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As palavras de Carolina de Jesus

Carolina Maria de Jesus em 1960, em foto para a revista O Cruzeiro. Fotos: Henri Ballot / Revista O Cruzeiro
Carolina Maria de Jesus em 1960, em foto para a revista O Cruzeiro. Fotos: Henri Ballot / Revista O Cruzeiro

*Por Luzia Gomes

Um amanhã
Possível realidade
Uma honestidade
Humanidade nua
Um despejo em papéis
Um pedaço da fome
Invadiu
Resistiu
Infiltrou
Corroeu um sistema e foi pra cima
Muito bem Carolina!!!
(Larissa Luz)

I. Desenquadrando existências

A vida e a obra da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus chegam até nós, neste mês de setembro, através da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles (IMS) de São Paulo, com curadoria do antropólogo Hélio Menezes, da historiadora Raquel Barreto, e tendo como assistente de curadoria a historiadora da arte Luciara Ribeiro. Exposições como essa apresentam as possibilidades de diálogos entre a arte literária de autorias negras e os espaços expositivos para além de uma perspectiva biográfica. Pensar a obra dessa autora possibilita ultrapassar a história da sua própria vida, pois, no exercício da sua poética, nas brechas, nos retalhos dos papéis, nas tramas dos bordados desenhados das suas letras, grafadas nas linhas de vários tempos, Carolina Maria de Jesus nos apresenta um retrato do Brasil, enquadrado nos resquícios coloniais e conflitos urbanos.

A exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros é composta de aproximadamente 15 núcleos temáticos, tecidos entre palavras e imagens. Nesta narrativa expográfica, desenquadra-se o enquadramento limitante da estetização da pobreza diante da existência de uma mulher negra e vigora uma Carolina Maria de Jesus que usou colares de pérolas, vestiu roupas elegantes, viajou de avião, apareceu em programa de TV com seus filhos e filha. Acessar essas outras imagens da autora nos move a uma reflexão sobre o poder das imagens e como elas podem nos humanizar:

Tinha esquecido o poder das imagens arraigadas e da linguagem estilosa para seduzir, revelar, controlar. Tinha esquecido também sua capacidade de nos ajudar a dar continuidade ao projeto humano, que é permanecer humano e impedir a desumanização e a exclusão dos outros. (MORRISON, 2019, p. 62)

Subvertendo os cânones brancos, a prosa e a poesia de Carolina é um fundamento epistêmico para pensarmos a sociedade brasileira e percebermos que as desigualdades socioeconômicas e o racismo, por exemplo, que a escritora apontava no século 20, ainda se fazem presentes no século 21. E, diante dessa estrutura sociocultural brasileira, ainda não construímos estratégias concretas de erradicação dessas mazelas do nosso tecido social.

A obra de Carolina também é um patrimônio cultural do nosso tempo, dentre tantos patrimônios possíveis. Não estou pensando aqui patrimônio apenas como uma categoria de Estado na formação das identidades nacionais, mas sim um patrimônio a partir de uma perspectiva do amor, como uma ação que nos possibilita avançar numa luta constante para a liberdade. Pois, como afirmou a poeta Maya Angelou: “[…] eu uso a palavra amor como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias”. (ANGELOU, 2018) As escritas de Carolina restituem os corpos considerados “descartáveis” de humanidade, ou seja, descartáveis de memórias, subjetividades, individualidades e suas complexidades de ser e existir no mundo.

II. As Letras de Carolina

As letras de Carolina Maria de Jesus são como as águas que não pedem licença – Carolina entra, arrebenta, inunda, lava e leva. As águas não têm pressa, elas seguem seu curso no seu tempo, dizendo-nos que elas são senhoras de vários tempos nos interstícios entre passado e futuro, desaguando no presente. A prosa e a poesia de Carolina, seguindo o curso e o percurso das águas, ofertam-nos uma constante reconstrução da sua própria existência, num fluxo contínuo do eu para o nós.

As letras de Carolina Maria de Jesus nos remetem, também, ao pensamento da intelectual Carla Akotirene quando afirma: “[…] a língua escravizada esteve amordaçada, politicamente, impedida de tocar seu idioma, beber da própria fonte epistêmica cruzada de mente-espírito”. (AKOTIRENE, 2018, p. 16) Nesse sentido, a obra literária de Carolina desamordaça nossas línguas e contribui para a desmantelação das imagens e memórias de controle opressoras das existências negras. A partir das suas escritas, ela se torna sujeita reflexiva e tenciona o campo da linguagem, nos jogos de poder das letras. Carolina é dona da sua fala, dona da sua existência.

As letras de Carolina Maria de Jesus estão dentro da sua norma de escrita, pois é uma grafia criada “[…] no seu interior, nas vísceras e nos tecidos vivos — chamo isto de escrita orgânica. […]”. (ANZALDÚA, 2000, p. 234) A obra de Carolina desenquadra as palavras, tornando-as organismos vivos, com as quais ela revela as agruras de ser uma mulher negra, pobre, moradora da favela do Canindé, mãe solo, realizando um trabalho de desprestígio social. Porém, é com a sua própria escrita que ela nos diz: a sua existência não se reduzia a essa condição marginalizada, não limitava o seu sonhar, nem o seu pensar a si mesma e ao mundo ao seu redor. É com as suas próprias normas de escrever que Carolina fabula as possibilidades de reinvenção do que a cerca.

As letras de Carolina Maria de Jesus atravessaram o Oceano Atlântico e, no lado de lá, desaguaram construindo diálogos afro-diaspóricos materializados no livro Cartas a uma negra, da escritora martinicana Françoise Ega, radicada na França. A obra de Carolina faz parte de um universal entre os vários universais existentes no mundo. As suas palavras acolheram outra autora e possibilitaram que ela também se tornasse sujeita reflexiva de si a partir da escrita em diálogo com as letras de Carolina.

Pois é Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos leem você por curiosidade, já eu jamais a lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, e tanto é assim que outras pessoas, por mais indiferentes que sejam, ficam impressionadas com as suas palavras. (EGA, 2021, p. 5)

Carolina Maria de Jesus é uma escritora do nosso tempo. Sua obra, além de seguir nos fazendo pensar a sociedade brasileira com todas as suas desigualdades sociais, é um patrimônio cultural afro-brasileiro que deve ser revisitado constantemente. A partir disso, é tarefa primordial desenquadrar nossos olhares sobre a vida, a prosa e a poesia de Carolina e, para isso, a exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros propõe e nos instiga a perceber essas outras tramas existenciais da escritora. Lembremo-nos de Carolina a partir das suas palavras: “Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida”.

Disco Quarto de despejo, 1961, de Carolina Maria de Jesus. Foto: Coleção José Ramos Tinhorão / Acervo Instituto Moreira Salles
Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
ANGELOU, Maya. Mamãe & eu & mamãe. Tradução de Ana Carolina Mesquita. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. In: Revista Estudos Feministas, p. 229-236, 2000.
EGA, Françoise. Cartas a uma negra. Tradução Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2021.
MORRISON, Toni. A origem dos outros: Seis ensaios sobre racismo e literatura. Tradução Fernanda Abreu; prefácio Ta-Nehisi Coates. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.


*Luzia Gomes é poeta, feminista negra, museóloga e Professora Doutora do Curso de Museologia na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordena projetos de pesquisa e extensão que versam sobre a arte literária de mulheres negras e a Museologia.

Bienal de São Paulo: 70 anos de acertos e equívocos

Vista da 3ª Bienal de São Paulo
Vista da 3ª Bienal de São Paulo. Foto: Fundação Bienal de São Paulo

A arte pode ser um capricho individual, mas seu poder de contágio, como dizia Lima Barreto, é o traço de ligação entre os homens. Apesar do estranhamento com que foi recebida em 1951, a 1ª Bienal de São Paulo se impôs e tornou-se a manifestação artística brasileira mais conhecida no exterior. Ao criá-la, Francisco Matarazzo, conhecido como Ciccillo, apostou no projeto cultural mais ousado já realizado nos trópicos. A 1ª edição foi montada provisoriamente no Belvedere Trianon, onde hoje está o Masp (Museu de Arte de São Paulo). De dois em dois anos a Bienal participa de uma espécie de “Grand Slam” das artes, ao lado da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel.

Um dos desafios desse esforço, de grande carga utópica, era refletir sobre o papel da produção nacional, a pertinência de sua atualidade e inserção no plano internacional. Temos que admitir que a contribuição de suas 34 edições, nesses 70 anos, nem sempre se deu de forma explícita, às vezes por tentativas de um pensamento inusitado, outras vezes por uma montagem perturbadora.

Inspirada na Bienal de Veneza, realizada desde 1895, o evento paulistano provocou em sua edição inaugural forte impacto nos artistas brasileiros. A escultura Unidade Tripartida, de Max Bill, artista suíço laureado com o prêmio máximo da Bienal, abriria as portas para o abstracionismo geométrico e influenciou escultores brasileiros como Franz Weissmann. Outros artistas também deixaram suas marcas, como René Magritte, Alberto Giacometti, Di Cavalcanti, Candido Portinari e Lasar Segall. Eles sinalizaram a arte desenvolvida naqueles anos de 1950.

Em 1954 São Paulo se preparava para a festa de seu o quarto centenário quando Ciccillo surpreende a todos ao trazer para a segunda edição a Guernica e mais 65 obras de Picasso, com curadoria do artista espanhol realizada diretamente de Paris. Os locais determinados para mostrar arte, a partir de então se expandem com a mobilidade da vida. Na segunda edição, a Bienal ganhou lugar definitivo no complexo do Parque do Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer. Além da retrospectiva de Picasso, exibiu o futurismo italiano, o cubismo, os geométricos argentinos e as salas de Mondrian, Paul Klee e Edvard Munch. Uma aula sobre a excepcionalidade da arte do século 20.

Guernica de Pablo Picasso
“Guernica”, de Pablo Picasso, foi exposta da 2ª Bienal de São Paulo, em 1954, com mais 65 obras do artista. Hoje ela se encontra no Museu Reina Sofia, protegida por vidro a prova de bala, detector de metais. No Ibirapuera chegou num dia de chuva, em cima de um caminhão de madeira, dentro de um tubo de metal com uma lona por cima. Foto: Reprodução

A criação da Bienal estava relacionada às mudanças político-econômicas da cidade de São Paulo e às estratégias culturais da elite local para transformá-la em pista de pouso das vanguardas internacionais. A arte começa a mudar rapidamente e, com o tempo, elas se agigantam e ganham peso. Já em sua 4ª edição, de 1957, a Bienal teve que ser transferida para o antigo pavilhão das Indústrias, também no Ibirapuera, onde está até hoje. O prazer de estar nas multidões, segundo Walter Benjamin, “é uma expressão misteriosa do prazer sensual da multiplicação do número. O numeroso está em tudo”. Os jornais noticiavam que o evento atraia centenas de pessoas para admirar o prédio transparente com as belas curvas arquitetônicas de Niemeyer e obras de arte ininteligíveis. Uma delas era a pintura de Jackson Pollock que chegou à Bienal um ano após sua morte. Os trabalhos de Tapiès e Josef Albers provocam intercâmbio silencioso com as obras de Frans Krajcberg, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Essa edição foi marcada pelo corte de 84% dos artistas inscritos e causou a fúria de muitos deles, como Flávio de Carvalho – uma das figuras mais polêmicas da arte brasileira, personalidade dionisíaca e nietzschiana – que se dirigindo a Ciccillo denunciou: ”Você influencia o júri e ele elege quem o MAM quer. O que acabam de fazer foi um crime contra a arte brasileira. Antes, malandro era só o júri, agora é o museu também”.

O ano de 1961 constitui-se num marco na história da Fundação Bienal, que se desvincula do Museu de Arte Moderna de São Paulo e se transforma em instituição autônoma. As obras premiadas na Bienal até então foram doadas ao Museu de Arte Contemporânea da USP. Também no mesmo ano, a capital do Brasil deixa de ser o Rio de Janeiro, é transferida para Brasília e materializa uma ideologia estética lançada por Le Corbusier. Era apenas o começo de uma era explosiva. Mario Pedrosa, o crítico brasileiro mais conhecido internacionalmente, é escolhido como curador da edição, que exibiu retrospectiva consistente do alemão Kurt Schwitters, um revolucionário nas assemblagens que influenciou o pop Robert Rauschenberg. Pedrosa expôs obras de Maria Helena da Silva, que saiu vencedora da premiação, e ainda mostrou o realismo socialista do italiano Renato Guttuso e as pinturas de Clemente Orozco, Paul Devaux, René Magritte e Marc Chagall. Porém, por motivos burocráticos, não conseguiu trazer o melhor da vanguarda russa. Pedrosa há alguns anos queria mostrar o suprematismo, movimento revolucionário criado por Malevich em 1915 e consolidado nos primeiros anos da Revolução Russa, mas acabou trazendo artistas jovens não significativos. De certa forma decepcionou alguns críticos e artistas.

Ditadura e repressão

Os anos de 1960 sacodiam o mundo e a Bienal, também atingida pelas mudanças político-ideológicas, tenta sobreviver sob o slogan de Pedrosa: “A arte é o exercício experimental da liberdade”. Era o momento da contracultura, guerra do Vietnã, ditaduras latino-americanas. O golpe militar de 1964, desferido contra a democracia brasileira, colocou muitos intelectuais na prisão. O período coincide com o declínio da Bienal. Em 1965, Maria Bonomi, ao receber o prêmio de melhor gravadora, com uma das mãos pega o troféu e com a outra entrega ao presidente Castelo Branco uma carta assinada por intelectuais e artistas pedindo a soltura do crítico Mário Schenberg, do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e de outros intelectuais.

Dois anos depois, obras ícones da pop art americana desembarcam na Bienal. Trabalhos de Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Jasper Johns, Robert Rauschenberg e Robert Indiana mostram que se pode trabalhar com os ícones da cultura de massa de um país, com crítica e humor, sem fazer realismo socialista. O prêmio é atribuído a Jasper Johns pela série Three Flags, enquanto Quissak Júnior, jovem artista brasileiro, teve seu trabalho interditado pela polícia por usar a bandeira nacional. O pop brasileiro também mostrou sua dimensão com obras críticas ao sistema, como as de Claudio Tozzi, Antonio Henrique Amaral, Rubens Gerchman e Nelson Leirner. Citando Michel Foucault, “o poder é produtor antes de repressor; produz maneiras de viver e produz realidades”.

Dois anos depois a Bienal sofre um boicote internacional decorrente da intervenção militar na exposição do Museu de Arte Moderna do Rio, que exibia as obras que iriam para a 6ª Bienal de Paris; algumas foram consideradas ofensivas ao regime. Mario Pedrosa é exilado no Chile em 1971 e provoca uma carta de repúdio assinada por dezenas de personalidades, como Octavio Paz e Pablo Picasso. Contrariando as expectativas, o crítico Mário Schenberg, militante da esquerda, não boicotou a Bienal. Para ele, permanecer era uma forma de resistência, de garantir o lugar de protesto. Convicto de sua posição, organiza uma sala com jovens artistas, entre eles José Roberto Aguilar, Carmela Gross, Ione Saldanha, Claudio Tozzi e João Câmara. A Bienal amargava um momento triste ao ver esgarçado o maior projeto de arte que o país já teve. E por que o Brasil jamais recebeu o Grande Prêmio (Itamaraty) da Bienal de São Paulo? Nunca houve explicação convincente. O que se sabe é que o único país latino-americano a conseguir essa façanha foi a Argentina em 1977, com o Grupo de los Trece, liderado por Jorge Glusberg, idealizador do CAyC (Centro de Arte y Comunicación), de Buenos Aires.

Redemocratização

Na década de 1980, com o início da abertura política, os países que assinaram o boicote retornam à Bienal. As galerias se multiplicam e o trânsito da comunidade artística internacional se intensifica, não mais apenas centrado no período do evento, mas durante todo o ano. Walter Zanini assume a edição de 1981 dando ênfase ao experimental e cria zonas de interrogações, sem se preocupar com as certezas. Tal como Harald Szeemann – curador da Documenta de Kassel em 1972, que muda toda a estrutura da mostra alemã e a coloca no topo das grandes exposições internacionais -, Zanini também muda o conceito da Bienal de São Paulo, trocando a montagem por países pela analogia de linguagem. O curador levou o evento para uma relação direta com o novo, expôs a arte postal, o vídeo texto, mostrou a antiarte do grupo Fluxus, abriu para as performances da dupla inglesa Gilbert & George e proporcionou uma profunda análise sobre a Arte Incomum com a participação de psicanalistas e estudiosos sobre a produção dos portadores de doenças mentais.

17ª Bienal de São Paulo.
17ª Bienal de São Paulo. Foto: Fundação Bienal de São Paulo

No processo de ocupação dos 33 mil metros quadrados do pavilhão da Bienal, a 18ª edição, curada por Sheila Leirner, se diferenciou com o impacto causado pela Grande Tela, um conjunto de três corredores de 100 metros cada que exibia centenas de pinturas neo-expressionistas vindas de vários países. Ainda nessa edição, Marina Abramovic e Ulay finalizaram a performance Nightsea Crossing, iniciada na Bienal de Sidney em 1981 e que somava quase 600 horas e 94 dias. Nela, o casal performático permaneceu sentado, se entreolhando durante sete horas, em sete dias, sem se mexer. Alex Vallauri leva seu grafite mundano para a Bienal e constrói a casa da “Rainha do Frango Assado” personificada por Claudia Raia, sua amiga, então com 18 anos.

Seria imprudente negligenciar a 24ª edição, de 1998, com sua abordagem carregada de brasilidade, traduzida em Antropofagia e curada por Paulo Herkenhoff. A mostra transversal histórica incluía obras do período colonial do século 19 e estabeleceu justaposições com a contemporaneidade como no Eixo Exógeno, de Tunga, que dialogou com o quadro Lea e Maura, de Guignard, sendo uma das garotas retratadas a mãe de Tunga. A contemplação silenciosa dos visitantes contrastava com a estridência dos objetos reunidos na sala de Paulo Bruscky na 26ª edição, de 2004, curada por Alfons Hug, cujas releituras se abriam para outras experiências de tempo e memória.

Na Bienal de 2006, com a curadoria de Lisette Lagnado, o artista americano Jimmie Durham, de origem aborígene, escreveu uma carta aberta que enviou junto com seu trabalho, em que denunciava a situação dos indígenas no Brasil, afirmando que a Bienal não tinha se interessado pelo assunto. Essa intervenção de confronto ao colonialismo foi um marco inusitado. Ao escolher Incerteza Viva como tema, o curador Jochen Volz colocou o meio ambiente no debate da 32ª edição, mostra que teve a participação majoritária de mulheres e a primeira cocuradora negra, Gabi Ngcobo.

Nos últimos anos, a Bienal abriu as portas para vários coletivos de artistas que gravitavam, ainda apagados, em torno da produção brasileira. A maioria com inserção de gênero, minorias afrodescendentes e indígenas, que atualizaram o diálogo, mas nem sempre com obras à altura de uma bienal. Não há uma maneira subjetiva única de entender o mundo como forma de relacionar o presente com o passado, a memória com a identidade e se abrir para as infinitas leituras sobre as demandas sociopolíticas atuais. A Bienal de São Paulo chega à sua 34ª edição (analisada nesta edição por Fabio Cypriano) e dá sinais de que o momento artístico e político pede profunda reflexão e estudo de novas atitudes para superar a pobreza e a obscuridade que atualmente toma conta do Brasil.

Os tempos entrelaçados de Rosângela Rennó

Guidon, homem de Betanimen
"Guidon, homem de Betanimen", Rosângela Rennó (2018), da série "Seres Notáveis do Mundo". Foto: Cortesia Pinacoteca do Estado de São Paulo
Foto horizontal, colorida. Rosângela Rennó está sentada em uma escada sem corrimão. Com as pernas cruzadas, apoia o cotovelo sobre um dos joelhos e usa a mão de apoio para o rosto, que mira a câmera. Usa uma camiseta preta de manga comprida, uma calça cinza, echarpe estampado com tons de laranja, verde, marrom, bege e azul. No rosto, um óculos redondo e branco. Tem os cabelos soltos. Atrás da artista, uma estante com rolos de filme para cinema.
Rosângela Rennó. Foto: Gabriela Lima

A obra de Rosângela Rennó será revisitada numa grande exposição antológica, a ser inaugurada na Estação Pinacoteca, em 2 de outubro, dando oportunidade ao público de ver em conjunto a potência de sua produção. Tendo como principais elementos a memória e a imagem, sobretudo a fotográfica, a artista desconstrói estruturas de perpetuação do poder, ilumina perversões sociais e traz à tona artifícios da nossa ordem social que nos ajudam a iluminar e desconstruir naturalizações que por vezes parecem inabaláveis.

Com curadoria de Ana Maria Maia, a mostra apresenta um leque amplo de pesquisas e questões elaboradas pela artista ao longo de 35 anos. Lá estão trabalhos antológicos, como as séries Vermelha (Militares), Vulgo ou Apagamentos, mesclados a obras pouquíssimo vistas, do início da carreira, ou pesquisas inéditas no Brasil como Eaux de Colonies (2019).

Enfim, Pequena Ecologia da Imagem, título da exposição que deriva de um trabalho feito em 1988, aponta para o núcleo poético em torno do qual Rosângela orbita, marcado por tempos entrelaçados, pelo recurso persistente a imagens de âmbito privado e por um fascínio por tirar da invisibilidade de arquivos e histórias anônimas, aspectos que ela aborda na entrevista a seguir.

arte!brasileiros – Essa exposição revisita toda a sua carreira? Pode ser considerada uma grande retrospectiva?

Rosângela Rennó – Ela é grande, mas não é retrospectiva. Primeiro porque a palavra retrospectiva já me deixa em pânico, nos coloca com uma certa idade que a gente se recusa a admitir que tem. Mas também porque muita coisa ficou de fora, o que é natural em qualquer exposição. Ela foi conduzida para ter um certo tipo de obra e uma temperatura. Se de fato fosse para ser retrospectiva, a gente teria que abranger outras questões.

Você trabalha com fotografia desde sempre, não?

Ainda estava na Escola Guignard – fiz arquitetura e a Guignard ao mesmo tempo – quando fiz a optativa de fotografia. Foi aí que eu falei: “É isso que eu quero fazer, esse é o meu meio principal”. Entre começar a trabalhar com fotografia e assumir certas manias, certas cismas (é coisa de mineiro. Mineiro cisma!) e eleger certas questões, certos temas, foi um tempo muito curto.

O primeiro trabalho é de 1987. Deve ser interessante esse processo de revisitar produções antigas.

Eu usei uma boneca dos anos 1950, que era da minha irmã, muito feia, para encarnar a Alice, o personagem do Lewis Carroll. Mas na verdade era uma espécie de pretexto para fazer algumas experimentações fotográficas. A gente discutiu muito sobre coisas recorrentes, inclusive porque existe um trabalho que se chama Círculos Viciosos, do acervo da Pinacoteca e que vai estar na exposição. Na minha vida tem um monte de coisas que vão e voltam. Porque eu faço elas voltarem, provoco isso. E também tem questões que eu já tratei dentro do meu trabalho que não me abandonam. Não é que elas voltam, elas nunca saem. Tem problemas que estão sempre na minha cabeça porque eles são assombrosos. Assombramento, nem sei se existe a palavra, é uma coisa do território da fotografia, não?

Como algo velado, latente? Parece que você está sempre querendo chegar no osso, mas esse osso está sempre um pouquinho mais longe.

Porque eu acho também que é isso também que faz a grande potência da imagem fotográfica. É pelo assombramento que você pode ficar entre ficção e realidade. Hoje se discute muito isso: o quanto de informação, o quanto você pode projetar de ficcional numa suposta informação, numa informação objetiva. Não vamos nem dar espaço demais para falar sobre o óbvio, que é o uso político que pode se fazer disso. Mas, esse território, essa coisa entre ficção e realidade, sempre existiu na fotografia. Só que às vezes isso chama mais atenção. E parece que no território do digital isso é mais fácil de perceber.

O Arquivo Universal, essa reunião de material sobre a imagem que você iniciou nos anos 1990, segue vivo? Como ele se fará presente na exposição?

A gente fica mais velho, fica mais seletivo. Tem que ser uma história muito boa para guardar. Eu edito menos o material, mas guardo muita coisa. O Arquivo Universal é o arquivo de textos sobre imagem. Vai aparecer na exposição com vários dos dispositivos que eu já usei antes. Está na base de instalações como o Hipocampo, que deve ter uns 18 textos com letra fosforescente, tem uns textos tatuados sobre pele e fotografados… Tem restos de atelier também. Há, por exemplo, dois textos que estavam no meu atelier porque ninguém quis. São textos horríveis, assuntos horríveis, que agora voltam para a parede. O curioso é que esses patinhos feios, que ninguém quer ter na sala, são ligados a racismo e colonialismo. Olha a coincidência.

Estão na categoria dos nossos assombramentos?

Assombramentos que na verdade nunca deixaram de sair do nosso imaginário. Só não estavam na frente. É muito curioso. Alguma coisa eu mostrei, cinco anos atrás, que incomodou. E quero mostrar de novo, incomodar de novo. Nem que seja pra ver se mudou alguma coisa ou não. No fundo, a gente faz essas coisas ou insiste em mostrar certas coisas, falar de novo, porque só pela repetição que a gente em algum momento consegue mudar a percepção de alguma coisa. O ser humano só aprende se você martelar várias vezes a mesma coisa.

Você poderia falar sobre a questão da ecologia, que está no título da exposição? Tem a ver com essa recuperação de materiais que você faz, mas há outras dimensões menos evidentes, não?

Quando fiz Pequena Ecologia da Imagem já me interessava pensar numa certa ideia de economia das imagens. É uma questão relacionada a um pensador que nos anos 1980 me marcou muito, o Andreas Müller-Pohle. Muito pouca gente leu, muito pouca gente falava nele, mas ele era o editor da revista European Photography junto com o Vilém Flusser e tinha textos maravilhosos. No fundo, o que ele chamava de princípio político da ecologia da informação eu trouxe para o território das imagens. Porque eu já era, naquela altura, uma colecionadora desses resíduos fotográficos que povoavam meu laboratório, sem saber muito bem o que fazer com aquilo. Se estava tratando da imagem como informação, para mim era natural que eu trabalhasse com os títulos. Essa era a brincadeira, essa intertextualidade forçada. Foi a partir da Pequena Ecologia da Imagem que eu assumi essa coisa de criar esses ruídos de leitura. As imagens eu ampliava com os restos de laboratório e colocava uns títulos meio malucos, alguns nonsense, ligados a uma espécie de hecatombe do mundo. Você lembra daquele filme Brazil, do Terry Gilliam? Além do visual louquíssimo, ainda tinha aquela coisa de ficar tocando Aquarela do Brasil no fundo, algo de um mundo pós terceira guerra mundial. E ali estava também minha inspiração para os títulos malucos: Nós éramos felizes antes da bomba; Feixe de elétrons rumo ao século 21… Olhei para aquilo e pensei: olha o que eu fiz em 1988! E aí ficou impossível não trazer de volta esse trabalho. Gostei muito de poder chamar a exposição de Pequena Ecologia.

Falando das obras mais recentes, há também um trabalho feito especialmente para a mostra?

Na verdade tem dois trabalhos super novos. Tem o Eaux des Colonies. É um trocadilho, infame, básico. Eu deveria ter feito ano passado uma residência lá em Colônia para pesquisar nos arquivos das indústrias de lá, só que a residência não rolou por causa da pandemia. Mas alemães são alemães e a exposição não foi adiada. A emenda saiu melhor do que o soneto. Acabei invertendo a lógica da produção do trabalho e abri meu leque, acessando tudo que me contava sobre a história da água de colônia, sobre a história da perfumaria no mundo inteiro. Acabei entendendo toda uma lógica que relacionava a água de colônia à cidade de Colônia, que era uma colônia romana, o que inevitavelmente me levou à questão da colonização. E aí ficou muito mais saboroso o trabalho, muito mais divertido. Pude agregar histórias e falar sobre colônias, sobre colonização. E sobre consumismo, universo no qual a gente está mergulhado e eu não vejo como sair.

E o segundo trabalho, que você está fazendo especialmente para a exposição?

Desde o ano passado estou trabalhando com uma ideia. Ganhei uma série de slides, que são kits educativos produzidos pelos salesianos, que são uma catequese, no sentido amplo, não é só do ensino da religião. Um material muito estranho, mas que me interessou muito porque percebi que, na questão pedagógica, praticamente nada mudou, salvo algumas coisas muito pontuais. Percebi que dentro dos problemas, ou da construção do sujeito – uma das sequências era Vida em Construção -, não se falava em racismo, por exemplo. No mais é exatamente a mesma coisa.

Estamos presos em um mesmo ciclo, como uma repetição infernal?

A gente está ali no filme Brazil, do Terry Gilliam. Aí pensei: é isso que eu vou fazer agora. Peguei a historinha do Zé Ninguém, o homem que não era Homem (com H maiúsculo), que era o nome original dessa parábola, e inverti. O Zé Ninguém virou o José Ninguém. Na história original o personagem toma “Personalina” e se torna um homem, a história dos salesianos era essa.

A gente sempre à volta com os milagres que parecem resolver tudo?

No fundo é exatamente isso. Criei uma nova ficção para um indivíduo que se chama José Ninguém. Ele é José, não um Zé. Só que ele tem uma dúvida. Vai procurar ajuda científica, que dá para ele dois tipos de tratamento: ou ele toma “Amnesilax” ou “Memorilina”. Os dois têm efeitos colaterais, nenhum diagnóstico é categórico, ele tem que escolher. Só que ele não escolhe e a vida dele continua igual. É triste, mostrei para amigos que falaram que é deprimente.

Terra de José Ninguém
“Terra de José Ninguém”, de Rosângela Rennó. Foto: Divulgação

Um humor negro, uma melancolia de fundo que de certa forma perpassa teu trabalho todo, não?

É, porque eu acho que a vida é isso, a gente faz o que pode. Eu não conseguiria contar uma outra história a partir daquelas imagens, uma história que tivesse algum final feliz. É slide, não tem imagem em movimento. Não queria que nada escapasse da lógica original. Os slides são modificados, cada imagem foi atualizada. Fiz o trabalho com uma amiga, Isabel Escobar. Ela é uma das minhas editoras de vídeo e ela é fera em colagem.

Essa história me remeteu a questão da identidade e a outro trabalho seu, Espelho Diário…

Tem tudo a ver. Tanto que a gente fez a opção óbvia de colocar os dois trabalhos juntos. Nós temos à esquerda o Espelho Diário e à direita o José Ninguém. Espelho é uma das questões muito vinculadas ao universo fotográfico, desde sempre. Está em muitas questões, no tema dos negativos, dos duplos. Sempre trabalhei muito com a noção de duplo.

A exposição se organiza em três diferentes núcleos, aproxima trabalhos que lidam com as escalas do indivíduo, do coletivo e do político. Mas pelo menos nesses dois trabalhos todos estes aspectos estão presentes. No fundo, seu trabalho é político o tempo todo, mesmo quando não está explicitamente falando nisso?

Para mim essas classificações sempre são muito difíceis. Tenho certas preocupações, certas questões, coisas que me levaram a tomar certas decisões por um caminho e não por outro, e não consigo deixar de pensar nisso. Uma leitura de fora é sempre legal. Isso do que é coletivo e do que é individual, meu trabalho tem o tempo todo. E Rosângelas é um exercício explícito disso. Eu criei um personagem coletivo, falso, mas é feito de 133 casos específicos de Rosângelas. Com histórias horríveis ou engraçadas. O próprio Arquivo Universal é isso. São casos específicos, mas no momento em que eu tiro o nome, a referência histórica, você forma uma imagem que pode vir de muitos lugares.

Tem uma questão meio inevitável. Você é uma fotógrafa que raramente fotografa. Trabalha com a economia da imagem, com a circulação da imagem, mas tira todo esse lado da autoria. Hoje isso é mais comum, mas na época em que você começou a fazer era uma grande novidade. Seria interessante se você pudesse falar um pouco sobre isso.

Quando você me perguntou se eu dou importância ou não para teoria, não posso dizer que não. Lógico que dou. Muitas ideias e convicções nasceram nos anos 1980 em função de muitas coisas que eu li. E uma das coisas que me marcaram muito foi o Bourdieu. Ele fala muito dessa arte mediana, que é a fotografia. Foi por passar a entender a fotografia assim que me interessei pelo grande leque da fotografia, que de certa forma fica invisível. Ou que nunca foi muito explorado, ou não era aquilo que era o artístico. Descobri que era mais legal, muito mais interessante para mim trabalhar com tudo aquilo que não era feito com uma proposta estética por trás. E aí eu tive que aprender: fotografia científica, fotografia vernacular, o micro e macro, quer dizer, os usos científicos que você faz da imagem, desde a imagem no microscópio até aquela captada via telescópio… Tudo isso para mim era mais interessante, mais saboroso, mais instigante para discutir a fotografia do que os ensaios que se faziam, a fotografia de caráter modernista, fotografia como arte. Sempre achei aquilo chato. De fato acho que pouca gente usava, na época, o próprio meio para discutir isso. Se falava sobre isso na academia, os textos estavam ali para você ler. Mas no Brasil você tinha muito pouca gente questionando ou fazendo algum trabalho onde isso fosse visto de fato. Isso demorou para chegar aqui porque a fotografia ficou por muito tempo associada ao fotojornalismo. Querendo ou não, a gente vinha de um período de repressão. Você pedir para a fotografia deixar de ser a janela do real ou de discutir a realidade, era até muito cruel. Afinal, ela tinha essa agenda de comprometimento com a denúncia. Eu tenho muito respeito pelos fotógrafos que por muito tempo fizeram esse trabalho, dentro das condições mais difíceis do mundo. Quantos fotógrafos fizeram imagens sutis para falar de coisas tão pouco sutis? É isso, acho que havia uma inércia grande para aceitar que a fotografia podia ter uma agenda maior do que a que era aceita naquela época. E eu sempre tive isso quase como uma espécie de bandeira, entendeu? Acho que é por isso que eu sempre digo que sou fotógrafa. Sempre fui. Só não preciso fazer foto.

Isso ainda se aplica hoje?

Acho que hoje nem cabe mais, porque todo mundo faz imagem digital. Nem faz muito sentido. É que havia um nicho, por conta de uma especificidade técnica. E você tinha que dominar aquela técnica para poder trabalhar com ela. Para não fotografar eu aprendi a fotografar. Sempre fui preguiçosa na hora de fazer fotos. Pra mim foto sempre foi meio xerox. Mas eu sei, aprendi. Eu queria trabalhar com um meio e usar toda a potência possível que aquele meio me permitia.

Museu Paulista: um lugar privilegiado para repensar a história

Vista da escadaria do Museu Paulista da Universidade de São Paulo
Vista da escadaria do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Foto: Hélio Nobre

Fechado para visitação em 2013 em razão de problemas estruturais no prédio, o Museu Paulista da Universidade de São Paulo – conhecido como Museu do Ipiranga – vem passando por um amplo projeto de reforma, física e conceitual. E deve reabrir as portas no ano que vem, aproveitando o ensejo do Bicentenário da Independência, para trazer ao público sua nova configuração. Além de adaptar o palacete neoclássico às exigências de um museu contemporâneo, o processo de modernização enfrenta o desafio de propor novas leituras e interpretações da história, rediscutindo, reclassificando e repensando esse patrimônio de forma a estabelecer novas correlações entre passado e presente que não perpetuem visões estanques e discursos consolidados de poder.

Do ponto de vista arquitetônico, o museu ganha o dobro de área construída, novos espaços de apoio, uma maior integração com o jardim circundante, instalações modernas como elevadores, escada rolante, banheiro em todos os andares e uma cuidadosa adaptação de seu espaço para atender todo tipo de público, com 100% de acessibilidade para pessoas com deficiência. A expectativa é que essas transformações permitam passar de 300 mil visitantes anuais (na época do fechamento) para 700 mil ou um milhão.

Um dos destaques do projeto desenvolvido pelo escritório H + F, que venceu o concurso realizado em 2017, é a busca por um olhar mais generoso, tentando revelar mais aspectos externos e internos da instituição. Propõe uma maior visibilidade do entorno (com a instalação de uma grande janela panorâmica, voltada para o Jardim Francês) e deixa aparente elementos do próprio arcabouço do prédio, exibindo parte da parede de juçara original. E cria a possibilidade de ver de cima – a partir do mezanino instalado no último andar – toda a estrutura construtiva.

De certa forma, essa ampliação da visibilidade às diferentes camadas estruturais, presentes no projeto arquitetônico, reverbera também no amplo processo de reconfiguração do próprio projeto museológico, que se articula em torno de uma clara tentativa de iluminar as várias dimensões históricas, sociais, culturais que se entrecruzam nessa instituição mais do que centenária. Do prédio-monumento, pensado no final do século 19, à configuração atual de museu de história moderno, baseado no estudo da cultura material, muitas camadas se sobrepõem. Num esforço conjunto dos cinco docentes responsáveis pela curadoria da instituição e de uma ampla equipe de pesquisadores, técnicos, educadores e estudantes, estruturou-se um novo formato para as mostras. Serão 11 exposições permanentes, uma grande mostra temporária e uma série de atividades paralelas a serem selecionadas por meio de editais, chamadas de “contrapontos”, para dialogar com o acervo.

“A gente acha que o museu é um lugar privilegiado para se estudar a dimensão material da sociedade. Como essa materialidade ajuda a construir as coisas, as nossas relações”, explica Vânia Carneiro de Carvalho, coordenadora do novo plano expositivo, lembrando que já faz muito tempo que o Museu Paulista deixou de lado a historiografia baseada nas grandes personalidades. “Nós procuramos trabalhar o museu como um lugar de exercícios, de desafio das imagens e das memórias que elas teriam que representar”, complementa Paulo Garcez Marins, atual chefe do Departamento de Acervo e Curadoria.

As exposições

As mostras de longa duração se articularão em torno de dois eixos: “Para entender a Sociedade” e “Para Entender o Museu”, olhando ao mesmo tempo para importantes aspectos da vida cotidiana, como o mundo do trabalho, os hábitos de consumo e a complexa história da instituição. Nesse núcleo mais ligado ao cotidiano está, por exemplo, a exposição Casas e Coisas, que deriva da pesquisa de doutorado de Vânia e que investiga como os objetos ajudam a construir a identidade de gênero e muitas vezes escondem formas arraigadas de preconceito. Ou a mostra Territórios em Disputa, que vai tentar mostrar como o conceito de território de posse dos portugueses entra em conflito com a noção de território dos povos indígenas que estavam aqui.

Já o mergulho em busca de uma maior compreensão da história e do papel do museu, aponta em duas linhas: mostrar ao público o trabalho feito pela instituição, seu papel como centro de pesquisa e de educação pertencente à USP desde 1963, e ajudar a tornar transparente, revelar a forte estratégia ideológica presente no projeto base do museu, inaugurado há 100 anos por Affonso d’Escragnolle Taunay. Foi ele quem idealizou e conduziu com mão de ferro um projeto museológico para reforçar a ideia de um protagonismo paulista na formação nacional, alçando as Bandeiras como momento fundador e elemento dinamizador do progresso nacional – corporificado no eixo monumental. Como esse núcleo é tombado como patrimônio imaterial pelas três esferas – municipal, estadual e federal -, esse exercício de revisitar e revelar o caráter construído dessa história será feito por meio de uma série de intervenções multimídia. A mostra temporária também procurará relativizar essa visão “paulistocêntrica” da independência, ao mostrar o caráter plural dos vários movimentos independentistas que eclodiram ao longo do século 19 no país.

Tanto nessas intervenções como em outras exposições que problematizam essa relação tensa entre memória e ideologia, o importante é – segundo os curadores – ensinar o público a questionar as imagens, não aceitar uma visão congelada, unidirecional, da história nem considerar as imagens construídas como um duplo do real. Imagens são imantadas de valores simbólicos, que contribuíram fortemente para o silenciamento de negros e índios e para uma falsa visão “pacífica” das nossas relações sociais – como ficou evidente no recente debate acerca da estátua do Borba Gato. Afinal, como explica Garcez, muitas vezes o que se revela “é uma narrativa apaziguadora, racista, sexista e elitista, à medida que também os personagens são quase todos oriundos das elites do país. Então nós temos que de alguma maneira enfrentar essas questões com o público”. “Pensamos o museu como um laboratório de caráter intelectual, educativo, mas também um laboratório de cidadania”, conclui ele.

Museu Casa do Pontal ganha uma sede segura

Nova sede do Museu Casa do Pontal
Nova sede do museu, projetado pelo escritório Arquitetos Associados, na Barra da Tijuca, Rio. Foto: Divulgação

“Chuva no Rio alaga Museu Casa do Pontal e danifica obras”, estampava o site da Folha de S.Paulo em abril de 2010; “Inundado pelas chuvas, Museu Casa do Pontal ficará fechado por uma semana”, relatava o Estadão em 2016; “Tempestade resulta na pior inundação da história de museu no Recreio”, cravava o Rio Notícias em 2019; “Museu Casa do Pontal é inundado pela oitava vez”, dizia o jornal O Globo, já em 2020. Não era neste tipo de noticiário, de tragédias ou acidentes, que a instituição com a maior coleção de arte popular do Brasil gostaria de estar presente, mas assim o foi por cerca de uma década. Mas os títulos de notícias e artigos que se leem agora, em 2021, demonstram que o Museu Casa do Pontal retorna ao lugar do qual não deveria ter saído: as páginas de cultura e arte de jornais, revistas, sites e blogs.

A constatação feita acima não significa que o museu carioca não tenha conseguido também receber um grande público, montar exposições e cuidar de seu acervo – mais de 9 mil peças – de 2010 até os dias de hoje, mas sim que o risco de enchentes permeou sem pausas a história recente da instituição. Essa novela finalmente acaba, definitivamente, com a abertura no dia 9 de outubro da nova sede do Museu Casa do Pontal, no bairro da Barra da Tijuca. Localizado historicamente em uma grande casa no afastado Recreio dos Bandeirantes, com terreno de 5 mil metros quadrados, o museu caminha 20 quilômetros em direção ao centro – se aproximando de um público maior – em um terreno de 14 mil metros quadrados, que inclui vasta área verde e uma praça aberta.

Passeata pela Reforma Agrária, parte do acervo do Museu Casa do Pontal
Passeata pela Reforma Agrária, de Celestino. Foto: Divulgação

Com projeto dos mineiros Arquitetos Associados – autores de uma série de pavilhões em Inhotim como a Cosmococa, a Galeria Claudia Andujar, a Galeria Miguel Rio Branco e o centro Educativo Burle Marx – o novo Museu do Pontal apresenta um edifício com linhas retas, ampla iluminação natural e ventilação que dispensa a necessidade de ar-condicionado. Com várias salas expositivas, o espaço ganha ainda reserva técnica e área de manutenção e restauro de que precisa – após anos de inundações, o foco neste setor teve que ser cada vez maior. Talvez resultado também das tragédias recentes, o museu contará com o reuso de água de chuva para a manutenção do jardim. Este, por sua vez, tem paisagismo assinado pelo Escritório Burle Marx, com milhares de árvores de 73 espécies nativas brasileiras.

A história 

Mesmo que ampliada no atual contexto, a preocupação com as questões ambientais não é novidade para o Museu Casa do Pontal, como explicam os diretores Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque. Criado em 1976 pelo artista e designer Jacques Van de Beuque (1922-2000), a instituição reunia a vasta coleção trazida pelo francês de suas andanças pelo Brasil, onde havia se estabelecido décadas antes. O acervo foi sendo aprimorado ao longo do tempo tanto na gestão de Guy Van de Beuque (1951-2004), quanto na de Angela – que agora divide o cargo com Lucas, neto de Jacques. “Desde o meu avô, que teve seu primeiro trabalho no Brasil ao lado do Burle Marx, o museu tem uma relação muito forte com a natureza. Não a toa a casa estava localizada ao lado de uma reserva ambiental”, conta Lucas. “E agora nós queríamos manter essa relação da arte com a natureza, incluindo também essa grande praça, democrática, em um lugar que não tem essa tradição de praças, que é a Barra.”

"Circo", de Adalton. Exposta no Museu Casa do Pontal
“Circo”, de Adalton. Foto: Divulgação

Mas o que mais impressiona no Museu Casa do Pontal, de fato, é a sua coleção de arte popular que apresenta uma produção feita desde os anos 1930 até os dias de hoje. As mais de 9 mil obras de 300 artistas das mais variadas regiões do país incluem nomes como Adalton, Mestre Vitalino, Noemisa Batista, Nhô Caboclo, GTO, Mestre Didi, Ciça, Dona Isabel, Louco, J. Freitas, Manuel Eudócio, Nino, Sólon, Saúba, Zé Caboclo e Maria Amélia. Com mais espaço expositivo, a nova sede apresentará um número maior de obras destes e de outros artistas, por vezes em setores monográficos, por outras em áreas temáticas.

Em um primeiro momento, ganham destaque salas com os títulos: “Mundo Brincante”, com obras interativas e cinéticas, teatro de bonecos e jogos digitais; “Vale do Jequitinhonha, Minas – a força da terra”, com debates sobre a dimensão matérica dos trabalhos e sobre o termo “tradição”; “Mar, Rio, Fogo e Ar”, onde surgem antológicas esculturas em barro, barcos do Rio São Francisco, seres mitológicos e obras eólicas; e, por fim, “Poética da criação e as redes de apaixonados pela arte popular”, que coloca em diálogo obras da coleção original de Jacques com acervos doados ou emprestados para o museu, possibilitando a ampliação da apreciação do público. Ao longo da visita estão presentes ainda vídeos e depoimentos de personalidades como Gilberto Gil, Ailton Krenak e José Saramago. 

Mas, mais importante, estão presentes os depoimentos dos próprios artistas, em consonância com a busca do Museu Casa do Pontal pela valorização destes criadores que, muitas vezes, foram enquadrados apenas como representantes da produção de regiões e contextos sociais, tendo seus nomes relegados à segundo plano. “Porque a arte popular brasileira, em função das limitações do entendimento sobre ela, raramente está entendida como arte. E há 20 anos estamos discutindo essa questão de uma negação da categoria ‘arte’ para essas pessoas, como se eles não merecessem”, afirma Angela. “Justamente porque o campo das artes plásticas, entre todos os campos culturais, é o reduto mais fechado e elitizado. E como nós vivemos em um país extremamente classista e hierárquico, o olhar que se tem sobre essa produção é muito filtrado por estereótipos, de que seria apenas artesanato, algo feito para a comercialização.”

Popular e acessível

Popular em seu conteúdo, o novo Museu Pontal pretende ser popular também para o público visitante. Para além da praça aberta, o pagamento de ingresso será sugerido, mas não obrigatório, e a instituição pretende ter sua sustentabilidade econômica pautada mais na ideia de engajamento do que na bilheteria. Se soa utópico, foi assim que o museu conseguiu se reerguer ainda na velha sede e terminar as obras para a inauguração do novo espaço. Segundo Lucas, para além dos apoios de empresas privadas e estatais, centenas de pessoas participaram das campanhas bem sucedidas de financiamento coletivo promovidas nos últimos anos, resultando também numa rede de apoio ao museu que segue ativa e articulada.        

A rede de apoio se torna ainda mais importante, segundo os diretores, num contexto difícil para a cultura brasileira. “Das doações de empresas e pessoas vieram 75% dos recursos da obra, até porque outros recursos governamentais acabaram na vindo”, conta Van de Beuque. “É um momento de falta de esperança, de falta de horizonte, e acho que a cultura vem sofrendo especialmente, de uma forma constante. Então conseguir abrir o museu neste contexto, com um projeto possibilitado pela mobilização das pessoas, inclusive com colecionadores doando obras, acreditando no seu futuro, é maravilhoso. Mostra que a arte brasileira tem importância e que o público sabe valorizar o patrimônio do país.”

Após anos com dificuldades financeiras e estruturais – nos quais a instituição dependeu também de uma série de parcerias com instituições nacionais e estrangeiras para mostrar o acervo e manter seu nome em destaque -, o Museu Casa do Pontal parece se sentir seguro para um novo ciclo duradouro de atividades e convívio com o público. Em outubro de 2020, com a mostra Até logo, até já, o museu se despediu de sua antiga sede. Em outubro de 2021 o “até já” do título finalmente chegou, em um momento que, apesar da crise e do conservadorismo no país, a arte popular tem ganhado, aos poucos, maior destaque e respeito, segundo os próprios diretores.

Crítica Frestas: poéticas políticas

"Nhíromi", de Denilson Baniwa, instalação exposta na terceira edição de Frestas - Trienal de Artes. Foto: Matheus José Maria / Sesc Sorocaba

“Apesar de nossas conversas sempre começarem com amenidades, todas as vezes o caminho fluía para o assunto pandemia. Estava sendo muito dolorido este momento. No tempo em que estive com ela, somente na rua onde ela mora, seis amigos dela faleceram por Covid-19. Numa das semanas que estive navegando pelos rios de MARIWÁ, ela foi contaminada pelo vírus, ficamos duas semanas sem se falar. TIVE MEDO”, escreveu o artista-jaguar, como se autodenomina Denilson Baniwa, em uma das paredes de sua ampla instalação Nhíromi.

No centro de Nhíromi está uma canoa do Rio Negro, a região do Amazonas onde nasceu Baniwa. Seu relato aborda várias outras questões em torno da visita à sua avó, mas ao expor o medo dos tempos da pandemia ele traz uma importante contextualização a O rio é uma serpente, nome da terceira edição de Frestas – Trienal de Artes, organizada no Sesc Sorocaba.

Com 53 artistas e coletivos selecionados por Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza, é a primeira vez no Brasil que uma mostra do tipo bienal tem na direção artística um time negro, um mérito do Sesc que, sem dúvida, merece reflexão das outras mostras do mesmo tipo como a Bienal de São Paulo e a do Mercosul.

Prevista para ser inaugurada em 2020, Frestas acabou sendo prorrogada para este ano, carregando assim os vários temores do que significa organizar um evento presencial em um país que se aproxima de 600 mil vítimas de uma política genocida. Assim, mesmo que de forma discreta, a contextualização dá parâmetros aos visitantes que mostram que Frestas não é apenas mais uma mostra, mas uma exposição concebida em tempos de guerra.

A guerra, é verdade, não ocorre só aqui e muito menos se restringe aos anos 2020/21, como se percebe na instalação A dívida impagável, de Musa Michelle Mattiuzzi, uma versão sonorizada e não literal do livro de mesmo nome da brasileira radicada no Canadá Denise  Ferreira da Silva, organizada no Brasil pela Oficina Imaginação Política e a Casa do Povo e disponível gratuitamente para download.

A grande maioria das obras de Frestas está disposta no subsolo do Sesc e a instalação de Mattiuzzi é das poucas próximas à entrada do edifício, um ambiente que parece um espaço festivo, todo espelhado e com luz efusiva, mas que se nutre do texto contundente sobre o mundo atual e “o que se torna acessível à imaginação, o tipo de abertura ética que pode ser vislumbrada com a dissolução do jugo do Entendimento e a entrega do Mundo à imaginação”, nas palavras da própria autora.

Vista da exposição com "Cerimonial matrilinear"
Vista da exposição com “Cerimonial matrilinear: homenagem às matriarcas das primeiras 28 gerações descendentes da Eva Mitocondrial”, de Negalê Jones, em primeiro plano e “Panorama Catatumbo”, de Nohemi Perez, ao fundo. Foto: Matheus José Maria / Sesc Sorocaba

De certa forma, várias obras da mostra participam dessa espécie de jogo de sugestões que se afasta de abordagens explícitas ou militantes para buscar poéticas mais sedutoras, mas não por isso menos políticas. É o caso de Panorama Catatumbo, da colombiana Nohemi Perez, um imenso painel composto por desenhos de carvão em telas de pintura. De longe, a imagem da floresta é encantadora, mesmo em preto e branco, mas quem se aproxima percebe discretos desenhos de cenas com armas, apontando para a violência persistente da região de Catatumbo, área fronteiriça entre Colômbia e Venezuela.

Essa estratégia é semelhante na obra de Pedro Victor Brandão, com uma pintura em cores fortes que se parece abstrata, mas na verdade é um possível gráfico sobre endividamento e inadimplência no Brasil. O mesmo ocorre com o trepa-trepa de Rommulo Vieira Conceição, instalado na área externa do Sesc, que parece um brinquedo de parque infantil, mas na verdade é uma composição disfuncional que tem em sua construção até elementos que podem machucar.

O rio é uma serpente
Vista da exposição “O rio é uma serpente”; em primeiro plano, obra de Rommulo Vieira Conceição, ao fundo, “Entidades”, de Jaider Esbell. Foto Matheus José Maria Sesc Sorocaba

A mostra concentra a maioria das obras no subsolo do Sesc, onde de fato é a garagem do edifício, o que acaba se revelando um espaço adequado. A curadoria não buscou esconder essa característica, reforçando assim a força do que não está dentro das convenções.

O rio é uma serpente se configura assim como uma mostra com forte apelo visual – o muro de caixas-de-fósforos de Antonio Társis, Vermelho como brasa, se insere na mesma lógica, assim como a potente instalação de desenhos de pássaros de Laura Lima –, que se aprofunda em temas urgentes sem ser panfletária. Com isso, a exposição se aproxima de uma das mais importantes com tal proposta, a documenta X (1997), em Kassel, na Alemanha, intitulada Politics Poetics e organizada pela francesa Catherine David. Já tem até gente do circuito apelidando Frestas de “Sorokassel”.

Independente de brincadeiras, é incontornável confirmar que, apenas com três edições, o Sesc consolidou um laboratório de arte contemporânea importante, fora do circuito convencional, dando destaque a curadores e curadoras arrojados, compensando a dificuldade de representação das outras mostras de caráter bienal do Brasil.

Inhotim e a arte enquanto “vacina para a alma”

Painel da série "Propaganda", de Lucia Koch, em Inhotim. Foto: Cortesia Inhotim

Em um sábado de novembro de 2019, ao lado de centenas de visitantes que passeavam pelos jardins e pavilhões de Inhotim, a reportagem da arte!brasileiros acompanhou o que a instituição considerava ser uma celebração – o fim de um período conturbado e a retomada de fôlego do maior museu a céu aberto do mundo. Com a abertura de uma grande exposição, a reabertura ao público de trabalhos célebres de Matthew Barney, Tunga e Yayoi Kusama e a inauguração de novas obras permanentes de Robert Irwin e Claudia Andujar, Inhotim botava um ponto final em um período que incluiu batalhas judiciais de seu criador, Bernardo Paz, em 2017; um surto de febre amarela na região em 2018; e o trágico rompimento da barragem da mineradora Vale em janeiro de 2019, que inundou grandes áreas de Brumadinho e deixou mais de 250 mortos. Era difícil imaginar que algo pior iria acontecer. No entanto, apenas quatro meses depois, Inhotim, assim como todas as instituições culturais do país, teve de fechar as portas por conta da pandemia de Covid-19 – e de seus desdobramentos especialmente trágicos no Brasil. 

Foi mais uma vez na busca por tempos melhores, portanto, que o “parque museu” mineiro inaugurou, no final do último mês de agosto, grandes obras comissionadas de Lucia Koch e Rommulo Vieira Conceição e uma mostra da artista polonesa Aleksandra Mir. Se o público, com máscaras nos rostos, era muito menos numeroso do que aquele visto em 2019 por conta dos protocolos sanitários, não deixava de ser notável mais uma vez um clima de celebração – ou pelo menos alívio – entre visitantes, funcionários, artistas e curadores presentes. “Precisamos da vacina no braço, mas aqui a gente cuida também da cabeça das pessoas. Acho que devemos trabalhar com essa ideia de que Inhotim pode ser uma vacina para a alma”, diz o diretor-presidente do instituto, Antonio Grassi.

“Viemos de experiências que nos afetaram muito e, quando achamos que tínhamos superado essas etapas, veio a pandemia, a pior das situações”, diz Grassi sobre a gravidade do quadro atual. Por outro lado, ele ressalta: “Não é que a gente tenha se especializado em enfrentar crises, mas certamente aprendemos muita coisa sobre esse ‘modo de sobrevivência’ que fomos obrigados a ter nestes períodos”. O “modo de sobrevivência” na pandemia se deu em diferentes direções. Na relação com o público, intensificou-se a presença virtual – com mostras online, postagens nas redes de imagens e textos sobre o acervo, vídeos inéditos feitos com artistas e apresentações musicais, entre outros. “Nós sabemos que nunca seria possível o Inhotim existir sem a experiência presencial, mas hoje eu acredito que não conseguimos mais abrir mão também da experiência virtual. Isso fica”, diz Grassi.

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Outdoor da série “Propaganda”, de Lucia Koch, em Brumadinho. Foto: Cortesia Inhotim

Em tempos sem arrecadação de bilheteria – mesmo agora, o público permitido é de mil pessoas por dia, ante 5 mil nos tempos pré-pandêmicos – o instituto seguiu com relativa estabilidade financeira graças ao seu plano plurianual vigente, que já tinha recursos garantidos de patrocinadores como Vale, Itaú e Barbosa Mello Construtora. No início da pandemia, alguns cortes no quadro de funcionários foram feitos – são cerca de 400 contratados diretos e mais algumas centenas de terceirizados -, mas, segundo Grassi, com a retomada gradual do funcionamento o número já se reaproxima do que era. “E naquele ponto priorizamos reformular as diretorias, cortar ‘em cima’ para preservar os empregos de quem necessitava mais, especialmente as pessoas de Brumadinho”. Sendo 80% de seus trabalhadores moradores da cidade – localizada na região metropolitana de Belo Horizonte e que tem por volta de 40 mil habitantes -, Inhotim é um dos maiores pilares da economia local.

O instituto nunca deixou, no entanto, de depender também dos aportes de Bernardo Paz para fechar as contas – que variam entre R$ 36 e R$ 39 milhões ao ano. Afastado da presidência desde 2017, Paz segue presente no dia a dia do museu. Nesse sentido, Grassi conta dos esforços atuais para aumentar a captação, não só através de empresas brasileiras e do círculo de patronos, mas também de fundos internacionais que apoiam a cultura e o meio ambiente. Categorizado como organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP), Inhotim foi reconhecido em 2010 também como Jardim Botânico, além de museu, e reúne mais de 4,3 mil espécies nativas brasileiras e exóticas. Segundo Grassi, se os custos totais para a manutenção forem cobertos por patrocínios e apoios, os recursos vindos de Bernardo Paz podem se voltar apenas para novos projetos no instituto. 

Grassi tem a percepção clara, no entanto, de que o quadro atual do país não é dos mais favoráveis para quem trabalha com cultura, meio ambiente e educação – o setor educativo do museu envolve amplo programa de formação e escola de música. “Mesmo que a situação política atual não tenha nos afetado diretamente, no sentido de termos um plano aprovado, com apoiadores e patrocinadores bem consolidada, é inevitável constatar que estamos em um cenário onde instituições artísticas e culturais, a arte e a cultura em geral, tem patinado para sobreviver. E embora isso já viesse sendo anunciado desde a campanha eleitoral – com o papo dos ‘mamadores da Lei Rouanet’ -, pensava-se que o exercício do poder traria alguma adequação um pouco mais diplomática. E, tragicamente, nós não tivemos isso, vemos um acirramento cada vez pior. Isso é muito grave.” Quanto ao ambiente de censura às artes que volta a surgir no país, Grassi completa: “Nunca tivemos algum caso específico em Inhotim, mas viver em um contexto em que sabemos que isso existe já nos contamina, nos atinge”.   

Obra da série “Propaganda”, de Lucia Koch. Foto: Ana Luiza Albuquerque/ Divulgação

Novas obras

Da relação de Inhotim com Brumadinho surge a obra comissionada de Lucia Koch, que ocupa tanto áreas do museu quanto outdoors nas ruas da cidade. Koch afirma, na verdade, que Propaganda surge na cidade e desemboca no instituto, não o contrário. Convidada para pensar uma trabalho em 2019, a artista gaúcha, radicada em São Paulo, encontrou uma situação atípica na região após o rompimento da barragem do Córrego do Feijão: “A cidade, inteira de luto, revirada de lama e minério, começa a receber indenizações enormes [da Vale], situação que leva a uma explosão no mercado de carros importados e condomínios de luxo. Isso se revela nas imagens espalhadas pela cidade, na quantidade de outdoors por lá”. Intrigada com aquela situação paradoxal, Koch deu sequência a uma pesquisa de quase três décadas na qual fotografa interiores de embalagens vazias e as imprime em grandes dimensões.

Dessa vez, as embalagens escolhidas foram um saco de carvão Arco-Íris – marca comum nos mercados de Brumadinho -, uma queijeira utilizada na região e uma caixa de papelão. Sem deixar totalmente nítido o que registram as fotos, que acabam lembrando um tipo de caverna ou alguma estrutura arquitetônica, as imagens passaram a ocupar outdoors da cidade. “A ideia de que esses painéis não terão, por um ano, publicidade de carros, condomínios, venda de seguros ou de cursos de informática e, ao mesmo tempo, estarão substituídos por imagens que não se entende muito o que fazem ali… esse tipo de perturbação é o que me interessava colocar naquele lugar”, conta a artista. Além disso, ela conclui: “Embalagens vazias tem a ver com o depois das coisas, que é algo com que nós e Brumadinho temos que lidar”.

“O espaço fisico pode ser um lugar complexo, abstrato e em construção”, de Rommulo Vieira Conceição. Foto: Cortesia Inhotim

É também da relação com o lugar, físico e cultural, que foi pensado o trabalho site specific de Rommulo Vieira Conceição, intitulado O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção. Com cores fortes e formas que remetem tanto a elementos religiosos – como templos cristãos, judaicos e muçulmanos – quanto a um parque infantil, o artista propõe uma reflexão sobre o conhecimento e a convivência. “A obra conduz o olhar do visitante para diferentes pontos de vista, acentuando a desorientação desse espaço em estado de construção”, explica o artista. Segundo o baiano, que habita Porto Alegre há mais de 20 anos, “ao embaralhar elementos arquitetônicos de religiões diferentes, com as quais o público pode se identificar, busquei criar uma espécie de harmonia, ainda que labiríntica; possibilitar uma convivência estranha”. Ele se refere, por fim, à importância desse debate no contexto em que aumentam os extremismos religiosos e discursos fundamentalistas no Brasil.

A terceira abertura em Inhotim, a mostra Entre Terras, reúne quatro desenhos em grande escala da artista polonesa, radicada na Inglaterra, Aleksandra Mir. Parte da série Mediterranean (2007), os trabalhos foram produzidos durante um período passado pela artista na Sicília, quando se atentou para a importância do Mar Mediterrâneo enquanto território político, marcado por fluxos migratórios e disputas de poder. Com o aspecto de mapas, mesclados a representações de pequenas pessoas, flores, cruzes e escritos em letras estilizadas, “o trabalho chama atenção para as manifestações culturais carregadas por aquelas águas ao longo de milênios, como agentes de troca entre sociedades e no deslocamento de indivíduos”, como afirma o curador do instituto, Douglas de Freitas.

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Obra da série “Mediterranean”, de Aleksandra Mir. Foto: Leo Fontes/ Divulgação

Assim como as obras de Lucia e Rommulo, a exposição de Mir se insere no programa intitulado Território Especifico, eixo de pesquisa que norteia a programação de Inhotim no biênio 2021/2022. Após o rompimento da barragem, as transformações em Brumadinho e a crise gerada por uma pandemia global, soa coerente a busca do museu mineiro por intensificar suas relações com a cidade e, ao mesmo tempo, refletir sobre os conflitos sociais e territoriais que avançam em diferentes regiões do mundo.


*O jornalista viajou a convite do Instituto Inhotim

*Após a publicação desta matéria o Instituto Inhotim anunciou que terá uma nova gestão e dará mais importância à pauta ecológica a partir de janeiro de 2022. Lucas Pessôa ocupará o cargo de diretor-presidente no lugar de Antonio Grassi, que passa a desempenhar o papel de consultor internacional, a partir de Lisboa. Paula Azevedo será diretora vice-presidente e Julieta González estará à frente da direção artística.

 

Nunca como agora: as pinturas recentes de No Martins

No Martins
Sem título, 2021, da série "Encontros políticos"; tinta acrílica sobre tela, 200 x 180 cm. Foto: Cortesia do artista
No Martins
Sem título, 2021, da série “Encontros políticos”; tinta acrílica sobre tela, 200 x 180 cm. Foto: Cortesia do artista

Como já é possível constatar, a história recente daquela parcela da arte brasileira que convencionamos denominar contemporânea será marcada pela emergência de uma produção artística periférica, antes negligenciada, que apesar da sua atual eminência permanece acossada por múltiplas adversidades.

Esse fenômeno, de caráter global, reflete uma sensibilidade que se quer decolonizada, multicultural e policêntrica, referindo-se não apenas às populações da diáspora afro-atlântica e os povos originários, mas a todo conjunto de corpos divergentes submetidos ao epistemicídio e ao etnocídio impostos aos excluídos – como consequência da experiência, contestada, mas até aqui hegemônica, da heteronormatividade branca, que na defesa de seus privilégios cria e põe em prática a necropolítica que promove a desvalorização de toda uma produção intelectual e simbólica.

Quando efetivas, algumas estratégias organizadas por esses segmentos da sociedade instigam as instituições culturais, incluídos os meios de comunicação e a imprensa, a reverem suas políticas de exibição e aquisição de obras de arte – o que tem criado uma inédita circulação das produções realizadas a partir dessas margens.

Atento a esse fenômeno, bastante complexo, o sistema de arte através de suas múltiplas instituições têm (às vezes de maneira reticente) procurado adequar seus repertórios semânticos e seus acervos, tornando-os mais permeáveis ao diferente e, portanto, mais plurais. Num cenário social injusto caracterizado pelo racismo e desigualdade de gêneros, essa mudança de atitude é louvável e necessária, ainda que as iniciativas adotadas sejam insuficientes para coibir o déficit de representatividade negra, indígena e feminina geralmente presente aos acervos.

No Martins
Sem título, 2021, da série “Encontros políticos”; tinta acrílica sobre tela, 280 x 200 cm. Foto: Cortesia do artista

No entanto, não é difícil observar que nem todas as produções pressurosamente prospectadas e rapidamente exibidas têm um grau equivalente de qualidade. Um número não desprezível dessas produções sugerem pesquisas pobres e apressadamente desenvolvidas, mal alinhavadas no escasso tempo de suas vivências acadêmicas ou não. As dificuldades para desenvolvimento e exercício da crítica e historiografia de arte afro-brasileira também contribui para a promoção imatura de artistas ainda em formação. Como consequência existe a chance de um contingente desses artistas terem suas trajetórias olvidadas em curto espaço de tempo. O risco da impermanência dessas trajetórias artísticas pode implicar num reforço do sistema de apagamento de memórias e histórias vitimando justamente as populações excluídas que são celebradas nessas produções.

É também por isso que o projeto artístico desenvolvido pelo artista No Martins reveste-se de importância que nada tem de ordinária. Em visita recente ao ateliê do artista no bairro de Barra Funda em São Paulo, constatamos a correção do excelente juízo que a artista e professora Rosana Paulino faz dele. Artista de quem, a propósito, Martins também foi aluno. O imodesto galpão que o artista ocupa com exclusividade está localizado no tradicional bairro paulistano, de acordo com escala de algumas das suas pinturas que mesmo variando no tamanho aspiram, por vezes, ao monumental. Esta opção pela escala gigante está plenamente justificada na ambição política que as obras, velada ou explicitamente, expressam.

No Martins
Sem título, 2021, da série “Encontros políticos”; tinta acrílica sobre tela, 300 x 200 cm. Foto: Cortesia do artista

Já que nunca como agora o Estado brasileiro é omisso na proposição e execução de políticas de promoção, aquisição e manutenção de acervos de obras de arte, notadamente daqueles de extração afro-brasileira e indígena, e que o mecenato entre nós é quase uma extravagância, é justo imaginar que, salvo exceções, o destino de obras com essas características são coleções privadas que pouco fazem (porque também não são estimuladas a isso) para promover a exibição pública delas – para prejuízo principalmente daqueles que foram o motivo e o assunto da sua execução. Afinal, qual é, entre nós, o destino social de pinturas que chegam a medir dois, três, quatro metros lineares ou mais? Pode parecer contraditório que artistas engajados como No Martins se lancem nesse tipo de empreitada, mas dominando os meios expressivos que elegeu para a construção de suas narrativas, Martins entende a dimensão social e possivelmente histórica que seu trabalho pode adquirir. Nisso há um paralelo com o projeto do precocemente morto Sidney Amaral (1973-2017), com quem ele chegou a corresponder-se.

Na série designada Encontros políticos – que ganha exposição na galeria Mariane Ibrahim, em Paris, entre 21 de outubro e 27 de novembro – o artista apresentam-nos retratos de mulheres e homens negros que esboçam não apenas uma ficção sobre o futuro desejado para esse grupo social. Nessas obras ele projeta utopias que o próprio Martins vem tornando em realidade. Nessas recentes pinturas os personagens são retratados através de composições solidamente organizadas e cristalinas, composições que privilegiam os personagens constituídos a partir de desenho virtuoso e estabelecidos em arquiteturas de campos de cores brilhantes, mas nunca opressivas ou feéricas.

Sem título, 2021, da série “Encontros políticos”; tinta acrílica sobre tela, 200 x 300 cm. Foto: Cortesia do artista

Esses personagens virtuosamente construídos são dispostos em situações onde relações pautadas pelo afeto acontecem em ambientes nada disfuncionais, ambientes que não exprimem carência material e são no mínimo confortáveis, quando não francamente luxuosos. Essas ambiências tem conotação política, contrariam as narrativas onde a carência e a violência estão imediatamente associadas ao cotidiano dos negros. Nessas pinturas o indivíduo, ou os indivíduos apresentados, empoderam não a si mesmos: os sinais externos de poder ostentados por eles são resultado de uma luta mais geral e de todos. O cineasta Spike Lee, em entrevista à revista Rolling Stone, afirmou: “(…) eu estou apenas tentando obter o poder para conseguir fazer o que tenho que fazer. Para conseguir este poder, você precisa acumular um tanto de dinheiro na sua conta. E é isso que eu tenho feito. Sempre pensei de modo empreendedor. Patrimônio é o que é preciso entre os afro-americanos. Patrimônio. Ter coisas”. Para superar o capitalismo é preciso alcançá-lo. Nas superfícies lisas e brilhantes das telas de No Martins os personagens negros apresentados “têm coisas”, mas não apenas isso, eles têm “valores”, e são os valores que os consagram e os elevam, são os valores que os fazem aspirar pelo poder.

Os negros são ensinados a se odiarem. O negro sendo espelho dele mesmo foi levado pela métrica do racismo a crer que aquilo que ele vê refletido no espelho é feio e precário. Martins, nessas pinturas, propõe que o encontro entre negros será sempre um ato político e tanto mais será se a afetividade for o componente mediador desses encontros. A arte em geral e a pintura em particular ainda são, num certo sentido, uma projeção de poder. Isso fica mais evidente na pintura monumento que nos séculos 18 e 19 consagrou os protagonistas e os feitos da aristocracia e burguesia do norte ocidental. Entre os excluídos, nunca como hoje um projeto estético e ético similar a esse tem a chance de se efetivar e dar, por exemplo, nova significação aos esforços do cintilante e fugaz Jean-Michel Basquiat. Mas, entre nós, nunca como hoje artistas como No Martins podem se referir e confessar influências dos seus contemporâneos e daqueles que imediatamente os precederam, oportunidade que corre paralela à luta social promovida fora e dentro dos ateliês, das academias e das galerias. O resultado desse empenho esta espelhado nas produções de artistas como Arjan Martins, Aline Motta, Sidney Amaral, Rosana Paulino e outros que reinventam cotidianamente a representação do negro nas artes, investigando sua história para compreender o presente e também por essas produções que, em dialogo com aquelas, preveem o futuro a ser arrebatado a partir do presente – como parece ser o caso de No Martins.

“Bienal da esperança” romantiza catástrofes

Faz escuro mas eu canto
"Boca do Inferno", de Carmela Gross, com o meteoro do Museu Nacional à frente. Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Faz escuro mas eu canto, a 34ª Bienal de São Paulo é, sem dúvida, uma “Bienal da Esperança”, como prometeu a direção da instituição. Muitas são as obras que buscam apontar para um caráter de superação, de transformação pelo sofrimento, como em um dos primeiros conjuntos da mostra, um display que exibe uma rocha queimada junto com todo o edifício do Museu Nacional, em 2018, e que, por conta do calor, passou de ametista, uma variedade de quartzo de cor violeta, para citrino, de cor amarelada. “Continua sendo a mesma rocha porque soube transformar-se”, explica didaticamente o texto próximo à vitrine.

Essa visão de uma resistência, que já está afinal no péssimo título da Bienal, um trecho do poema de Thiago de Mello, de 1965, quando se associar o negro a algo negativo não era uma liberdade poética em questão como se atenta hoje, acaba reforçando ao final uma visão de meritocracia: “Porque soube transformar-se”. Ora, e todos os demais tesouros que viraram pó porque não eram rochas?

Assim, o que se percebe logo de início é que se trata de uma mostra sobre uma capacidade de resistência baseada mais em ações individualistas do que coletivas, em atos isolados do que comunitários.

Outros exemplos na mesma linha são os instigantes retratos de Frederick Douglass (1818 1895), abolicionista negro estadunidense, e principalmente do “Almirante Negro”, líder da Revolta da Chibata, João Candido (1880-1969). Preso em 1910, na masmorra da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, ele participa da “Bienal da Esperança” com dois bordados lá realizados, enquanto 16 companheiros de cela morreram asfixiados. Solto dois anos depois, foi expulso da Marinha e teve uma vida de privações. Romantizar esses bordados chega a ser perverso.

Nessa altura, é incontornável a questão de o que levou o time de curadores, composto por Jacopo Crivelli Visconti (geral), Paulo Miyada (adjunto) e os convidados Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi e Ruth Estévez a selecionarem exemplos de ações de resistência em tempos longínquos, quando se está diante da maior crise sanitária dos últimos 100 anos, que abalou a atividade artística de forma catastrófica, combinada à crise política sem precedentes no Brasil, que praticamente inviabilizou as leis de apoio à cultura. Vive-se a política da terra arrasada cultural, mas a bienal canta.

Faz escuro mas eu canto
Retratos de Frederick Douglass na Bienal. Foto: Hélio Campos Mello

Praticamente não há referência ao presente, sendo que, prevista para ser realizada no ano passado, a exposição agora em cartaz ignora as urgências de quem resiste de fato. Talvez esteja na própria boa vontade em querer dar algum tipo de esperança que a mostra se afunda em uma fuga do presente. O escritor francês André Gide (1869-1951) já defendia que “não se faz boa literatura com boas intenções nem com bons sentimentos”. O mesmo para uma bienal, é obvio.

Há mais ambiente de Bienal na mostra Dizer Não, organizada pelo Ateliê 397, em seu novo espaço na Barra Funda, do que no Parque Ibirapuera. Lá há obras contundentes, como a instalação Serpente, de João Loureiro, que abriga uma jiboia escondida no ambiente.

Presença indígena

Apesar de demasiadamente higienizada, o que inclui também a arquitetura, mesmo que inovadora nos materiais e transparências, Faz escuro mas eu canto tem uma presença histórica de artistas indígenas: Daiara Tukano, Sueli Maxakali, Jaider Esbell, Uyra e Gustavo Caboco. Não se trata, contudo, de uma pesquisa com novas descobertas, afinal todos desse grupo já estão inseridos no circuito de arte contemporânea, tendo participado de mostras na Pinacoteca do Estado – Véxoa – nós sabemos, organizada por Naine Terena, em 2020, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e até no Centro Cultural Banco do Brasil, quando da exposição Vaivém, em 2019. Sem dúvida é uma presença merecidamente conquistada, que algum dia precisa também chegar à curadoria, uma questão difícil na instituição, que segue com sub-representação na presença de mulheres e sem nenhuma representatividade negra na direção geral da mostra, no que Veneza e Kassel, com quem a Bienal de São Paulo gosta de se comparar, já estão muito mais avançadas.

A 34ª Bienal traz ainda conjuntos significativos de artistas estelares no circuito, como Antonio Dias (1944-2018), Lygia Pape (1927-2004), Lasar Segall (1889-1957) e Eleonore Koch (1926-2018). São grupos de obras sempre agradáveis de se ver, mas que parecem mais estandes especiais de feiras de arte. Koch ainda sai perdendo porque está sendo exposta em lugares de passagem, um trabalho poético que merecia estar em uma escala menor.

Mas sim, há algumas poucas obras que pensam o presente, e uma das mais contundentes
é Derrubada, de Clara Ianni, que simplesmente deixa no chão todos os mastros de bandeiras, que estão na área externa do pavilhão e que costumam celebrar a internacionalidade do evento. Derrubada é das poucas obras que apontam para o lugar de pária que o Brasil se tornou no mundo, sem diálogo possível no cenário internacional, mesmo que no catálogo isso seja visto apenas como um comentário do fim das “representações nacionais” na mostra.

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A imagem que pretendia mudar a percepção do mundo

torres gêmeas
“Tributo em luzes” em Nova York, no 20° aniversário dos ataques às Torres Gêmeas. Foto: Michael Appleton / Mayoral Photography Office, disponível em Fotos Públicas

O 11 de setembro, data que ficou conhecida e reconhecida como o dia do atentado terrorista aos Estados Unidos, é imortalizado na imagem do ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York.

Na efeméride dos 20 anos do atentado, as mesmas imagens aparecem e, repetidas, nos lembram o horror do que assistimos ao vivo, não pelas redes sociais – que ainda não existiam – mas pela repetição dos aviões que atingiam as Torres Gêmeas. Incrédulos precisávamos de texto que desse sentido ao que estávamos assistindo. Nas últimas semanas, as redes sociais nos bombardearam (desculpem o trocadilho) perguntando:
“Onde nós estávamos no dia 11 de setembro?”. Eu sei onde estava. Mas por que é tão necessário recordar este momento? Pela força de uma imagem, que nem é a melhor ou mais significativa, mas que foi escolhida para relembrar o espanto do inesperado. O que importa é que ela ficou como a marca da transformação social, a mudança do contexto histórico. Uma mudança que teve consequências que pagamos até hoje (Guerra do Iraque, Afeganistão etc.).

Muitos pensadores da contemporaneidade, Jean Baudrillard (1929-2007), por exemplo, decretaram o 11 de setembro de 2001 como a entrada no século 21 e, pela dramaticidade das imagens, uma nova era de representação imagética. As imagens não seriam mais as mesmas. Não seguiriam mais o impacto da realidade tão caro ao século passado, mas se voltariam para a sugestão da encenação que aos poucos se inseriu no século 21. Entramos, talvez, na era das imagens. Um ataque midiático montado como um verdadeiro espetáculo. A notícia não era procurada, chegava até nós. Assistimos ao vivo (quem tinha idade em 2001) o que a filósofa francesa, Marie-José Mondzain, escreveu em seu livro A imagem pode matar?: “O inimigo tinha organizado um espetáculo aterrador. Num certo sentido, ao massacrar tantos homens, ao abater as torres, [nos apresentava] o primeiro espetáculo histórico da morte da imagem na imagem da morte”. Mas será que a imagem tem este poder? Afinal, a imagem, a fotografia é uma representação, cheia de símbolos e códigos a serem desvendados, é verdade, mas sua recepção é muito mais decisiva. “As  fotografias continuam sendo interpretadas muito depois de realizadas”, lembra Boris Kossoy. A cada nova visualidade ela se altera diante dos nossos olhos permitindo sempre novas e inúmeras interpretações. A imagem-símbolo do atentado não afirma nem nega nada. É o registro de um cenário montado. Alguns jornais na época chegaram a afirmar que o tempo entre o choque dos aviões tinha sido inspirado pelos filmes de Hollywood: “Eis a imagem no banco dos réus”, relata Marie-José. Uma forma de, como diz o senso comum, matarmos o mensageiro e não a causa do atentado.

torres gêmeas
Voo 175 colide contra a torre sul do WTC em 11 de setembro de 2001. Foto: Robert J. Fisch / Wikimedia Commons

Mas não podemos negar que, no mundo “ocidental”, séculos e séculos de idolatria nos levaram a uma alienação visual. Aceitamos a imagem, não a questionamos. Nos esquecemos de que não existem olhares inocentes, mas intencionalidades por trás de quem produz ou seleciona uma fotografia e a elege como a única e possível representação de um fato. Sua repetição nos leva a crer que existe uma única forma de ver. Hoje julgamos e somos julgados pelas imagens.

Na efeméride, luzes tomaram o lugar das Torres Gêmeas, mais uma imagem dramática que nos rememora a original indelével. Talvez agora seja o momento – ou já tenha passado – de começar a decodificar as imagens, esquecendo a descrição iconográfica e atendendo mais à iconologia, o significado não tão evidente da imagem.

Como nos lembra pesquisadora de imagem francesa, Martine Joly (1943-2016), “uma imagem pode ser tudo e seu contrário – visual e imaterial, fabricada e natural, real e virtual, móvel e imóvel, sagrada e profana, antiga e contemporânea, vinculada à vida e à morte, analógica, comparativa, convencional, expressiva, comunicativa, construtora, destrutiva, benéfica e ameaçadora”.

Sua recepção necessita de códigos de interpretação, códigos estes  que se alargam ou se estreitam com o passar do tempo. A imagem que se ressignifica por conta de um olhar que só existe porque um sujeito decidiu mirá-la. Como nos lembra Kossoy, “ao longo de sua trajetória, a sua significação muda, oscilando de significados de acordo com a ideologia de cada momento e a mentalidade de seus usuários”.

Passados 20 anos, a fotografia que pretendia mudar a percepção do mundo continua lá, estática e em silêncio. Só lembrada quando alguém a tira da gaveta e a repropõe diante de nossos olhos.