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Editorial: Em luto, eu luto

Em luto, eu luto -
"O mundo é nosso”, 2018-2019, da série "Pardo é papel", capa da arte!brasileiros #55. Foto: Gabi Carrera/ Divulgação

Estamos de LUTO.

Nestes meses, vários pensadores da cultura brasileira morreram, após anos construindo uma obra grandiosa. O fotógrafo German Lorca, o arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha, quase centenários, fizeram parte da nata do pensamento moderno.

Mas, não bastasse estarmos atravessados pelas perdas de amigos, colegas e familiares, estamos atravessados pela morte de perto de meio milhão de cidadãos brasileiros. Vítimas do Covid-19, um vírus feroz mal e porcamente combatido no Brasil.

Estamos atravessados pela inevitável consciência da perda dos valores de nossa sociedade, que está em colapso. Dividida de tal forma, onde só se agudiza a violência.

Não é exagero dizer, citando palavras do escritor Bernardo Carvalho, que vivemos um momento em que se insufla a barbárie. Amplos setores da população mobilizados para negar o avanço que a pesquisa, o estudo e a ciência nos trouxeram ao longo dos últimos séculos apenas colaboraram com o avanço das doenças. Provocações contra os cuidados necessários! Provocações explícitas, em prol da “liberdade individual” e, de preferência, armada.

Instituições públicas arrasadas por profissionais fantoches, uma gangue onde todos mentem e se defendem entre si. Um país rendido a um projeto perverso, onde grandes setores da população ainda acreditam num modelo de poder, o poder da exclusão. Da punição. Religiosa, política, física, de gênero. Gente que mata gente. Sim, com balas perdidas e balas dirigidas… Voltadas a mulheres, a negros, a quem resiste.

Nós somos naturalmente frágeis. Mas essa fragilidade se acentua na medida em que amplos setores da sociedade são abandonados por esse projeto de poder, o que os torna cada vez mais despossuídos. Está se negando o básico: a comida, a educação, a saúde, a cultura.

Nessas, onde sobra a ARTE? Onde está? Já que não morreu. Mas não porque o que morre com o passar do tempo são movimentos, estilos, vanguardas; e sim porque hoje, aqui, nem todos estamos mortos. Ou porque, como diria a artista Jota Mombaça em uma das suas obras, que já capa desta revista, A Gente Combinamos de Não Morrer. 

Estamos de luto, sim, mas este, como na história de todas as culturas, é um processo necessário para homenagear o que perdemos e, apesar da dor, sermos capazes de reinvestir nossa energia e força psíquica para seguir adiante.

Cuidar-nos e cuidarmos uns aos outros, estarmos vivos, ouvindo e acompanhando onde está se produzindo, no meio a esta debacle. É necessário ler, escrever, pensar, pintar, instalar. É necessário produzir arte, garantir um corpo pulsional que, afetado pelo seu entorno, seja capaz de gritar, afetar o outro e o corpo social.

Assim, em nossas páginas a forma de fazer o luto é homenageando os  artistas, pesquisadores e editores da Enciclopédia Negra (Cia. Das Letras), que trabalharam exaustivamente para reparar, em resposta às enciclopédias clássicas do Iluminismo – que durante mais de 200 anos só reproduziram e preconizaram modelos brancos e europeus de dominação -, a ausência de centenas de homens e mulheres negros invisibilizados.

Tratamos também de várias exposições montadas por artistas e grupos sociais que não deixaram de se encontrar virtualmente. Fabio Cypriano homenageia o centenário de Joseph Beuys, um artista central na história da arte contemporânea, e ouve como exposições tradicionais, como a documenta de Kassel, se preparam para mudar completamente suas estratégias expositivas.

Há, ainda, a reportagem que está nas mãos do jovem jornalista Miguel Groisman dedicada a pesquisar artistas que documentam conflitos.

Enfim, estamos aqui e, fazendo nosso luto, lutamos.

Coletivos de artistas refletem espírito do tempo

Imagem horizontal colorida. Um coletivo de artistas sentados em torno de duas mesas no ateliê do JAMAC conversam. Algumas folhas de papel sobre as mesas.
Ateliê do Jardim Miriam Arte Clube - JAMAC. Foto: Cortesia JAMAC

Tanto a escolha de cinco coletivos como indicados para o Turner Prize, em 2021, como o anúncio de 14 coletivos como primeiros participantes da documenta quinze indicam um momento de inflexão importante na prática artística, que revela o espírito do tempo: a passagem do isolamento do chamado artista plástico em seu ateliê para uma ação de caráter solidária e sustentável, que visa novas formas de ação do mundo. Finalmente.

Em outras áreas artísticas, como o teatro, a dança e a música, por exemplo, a experiência coletiva sempre esteve presente. Nas artes visuais, muito pouco, apesar de vários casos históricos isolados. Contudo, desde o início do século 21, vêm crescendo iniciativas que não deixaram de ser mapeadas em mostras importantes como o Panorama da Arte Brasileira de 2001, com curadoria de Paulo Reis, Ricardo Basbaum e Ricardo Resende, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

Entre os grupos lá selecionados estavam Atrocidades Maravilhosas, Mico e Clube da Lata, que há vinte anos já buscavam uma nova forma de agenciamento no cenário artístico. Também participou daquela edição do Panorama a artista Mônica Nador, com o projeto Paredes Pinturas, embrião do Jamac – Jardim Miriam Arte Clube, que cinco anos depois participou da 27ª Bienal de São Paulo, em 2006.

Com curadoria geral de Lisette Lagnado, a edição, intitulada Como Viver Junto, trouxe de fato mais coletivos além do próprio Jamac, como o argentino Eloisa Cartonera e o chinês Long March Project. Já oito anos depois, na 31ª edição, um grupo de curadores selecionados por Charles Esche novamente deu foco a coletivos, como o próprio ruangrupa, que agora dirige a documenta quinze, mas também o boliviano Mujeres Creando, o russo Chto Delat ou o argentino Etcetera e o brasileiro Grupo Contrafilé.

Foto horizontal, colorida. Nove membros do coletivo de artistas ruangrupa reunidos
ruangrupa, 2019. Foto: Jin Panji

Não deixa de ser irônico que esse crescimento de coletivos tenha surgido durante o fenômeno da expansão das feiras de arte que, por seu perfil essencialmente comercial, trouxe de volta um caráter um tanto fetichista do artista e sua obra, além de elevar a figura do colecionador como o principal legitimador do circuito – só o que vende deve ser considerado.

Como uma espécie de antídoto a esse sistema, que já demonstrava decadência há alguns anos, esses coletivos buscaram novas práticas, quase sempre longe das feiras e das casas dos colecionadores. Eles estão tanto em instituições como universidades, caso do Forensic Architecture, baseado no Goldsmiths da Universidade de Londres, que aliás foi indicado ao Turner em 2018, ou são apenas grupos informais de artistas, como o #coleraalegria, no Brasil, que vem contribuindo em manifestações políticas relevantes com a criação de um material visual inovador e longe dos clichês sisudos da militância convencional, além de ter forte inserção nas redes sociais.

Não por acaso, em seu recente livro O que vem depois da farsa, o crítico norte-americano Hal Foster aponta que muitos artistas vêm trabalhando na chave da “reconstrução”, isto é, estão buscando sistemas que sirvam como possibilidades alternativas ao mundo em colapso.

O caso do #coleraalegria é exemplar, porque se trata de um agrupamento de militância, onde cada qual segue com seu trabalho individual, mas no coletivo há uma energia que se multiplica pelas singularidades.

Dessa forma, ao contrário do que se convencionou afirmar de que a documenta lança tendências, a próxima edição do evento vai consagrar práticas em construção há mais de duas décadas, que estão reposicionando o sistema das artes.

José Damasceno e o sorriso da Mona Lisa

Foto horizontal, colorida. Vista da exposição MOTO-CONTÍNUO, de José Damasceno, na Estação Pinacoteca. Ao fundo, TRILHA SONORA, que com centenas de martelos pendurados em pregos na parede, cria a representação de montanhas. A frente, diversas colunas de estrutura do edifício. Entre elas, vê-se parcialmente duas obras de José Damasceno. À direita, SNOOKER, a esquerda obra mais baixa, no nível do chão.
Vista da exposição. Foto: Isabella Matheus/Pinacoteca de São Paulo

Dá um certo alívio em adentrar a mostra de José Damasceno, Moto-contínuo, na Estação Pinacoteca, em um contexto tão desfavorável, quando uma CPI descortina todos os atos estapafúrdios de um governo que colaborou para as quase 500 mil mortes em decorrência da Covid-19 no país.

A diversidade de procedimentos, de magnânimas instalações a delicados desenhos, a disparidade entre materiais usados, do nobre mármore ao decadente e perecível cigarro, e a ausência de uma temática explícita, podem apontar para como uma exposição que lida em seu limite com a arte como um “exercício experimental da liberdade”, na definição do crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981). Em tempos de pandemia, liberdade pode ser tudo.

Como aponta a curadora norte-americana Lynn Zelevansky no catálogo da mostra para descrever uma das obras do artista, mas que serve para a exposição como um todo, Damasceno cria “um mundo próprio, habitado por criaturas estranhas”.

Entre as mais de 70 peças expostas, realizadas entre 1989 e 2021, algumas das obras que ajudam nesse sentimento de desconexão com o contexto são aquelas que, por sua dimensão e serialidade, criam estranhas paisagens, como Trilha Sonora, com centenas de martelos que pendurados em pregos criam a representação de montanhas, e Snooker, uma mesa de sinuca recoberta de fios de lã que saem das luminárias dispostas acima dela. O mesmo princípio é visto em Paisagem crescendo, onde centenas de cigarros que parecem pontos da parede criam imagens de árvores.

Trata-se aí de um conjunto de trabalhos que seduzem pelos truques de suas composições e provocam aquele sorriso de Mona Lisa, pela sua engenhosidade e originalidade. Em seu texto, Zelevansky busca valorizar essa estratégia apontando que existe uma “dimensão psicológica na obra de Damasceno que beira o surreal” e cita autores favoritos do artista como William James, Edgar Allan Poe e Jorge Luis Borges como possíveis diálogos com sua obra.

De fato, as obras já citadas possuem dimensões surreais, já que seus processos construtivos inusitados, das montanhas feitas por pregos e martelos às luzes compostas por fios de lã, resultam em imagens que se assemelham a colagens de elementos contraditórios. Contudo, ao contrário dos múltiplos significados possíveis das obras surrealistas, não há nada muito além do que são os próprios elementos das obras. Os martelos seguem martelos, os fios de lã seguem fios de lã, o que leva a arte contemporânea a um mero exercício formalista.

Outro conjunto da exposição que aponta para essa superficialidade são as chamadas Esculturas Borracha, realizadas em mármore que hiperdimensionam objetos comuns do cotidiano, como o material escolar que dá título às obras.

Quando o espectador se dá conta dessa falta de profundidade, o alívio se transforma em irritação, porque o virtuosismo da mostra aponta para uma total falta de ligação a qualquer contexto, que não o da própria arte, e a única lente possível para se observar o conjunto é pensando em categorias da própria arte. Não por acaso, o texto de Zelevansky no catálogo se desenvolve em torno da técnica do desenho.

Em uma sociedade tão polarizada, conflituosa, preconceituosa, e pode-se dizer tantos outros termos que apontam para uma falência de qualquer pensamento humanista, a exposição com curadoria de José Augusto Ribeiro traz uma seleção e uma disposição dos trabalhos altamente estetizados, um conjunto que revela uma beleza fria e distante, cheia de trocadilhos como Can you hear me? (você consegue me escutar?), com dois trompetes unidos pela boca.

Curiosamente, o catálogo de Moto-contínuo vai em sentido oposto, praticamente um livro de artista, já que a maior parte dele é composta por fotos de um lambe-lambe com a imagem da efígie da República que ilustra as notas de um real coladas em muros da cidade, a maioria em locais decadentes e empobrecidos, e em alguns deles podem ser lidas manifestações políticas como “Fora Temer”, dando aí uma noção do contexto e tornando-se uma documentação de uma potente instalação pública.

É essa vitalidade que falta na exposição em si, que se revela monótona demais de tão bela e perfeita. Sair do prédio na zona da cracolândia é de um contraste chocante, mas acaba sendo mesmo um alívio voltar à feiura e as dificuldades do mundo real, com todo seu dinamismo e potencialidades.

JOSÉ DAMASCENO: MOTO-CONTÍNUO
ONDE: Estação Pinacoteca (Largo General Osório, 66 – Santa Ifigênia)
QUANDO: 24 de abril de 2021 a 30 de agosto de 2021
Ingressos gratuitos, visita mediante agendamento prévio.

O olhar inquieto e incansável de German Lorca 

"À Procura de Emprego", 1948. Cortesia Utópica.

Em quase todos os fotógrafos existe uma alma flâneur, o prazer de vagar pelas cidades, olhar com olhos atentos e fazer descobertas. O flâneur guardava estas imagens em sua memória, o fotógrafo nos devolve suas impressões em uma fotografia. Narrar a vida cotidiana, apontar o que merece ser visto, parar para observar mínimos detalhes, situações para as quais ninguém daria a mínima bola. É desta forma que German Lorca (1922-2021) desfila suas fotografias sob nossos olhos. Um olhar atento, crítico e, muitas vezes, irônico. 

German Lorca fotografado em 2018 pelo filho, José Henrique Lorca. Cortesia do autor.
German Lorca fotografado em 2018 pelo filho, José Henrique Lorca. Cortesia do autor.

Nascido em 1922 – teoricamente o ano em que explode o modernismo no Brasil -, este paulistano da gema do Brás, filho de imigrantes espanhóis, de andar inquieto e sorriso fácil, conheceu o mundo pelas fotografias que via na imprensa, nos jornais, nas revistas. Em 1940 formou-se em contabilidade, uma profissão que parecia apertada para ele. Queria vagar, fotografar, andar por aquela cidade dos anos 1940 que se modernizava, que crescia. Queria seus reflexos, suas luzes, suas narrativas. E foi num desses seus passeios que realizou uma primeira fotografia de impacto, em 1947: um flagrante de um protesto contra o aumento dos bondes em São Paulo. Se encantou com seu registro. Dois anos depois passou a fazer parte do Foto Cine Clube Bandeirante, que ficou conhecido por trazer a modernidade para a fotografia brasileira. Foi no Foto Cine Clube Bandeirante que nomes como Thomaz Farkas, Marcel Giró, Geraldo de Barros e Gaspar Gasparian iniciaram o experimentalismo, a quebrar fronteiras e trazer uma imagem que brincava o tempo todo com as vanguardas europeias, com o surrealismo, com as técnicas fotográficas, além de ser um centro de discussão e difusão da fotografia. Foi neste ambiente que German Lorca decidiu se dedicar totalmente à fotografia. 

Nas suas primeiras imagens, a cidade de São Paulo continuava sendo a principal busca. Tão pouco fotografada em sua imensidade, muito julgada em sua aparência. Quem a define feia não a conhece. Quem a define enigmática se sente por ela atraído e procura de alguma forma compreendê-la. Pode ser via música, verso, literatura, mas sem dúvida nenhuma a imagem lhe rende a melhor homenagem. Muito já foi mostrada, poucas vezes foi compreendida. Muitas vezes definida como cidade de pedra, cidade cinza, da chuva e da garoa. Cidade amada, cidade odiada. Mas foi em seus recantos e esquinas que Lorca a descobre e redescobre. Uma cidade que ele sempre fotografou. 

German Lorca: "São Paulo Crescendo", 1965. Cortesia Galeria Utópica.
“São Paulo Crescendo”, 1965. Cortesia Utópica.

No início dos anos 1950, abre seu estúdio fotográfico, afastando-se do Foto Cine Clube Bandeirante para profissionalizar-se como fotógrafo publicitário. Dois anos depois foi o fotógrafo oficial do IV Centenário da Cidade de São Paulo.

Na publicidade, levou seu olhar aguçado, educado e sempre irreverente. Perceber a força dos objetos banais e tornar esta aparente banalidade em uma imagem que merecia ser vista. E, assim como fazia quando andava pelas ruas, utilizava a imagem publicitária para questionar suas características realistas. Brincava com a imagem. Criava uma dúvida, em uma época em que ninguém falava em pós-produção, mas mesmo assim ele desconcertava o olhar do espectador. Brincadeiras estéticas, jogos de olhares, alusões e citações. Criava e se divertia. Tudo isso aliado a novas possibilidades técnicas e a liberdade com a qual costumava trabalhar. E foi assim também com seus autorretratos e fotografias artísticas.

Mas a cidade continuava a encantá-lo e, incansável, ele continuava a fotografá-la. No final dos anos 1990 deixa seu estúdio sob a responsabilidade dos filhos e retorna ao seu caminhar. Em 2002 realiza um ensaio no Ibirapuera, que ele havia fotografado em 1954 e em 2009 retorna para o centro da cidade.

Incansável, se encanta com a pós-produção, com o poder de transformar suas imagens no computador, recriá-las e revisitar seu arquivo. Descobre o poder da cor para o seu trabalho artístico. Fazer, refazer, rever, sempre foram seus lemas. E foi por isso que em 2016, aos 94 anos, resolveu ir até Nova York, depois do MoMA ter comprado parte de suas imagens juntamente com a de outros fotógrafos modernistas brasileiros, num momento de renascimento dessa estética. Lá resolveu retomar um ensaio realizado nos anos 1960 e 1980, mais especificamente no Central Park, já pensando na pós-produção contemporânea. Sua última exposição aconteceu em 2018 no Itaú Cultural, em São Paulo, com curadoria do Rubens Fernandes Junior e de José Henrique Lorca, seu filho.

"Aeroporto de São Paulo", 1965. Cortesia Galeria Utópica.
“Aeroporto de São Paulo”, 1965. Cortesia Utópica.

German Lorca morreu aos 99 anos, em 8 de maio, dia em que o MoMA de Nova York abriu a mostra Fotoclubismo: Brazilian Modernist Photography and the Foto-Cine Clube Brandeirante, 1946-1964, da qual ele é um dos autores. E nos deixou mais de 70 anos de experiências fotográficas, de possibilidades criativas, de olhares que se renovam. 

 

Galleries Curate: nova forma de criar mercado

Monster Chetwynd,
Monster Chetwynd, "Hokusai’s Octapai", 2004, instalação na galeria Tanya Leighton (Berlim). Foto: Cortesia Tanya Leighton Gallery

O impacto causado pela pandemia do Covid-19 tem provocado mudanças inimaginadas. A perplexidade do presente, decorrente dos protocolos de reclusão e de fechamentos temporários de galerias, museus, feiras e bienais, sacudiu o sistema de arte desde o início do ano passado. Neste contexto, o desafio de vencer a crise e buscar saída para o inesperado colapso provocou a criação da plataforma colaborativa Galleries Curate: RHE. A ideia partiu de um grupo de galeristas ligados ao comitê das três feiras Basel – Miami, Hong Kong e Basileia – com a ideia de promover exposições virtuais simultâneas em galerias dos quatro cantos do mundo, em apoio à comunidade.

A primeira exposição tem a água como tema e foi sugerida pela galerista Chantal Crousel, de Paris, uma das primeiras a abraçar a ideia. O grupo evidenciou as inegáveis limitações que seus espaços viviam naquele momento e decidiu mudar o cenário com um diálogo virtual dinâmico entre os programas individuais de cada galeria, fosse ela de Jacarta, Bruxelas, Singapura, Nova York, Rio de Janeiro, Tóquio, ou Paris.

A única galeria brasileira integrante deste pool internacional é A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, dirigida por Márcio Botner, um de seus proprietários. Engajado no comitê de Basel Miami, ele é um globetrotter do circuito, ligado a vários projetos pelo mundo e um dos mais animados com a Galleries Curate. “A ideia nasceu dos contatos virtuais de um grupo de 12 pessoas e me impressionou quando logo chegamos a 21 participantes”. Envolvido em tantos projetos, ele acredita na colaboração horizontal entre artistas, galeristas e críticos, unindo pessoas que pensam próximo aos objetivos do grupo. Cada galeria propôs o que queria mostrar e eles deram início às exposições no começo deste ano. “O que está acontecendo é algo especial. Ao mesmo tempo que temos galeristas consagrados, contamos com jovens entusiastas com menos tempo no mercado. A plataforma começou a ser pensada publicamente neste ano e as pessoas agora estão conhecendo melhor o projeto.”

O francês Clément Delépine, jovem coordenador da Galleries Curate: RHE e codiretor da feira Paris Internationale, também intermedia parte das lives do projeto. Para ele, desde as primeiras tratativas, essas conversas se constituem como uma terapia de grupo. “O projeto traz no título o enigmático símbolo RHE, medida de unidade e impermanência, definida por duas palavras gregas: panta rei, que significa ‘tudo se move’.” Delépine faz uma analogia entre o elemento água, fundamental em nossas vidas, e o esforço deles para criar alternativas na crise global. O trabalho transcende sediar exposições online, plataforma digital, pois há também a preocupação de arquivar materiais referentes às obras em exibição. Ao serem adicionados novos conteúdos, projetos passados e atuais são mixados.
As exposições têm temas múltiplos e a maioria fala do meio ambiente. Na coletiva Tempest, da galeria Tanya Leighton de Berlim, a artista Monster Chetwynd se destaca ao moldar a figura de um polvo enorme executado em látex, pintado e colocado lascivamente sobre o piso. A instalação se completa com a xilogravura ampliada em xerox e fixada na parede de um exemplar da série erótica O Sonho da Esposa do Pescador (Kinoe no komatsu), do artista Katsushika Hokusai, executada em impressão popular shunga no século 19. O trabalho e a vida de Monster Chetwynd tangenciam a performance, poética com a qual ela se identifica. Num jogo de identidades, a artista de Glasgow muda seu nome de quando em quando, assim como fazia Hokusai, artista que ela reverencia e que ao longo da vida teve mais de 30 nomes. A água aqui se apresenta como metáfora, sonho ou delírio mítico de um gozo nunca vivenciado.

Numa perspectiva mais programática do movimento ecológico, a Galleria Franco Noero, de Turim, exibe o filme de Simon Starling, Projeto para uma travessia do Vale do Rift. O still, composto de imagens paradisíacas, registra poeticamente uma canoa, construída com magnésio extraído das águas do Mar Morto usada em 2016, numa tentativa de atravessá-lo, partindo de Israel à Jordânia. A experiência avança em vários sentidos e revela que neste trecho, localizado no Vale do Rift, a água é altamente salgada e que o lugar se destaca por ser o mais baixo do planeta – está a 427 metros abaixo do nível do mar. Ainda alerta que a região é muito explorada por guardar riquezas minerais especiais: um litro de água contém 45 gramas de magnésio.

Há trabalhos filosoficamente engajados no simbolismo do tempo e sua duração. A galeria Jean Mot, de Bruxelas, mostra o filme Canção para Lupita, de Francis Alÿs, de 1998, uma animação em 16mm. A água se desloca no itinerário poético de Alÿs ao longo de toda a película. Uma mulher despeja água de um copo para outro repetidamente. A ação de fazer e desfazer é acompanhada por uma música cuja frase Mañana, mañana és breve para mi pode sugerir um prolongamento ou esperança contínua para o futuro.

A galeria A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, ancoradouro de fantasias astrais e experiências renovadoras, mostra Descompasso Atlântico, de Arjan Martins, que acontece em dois locais e com poéticas diferentes. No interior da galeria, as pinturas mantêm foco narrativo tanto na herança escravagista como na atual situação da população negra. A céu aberto, em plena praia de Ipanema, Arjan Martins realiza uma instalação colorida de inspiração geométrica que conversa com o oceano Atlântico, antiga rota dos navios negreiros. Composta por cinco birutas, objetos normalmente usados em aeroportos para controle do vento, a instalação traz em cada um deles um símbolo dos avisos marítimos: homem ao mar, carga perigosa etc. Propositalmente, a galeria abriu a exposição em 22 de abril, dia em que no ano de 1500 os colonizadores portugueses desembarcaram no Brasil. A ideologia da sobrevivência atravessada por Galleries Curate: RHE faz das declarações de intenções desse grupo um espaço ampliado de ver e registrar o novo normal.

Instalação de Birutas, 2021, de Arjan Martins, com símbolos da sinalização entre embarcações e o porto, parte do Galleries Curate
Instalação de Birutas, 2021, de Arjan Martins, com símbolos da sinalização entre embarcações e o porto. Foto: Fagner França

Repaginado, Museu da Língua renasce no centro de São Paulo

Estação da Luz, sede do Museu da Língua Portuguesa. Foto: Joca Duarte / Divulgação
Estação da Luz. Foto: Joca Duarte / Divulgação

Totalmente pronto para ser reinaugurado após seis anos de reformas, o Museu da Língua Portuguesa (MLP) já começou a aquecer os motores na expectativa de finalmente poder abrir suas portas, o que deve ocorrer no final de julho ou assim que a pandemia permitir. Além da reedificação física, que remontou a estrutura destruída por um incêndio em 2015, a instituição aproveitou a oportunidade para reorganizar-se conceitualmente e atualizar conteúdos e estratégias de comunicação com o público. De forma geral, o conceito do projeto permanece o mesmo, baseado numa perspectiva antropológica, histórica e social da língua, tal como alinhavado há quase 20 anos. 

Como trata-se de um acervo basicamente virtual, os arquivos não foram destruídos pelo fogo e foi possível remontar grande parte da mostra original. A possibilidade – e necessidade – de refazer a exposição do zero trouxe, no entanto, a oportunidade de aperfeiçoar a mostra permanente e atualizar aspectos importantes, incorporando transformações pelas quais a língua passou no período e propondo uma reflexão sobre debates contemporâneos ligados a questões identitárias, que vem mobilizando intensamente o debate nos últimos anos. 

No Museu da Língua Portuguesa: As instalações "Palavras Cruzadas", em primeiro plano, e "O português do Brasil", ao fundo. Foto: Joca Duarte / Divulgação.
As instalações “Palavras Cruzadas”, em primeiro plano, e “O português do Brasil”, ao fundo. Foto: Joca Duarte / Divulgação.

A instituição também abriu espaço para um diálogo mais intenso com variados campos da cultura, para além de sua íntima relação com a literatura, incorporando novas formas de pensar a língua também a partir de elementos do cotidiano e de outras formas de expressão, como as artes visuais. O resultado dessa nova abordagem é a primeira mostra temporária do museu, já acessível a grupos pequenos de visitantes, intitulada Língua Solta (ler aqui). “Desde lá atrás queríamos trazer objetos atravessados pela língua”, explica a curadora especial da instituição, Isa Grinspum Ferraz. Afinal, como diz o escritor moçambicano Mia Couto, em live organizada pela instituição, “a língua portuguesa não funciona em abstrato”.

Dentre as novidades trazidas pelo museu nessa nova roupagem estão também a incrementação da linha do tempo, que percorre a história da língua portuguesa desde o Lácio, na antiga Roma, até os dias de hoje, com a problematização de momentos fundamentais dessa trajetória, como o ano de 1500 – no qual foram inseridos depoimentos de líderes indígenas como Davi Kopenawa e Ailton Krenak questionando a ideia de descoberta e explicitando o processo de invasão de terras já habitadas. Em sentido quase oposto, a instalação Nós da Língua Portuguesa (“nós” tanto em termos de entrelaçamento, como de pronome que indica uma coletividade) ressalta a importância do português como língua de libertação dos países africanos, permitindo uma confluência de diferentes povos e dialetos em um projeto comum, vivenciado em países como Moçambique, Angola e Cabo Verde. Por último, dentre as novidades, Isa Grinspum destaca a nova instalação Falares, curada por Marcelino Freire e Roberta Estrela D’Alva, que cria um bosque de telas nos quais é possível perfazer um passeio, assistindo uma trama de depoimentos, de falares icônicos, sotaques e tribos do português. 

Museu da Língua
Área expositiva do Museu da Língua Portuguesa. Foto: Governo do Estado de São Paulo

Quando inaugurou, em 2006, o uso massivo da tecnologia virtual era uma das marcas fortes do MLP. Hoje, com uma maior familiaridade das pessoas com esse tipo de recurso e o aprimoramento dos equipamentos, seu protagonismo parece mais diluído. “A tecnologia veio a serviço, para contar uma história. Como a língua é impalpável, imagens e sons são muito úteis. Não buscamos a interatividade pela interatividade”, pontua a curadora. Segundo ela, o que importa é estimular ao máximo o interesse do visitante, fazendo com que saia do museu com mais perguntas do que entrou. 

Diante dos desafios impostos pela pandemia – que vem adiando sua reabertura e impõe a necessidade de encontrar novas formas de contato com os potenciais visitantes –, o museu também vem aproveitando para desenvolver novas formas de interação virtual com o público. Aproveitou o dia internacional da língua portuguesa para mostrar um pouco de sua nova cara, realizando uma série de conversas e apresentações online, que já foram vistas por mais de 15 mil espectadores, com figuras de grande relevância no pensamento do papel da língua, como Mia Couto, José Eduardo Agualusa e José Miguel Wisnik. Lançou também ciclos de palestras virtuais e pretende estabelecer ciclos de debates, formação de professores, mostras de cinema, saraus, e outras atividades capazes de espraiar essa produção para além do espaço físico. 

Ir para fora é, aliás, um dos motes do Museu da Língua Portuguesa, seja em termos de conteúdo (no que a comunicação digital pode contribuir muito) seja em termos espaciais, conectando-se de forma mais intensa com o entorno de sua sede na Estação da Luz, por onde transitam centenas de milhares de pessoas, todos os dias. 

 

Maxwell Alexandre: ‘Pardo é Papel’ ou a grandeza épica de um povo em formação

Os responsáveis pela programação do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, fizeram coincidir nas suas galerias as exposições de dois artistas afro-descendentes: Pardo é Papel, mostra itinerante do artista carioca Maxwell Alexandre; e Di Cavalcanti – Muralista, mostra do consagrado pintor modernista, curada por Ivo Mesquita. Este “encontro” nos permite acompanhar a força da história da pintura afro-brasileira em dois momentos diferentes e desde perspectivas pictóricas distantes, porém entrelaçadas. Um olhar mais paciente talvez perceberia coincidências narrativas importantes entre esses universos aparentemente dispares, mas, aqui, vamos nos concentrar neste jovem artista negro que irrompeu na cena nacional e internacional com força peculiar.

Desde o fim do século 19, no ocidente, as academias de arte estabeleceram cânones que emprestaram importância – relativa – aos variados gêneros de pintura. Desse modo, mais meritórios e dignos de consideração (e consumo) seriam os processos que resultassem em obras dedicadas à afirmação das elites de plantão, fossem elas eclesiásticas ou não. As obras que retratassem essas aristocracias estariam garantidas no topo de uma pirâmide hierárquica de valores estéticos e políticos. 

Fazer-se representar era imperioso e, na ausência do monarca, reverenciava-se a figura e autoridade expressa pela pintura ou escultura. As representações do rei ou dos nobres projetavam simbolicamente os seus poderes e, por isso, eram copiosamente realizadas e distribuídas. Da mesma forma, seus feitos recebiam grande atenção, já que a partir das pinturas de caráter histórico divulgavam-se façanhas guerreiras ou piedosas dos monarcas e seus congêneres. 

Entre nós essa pintura de tipo histórico, que resulta quase que obrigatoriamente épica na sua aparência e pretensão, foi também praticada e algumas destas obras ocupam ainda hoje um lugar central nas narrativas que vaticinam o nascimento do Estado e nação brasileiros.

UM CIGARRO E A VIDA PELA JANELA, de Maxwell Alexandre
“Um cigarro e a vida pela janela”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

No nosso caso, obedecendo aos cânones acadêmicos herdados e colonialmente impostos, essas pinturas apresentam heróis em ação, como aquela Independência ou Morte, realizada em 1888 pelo paraibano Pedro Américo (1843-1905) e hoje pertencente ao acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, onde se vê o ainda príncipe Pedro ladeado por uma comitiva e escoltado por cavalarianos erguendo a espada e decretando a independência brasileira de Portugal. 

A outra, Batalha do Avaí, também de Américo, foi concluída em 1877 e pode ser visitada no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Nela está representa uma verdadeira multidão de soldados engalfinhados em renhida batalha e que tem ao fundo um Duque, aliás, Caxias, cuja farda está aberta – ao que consta, isso provocou o desagrado do retratado -, que montado em seu cavalo branco coordena altivo e distante os movimentos da “sua” tropa fatalmente vitoriosa.  

Essas obras têm em comum as dimensões gigantescas, o profuso número de militares que protagonizam ou apoiam as ações descritas e, sobretudo, o papel subalterno e periférico dos personagens representativos da fração popular daquela sociedade, sejam negros, mulheres, indígenas ou brancos miseráveis.

A Batalha do Avaí é notória pelo número de personagens nela representados, pelo prodígio técnico implicado na sua realização e claro, pela impressionante descrição que faz de um momento crucial da batalha que descreve. Naquela profusão de personagens, de corpos em dinâmico e dramático choque, num primeiro plano central e aos pés da cena vemos o corpo de um soldado negro que jaz com a cabeça ferida – do crânio fendido escapa a massa encefálica. Os negros representados nessa batalha lutam pela soberania do país que os mantinha escravizados. No entanto, o corpo desumanizado pela escravidão é o mesmo que verte sangue e vísceras naquele combate titânico apresentado por Pedro Américo.

A LUA QUER SER PRETA, SE PINTA NO ECLIPSE, de Maxwell Alexandre
“A lua quer ser preta, se pinta no eclipse”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

As pinturas de Maxwell Alexandre expostas na mostra Pardo é papel – inicialmente mostradas no Museu de Arte Contemporânea de Lyon (França), em 2019, e depois no Museu de Arte do Rio (MAR) e na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre – também possuem um caráter épico, grandioso, consagrador e, certamente histórico. 

Elas não foram realizadas na Europa como aquela de Américo. Não são resultado de uma solicitação do Estado, nem foram pintadas em fino linho. Também não ostentam uma rebuscada moldura dourada que exibe as armas do império. Pelo contrário, as pinturas de Alexandre expostas no Instituto Tomie Ohtake foram realizadas num suporte frágil que sequer é sustentado por um chassi. A fragilidade desse suporte, o papel, é facilmente detectada e percebida nos rasgos que foram incorporados à pintura. A Arte Povera, pobre, surgida na Itália dos anos 1950 e 1960 também fazia elogio ao material barato empregado pelos artistas que aderiram a essa estética. Lá como aqui, essa escolha destaca uma atitude política. 

Assim como nos clássicos, a pintura de Maxwell Alexandre trás também multidões num movimento dinâmico. Mas, à diferença de outras obras, propositalmente os corpos ali apresentados são todos negros, inequivocamente negros, e pintados em situações corriqueiras do seu dia a dia. E não são anônimos. Apesar de não terem seus rostos esboçados, é possível identificar o poeta e sambista Cartola, o demiurgo Arthur Bispo do Rosário ou Jean-Michel Basquiat, que se aglutinam à miríade dos outros sujeitos dessa cena negra feérica que só na superfície plana do papel parece caótica, já que o espaço projetado é bem composto por cores sólidas ornadas de dourado. 

Sem título, da série Novo Poder, Maxwell Alexandre, 2019. Gabi Carrera / Divulgação

Na entrada da galeria que abriga a mostra há uma enorme pintura que representa um grupo de pessoas negras observando e comentando uma pintura apresentada como um painel, bege, ou pardo, um grande e vazio retângulo amarelo Nápoles, um amarelo muito pálido. Ali é pintura dentro da pintura, meta-pintura. Maxwell Alexandre nos faz contemplar pessoas que, por sua vez, observam um painel (dentro do painel) onde se enxerga uma única cor. Um ácido e inteligente comentário sobre o cubo branco, sobre a instituição cultural que o projeta e que reflete de maneira narcísica só a cor do branco admitido neste espaço, sem espelhar os pretos que também o ocupam. Se há referências a Basquiat na pintura de Alexandre, essa influência não tira a potência das obras do artista e, além do mais, apresenta-se legítima. Não deixa de ser consagrador que jovens artistas negros e negras possam referir-se a outros igualmente pretos, excelentes como suas influências.

A opulência do dourado sobre o azul, ouro iridescente sobre vermelho, ouro cintilante sobre o verde, estão presentes à composição dessas pinturas quase como lembrança do metal precioso que, prospectado pelos escravizados nos garimpos de Minas Gerais, fez a riqueza de muitos – menos daqueles que o extraiam. O dourado emoldura os elementos da cultura pop, do consumo, os símbolos da ascensão social promovida pelo esporte, pelo trabalho, pela arte e pela delinquência às vezes inevitável no caminho do excluído.

ÉRAMOS AS CINZA E AGORA SOMOS FOGO, de Maxwell Alexandre
“Éramos as cinzas e agora somos o fogo”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

Pode ser que identifiquemos nas pinturas de Maxwell Alexandre algum caráter festivo, de festa profana e sacra. Nesse caso é preciso compreender o quanto a festa se traduz em resistência para aquela parcela da população que é o alvo preferencial das “balas perdidas”, das munições da necropolítica que mutilam famílias e liquidam vidas jovens ou ainda no ventre das jovens mães, mas que não contém nem dissipam o gênio insubmisso dessa insurgente arte contemporânea preta brasileira. 

Instituto Transarte: por um um futuro LGBTQ+

Iwajla Klinke, sem título, da série
Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte

As velhas certezas, ainda presentes no sistema brasileiro de arte, aos poucos se apagam com iniciativas como a Transarte, galeria pioneira na apresentação de artistas com temática LGBTQ+ e que agora vira instituto. Desde que apareceu no circuito de arte, experimenta transmutações físicas e conceituais. Agora deixa a boêmia Vila Madalena e se instala, em sede definitiva, na Gabriel Monteiro da Silva, reduto da classe alta paulistana, com outros desafios.

Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte
Iwajla Klinke, sem título, da série “Ritual Memories”. Foto: Transarte

Qualquer situação nova, que se acrescente a outras, chega para oxigenar um sentido de futuro. Concebida por Maria Helena Peres Oliveira, a Transarte abriu suas portas em 2012 mostrando a que veio. Expôs obras do enigmático artista norte-americano Timothy Cummings, resultado da residência de um ano realizada em São Paulo. Nenhum travelling de recuo ou de avanço conseguirá desvendar sua atormentada obra e nem mesmo os autorretratos deixam uma pista. Para Catharine Clark, galerista de San Francisco, “o trabalho de Cummings é ao mesmo tempo clássico e subversivo, formalmente lindo e tematicamente assustador”. Para Maria Helena, a fotógrafa Iwajla Klinke, de Berlim, tem qualidade insuspeita e por isso também foi convidada. Ela trabalha o feixe de luz natural como instrumento narrativo. A série Ritual Memories, com dorsos nus de jovens, mistura estranheza e sensualidade com takes sequenciais: homem só, homem espelho, homem narciso, homem viado. A operação é fluída, mas oposta à espontaneidade. Klinke os adorna ora com ratos e sapos pendurados no pescoço, ora com leves petecas de plástico ou rendas delicadas.

Na outra margem do oceano, a jovem brasileira Bia Leite descobriu muito cedo que os sonhos e a percepção se constroem no corpo a corpo com a vida. Aprendeu a desarmar seus agressores com uma pintura denunciadora. Premiada no edital Transarte LGBTQ+ com a tela Born to ahazar, que ficou conhecida por Criança Viada, ela ganhou notoriedade ao grafitar sobre a pintura xingamentos preconceituosos sofridos pelos homossexuais desde a infância. Bia tenta se desvencilhar do monstro que cresceu dentro dela, decorrente do bullying que sofre. O quadro participou da coletiva Queermuseum, no Centro Cultural Santander, em Porto Alegre, quando foi alvo de protestos, censura e tornou-se um dos vértices da alienação cultural insana do momento. Delicadeza também pode ser um ato de resistência. Silva M trabalha objetos encontrados ao acaso e, aleatoriamente constrói esculturas cuja superfície se assemelha à xilogravura. A jovem inventa resposta ativa para esse mundo disperso e abandonado, tecendo fragmentos com delicadeza desconcertante repleta de finas suturas que chegam às bordas e às reentrâncias, como um socorro dérmico.

“Sai Hétero”, de Bia Leite (2017). Foto: Transarte

A Transarte se reinventa, mas as residências permanecem nas perspectivas futuras que ocorrerão na nova sede, a casa que Maria Helena ganhou do avô quando tinha apenas 12 anos. Desde sua criação, a Transarte funciona com recursos próprios, sem apoio de leis de incentivos, por isso Maria Helena e sua companheira Maria Bonomi não pensaram em uma fundação.

A paisagem da arte é urbana e marcada pela vigilância. Para garantir espaço definitivo e legítimo para os artistas, está prevista a organização de uma iniciativa privada de longa duração para que o Instituto sobreviva depois da morte das proprietárias e já há dinheiro para isso. “Tivemos momento de avanço com a aprovação do STF de casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas agora piorou muito”, afirma Maria Helena. Expandindo o arco de ações, elas farão parcerias com residências como a Casa Florescer ou com outras instituições que também acolhem pessoas LGBTQ+ com traumas e de todas as idades. 

Os relatos dos artistas têm intensidade social e psíquica aterradoras. “Muita gente foge de seu local de origem, outros deixam a casa dos pais por ameaças ou abandonam as ruas pelos espancamentos, todos sem ter para onde ir”. Maria Helena quer propor também algo como arte-educação em forma de distração ou como suporte para as pessoas traumatizadas. Dessa forma a arte parece não ter sentido em si, mas na verdade é atravessada por outras potências, saberes, afetos, descobertas, que farão parte do conteúdo do Instituto. Será constituído um conselho com pessoas de várias áreas, não só para introduzir artistas e obras na circulação expositiva, mas também para pensar a pluralidade de projetos a serem gerados. O Instituto Transarte vai continuar contemplando exposições, editais, publicações de livros e residências artísticas. “Estamos falando de Instituto, mas seria uma ONG, sem fins lucrativos. Nossa proposta é de antimercado, começamos comercializando com preço baixo entre três e cinco mil reais, divididos em até 10 vezes, e o artista ainda pode receber adiantado, salvo as obras de estrangeiros.”

"Pyre of Persona", de Timothy Cummings (2012-2013). Foto: Transarte
“Pyre of Persona”, de Timothy Cummings (2012-2013). Foto: Transarte

O atrevimento de Maria Helena na adolescência, vivendo numa sociedade conservadora, parece ser o alicerce de sua forte e determinada personalidade de hoje. Nascida e sociabilizada numa família de elite, ela sempre se envolveu com arte, por influência da relação estreita com o tio Arthur Luiz Piza e pelo casamento com Maria Bonomi, ambos gravadores emblemáticos da história da arte brasileira. Maria Helena lembra a época dos delírios, das privações amorosas, quando um beijo em outra adolescente só era possível dentro de um elevador. Sua fala parte de um vazio que só foi preenchido depois que deixou São Paulo para se fixar em San Francisco, cidade de regras sociais pouco rígidas e onde ela se aproximou ainda mais da arte. Formada em química e com MBA na FGV, Maria Helena completou seus estudos nos Estados Unidos com mestrados em Marketing e em Arts Administration, trabalho no SFMOMA, na San Francisco Opera House e na galeria Catharine Clark.

Voltou ao Brasil em 2002 e faz produção e coordenação de exposições em vários museus. Todo esse aprendizado foi potencializado com outras iniciativas permeadas de questões sociais e políticas. No ano passado, com a pandemia do Covid-19 avançando, a Transarte buscou resposta da arte para o tema, produzindo o edital quarANTENA, que somou 400 inscrições e distribuiu seis prêmios de R$1200. Os artistas responderam à altura do chamado com trabalhos sobre esse tempo cruel de exclusão física. O Instituto Transarte surge no momento de desmonte da cultura no Brasil. O prognóstico é que esse projeto pioneiro, desafiador, de impacto artístico e social, sobreviva na direção de transformações há muito reivindicadas.

 

Carlito Carvalhosa: o caráter transitório das coisas

Foto horizontal, colorida. Instalação A SOMA DOS DIAS, de Carlito Carvalhosa, no Museu de Arte Moderna de Nova York em 2011
"A Soma dos Dias", Carlito Carvalhosa, no Museu de Arte Moderna de Nova York (2011). Foto: Cortesia da Galeria Nara Roesler e do artista
Foto horizontal, colorida. Carlito Carvalhosa está de pé, usa uma camisa branca de mangas curtas e uma calça cinza claro. Sorri. Ao fundo, a Instalação FAÇO TUDO PARA NÃO FAZER NADA.
O artista Carlito Carvalhosa em abertura de sua exposição na Galeria Nara Roesler em 2017. Foto: Cortesia da Galeria Nara Roesler e do artista

A morte prematura de Carlito Carvalhosa no último mês de maio, aos 59 anos, despertou um forte sentimento de tristeza e impotência, expresso de maneira contundente nas redes sociais de admiradores, artistas, críticos, colecionadores, marchands e todas essas categorias que compõem o difuso grupo conhecido como “circuito das artes”. A impossibilidade de realizar uma cerimônia de despedida e elaborar coletivamente o luto somou-se ao sentimento de desesperança vivido no país em consequência da tragédia sanitária, social e política em que estamos mergulhados. É sabido que o artista não morreu de Covid-19 e que há muitos anos lutava contra o câncer, mas restou uma sensação de que perdas como essa resumem o esgarçamento e a destruição de um projeto civilizatório no qual a arte desempenharia um papel fundamental. Objeto de intensas manifestações de afeto e admiração, Carlito e sua obra acabaram por corporificar essa noção de arte como elemento de reflexão e transformação, hoje tão violentamente ameaçada.

Se há algo que caracteriza de forma mais geral a obra do artista é seu desejo de atuar nas fronteiras perceptivas, transformando nossa apreensão de mundo e reafirmando o caráter transitório das coisas. Sua carreira começa na década de 1980, vinculada a um projeto de viés coletivo, junto a um grupo que incluía Fábio Miguez, Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade. O grupo, conhecido como Casa 7 (referência ao número do ateliê que dividiam), partilhava interesses comuns como a ligação com o neo-expressionismo e o uso de materiais pouco nobres como o papel Kraft e a tinta industrial. As experiências iniciais de Carlito com o desenho e a pintura pouco a pouco foram dando espaço também para pesquisas de cunho mais escultórico, para um interesse crescente pela ocupação do entorno. Ele passa a explorar o ambiente, incorporando elementos simples e brutos, mas de forte carga simbólica, como a luz, os tecidos translúcidos, a madeira e o gesso, materiais que passaram a ser frequentes em sua produção.

“Quis dar um nó nesse espaço”, confessou ele ao longo da montagem de sua primeira grande instalação site specific, realizada no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), em 1999. Nesse trabalho, intitulado Duas Águas, Carlito literalmente transferiu seu ateliê para o museu e travou um embate com a arquitetura rigorosa e retilínea de Paulo Mendes da Rocha (outra grande perda das últimas semanas), criando in loco uma série de monumentais estruturas em gesso, com formas orgânicas, que invertiam a noção de interior e exterior. De aparência leve, mas pesando oito toneladas, essas peças mantinham aquele aspecto paradoxal, indevassável, que o artista dizia buscar em seu trabalho.

Essa obra inaugura uma série de diálogos travados por ele com ambientes museológicos de grande importância institucional e arquitetônica, considerados como marcos tanto em sua produção como na importância crescente das grandes instalações na arte contemporânea brasileira. É o caso, por exemplo, da mostra Sala de Espera, que inaugurou no ano de 2013 o anexo da nova sede do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-USP), das instalações A Soma dos Dias, com versões similares apresentadas no octógono da Pinacoteca do Estado (2010) e no Museu de Arte Moderna de Nova York (2011), ou ainda da monumental escultura Já estava assim quando cheguei. A peça, exibida originalmente no MAM Rio em mostra temporária realizada em 2006 e posteriormente incorporada pelo acervo do Sesc Guarulhos, remete à imagem do Pão de Açúcar às avessas, uma montanha volumosa que flutua invertida no ar, provocando o visitante com seu caráter instável e precário. Um aspecto secundário, porém instigante, no trabalho de Carlito é a atenção que ele dá à palavra. Seus títulos trazem sempre uma dimensão poética, uma sugestão temporal ou narrativa que adere ao trabalho, somando-se ao aspecto formal e gerando outra camada de significados.

Há em comum em todos esses projetos, que jogam com luz, equilíbrio, volume, profundidade e transparência, um desejo permanente de transformar sutilmente nossa apreensão daquilo que nos cerca. Ao acionar esses espaços por meio de pequenas intervenções (como quando ergueu os heráldicos móveis da Fundação Eva Klabin, colocando sob eles frágeis copos de vidro) ou de ações de maior impacto visual ou sensorial (como as grandes espirais de tecido translúcido que compõem a cena em Soma dos Dias), cria uma espécie de lugar fora do tempo, em que as sensações de pertencimento e ausência se sobrepõem. Algo que Lorenzo Mammì definiu como um “não lugar”. Ou, nas palavras de Marta Mestre, uma situação que é extremamente ambígua, “porque vacila permanentemente entre contemplação e experiência, entre distância e aproximação, entre óptico e háptico”. Em outras palavras, a obra de Carlito Carvalhosa vai além de desafiar o espectador com instigantes provocações temporais e espaciais. Ao longo de mais de três décadas, ele problematiza a relação entre a obra de arte e o público, incorporando-se à melhor tradição da arte contemporânea brasileira.

Carta a Sidney Amaral

Bem Me Quer, Mal Me Quer (2011), Sidney Amaral, exposta em VIVER ATÉ O FIM O QUE ME CABE - SIDNEY AMARAL: UMA APROXIMAÇÃO
"Bem Me Quer, Mal Me Quer", Sidney Amaral, 2011. Foto: Coleção particular/Cortesia Sesc Jundiaí
"Gargalheira ou quem falará por nós", Sidney Amaral, 2014. Foto: Coleção particular/Cortesia Sesc Jundiaí
“Gargalheira ou quem falará por nós”, Sidney Amaral, 2014. Foto: Coleção particular/Cortesia Sesc Jundiaí

*Por Daniel Lima

Nunca te conheci, Sidney. Apesar de sermos dois artistas plásticos da mesma geração, da mesma cidade, não nos encontramos em vida. Mais raro ainda se faz este desencontro se pesarmos que somos dois artistas negros, uma exceção no mundo da arte contemporânea – mais ainda no início dos anos 2000, quando iniciamos nossas carreiras.

Logo nas minhas primeiras exposições, meu caminho bifurcou para um trajeto distante das galerias de arte. Fui parte desta geração que optou por um encontro com a cidade, com as contradições do espaço urbano. Um campo de batalha para criações poéticas num embate de escala, linguagens e contextos político-sociais.

Enquanto você desenvolvia estes trabalhos poderosos que fazem parte da exposição Viver até o fim o que me cabe! – Sidney Amaral: uma aproximação, com curadoria de Claudinei Roberto da Silva, eu estava também na lida de trabalhos poéticos com soluções plásticas e conceituais distintas. Mas os atravessamentos são os mesmos, Sidney…

Percebi estas transversalidades no meu encontro com sua obra quando estava realizando a exposição Agora Somos Todxs Negrxs?, no Galpão Videobrasil em 2018. Com a ajuda do Claudinei Roberto – que tinha sido colega na USP e que certamente pode compactuar de ser negro nestes espaços de exceção -, pude encontrar suas obras em seu habitat natural: o ateliê onde deitavam cobras douradas de dentes de garfo; barbies sem cabeça em sólido bronze; colheres armadilhas de comer. Os desenhos e pinturas de um virtuosismo da técnica em encontro com este duplo da identidade: a contradição da negritude.

Ser parte de uma imensa minoria na arte contemporânea e maioria na população nos dá esta certeza da importância de inscrever essa perspectiva afro-brasileira tão invisibilizada. Ao mesmo tempo, é certa a armadilha identitária que temos que transcender. Um duplo desafio de trazer o contexto singular que nos forjou, mas também, de atravessar os limites do que se considera como denúncia de mazelas sociais do nosso mundo. Uma contradição a ser elaborada em dois sentidos: em relação à armadilha identitária e outro, conexo a identidade, na articulação da denúncia social e do anúncio de outras perspectivas futuras.

As armadilhas são semelhantes à medida que colocam o problema de como fugir dos quadros criados para um fazer político poético. Em outras palavras, Sidney, tivemos à frente o desafio de falar a partir do lugar de indivíduos negros – e nesta operação do olhar para si mesmo é quase impossível ignorar as violências que nos atravessam – mas, ao mesmo tempo, desvestir-se da roupa identitária negra pois foram criadas para nos amarrar e tolher potências de vida. Como coloca Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra:

“Não persistirá ele próprio a se reconhecer apenas pela e na diferença? Não estará convencido de ser habitado por um duplo, uma entidade estrangeira que o impede de se conhecer a si mesmo? Não vivenciará seu mundo como um definido pela perda e pela cisão e não nutrirá o sonho do regresso a uma identidade consigo mesmo, que regride ao modo da essencialidade pura e, por isso mesmo, muitas vezes, do que lhe é dessemelhante?”

Este duplo na sua obra, Sidney, surge em ataque a si mesmo. Afirmar-se negro em imagem, plenitude, luta, dignidade, num sentido reverso à animalização histórica do negro no mundo colonizado. Simultaneamente golpeado pela certeza que algo nos enterra numa retórica de morte:

“A ameaça assombrosa, para milhões de pessoas apanhadas nas redes da dominação racial, de verem seus corpos e pensamentos operados a partir de fora e de se verem transformadas em espectadores de algo que, ao mesmo tempo, era e não era a sua própria existência” (MBEMBE).

Sidney, quando fui à África pude entender que “negro” foi criado aqui nas Américas para nos definir, dominar e diminuir. Um termo que, como coloquei no título-pergunta provocação da nossa exposição Agora somos todxs negrxs?, foi criado para “significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado”, escreve Mbembe. Mas que, pela necessidade de sobrevivência, foi ressignificado por um caminho de luta da mesma história de violência e resistência. Ser negre passou a significar que somos irmãos e irmãs, filhos e filhas da diáspora afro-atlântica. E desde então este ser negro “tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias histórias simultaneamente”.

Acredito que este duplo que reencenamos juntos com tantos outros nesta geração redefine significados de imagens consolidadas e consolidadoras de estereótipos. O menino negro com a camiseta máscara; o anjo soldado; a mulher que sorri com coroa de flores… Maneiras de recolocar imagens no mundo – e, desta forma, nos recolocamos.

Estes movimentos são conscientes da limitação em “simplesmente estabelecer novos símbolos de identidade, novas ‘imagens positivas’ que alimentam uma ‘política de identidade’ não reflexiva”, como escreve Homi Bhabha em O Local da Cultura. Por desgaste e provocação desta dupla identidade, construímos um labirinto que leva, afinal, a identidade multiplex: não fluidas, amorfas ou escorregantes, mas antes sólidas em muitos lados definidos pela negação, pelo o que não somos.

Assim, os temas, seja da escravidão como em Gargalheira ou quem falará por nós?, seja da religião católica colonial em Demiurgo ou O Pão Nosso, mas também da história recente em Diálogos/Encontro retornam como este “presente disjuntivo”, um presente quebrado em interpretações conflitantes, contraditórias. Este deslocamento incomoda muitos porque desconstrói mundos de crenças estáveis. Somente o deslocamento racial, a figura negra no contexto canônico da arte, já desloca o mundo à sua volta.

Estas imagens mito, imagens memória, imagens tempo que invadem e colonizam subjetividades, Sidney, estão sendo reinscritas por nós não como símbolos heróicos de uma política de identidade. São reinscritas na “própria textualidade do presente, que determina tanto a identificação com a modernidade quanto o questionamento desta: o que é o ‘nós’ que define a prerrogativa do meu presente?”, aponta Bhabha.

Certo que este “nós” da nação brasileira nunca nos incluiu. E, neste estágio do capitalismo, muitos começam a perceber que também não os inclui mais. O estágio atual de exploração, seja material, seja cognitiva, coloca uma grande maioria lado a lado numa fractal de segregação. “De agora em diante todos serão conhecidos genericamente como negros”, afirmava a Constituição Haitiana de 1805, fruto da única revolta negra a tomar o poder definitivo e da primeira nação americana a abolir a escravidão. “Agora somos todos negros!”, afirmavam para pactuar a resistência entre nós.

Nós pactuamos, entre trancos e barrancos, entre batalhas e guerras, entre desconstruções e descolonizações, que não vamos sucumbir ao sequestro do futuro. Reencenamos
o passado com os delírios do presente. Vejo na sua obra, Sidney, uma força nada próxima do surreal onírico, mas sim limítrofe do delírio: uma potência de fascinação e alucinação.

Sidney, tomei a vacina imunizante do vírus Covid-19 no dia que fui visitar a sua exposição Viver até o fim o que me cabe!, no Sesc Jundiaí. De manhã, já tinha preparado meus documentos. A médica que me recebeu depois da pouca espera na fila, estava sentada no drive-thru desativado. Algumas pessoas passavam perguntando qual vacina estava sendo aplicada e que dia chegaria a da Pfizer. Os olhos verdes da médica examinaram o diploma da PUC cheio de escritos dourados. Depois ela preencheu uma ficha e me perguntou sobre minha autodenominação: negro. Lembro que consigo escapar da estatística que coloca a população negra entre as menos vacinadas do país. O Brasil vacina duas vezes mais pessoas brancas do que negras (dado da Agência Pública). Escapei porque entro na faixa dos que têm diploma em Psicologia Clínica. Este é um tipo de medida que subterraneamente abre caminho para uma parcela branca – que não necessariamente tem maior risco – se vacinar antes. “Aceitar somente o diploma é medida feita para branco se vacinar”, a médica concorda. E me vejo aqui. Sim, sempre fomos a exceção, Sidney.

VIVER ATÉ O FIM O QUE ME CABE – SIDNEY AMARAL: UMA APROXIMAÇÃO
ONDE: Sesc Jundiaí (Av. Antônio Frederico Ozanan, 6600 – Jardim Botânico, Jundiaí – SP)
QUANDO: 11 de maio de 2021 a 4 de setembro 2021. Terça a sexta, das 14h às 19h e sábados das 10h30 às 13h30
Ingresso gratuito. Visita mediante agendamento prévio.