Iwajla Klinke, sem título, da série
Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte

As velhas certezas, ainda presentes no sistema brasileiro de arte, aos poucos se apagam com iniciativas como a Transarte, galeria pioneira na apresentação de artistas com temática LGBTQ+ e que agora vira instituto. Desde que apareceu no circuito de arte, experimenta transmutações físicas e conceituais. Agora deixa a boêmia Vila Madalena e se instala, em sede definitiva, na Gabriel Monteiro da Silva, reduto da classe alta paulistana, com outros desafios.

Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte
Iwajla Klinke, sem título, da série “Ritual Memories”. Foto: Transarte

Qualquer situação nova, que se acrescente a outras, chega para oxigenar um sentido de futuro. Concebida por Maria Helena Peres Oliveira, a Transarte abriu suas portas em 2012 mostrando a que veio. Expôs obras do enigmático artista norte-americano Timothy Cummings, resultado da residência de um ano realizada em São Paulo. Nenhum travelling de recuo ou de avanço conseguirá desvendar sua atormentada obra e nem mesmo os autorretratos deixam uma pista. Para Catharine Clark, galerista de San Francisco, “o trabalho de Cummings é ao mesmo tempo clássico e subversivo, formalmente lindo e tematicamente assustador”. Para Maria Helena, a fotógrafa Iwajla Klinke, de Berlim, tem qualidade insuspeita e por isso também foi convidada. Ela trabalha o feixe de luz natural como instrumento narrativo. A série Ritual Memories, com dorsos nus de jovens, mistura estranheza e sensualidade com takes sequenciais: homem só, homem espelho, homem narciso, homem viado. A operação é fluída, mas oposta à espontaneidade. Klinke os adorna ora com ratos e sapos pendurados no pescoço, ora com leves petecas de plástico ou rendas delicadas.

Na outra margem do oceano, a jovem brasileira Bia Leite descobriu muito cedo que os sonhos e a percepção se constroem no corpo a corpo com a vida. Aprendeu a desarmar seus agressores com uma pintura denunciadora. Premiada no edital Transarte LGBTQ+ com a tela Born to ahazar, que ficou conhecida por Criança Viada, ela ganhou notoriedade ao grafitar sobre a pintura xingamentos preconceituosos sofridos pelos homossexuais desde a infância. Bia tenta se desvencilhar do monstro que cresceu dentro dela, decorrente do bullying que sofre. O quadro participou da coletiva Queermuseum, no Centro Cultural Santander, em Porto Alegre, quando foi alvo de protestos, censura e tornou-se um dos vértices da alienação cultural insana do momento. Delicadeza também pode ser um ato de resistência. Silva M trabalha objetos encontrados ao acaso e, aleatoriamente constrói esculturas cuja superfície se assemelha à xilogravura. A jovem inventa resposta ativa para esse mundo disperso e abandonado, tecendo fragmentos com delicadeza desconcertante repleta de finas suturas que chegam às bordas e às reentrâncias, como um socorro dérmico.

“Sai Hétero”, de Bia Leite (2017). Foto: Transarte

A Transarte se reinventa, mas as residências permanecem nas perspectivas futuras que ocorrerão na nova sede, a casa que Maria Helena ganhou do avô quando tinha apenas 12 anos. Desde sua criação, a Transarte funciona com recursos próprios, sem apoio de leis de incentivos, por isso Maria Helena e sua companheira Maria Bonomi não pensaram em uma fundação.

A paisagem da arte é urbana e marcada pela vigilância. Para garantir espaço definitivo e legítimo para os artistas, está prevista a organização de uma iniciativa privada de longa duração para que o Instituto sobreviva depois da morte das proprietárias e já há dinheiro para isso. “Tivemos momento de avanço com a aprovação do STF de casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas agora piorou muito”, afirma Maria Helena. Expandindo o arco de ações, elas farão parcerias com residências como a Casa Florescer ou com outras instituições que também acolhem pessoas LGBTQ+ com traumas e de todas as idades. 

Os relatos dos artistas têm intensidade social e psíquica aterradoras. “Muita gente foge de seu local de origem, outros deixam a casa dos pais por ameaças ou abandonam as ruas pelos espancamentos, todos sem ter para onde ir”. Maria Helena quer propor também algo como arte-educação em forma de distração ou como suporte para as pessoas traumatizadas. Dessa forma a arte parece não ter sentido em si, mas na verdade é atravessada por outras potências, saberes, afetos, descobertas, que farão parte do conteúdo do Instituto. Será constituído um conselho com pessoas de várias áreas, não só para introduzir artistas e obras na circulação expositiva, mas também para pensar a pluralidade de projetos a serem gerados. O Instituto Transarte vai continuar contemplando exposições, editais, publicações de livros e residências artísticas. “Estamos falando de Instituto, mas seria uma ONG, sem fins lucrativos. Nossa proposta é de antimercado, começamos comercializando com preço baixo entre três e cinco mil reais, divididos em até 10 vezes, e o artista ainda pode receber adiantado, salvo as obras de estrangeiros.”

"Pyre of Persona", de Timothy Cummings (2012-2013). Foto: Transarte
“Pyre of Persona”, de Timothy Cummings (2012-2013). Foto: Transarte

O atrevimento de Maria Helena na adolescência, vivendo numa sociedade conservadora, parece ser o alicerce de sua forte e determinada personalidade de hoje. Nascida e sociabilizada numa família de elite, ela sempre se envolveu com arte, por influência da relação estreita com o tio Arthur Luiz Piza e pelo casamento com Maria Bonomi, ambos gravadores emblemáticos da história da arte brasileira. Maria Helena lembra a época dos delírios, das privações amorosas, quando um beijo em outra adolescente só era possível dentro de um elevador. Sua fala parte de um vazio que só foi preenchido depois que deixou São Paulo para se fixar em San Francisco, cidade de regras sociais pouco rígidas e onde ela se aproximou ainda mais da arte. Formada em química e com MBA na FGV, Maria Helena completou seus estudos nos Estados Unidos com mestrados em Marketing e em Arts Administration, trabalho no SFMOMA, na San Francisco Opera House e na galeria Catharine Clark.

Voltou ao Brasil em 2002 e faz produção e coordenação de exposições em vários museus. Todo esse aprendizado foi potencializado com outras iniciativas permeadas de questões sociais e políticas. No ano passado, com a pandemia do Covid-19 avançando, a Transarte buscou resposta da arte para o tema, produzindo o edital quarANTENA, que somou 400 inscrições e distribuiu seis prêmios de R$1200. Os artistas responderam à altura do chamado com trabalhos sobre esse tempo cruel de exclusão física. O Instituto Transarte surge no momento de desmonte da cultura no Brasil. O prognóstico é que esse projeto pioneiro, desafiador, de impacto artístico e social, sobreviva na direção de transformações há muito reivindicadas.

 

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