente fator de opressão e vetor de liberdade.

“Uma exposição que relaciona Brasil e Portugal poderia ser lida segundo uma suposta unidade linguística entre os dois países, no entanto o que FARSA busca fazer é justamente o contrário: desconstruir o mito da lusofonia e afirmar que existem muitas línguas portuguesas”, diz Pollyana Quintella. Para as curadoras, o português é um idioma disputado, múltiplo e ambíguo – ao que carrega tanto um caráter colonizador quanto a possibilidade de construção de outros mundos e horizontes – e isso não poderia ser relevado.

É nesse raciocínio que FARSA extrapola a língua falada. “Há nessa exposição muitos trabalhos que falam de linguagens outras, que resistem a essa monocultura colonial. Linguagens do corpo, do silêncio, do ruído, do segredo; e que produzem maneiras de escapar desse fascismo da língua”, explica Quintella. Como apresenta Marta Mestre,  vivemos um momento de proliferação de formas de linguagem cada vez mais diversas, em especial com a forte presença virtual. Por isso, FARSA busca também pensar “como o digital de certa forma veio infletir aquilo que entendemos como linguagem? Como nos posicionamos e como os artistas refletem sobre isso?”, conclui Mestre.

A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com suas curadoras. Assista ao vídeo e saiba mais:

FARSA fica em cartaz até 30 de janeiro de 2021. Para a segurança de todos frente à pandemia de coronavírus, a temperatura corporal de todos é aferida na entrada e o uso de máscaras é obrigatório durante toda a visitação.

Reserve seu ingresso no site do Sesc Pompeia clicando aqui.

Jean Paul Ganem faz land art para ver e saborear na Serrinha

"Desenho Infinito", de Jean Paul Ganem. Foto: Divulgação

Com a obra Desenho Infinito, inspirada em um grafismo da tribo Kaingang, o artista franco-tunisiano Jean Paul Ganem faz um cruzamento instigante entre a arte comestível e a cultura indígena brasileira. A certeza cultural é a chave dessa land art, inserida no movimento artístico inspirado no diálogo entre arte e natureza, surgido no final da década de 60.

Ganem mora entre Paris e Montreal, onde tem ateliê, e agora faz intervenção na Fazenda Serrinha, em Bragança Paulista. Para realizar o trabalho ele se aliou à chef e pesquisadora Bel Coelho, especialista em comida brasileira. “A sugestão dela foi a culinária indígena com plantas capazes de compor o desenho da cestaria Kaingang”. O novo se articula nessa invenção, que propõe um passeio pelos “corredores” assentados em um solo permeado de hortaliças, legumes, flores, plantas medicinais e comestíveis. Adentrar nessa vegetação, com topografia irregular e cartografia simétrica, faz você sorrir para si mesmo, acreditando que a vida no campo é algo extraordinário. O contato com essas plantas, algumas estranhas à mesa do habitante da cidade, constrói uma experiência emancipadora, a fusão da natureza com o urbano.

O Desenho Infinito está ligado à regeneração da terra, conecta o olhar contemporâneo do meio ambiente a uma cultura ancestral e tangencia o objetivo que move a Serrinha, dirigida por Fábio Delduque, artista plástico e dono da fazenda. “As plantas usadas nessa obra são desenvolvidas num sistema agro florestal consorciado com várias espécies, ao contrário da monocultura. Há 20 anos tudo aqui era pasto e, antes do gado, meu bisavô plantava café”. Com isso a terra ficou degradada e sua missão ao lado do irmão foi recuperá-la. “Hoje o bioma funciona, atrai pássaros e animais, na contramão do que muitos estão fazendo com a natureza”, comenta. A intervenção na natureza realizada por Ganem é matizada pelas mesmas preocupações. Ele também se envolve com territórios devastados pelas indústrias, pelo homem e por lixões urbanos. Desenho Infinito foi realizado por uma equipe que conta com arquiteto, agrônomo, estudioso de plantas comestíveis e medicinais e com algumas pessoas da fazenda.

Jean Paul Ganem na Serrinha. Foto: Divulgação

A paisagem tem importância fundamental nas utopias rurais. Ganem chegou à Serrinha há quatro anos acompanhado do chef canadense Michael Stadlander, com que já havia feito um trabalho de land art comestível em Montreal. Ele executava a obra e Michael preparava o banquete no próprio local de trabalho, numa performance em movimento concordante. Michael é pioneiro na gastronomia Farm to Table, que negocia diretamente com os pequenos produtores. Cada planta pode se transformar em um prato de forma e sabor especiais pouco conhecidos. Para Ganem, não há cisão entre o homem e a natureza. Trabalhar na terra e deixá-la pronta para o plantio é o mesmo que estar diante de uma folha em branco à espera de uma inspiração.

Razões analógicas sustentam a ideia desse artista querer intervir na paisagem brasileira. Mas como administrar a produção de um site specific desse porte? Ganem comenta que uma intervenção como essa pode demorar meses para ser concluída porque cada vegetal é colhido em períodos diferentes. Delduque lembra que Desenho Infinito começou a ser plantada em março deste ano e foi influenciada pela pandemia e por um calor intenso. “As verduras já foram colhidas por algumas vezes para o consumo da fazenda, outras encaminhadas para a cooperativa de produtos orgânicos e muitas doadas. A obra de Ganem está envolta na ideia de agro floresta, de horta orgânica e obra de arte, tudo ao mesmo tempo.”

Visto em retrospectiva, o artista há três anos realizou a intervenção Espelho d´Água, com um quilometro e meio de desenho sinuoso feito com a planta napier roxo, envolvendo reflorestação. Ele trabalhou um eco sistema coerente, associando uma floresta tropical às terras sinuosas da Serrinha, na parte mais baixa da fazenda. A vista aérea do Espelho d´Água e algumas intervenções de Ganem em outros países estão no livro Un art amoureux de nature, ao lado das obras de Robert Smithson e de outros ícones da land art.

Fazenda da Serrinha vista de cima. Foto: Divulgação

Ganem se inicia na arte pela pintura, atuando na zona rural, nos arredores de Paris. “Nessa região a paisagem se transforma rapidamente, o trigo passa do verde ao marrom escuro em um mês, sendo quase impossível captar essa transformação”. Com o tempo ele migrou para a land art, negociou com fazendeiros, mostrou esboços do que pretendia fazer e garantiu a eles que a colheita não seria prejudicada. “Convenci um deles a trabalhar com três tipos de trigo ao mesmo tempo, transformando suas terras em um imenso campo xadrez. Os agricultores não só produzem alimentos, eles criam imagens incríveis”. A intervenção na paisagem constrói sua audiência no próprio local onde é feita. Ganem acredita que a arte desenvolvida no campo, além do engajamento social é também pedagógica. “Os agricultores percebem a importância da natureza não só para sua plantação, mas também para as urgências ecológicas do presente e do futuro do planeta”. A ligação desses trabalhos com as preocupações sobre as mudanças climáticas, a destruição do solo é evidente e Ganem entende que os artistas têm a obrigação de se envolverem com essas emergências.

Entre suas land arts destacam-se um campo listrado em forma de código de barras, uma estrada sinuosa próxima ao aeroporto Charles de Gaulle em Paris, que se contrapõe às rotas traçadas pela aviação e O Caminho do Rio, feito no Jardim Botânico de São Paulo. O processo criativo dos últimos 20 anos de Ganem é narrado no documentário A Margem da Paisagem, de 52 minutos, dirigido por Eliane Caffé. Hoje seu trabalho integra o Parque das Esculturas da Serrinha, que reúne intervenções e esculturas a céu aberto, de artistas como Michelangelo Pistoletto, Luis Hermano, José Roberto Aguilar, Lucas Bambozzi, Bené Fontelles, Hugo França, Coletivo BijaRi, Fernando Limberger, Marcos Amaro, Laura Gorsky, Stela Barbieri, Eduardo Srur e Fábio Delduque.

“1978 – Cidade Submersa”, no novo episódio de Acervo Comentado Videobrasil

Still de 1978 - Cidade Submersa, de Caetano Dias. Cortesia Videobrasil.
Still de 1978 - Cidade Submersa, de Caetano Dias. Still de 1978 - Cidade Submersa, de Caetano Dias. Cortesia Videobrasil.

O vídeo 1978 – Cidade Submersa, de Caetano Dias, mostra a relação de um pescador com as lembranças da sua antiga cidade. Trata-se de um documentário que, por vezes, embaralha a ficção e realidade para contar uma história sobre saudades soterradas utilizando um personagem que navega e pesca sobre as próprias memórias. É sobre essa obra que a professora Alejandra Hernández Muñoz[1] reflete no novo episódio do Acervo Comentado Videobrasil. Confira abaixo:

Entre 1971 e 1982 foi construída a Usina Hidrelétrica de Sobradinho, no Rio São Francisco, na Bahia. Para isso, as antigas cidades de Pilão Arcado, Sento Sé, Casa Nova e a própria Sobradinho tiveram que ser alagadas. Muñoz nota que “nessas águas, um reservatório de outrora assinala uma resistência ao esquecimento”. É uma caixa d’água situada, agora, dentro da represa, com sua função nulificada, um puro recipiente de uma lembrança que daqui a pouco também não existirá mais.

No contexto do levantamento da barragem, mais de 70 mil pessoas foram alocadas para assentamentos construídos em locais próximos e receberam os mesmos nomes das cidades alagadas, cujas ruínas costumam aparecer nos períodos de seca, “resquícios da violência de um passado que subjaz à aparente serenidade da paisagem”, como observa Muñoz. Essas ruínas, no silêncio do vídeo e nas faltas de diálogo, trazem o enigma de “quem são esses inundados que caminham às margens do lago?”

A mesma água que fornece luz e energia para a comunidade é o modo de apagamento da sua existência anterior, e esse tanque, como uma presença incômoda da impossibilidade de cobrir tudo, vira uma espécie de resistência a esse rolo compressor das políticas progressistas e do discurso do desenvolvimento.

A professora reforça no Vídeo Comentado que “a barragem é resultado dessa operação hercúlea do homem sobre a natureza”, e deixa a pergunta: “Quais são os resultados dessa interferência colossal no ambiente?”

Na edição #52 de arte!brasileiros, através da obra do fotógrafo Gideon Mendel, mergulhamos brevemente nessa questão. Confira o trabalho de Mendel neste link.

Ainda não conhece o Acervo Comentado?

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Confira os outros episódios neste link.

Sobre Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1] Alejandra Hernández Muñoz, uruguaia, reside em Salvador desde 1992, é arquiteta, Mestre em Desenho Urbano e Doutora em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAU/UFBA). É professora permanente de História da Arte da Escola de Belas Artes (EBA/UFBA). Integrou as equipes curatoriais do Programa Rumos Artes Visuais 2011-2013 do Instituto Itaú Cultural (São Paulo), da 3ª Bienal da Bahia 2014 e da 21ª Bienal Sesc_Videobrasil 2019 (São Paulo).

Miguel Rio Branco, a riqueza na contradição e a denúncia das desigualdades sob esteróides

Fotografia da série "Coração, espelho da carne". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Palavras Cruzadas, Sonhadas, Rasgadas, Roubadas, Usadas, Sangradas fornece logo no seu título indícios do que se trata a nova exposição, no Instituto Moreira Salles, de Miguel Rio Branco, um dos nomes mais relevantes da fotografia brasileira atual. Engajado também na pintura, nas artes visuais e nas instalações, ele tem fotografado cada vez menos, logo, as obras que integram Palavras Cruzadas são, como o próprio fotógrafo as chama, suas “novas coisas velhas”. Nessa retrospectiva não ortodoxa – organizada pelo próprio artista e por Thyago Nogueira, curador e editor da revista ZUM -, temos um gosto das imagens emblemáticas de Rio Branco e sua “córnea erotizada”.

A visita a Palavras Cruzadas é mais uma caminhada pelas cidades de Miguel, sua experiência urbana e coletiva, com todas suas contradições, com todas suas violências; “forjada, por carne, pele, saliva, suor, sangue, nervo, gemidos, vertigens, provenientes de pugilistas, prostitutas, meninos, idosos, cachorros, que vivem entre facas, bebidas, cigarros, cicatrizes e tatuagens, e habitam as regiões onde as cidades ainda pulsam”, como observa a curadora Luisa Duarte no texto crítico da mostra. Nesta direção, Nogueira também comenta: “A cidade é o palco do encontro de uma série de questões, de culturas, de cheiros, de sabores, de pessoas, totalmente improvável. Quantas metrópoles ele circulou… Eu olho para essas imagens hoje e fico torcendo para que a gente não tenha perdido essa realidade, para que isso ainda tenha um sentido”, complementa.

Uma das três imagens componentes de "Billy's Triptych". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Uma das três imagens componentes de “Billy’s Triptych”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Para o curador, seria difícil imaginar as interações pessoais capturadas por Rio Branco no mundo asséptico em que tivemos que nos isolar por conta da Covid-19. Em relação ao vírus e às adaptações necessárias para poder reabrir a exposição – com as normas sanitárias respeitadas -, Nogueira explica que as mudanças mais significativas ocorreram no prédio do instituto. Foi indicada uma rota de circulação, estabelecidos horários de visita agendáveis, disposição de álcool em gel pelo IMS Paulista e um limite de pessoas por sala.

O planejamento de Palavras Cruzadas, apesar dos revezes, não sofreu tanto com a pandemia. Em tese, a exposição receberia o público em abril, pouco antes das restrições serem aplicadas em nível nacional. Com isso a equipe caminhava bem para a conclusão da mostra, cujos detalhes finais foram resolvidos por videochamadas com o fotógrafo.

Um ponto que talvez perpasse a quarentena é a retirada dos materiais impressos da mostra. Até mesmo a continuidade dos catálogos será avaliada, devido a um mercado já ferido antes da pandemia e lesionado ainda mais por ela, considerando a falta de circulação das pessoas pelas livrarias e uma queda na venda dos fotolivros, um ponto particularmente negativo neste caso, já que Rio Branco trata a elaboração dos fotolivros como uma obra à parte – aliás no catálogo da exposição podem ser conferidos alguns slides, uns mais derretidos que outros, sobreviventes de um incêndio que queimou boa parte do arquivo do fotógrafo na década de 1980. Na década anterior, no começo dos anos 1970 é quando se inicia o percurso por Palavras Cruzadas; são registros cotidianos de Nova York, em preto e branco, que antecipam várias marcas do artista, os contrastes marcantes e as diagonais afiadas, por exemplo. Tendo iniciado a carreira como pintor, Miguel passa a explorar a fotografia e o cinema: em 1970, aos 24 anos, foi para a cidade de Nova York, para a Escola de Artes Visuais, onde ficou apenas um mês antes de decidir fazer suas próprias explorações de Nova York com fotografia de rua.

Sem título, da série "New York Sketches". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Sem título, da série “New York Sketches”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Nessas imagens de 50 anos, também é reconhecível sua temática marginal, como nota Luisa Duarte: “Nas duas primeiras fotos que abrem a sequência, avistamos o que podem ser consideradas imagens-clichês da cidade — o Empire State Building e as torres gêmeas do World Trade Center. Cabe notar como ambas surgem deslocadas de suas vocações naturais de cartões-postais — na primeira, o topo do edifício encontra-se deformado; na segunda, as torres surgem ao fundo, ainda em construção, ocupando somente a parte lateral esquerda da foto, enquanto, no primeiro plano, o que se vê é um descampado no qual se ergue uma casa sobre rodas, feita de materiais reaproveitados. Parece haver mais interesse por parte do artista naquilo que acontece ao rés do chão, do que no topo dos edifícios imensos”.

“Vejo que a maior parte da população é marginal. Eu fui atraído por umas situações humanas que me chocavam e que ao mesmo tempo me atraíam por que havia uma força vital alí de resistência”

Afinal, o ambiente urbano que permite os encontros e estimula a vivacidade citada por Thyago é o mesmo que coloca a exclusão num microscópio, um mundo de desigualdades sociais sob esteróides. É uma ambiguidade complicada na qual se arriscar, uma corda bamba entre protesto e embelezamento da tragédia, visibilidade e fetiche, choque e atração, chamado para ação e desesperança. O desafio é multiplicado contando que cada fotografia na exposição é somada a outra num exercício constante do efeito Kuleshov. Para Nogueira, além da habilidade de Rio Branco para a captura dos momentos e sua composição, há de se notar a constante reconstrução dessas cenas em obras maiores, os tais dos “novos velhos”, remontados para provocar a cada vez uma nova reação em quem os observa.

São painéis enormes, alguns monocromáticos, a exemplo do grande paredão vermelho ao fundo da sala. “A cor nunca é usada só pela cor, ela tem que ter uma conexão com uma parte ou da dor ou do prazer que a imagem está trazendo”, afirma Miguel. Ela galga papel ainda maior à medida que o tempo vai passando na exposição; embora não seja uma retrospectiva no sentido literal, Palavras Cruzadas permite um olhar através de uma linha cronológica, ao qual Thyago estabelece a seguinte reflexão: “O grande barato do Miguel é que com o tempo ele foi cortando o lastro documental da imagem, foi tirando da imagem tudo aquilo que ligava ela ao contexto no qual ela foi feita”. O curador explica que “em 1970 e 1980, por exemplo, ele ainda usa 35mm, que é um tipo de imagem com mais agilidade, tirada com a câmera no estômago, porque ele vai em cima da cena, ele quase se debruça em cima das cenas e captura aquilo com o calor do momento. Então, progressivamente, ele vai trocando o 35mm nos anos 1990 pelo 6×6, o que vai gerando imagens bem mais compostas, até uma quase sublimação da própria imagem e da ideia de narrativa no quadro, assim a imagem se torna quase abstrata”.

Fotografia da série "Monalisa". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Fotografia da série “Monalisa”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Essas provocações podem ocorrer fora da mostra? Para Thyago, a concentração de quem observa a fotografia independe do espaço físico, embora a “exposição ofereça uma outra escala. Você faz com que a pessoa adentre um espaço arquitetônico para sentir alguma coisa, você a envolve dentro de uma cápsula”. Ela “coloca um embate mais físico com o corpo”, diz ele.

“A percepção e o impacto que você tem de uma imagem nessa escala em relação à sua observação, ao seu corpo físico, à proporção que as coisas tomam dentro da imagem, mas também o que aquilo te causa, no deslocamento, nos olhares.”

Sobre Palavras Cruzadas, ele nota mais especificamente: “É muito diferente do que você tem da obra do Miguel vendo as obras com um livro no colo. Na exposição temos, por exemplo, uma instalação, isso é de um tipo da experiência física que penso ser o grande lance das exposições: engajar o espectador, o corpo do espectador na experiência”. O pensamento do artista sobre a questão vai ao encontro da fala de Thyago, acrescentando que “ir a uma exposição não é um ato social, é um ato individual; um ato individual da pessoa com aquela obra que vai ver”.

Rio Branco, na sua fala, reforça o comprometimento com a contemplação. Um olhar mais ou menos atento a um detalhe em Palavras Cruzadas pode ser crucial, afinal estamos falando de trabalhos que estabelecem relações de sentido entre si e que juntos compõem uma segunda obra. “Quis muito focar na questão da sintaxe, na forma como ele articula as imagens e constrói um raciocínio, constrói essas frases visuais, que são produto das combinações e da maneira de editar o trabalho, que eu acho que é muito original”, conta Thyago.

Inimigo à contemplação está o “Mundo Cassino” que Luísa Duarte nomeia, também em seu texto crítico no catálogo da exposição. Um lugar, talvez um ponto de espaço-tempo, onde e quando há um “estímulo monótono que antes anestesia do que calibra ou estimula a percepção”. Um mundo que faz o elogio incessante da aceleração, da vigília, e é inimigo do ócio, do sono, do sonho, da imaginação, sendo, assim, desencantado. É difícil imaginar uma época de ouro que tenha antecipado esse “Mundo Cassino”, mas as dificuldades da lógica 24/7 e da quarta revolução comercial são palpáveis até mesmo na arte. Para Rio Branco, ela virou um elemento ligado ao mercado, a uma grande parte de marketing, “aquela coisa que você pensa, mas não tem uma consistência estética”, e lamenta: “A galeria convence os curadores, e colecionadores, de que aquilo é uma coisa fantástica e não deixa a arte amadurecer por si própria”.

Um ano bom, ao menos para o mercado de arte

Cena de "SOAP" (2020), de Tamar Guimarães, filme apresentado pela Fortes D’Aloia e Gabriel na Art Basel Miami Beach e na plataforma fdag. Cortesia da artista, Dan Gunn London e Fortes D’Aloia & Gabriel

A previsão era a pior possível. Com a chegada do novo coronavírus ao Brasil e com os decretos de quarentena a partir do mês de março, os agentes do mercado de arte não podiam vislumbrar nada além de uma grandiosa crise no setor. Ao relembrar este momento, as falas dos galeristas entrevistados pela arte!brasileiros caminham sempre no mesmo sentido. “O começo foi o mais duro de todos, acho que nada se compara a esse período”, diz Eliana Finkelstein, da Vermelho. “O impacto foi realmente muito grande nos meses de março e abril. Parecia que ia ser o caos”, afirma Alexandre Roesler, da galeria Nara Roesler. Segundo Marcos Amaro, sócio da Kogan Amaro, abril foi um mês “quase nulo”, e seria impossível imaginar que em um momento de grande preocupação e cautela as pessoas pudessem pensar em comprar arte. Thiago Gomide, da Bergamin & Gomide, segue o mesmo raciocínio: “Nós somos o primeiro tipo de gasto que se corta em um período de incerteza. Comprar arte é um luxo e algo que se faz em geral quando se está animado, com boas perspectivas”.

O fato é que não demorou muito para o quadro mudar, já a partir de maio ou junho, e mesmo em um ano em que feiras presenciais foram desmarcadas, uma a uma, o balanço anual de diversos galeristas em 2020 destoa – por vezes drasticamente – do que se podia esperar. “Apesar do contexto externo todo, para nós o saldo foi extremamente positivo. Foi o ano em que a galeria mais vendeu”, conta Bruna Bailune, da jovem galeria Aura, fundada em 2015. Amaro também fala em meses “excelentes” após o susto inicial. Se nem todos tiveram performance assim tão positiva, ao menos uma recuperação e reaquecimento do mercado são confirmados pelos dez entrevistados, incluindo leiloeiros e diretores de feiras. Tamara Perlman, consultora sobre mercado de arte e cofundadora da feira Parte, sintetiza: “Tenho conversado com galeristas e o que se vê é que não foi um ano ruim, pelo contrário, em geral 2020 foi um ano bom. O mercado está aquecido”.

Uma pesquisa divulgada recentemente pelo Projeto Latitude – realizada pela ABACT em parceria com a Apex-Brasil e que entrevistou mais de 50 casas do país – confirma esta percepção. Na média, em comparação com suas vendas de 2019, as galerias apresentaram resultado igual ou superior no primeiro e terceiro trimestres de 2020, tendo números piores apenas no segundo trimestre – que se refere aos primeiros meses da quarentena. A pesquisa não alcança os últimos meses do ano, mas os galeristas contatados pela arte!brasileiros confirmam que deve ser mais um período positivo.

A quebradeira que se viu em outros setores do comércio no país, portanto, passou longe do mercado de arte e, ao invés de assistir ao fechamento de casas, o Brasil viu a abertura de galerias como a HOA e o Projeto Vênus, em São Paulo, a Index, em Brasília, além da expansão de galerias como Celma Albuquerque (com a nova Casa Albuquerque) e Jaqueline Martins, com a abertura de escritório em Bruxelas. Em outro caso notável, o leiloeiro James Lisboa afirmou em entrevista recente que em um leilão realizado em agosto chegou a vendar 97% das obras disponíveis (a média antes da pandemia era de 65%), incluindo peças com valores muito acima dos preços iniciais.

O quadro geral é bastante mais positivo no Brasil do que em outras regiões, incluindo polos centrais do mercado de arte como EUA e Europa. Em uma pesquisa divulgada pela Art Basel e pela UBS em setembro, realizada com 795 galerias de todo o mundo, os dados mostram uma queda de 36% nas vendas das casas. Um terço delas também havia cortado o número de funcionários. Apesar de não incluir boa parte de um segundo semestre em que o quadro foi menos dramático, a pesquisa dá um termômetro da crise no setor. Uma tentativa de compreensão dos resultados positivos para parte significativa do mercado de arte no Brasil – mesmo sendo um dos países com maior número de mortes por conta da pandemia e que vive intensas crises política e econômica – passa por uma série de fatores, que vão de aspectos macroeconômicos à mudanças comportamentais, parcerias entre casas e o aprimoramento de suas atuações virtuais.

A ArtRio foi uma das poucas feiras realizadas tanto online quanto presencialmente em 2020. Foto: Bruno Ryfer/ Divulgação

Em casa, com excedente

Uma das percepções de muitos galeristas é a de que o aumento do tempo passado dentro de casa com o isolamento social fortaleceu um desejo e possibilidade de comprar peças de arte. “Este novo modo de vida criou uma outra relação com o próprio espaço da casa, uma convivência intensa que fez com que muitas pessoas começassem a pensar em mudar as coisas”, conta Alexandre Roesler. Ele afirma inclusive que alguns de seus clientes decidiram morar períodos em suas segundas casas (fora da cidade) e passaram a adquirir obras para estes locais. Em sentido semelhante, Bruna Bailune destaca ainda que a diminuição em outros tipos de gastos como restaurantes e viagens, impossibilitados por um longo período, podem ter influenciado no aumento das vendas de obras.

A elite é quem compra arte e é quem menos sofreu com a pandemia. Então em um país tão desigual como o nosso, e que manteve ou aprofundou essa desigualdade, essa explicação faz sentido. Em geral, a principal correlação que existe para o crescimento do mercado de arte é, mais do que com o crescimento de riqueza do país, com o crescimento no número de indivíduos ricos e milionários”, explica Tamara Perlman.

Para além de povoar suas paredes e jardins, em um momento de instabilidade econômica e política no Brasil, com taxa de juros baixa e grandes oscilações na bolsa, a arte surgiu também como uma possibilidade de investimento seguro, ao menos quando se fala de obras de nomes bem estabelecidos ou consagrados. “Arte é um ativo que preserva o valor do seu patrimônio. Claro que isso se aplica a artistas já consolidados ou a caminho dessa consolidação. E quem trabalha com artistas desse patamar saiu privilegiado. Ouvi de muitas galerias com esse perfil que foi possível manter ou mesmo superar o patamar de vendas do ano passado”, afirma Fernanda Feitosa, fundadora e diretora da SP-Arte. Alexandre Gabriel, sócio da Fortes D’Aloia e Gabriel, também percebe este movimento: “Estamos lidando com um público que tem um excedente de capital, e esse excedente vai para algum lugar. Quando você tem uma oscilação grande de mercado – em meio a esse pandemônio, com tamanha instabilidade de governo -, um colecionador com segurança e uma boa relação com a galeria sabe que vai poder fazer um bom negócio, e que talvez tenha acesso a obras que antes não teria”.

O sucesso de vendas visto em parte dos leilões, que trabalham com o mercado secundário e majoritariamente com artistas renomados, também reforça a hipótese de que o investimento em arte foi para alguns uma espécie de diversificação de investimentos. Para Aloísio Cravo, um dos mais importantes leiloeiros do país, num contexto de juros baixos, dólar alto e ainda com uma pandemia, os ativos passam a ter muito valor. “O que você vê de lançamentos de apartamentos é uma loucura, ou mesmo os números sobre recordes de vendas de carros importados.” Após dois leilões difíceis no meio do ano, Cravo cita uma forte retomada em seu último evento, realizado em novembro, no qual uma obra de Jorge Guinle, por exemplo, tinha preço inicial de R$ 180 mil e foi arrematada por R$ 260 mil.

Novos compradores

Mas o fato é que não apenas obras de grande valor e de artistas consagrados foram comercializadas durante 2020. Em uma outra ponta, trabalhos de nomes jovens, com valores mais baixos e vendidas muitas vezes por galerias menores, também ganharam fôlego comercial no período. Segundo a pesquisa do projeto Latitude, as galerias que movimentaram em 2019 menos de R$ 500 mil tiveram este ano, proporcionalmente, um desempenho melhor do que as que movimentaram até R$ 10 milhões. Segundo Bailune, a Aura, que sempre teve um público jovem e prática em fazer negócios com compradores de primeira viagem, concretizou uma série de transações que estavam travadas antes da pandemia. “Vários clientes que a gente prospectava passaram a comprar, viraram clientes da galeria.”

A entrada de um novo público no mercado é confirmada por outros galeristas e diretores de feira. Entre os motivos apontados, para além da já citada permanência em casa que afetou todas as gerações, está o fato de os mais jovens terem maior facilidade e costume de comprar no universo online – espaço de vendas que ganhou maior relevância na pandemia. Segundo Perlman, dados do meio do ano mostravam que na Artsoul, plataforma de venda de arte contemporânea, o número de acessos tinha triplicado e o de vendas duplicado. Fernanda Feitosa conta que tanto na SP-Arte quanto na SP-Foto cerca de 70% dos visitantes deste ano estavam ali pela primeira vez, ou seja, não eram frequentadores das edições presenciais realizadas pela marca.

Neste sentido, a transparência adotada tanto pelas plataformas de venda, os market places, quanto pelas feiras, que em grande parte passaram a fornecer dados detalhados e preços das obras, pode ter facilitado a vida de jovens colecionadores. “Acho que isso evita um constrangimento que existe, principalmente em feiras, de pessoas que não fazem ideia dos preços e não se sentem confortáveis em frequentar esse segmento”, diz ele. Alexandre Roesler, que participou de cerca de uma dezena de feiras virtuais no ano, segue a mesma linha: “O fato de ter pelo menos a faixa de valores facilitou muito a pesquisa para as pessoas. Numa feira física normalmente você não sabe o preço, às vezes tem vergonha de perguntar… O site dá mais informações, possibilidades de consulta e permite que as pessoas comecem a se familiarizar com a área.”

Feitosa acrescenta ainda que houve uma aproximação de um público “mais sensível às questões do momento”, o que pode ter beneficiado as vendas destas galerias de menor porte. “Houve um apoio a artistas jovens, negros, mulheres e de minorias. Ou seja, um publico comprador mais consciente do seu papel”, acrescenta ela, citando a participação na SP-Arte dos projetos Levante Nacional Trovoa e Plataforma 01.01, que focam em produções de artistas afro-diaspóricos, não binários, asiáticos e indígenas. Não menos importante para os bons resultados foram as parcerias entre galerias que marcaram principalmente os primeiros meses de pandemia. Segundo a pesquisa do Latitude, 66,1% dos agentes do mercado brasileiro informaram ter realizado novas parcerias com foco na coletivização das soluções e com práticas como a divisão de metas de venda com outras galerias. A p.art.ilha foi umas dessas iniciativas coletivas, a mais citada pelos entrevistados da pesquisa, que estimulou as vendas também com benefícios comerciais para os compradores.

Relacionado a este olhar mais atento à questões políticas atuais, um fenômeno ligado às instituições é outro aspecto que pode ter favorecido o mercado brasileiro em tempos recentes. Seja por consciência da necessidade de mudança ou por pressão de diversos movimentos sociais e artísticos, importantes museus do mundo estão revendo seus acervos para incluir obras de artistas mulheres, negros, indígenas, LGBTs, latinos e asiáticos. Thiago Gomide, mesmo constatando que a média de vendas de sua galeria em 2020 esteve abaixo da de outros anos, acabou de concretizar a transação de uma escultura de Lygia Clark para o Guggenheim de Abu Dhabi por cerca de R$ 10 milhões. Vele lembrar que o MoMA de São Francisco recentemente vendeu uma obra do americano Mark Rothko por U$D 50 milhões para adquirir um conjunto de trabalhos de artistas mulheres ou integrantes de minorias étnico-raciais, e de que o Everson Museum de Siracusa se desfez de um trabalho de Jackson Pollock para suprir o mesmo tipo de lacuna. “Então os museus não só querem como precisam rever suas coleções. E nisso o Brasil se posiciona bem”, conclui Gomide.

Obra de Sérgio Camargo vendida este ano pela galeria Bergamin & Gomide. Foto: Divulgação

Experimentando e correndo atrás do atraso

Os Viewing Rooms, espécies de salas expositivas virtuais, foram o caminho encontrado por grande parte das feiras ao redor do mundo para não cancelar totalmente suas edições. Desde as estrangeiras como Art Basel, Frieze, TEFAF e Untitled até as nacionais como SP-Arte ou as inéditas Not Cancelled Brazil e Latitude Art Fair, todas recorreram à criação de espaços virtuais que, de modo geral, foram se sofisticando ao longo do ano. Se nem sempre os resultados de vendas alcançaram os números de outros anos, os gastos para as galerias também foram infinitamente menores. “Nas feiras, o preço do estande, as viagens, hospedagens, o transporte de obras e os seguros, tudo é um orçamento muito alto. E mesmo as exposições virtuais da galeria foram mais baratas de fazer. O que aconteceu, no final do ano, é que a gente conseguiu manter o faturamento, mas a despesa caiu”, afirma Roesler.

De modo quase forçado, a chegada da pandemia obrigou uma revisão de modelos e métodos de trabalho que, segundo os próprios galeristas e organizadores de feiras, já começavam a dar sinais de esgotamento. O excesso de deslocamentos pelo mundo, em uma agenda incessante ao longo do ano, certamente será revisto, mesmo em um futuro pós-pandêmico. “Acho que as feiras vão ficar cada vez mais locais, e o que vai conectar o evento com o mundo é o online. Uma feira em Londres vai receber principalmente o pessoal de Londres, e o virtual servirá para as pessoas de fora”, supõe Finkelstein. Para feiras em países de fora do eixo central do mercado, como o Brasil, isso pode ser proveitoso, segundo Feitosa. “Estamos a pelo menos dez horas de distância dos EUA, da Europa e ainda mais do Japão, por exemplo. Então o fluxo de visitantes internacionais para uma feira aqui é menor do que em outros países. Com o online, este ano eu tive na SP-Arte 15% de visitação estrangeira, enquanto na feira presencial este número era em média de 2%.”

O formato híbrido, em que o evento acontece em escala reduzida no presencial e é complementado pela plataforma virtual, foi experimentado pela ArtRio, realizada em um período em que a primeira onda da pandemia parecia estar diminuindo e a segunda não havia chegado. O resultado foi elogiado pelos galeristas entrevistados, que confirmaram a realização de um alto número de transações. “Acredito que esse modelo híbrido é o que vai funcionar tanto para feiras quanto para galerias. Vão sobreviver as que conseguirem operar tanto online quanto no offline com a mesma força”, diz Bailune. Quanto aos leilões, Aloísio Cravo completa: “Daqui para a frente, para fazer um leilão presencial tem que ser com uma coleção excepcional, uma solenidade. Porque sinto que esse modelo online deu muito certo”.

É notável, neste sentido, a grande movimentação e o esforço das casas brasileiras para se manter ativas e presentes nas plataformas virtuais ao longo do ano. Exposições se tornaram Viewing Rooms; lives com galeristas, curadores e artistas pipocaram nas redes sociais; novas plataformas surgiram e a produção de conteúdos em vídeo, áudio e imagens foi intensificada. “A pessoa que fazia comunicação digital passou a ser a pessoa com mais importância na galeria”, brinca Thiago Gomide. Para Alexandre Gabriel, “qualquer projeto que a gente vá fazer a partir de agora, eu vou pensar em qual é a imagem dele online, como ele acontece também virtualmente. E isso não tem volta”.

É nesse sentido que Tamara Perlman percebe uma mudança importante, que já se fazia necessária há tempos. “Muito rapidamente as galerias se juntaram de uma forma ou outra, mudaram modelos de negócio, adotaram tecnologias e testaram coisas. E isso foi muito interessante porque elas se deram o direito de experimentar, o que era uma coisa muito difícil – até por uma razão compreensível, já que elas vivem de reputação. Então na construção de uma marca, as casas têm muito receio de errar. E a pandemia, principalmente o começo, foi um momento em que isso mudou: pode testar; pode experimentar; tudo bem uma galeria grande estar ao lado de uma pequena.” A Fortes D’Aloia e Gabriel, por exemplo, participou da Art Basel Miami Beach apenas com filmes de artista, o que seria impensável em outro contexto, e aproveitou para lançar a plataforma fdag, voltada apenas para obras audiovisuais.

O insubstituível 

Apesar do balanço positivo, do avanço virtual e da entrada de novos colecionadores no mercado, os galeristas admitem certo esgotamento com a situação. “Vou te dizer que estou começando a me sentir com o HD riscado”, comenta Gabriel. “Foi muito trabalho, uma coisa insana.” Murilo Castro, que promoveu 50 lives durante a pandemia, vai na mesma direção: “Eu diria que nunca trabalhei tanto quanto neste ano. E sinto falta das relações, porque a nossa área vive de contato pessoal, de confiabilidade. Então não acho que o online pode substituir isso, mas sim incrementar informações e possibilidade”.

Alexandre Roesler, mesmo vislumbrando menos viagens – “já vimos que é possível resolver muita coisa em uma videoconferência” – ressalta também que mesmo a experiência em uma feira, por vezes cansativa, tem vários benefícios insubstituíveis: “Você faz uma viagem e vai a museus, exposições, encontra pessoas que só vê nesse circuito, conhece novos artistas”. O que se espera, portanto, é que em um mundo pós-pandêmico os avanços digitais, somados à inserção de novos e jovens compradores, se somem a uma retomada de atividades presenciais. “Eu diria que em termos de mercado nós teremos um ganho no futuro”, conclui Castro. Mas não se pode negar: “Culturalmente, sim, este foi um ano muito ruim”.