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A guerra de Jaider Esbell

Jaider Esbell
Jaider Esbell na exposição "Apresentação : Ruku" na Galeria Millan. Foto: Renata Chebel / Galeria Millan

A morte de Jaider Esbell, aos 41 anos, no dia 2 de novembro, consternou o circuito de arte contemporânea. Como escreveu Denilson Baniwa, “Jaider chegou a esse lugar que para os brancos é considerado sucesso [mas que] para nós dois foi, dia a dia, tornando-se um peso”.

Muito vem se falando a respeito dessa perda, mas o que melhor dá conta deste contexto é uma longa entrevista que o próprio Jaider deu a Artur Tavares, publicada na íntegra na revista digital Elástica, um excelente documento sobre o pensamento do ativista indígena (clique aqui e leia na íntegra). 

Na entrevista, Jaider deixa claro como ele e outras lideranças indígenas viram na cena da arte contemporânea uma forma de militância – e não se reivindicava de fato como artista plástico:

Esse trabalho todo com a Bienal é parte da nossa política histórica de resistência indígena, que é uma extensão de um movimento invisibilizado pelas próprias mídias, o movimento de base. (…) Estamos falando de um lugar que não é exatamente o do artista plástico. Eu não sou, de fato, artista plástico, muito embora dentro dessa performance toda a gente precise corporificar essa persona artística para chegar nesses lugares privilegiadíssimos, como a própria Bienal de São Paulo, e não passar por lá como mais um artista que está por aí no mundo.

Jaider também explicita na entrevista as diferenças de tempos e procedimentos com o circuito da arte e como era necessário contestar a folclorização da presença indígena tanto na Bienal de São Paulo como na mostra Moquém_Surarî, que ele organizou no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP):

De fato, não deixamos qualquer coisa passar de qualquer forma, como as coisas têm sido tratadas há mais de 500 anos. As nossas histórias e nossos pensamentos sempre foram interpretados, introduzidos e moldados por antropólogos, por padres, por políticos, enquanto a gente nunca conseguiu imprimir um pensamento autoral, que nos coloque devidamente em um lugar de pessoas que têm mundos próprios, cosmologias próprias.

E aí temos que paralelizar a todos os momentos com a cultura que quer ser dominante. Quando, por exemplo, o Makunaima, que é meu avô – o Macunaíma que está na capa do livro de Mário de Andrade – vira um mero folclore. A gente diz que o folclore brasileiro não existe, é uma invenção, é uma apropriação das nossas cosmologias e entidades. Uma apropriação. E aí, como se não existíssemos mais, vamos tornar essa história bonita em folclore brasileiro.

Existe de sua parte uma percepção muito adequada da importância da Bienal e do circuito da arte como um espaço de reflexão, algo semelhante ao que defende Grada Kilomba. Ela, que era professora da universidade Humboldt, em Berlim, decidiu sair da carreira acadêmica para se dedicar à arte por perceber a abrangência e a liberdade desse campo. É muito semelhante ao que Jaider defende quando apresenta a escola como “aparelho colonial”:

Essa Bienal, esse palco, é um lugar importantíssimo, um dos últimos refúgios de uma ideia de pensamento em construção, um lugar no qual precisamos estar. Muito mais do que a academia, do que a política partidária, muito mais que organismos com as escolas ou as igrejas, esses aparelhos coloniais e exóticos. (…) Chamamos o que estamos fazendo de arte indígena contemporânea, que também sabemos que não é suficiente, que não abarca tudo, mas que é necessária para atrair alguns curiosos, atentos, que têm vontade de escutar de fato alguma história outra, que vêm perguntar pra nós: “O que é arte indígena contemporânea?”. E a gente diz: “É uma armadilha para levar bons curiosos para um lugar de reflexões profundas”, que, mais uma vez, não cabe no movimento político, na igreja, nem no judiciário, nem lugar nenhum, porque esses lugares não foram feitos para isso mesmo.

Jaider também conta como sua luta diz respeito aos povos indígenas e não apenas a ele em particular, ao revelar que a mostra do MAM-SP foi proposta para ser uma individual e ele modificou o projeto:

Então a Bienal me convida porque gostou do meu trabalho, e queriam que eu fizesse uma exposição individual lá no MAM. Falei que individual eu não faço, porque não sou individual. Todo meu trabalho é coletivo, tudo que eu faço é coletivo. Faço se for coletivo. Foi quando começamos a construir a exposição Moquém_Surarî. A coisa tem que ser estratégica em todos os lugares. 

Contudo, Jaider explica que os embates com o circuito da arte não foram fáceis e não se sentiu contemplado pelas atitudes da Bienal de São Paulo, tendo que pagar ele mesmo pela presença de outros indígenas:

Não estamos satisfeitos. Porque primeiro a Bienal disse que não queria índio nenhum. Agora que está saindo na mídia bonitinha que botou não sei quantos índios, isso não é verdade, precisamos esclarecer. E tem mais. Se já estão se arvorando disso, saindo de bonzinhos, isso não está certo. Porque isso tem um custo, e quem está pagando essa conta basicamente sou eu – e estou falando de dinheiro mesmo. Porque a Bienal paga um cachê de 12 mil reais, pega sua obra e te esquece. E aí, em se tratando da arte indígena contemporânea não basta. Porque quando você pega uma obra do artista, pega toda a história dele muito antes da colônia. Pega toda essa complexidade colonial e a coletividade. Então, se eu cheguei, vão chegar outros.  

O depoimento no total é contundente e preciso. A perda é inestimável, mas o legado é definitivo.

Oficina Brennand: “Mas o barro e a água continuam a girar nos casebres dos oleiros”

Instituto Brennand
Vista geral Oficina Brennand. Fotos: Breno e Gabriel Laprovitera / Cortesia Oficina Brennand

Quando seu pai lhe entregou as chaves da velha fábrica, o artista Francisco Brennand confessou que ali entrava para nunca mais sair, e assim o fez. Foi em 11 de novembro de 1971 que Brennand, aos 44 anos, decidiu ocupar as ruínas da Cerâmica São João da Várzea – um complexo de 15 km2 – e torná-la seu ateliê.

Falecido em dezembro de 2019, Brennand tomou duas providências antes de morrer: “Confeccionou a sua própria urna funerária num conjunto de esculturas chamado de Templo do Sacrifício; e transformou a Oficina Brennand numa instituição privada com fins públicos. Se assegurou que as terras onde se localiza a oficina não pudessem ser vendidas nem ter a finalidade alterada. Desta maneira, sua obra não poderia ser esquecida”, como nota a marchand Cecília Ribeiro Peirão. A criação da urna está intrinsecamente ligada à sua profunda relação com o local. À Folha de S. Paulo, em 2013, chegou a confessar: “Eu lido com fogo há muitos anos… quero me transformar naquilo que é, vamos dizer, uma cerâmica, então eu vou ser cremado, volto pra essa urna, parte de minhas cinzas ficará nessa urna e o restante será jogado lá na casa do [engenho] São Francisco, onde eu vivi, de onde veio a minha família”.

Agora, meio século depois da ocupação do artista, a oficina transformada em instituto organiza uma grande exposição que mostrará cerca de 200 itens – entre pinturas, esculturas, gravuras, serigrafias e documentos – garimpados do acervo permanente do instituto (que conta com mais de 3 mil obras), de coleções privadas e museus. “Eu nunca me preocupei com unidade porque a sensação que eu tenho é de vários, nós somos vários”, chegou a atestar o artista.

Vista da Oficina Brennand. Foto: Breno e Gabriel Laprovitera / Cortesia Oficina Brennand

Batizada Devolver a terra à pedra que era: 50 anos da Oficina Brennand, ela ficará em cartaz até outubro de 2022. Seu recorte curatorial tem por base os pilares conceituais “Natureza”, “Território” e “Cosmologias” – tópicos que também norteiam o programa da nova fase do instituto e marcam a produção do artista. Nesta proposta, o pilar “Natureza” permite pensar o ecossistema como identidade, mas também oferece uma oportunidade para eliminar a suposta dicotomia entre natureza e cultura. Ao mesmo tempo, sua escolha está ligada ao fato de que “é impossível pensar em natureza sem pensar em território, sem pensar em cosmologias”, afirma Júlia Rebouças, atual diretora artística da instituição, que divide a curadoria da mostra com a venezuelana Julieta González.

“No universo de criação de Brennand há uma grande diversidade de espécies híbridas, que fusionam existências animais, minerais, vegetais, sempre em tensão com as formas humanas. A natureza também está presente a partir da convivência com essas duas entidades importantíssimas, presentes e constituintes ali do que ele entende como território da oficina, o Rio Capibaribe e a mata da Várzea”, explica Rebouças. É justamente a esse entorno que se refere o eixo “Território”, com foco na geografia e história da região. “Estamos desenvolvendo ações específicas para a região, que começaram com o estreitamento de uma rede de relacionamento. Em 2021, para além de uma ampla formação de professores, de parcerias com a UFPE, lançamos uma residência educativa que serviu inclusive para levantar proposições de trabalho na região. Com o aprofundamento dessas ações, o educativo está sendo formado e projetos e políticas de trabalho com a Várzea devem ser anunciadas”, coloca a diretora artística. “Cosmologias”, por sua vez, pretende abordar o aspecto fabulador e automilotologizante do artista (descrito por sí próprio como “feudal” e “supersticioso”) através das evocações arquetípicas, literárias e filosóficas em suas obras. “Eles [se referindo às esculturas que Brennand chamava de ‘guardas’] estão em cima do muro que, na verdade, rodeia toda a fábrica e isso fecha a cidadela, com todos os seus mistérios”.

Segundo Rebouças, “Brennand entendia que a memória e a preservação de sua obra precisavam do tensionamento do presente. A criação do instituto com o propósito de abrigar outras produções era resultado disso”. Aqui se encontram duas missões para a nova fase da oficina, uma de criar diálogos com o contemporâneo – sobre cuja arte Francisco reconheceu publicamente: “Nada disso me interessa”; outra de preservar a memória do artista para além da sua fortaleza. A exemplo disso estão as peças doadas por ele para o Parque das Esculturas, em Recife, em razão dos 500 anos do descobrimento do Brasil – muitas foram roubadas ao longo dos anos. Curiosamente, no documentário de 2012, homônimo ao artista, ele diz: “As esculturas vão receber sol e chuva, atravessar noite e dia e elas vão durar para sempre se não forem destruídas, só a mão do homem pode destruí-las”.

Em relação à segurança futura das peças no Parque de Esculturas, Marianna Brennand, sobrinha neta do escultor e presidente da oficina, afirma: “Esse projeto sofreu com vandalismo desde a sua inauguração, com muito infortúnio. Ao longo do tempo algumas obras foram sendo repostas, mas nos últimos anos a situação se agravou e quase todas as obras em bronze foram roubadas”. Ela observa, no entanto, que a atual gestão da prefeitura (de João Campos, do PSB) está empenhada em trazer uma solução de longo prazo, não apenas com o restauro do parque mas com ações de reforço na segurança do espaço e melhorias no fluxo e acolhimento dos visitantes. A Oficina está colaborando e dando o suporte necessário, além de fornecer peças de reposição e atuar no restauro das peças cerâmicas”, assegura Marianna. Ela menciona também que o artista Jobson Figueiredo, parceiro de Brennand no projeto original, está desenvolvendo as peças em bronze a partir dos moldes originais.

Para o futuro, a monumental olaria conta com uma ampliação capitaneada pela METRO Arquitetos Associados, tendo em vista a missão de fazer intervenções que considerem o fluxo do público no espaço ao mesmo tempo que respeitem as características seminais e históricas do espaço original. Enquanto as transformações ocorrem, Devolver a terra à pedra que era: 50 anos da Oficina Brennand segue seu rumo normalmente, não sendo, no entanto, a única mostra sobre o pintor e escultor a tomar lugar no momento. Em São Paulo, até 29 de janeiro de 2022, na galeria Gomide & Co (que representa o espólio de Brennand desde o começo de 2021) pode ser visitada a exposição Francisco Brennand: Um primitivo entre os modernos, também com curadoria de Julieta González. ✱

O mergulho experimental de Vivian Ostrovsky

Vivian Ostrovsky
Vivian Ostrovsky. Foto: Anne Maniglier / OFF Pictures

Prolífica cineasta experimental, Vivian Ostrovsky, 76, carrega mais de 30 filmes na sua bagagem. Nascida nos Estados Unidos, depois de ter passado a infância no Rio de Janeiro, iniciou estudos na Europa. Foi lá, na França, que junto com Rosine Grange, nos anos 1970, fundou a organização pioneira Ciné-Femmes Internacional, dedicada exclusivamente à promoção, distribuição e exibição de filmes realizados por mulheres. Tudo isso em um modo guerrilha, viajando com os rolos de filme em uma caminhonete Renault 4L e circulando pela França e pela Europa para mostrá-los, em um tempo em que os distribuidores – todos homens – não queriam tocar em filmes de realizadoras. Ainda em 1975, Ostrovsky foi uma das responsáveis pelo simpósio internacional Women in Film, sob tutela da UNESCO, e que reuniu nomes como Susan Sontag; Agnès Varda; Chantal Akerman – de quem foi grande amiga e à qual dedica But elsewhere is always better -; e Mai Zetterling, cineasta sueca da qual está organizando uma retrospectiva nos dias de hoje.

Utilizando-se de found footage (imagens encontradas, sejam de arquivo ou não) e dos seus próprios filmes caseiros, Ostrovsky acabou criando sua própria linguagem, a qual o cineasta e crítico Yann Beauvais apelidou de “journal-mosaic” (diário mosaico), uma junção de dois gêneros do cinema experimental, a video colagem e o cinediário. Nas palavras da escritora Juliet Jacques, o trabalho de Ostrovsky apresenta a dialética como um elemento recorrente, seja entre imagem e som, culturas e ideologias, ou passado e presente.

Recentemente, ela foi responsável pela programação da segunda edição do Festival Scratch Collection, organizado pela distribuidora de filmes experimentais Light Cone, para o qual selecionou filmes de 33 realizadoras mulheres, vindas de 14 países e diferentes gerações, dos anos 1940 à contemporaneidade. A arte!brasileiros conversou com a cineasta sobre o evento, o cenário do cinema experimental e sua amizade com Ione Saldanha, artista gaúcha conhecida pelas pinturas em carretéis, ripas e bambus e cujo trabalho lida com questões como a quebra da moldura e a conquista do espaço pela cor, segundo Adriano Pedrosa, curador responsável pela homenagem a Saldanha que ocorre agora no Masp.

ARTE! – Sendo você uma cineasta, mas também distribuidora de filmes e programadora de festivais, como ocorre esse cruzamento entre ofícios? Em que momentos você percebe um empréstimo entre a realizadora dos seus próprios filmes e a responsável por selecionar os de outras autoras?

Vivian Ostrovsky – São três atividades em épocas diferentes também. Eu comecei com a função de distribuidora, tendo distribuído filmes de mulheres entre 1974 e 1980. A partir de 1980, eu comecei a fazer meus próprios filmes, o que me levou a parar a distribuição. Já o trabalho de curadoria foi algo que comecei por volta de 1990 e faço até hoje, de forma esporádica. Como curadora eu nunca programo os meus próprios filmes porque acho isso totalmente antiético. Dos meus filmes quero que sejam outras pessoas que façam a programação.

Meu polo principal é como cineasta. Tenho feito principalmente curtas. No cinema experimental os filmes são bem mais curtos, o financiamento sendo uma das razões para tal: em geral não há financiamento para esse tipo de cinema, são os próprios cineastas que se financiam. Em épocas passadas já houve ajuda nos lugares nos quais residi (França e EUA), mas, de fato, eu nunca tentei arranjar nenhum patrocínio ou bolsa pela simples razão que eu não trabalho com roteiro e nem posso saber o que vou fazer. Com isso quero dizer que existem certas coisas que eu sei de antemão, por exemplo, eu fiz um filme com uma coreógrafa sobre dança, sobre o preparo, os bastidores de um espetáculo. Eu sabia que queria fazer um documentário experimental sobre esse assunto, mas em geral pegava a câmera e ela era como meu caderno, eu ia filmando a torto e a direito coisas que atraiam o meu olho, nem todas que eu depois usava: tenho um arquivo de super 8 que totalizam uns 40 quilômetros ou mais de filmes em bobina e de vez em quando uso uma coisa ou outra. Justamente por isso eu também não podia dizer que tenho um projeto pré-definido, e que vou fazer “isso” ou “aquilo”. Em geral, trabalho sobre as imagens mesmo e nisso que vai se formando o filme, a partir dessa matéria, e pela associação de ideias.

ARTE! – Como ocorreu sua transição da graduação em Psicologia na Universidade Sorbonne para o feitio dos filmes? Foi algo natural?

Eu acabei a graduação de psicologia, saí diplomada e sabia que não queria trabalhar como psicóloga. Nos anos 1970 havia muitos filmes bons para ver, era uma época riquíssima, com autores como Alain Resnais, Ozu, Wim Wenders, Glauber e o cinema novo, o cinema novo tcheco e o cinema suíço, Bergman; cada semana saía no mínimo quatro filmes que eu queria ver. Além do mais, na cinemateca francesa – da qual eu morava perto – eu podia ver filmes ótimos de todo tipo, clássicos ou outras coisas que não conhecia. A cinemateca foi, para mim, uma ótima escola. Essa foi minha educação, aprendi fazendo.

ARTE! – Tendo vivido no Brasil, em Paris e residindo nos EUA, você acredita que a linguagem interfira no nosso pensamento criativo? Você nota uma engrenagem mudando à medida que raciocina entre linguagens e territórios diferentes?

Eu prefiro que seja o pensamento criativo que interfira com a linguagem e não o oposto. Para mim, não é tanto o raciocínio que muda entre linguagens e territórios, mas o que se muda é, por exemplo, o que se diz e como se diz.

ARTE! – No seu trabalho há a interposição das suas gravações com filmagens de arquivo. Quando procuramos em um arquivo – pessoal ou público -, de certo modo estamos explorando o direito de ser lembrado. Hoje, com as redes sociais e o acervo da internet, que não poupa ou liberta ninguém que tenha pisado lá, estaríamos lutando ao mesmo tempo pelo direito da memória e pelo direito de sermos esquecidos?

Para mim as redes sociais são facas de dois gumes, porque ao mesmo tempo que você pode ver coisas muito engenhosas e criativas de 30 segundos ou um minuto, nós estamos nos afogando em um oceano de imagens que já não tem cabimento.

Para falar sobre o direito de ser esquecido, é verdade que, hoje em dia, você encontra quase tudo na internet, assim como é verdade que certas coisas que você gostaria de esquecer você não pode. Mas, ao mesmo tempo, há como descavar coisas que foram esquecidas e que viraram lixo. Por exemplo, o trabalho da cineasta sueca Mai Zetterling, que, quando eu comecei nos anos 1970, era uma grande figura da história do cinema sueco. Zetterling era atriz do Bergman e depois começou a realizar os próprios filmes. Hoje, ninguém a conhece mais, no entanto, ela era uma das únicas mulheres que conseguia verba para fazer longa-metragem de sala de cinema, era muito feminista. Agora estão restaurando os filmes dela na Suécia.

ARTE! – Sobre sua seleção para a segunda edição do Scratch Collection, disse que olhou para obras que não via há muito tempo, por um lado, e para a geração do novo milênio em busca de algo novo, por outro. Como resultado selecionou filmes que datam dos anos 1940 a 2021, totalizando 33 cineastas de 14 nacionalidades. O que você sente falta dos clássicos? E o que, nos novos, dá as boas vindas?

Adoro os dois, eu adoro os clássicos e não tem nada que me faça falta porque hoje em dia eles são mais acessíveis do que nunca, graças a YouTube, Vimeo, Ubu Web, entre outros. Quanto aos novos, são novas direções, novas temáticas, como ecologia, identidade, gênero. Então, eu acho muito bom porque você tem acesso às duas coisas. Se você ainda tem fome, dá pra “abrir a geladeira e pegar o que você quer”, mais do que antigamente, porque antes era preciso esperar sair no cinema para ver…

ARTE! – O festival aconteceu entre outubro e novembro. Ainda estamos passando pela pandemia, mas aos poucos os espetáculos e as salas de cinema parecem caminhar para o retorno de seu ritmo de apresentações. A programação do Scratch Collection de 2021 sofreu com limitações da pandemia?

Não houve limitação, eu até fiquei surpresa. Eu não posso dizer “depois da pandemia” porque ainda temos 50 mil casos de Covid-19 na França por dia. Quer dizer, não estamos fora da pandemia, mas fora do lockdown, das coisas fechadas. Por conta disso, o pessoal estava com fome de sair na rua e de ir para restaurantes, para cafés, para as brasseries. Apesar disso, os cinemas estavam meio vazios e os donos das salas estavam preocupados. Então, quando começou o Scratch Collection, eu estava esperando pouquíssimas pessoas, ainda mais porque, em geral, para cinema experimental tem um público bem menor que para o “cinema normal”, que é mais conhecido. Mas as sessões variavam entre 90 e 115 pessoas, conforme foi acontecendo, tinha mais e mais gente, muitos jovens, muita gente de escola de artes, de escola de cinema, isso me deixou super contente.

ARTE! – No Brasil, como você observa a cena do cinema experimental?

É algo que me alegra porque há um interesse bem maior agora do que quando comecei e tem se falado muito mais da cena do experimental no Brasil. Posso destacar o Festival Internacional Dobra, organizado junto com o MAM Rio; a Mostra Cine Brasil Experimental, em São Paulo; o Videobrasil; algumas mostras esporádicas realizadas pelo IMS; o próprio Yann Beauvais, que tem um polo em Recife que ensina, apresenta filmes. Isso é muito estimulante porque dos anos 1980 a 2000 não havia quase nada, quando eu organizava festivais de filmes experimentais de mulheres ninguém sabia sobre isso.

ARTE! – No meio das artes visuais, há um certo preconceito contra o filme e a fotografia? Ao ponto que, muitas vezes, a imagem em movimento só tem sua entrada no radar das publicações de arte quando é colocada em uma galeria. Você observa isso?

Eu fiz parte do comitê que selecionava filmes para o Centro Pompidou. Isso já foi há um tempo atrás, quando havia muita diferença entre filme e vídeo, dois campos diferentes – hoje em dia já desapareceu essa fronteira – e, nessa época, o que eu notei é que quando era para comprar um filme, ele valia muito menos. Nesses casos, o museu comprava diretamente do cineasta, mas quando se tratava de um videoarte já havia uma galeria por trás e com isso o preço era dez vezes maior. Entretanto, quando você confrontava os preços de vídeo – mesmo videoarte – com os de pintura, não havia comparação possível porque quase nem era considerado como parte do mercado. Uma outra coisa que é muito importante é em termos de crítica e artigos em revistas de arte sobre vídeo ou filme, tem muito pouco…

Frame de CORrespondência e REcorDAÇÕES

ARTE! – Nas primeiras duas décadas do cinema (fim do século 19), percentualmente, havia mais mulheres trabalhando na indústria do que há agora – reporta a crítica e historiadora Pamela Hutchinson. Será que ainda nesta década conseguiremos reverter esses números e acabar com a ideia de que certas funções na produção cinematográfica são “reservadas aos homens”?

Depende da profissão, especificamente, porque as montadoras são principalmente mulheres. No início, porém, até os anos 1970, quase não havia mulheres diretoras de fotografia e diziam que não era possível porque a câmera era pesada demais e a mulher não podia aguentar – idiotices do tipo, mas hoje está mudando, uma mudança qualitativa, não só quantitativa.

ARTE! – Como se iniciou sua amizade com a artista brasileira Ione Saldanha, que será homenageada com uma exposição retrospectiva no Masp a partir de dezembro de 2021?

Ione foi uma grande amiga. Eu fui apresentada à Ione por uma amiga de meus pais. Ela não era da minha geração, era uma geração mais velha e simpatizamos muito, eu adorei o seu trabalho. Me disseram como ela trabalhava com bambus e como eu sou curiosa fui ver as obras no ateliê, no Rio. Isso foi no início da década de 1980 e até a morte dela fomos grandes amigas… Como era uma época pré-internet eu tinha uma grande correspondência com Ione. Tendo conhecimento disso, Adriano Pedrosa, curador dessa exposição, me perguntou se eu não queria escrever uma carta, mais uma carta para ela. Resolvi que era uma boa ideia e escrevi para Ione tentando incluir coisas que eram muito típicas dela e que davam uma ideia de quem ela era como pessoa. Ela gostava de meus filmes, lembro que quando o MAM Rio fez uma retrospectiva deles ela carregou uma plateia que era composta de Lucio Costa, Lygia Pape. Foi fantástico.

Um projeto ousado no agreste pernambucano

Objeto escultural desenvolvido na Residência Belojardim. Foto: Jadiel Silva

O projeto Corpos de Phonosophia, de Camila Sposati, concluiu a terceira edição da residência Belojardim, no agreste pernambucano – que após interrupção por dois anos, devido à Covid-19, volta em formato semi-digital. Ao longo do trabalho, liderado pelas curadoras Cristiana Tejo e Kiki Mazzucchelli, não faltaram surpresas ativadas pelo diálogo entre a música e a cerâmica, além dos movimentos corporais trabalhados junto a um grupo de 14 moradores de Belo Jardim. As referências culturais locais foram o ponto de partida para chegar a um projeto impregnado de memórias e histórias afetivas em torno do barro, elemento originário da cultura brasileira, cuja ancestralidade vem das matrizes indígena e africana. As residências surgiram no contexto do Instituto Conceição Moura, a partir de conversa entre Cristiana Tejo e Mariana Moura. Ambas deram os primeiros passos para tornar público o desejo de trabalhar com a comunidade de Belo Jardim, cidade contaminada por poéticas da região. Foram chamados profissionais de cinema, teatro, dança e música e Tejo assumiu a curadoria das artes plásticas. “Há algum tempo vinha conversando com a Kiki sobre cultura popular, Lina Bo Bardi, Aloísio Magalhães, e a convidei para dividir a curadoria.” Desses diálogos nasceram as duas primeiras edições, com projetos dos artistas Marcelo Silveira, em 2017, e Carlos Mélo, em 2018, ambos nascidos na região e conhecedores de Belo Jardim há vários anos.

Dirigir um projeto dessa magnitude corresponde, de um modo realista, a se abrir a novos horizontes. Para esta terceira edição as curadoras ampliaram o convite a outros locais e convidaram Camila Sposati, cujo projeto Corpos de Phonosophia une delicada e complexa reflexão sobre instrumentos de sopro e as possíveis conexões com os órgãos humanos, tema que ela pesquisa há tempos. “Desde 2015 trabalho com instrumentos. Me entusiasmei com a possibilidade de trabalhar em Belo Jardim, fui conhecer o lugar e fiz uma proposta”, diz ela. De qualquer forma, queria que o contexto influenciasse a obra, então readaptou o trabalho para o agreste. Camila permaneceu em Belo Jardim só por dois meses, mas para reconfigurar o projeto trabalhou três anos. Quando chegou a pandemia, a artista teve que retornar a Viena, onde mora, mas contou com uma equipe de confiança in loco para ajudá-la a levar o projeto adiante. “Acompanhei tudo virtualmente e contei com a coordenação de David Biriguy, um poeta e produtor cultural de Belo Jardim que conhece bem os artistas locais e soube escolher os participantes. Ele tornou-se um co-curador.” Logo no início, deixou claro aos participantes que não haveria interferência nos trabalhos e todos aceitaram entrar no projeto, que não é nada simples, reconhece Camila.

Cada um deles foi protagonista de um instrumento, que na verdade, é um objeto escultural que poderia ser moldado como quisessem, até em formato de um triângulo, quadrado ou hexágono, não importava. Experimentação é um dos desafios dessa residência que deu asas aos participantes para escolherem que tipo de som eles queriam fazer. Ao serem indagados, escolheram o som político. “As pessoas querem fazer o som para sociedade, o som da rua, da raiva, da angústia, do respirar, do medo”, argumenta Camila. A escolha não surpreende, uma vez que o Teatro Legislativo (1996) de Augusto Boal, é um dos pilares conceituais de Corpos de Phonosophia. Ele consiste em uma das técnicas do Teatro do Oprimido que une teatro e política, numa espécie de cidadania ativa.

Camila conheceu os residentes no início dos trabalhos quando ficou na cidade e, como não foi possível voltar para outra imersão por causa da pandemia, David Biriguy fez a ponte entre a curadoria e os residentes. Cristiana Tejo lembra que ele foi identificando as pessoas e chegaram a um time afinado. Os 14 participantes foram divididos em três grupos, por questões sanitárias. Camila convidou Amália Lima, que é coreógrafa, paraibana radicada no Rio há anos e preparadora de corpo para espetáculos de dança, teatro e para a TV Globo. Elas tiveram encontros digitais duas vezes por semana. “Eu passava os exercícios de som e a Amália os de corpo. Aos poucos os grupos foram unindo o corpo, o barro e o som. “As atividades de Amália propõem exercícios corporais que mantêm os desejos, partindo do corpo até a elaboração do instrumento. O desejo pode ser uma sentença, uma palavra, uma nota. Cada instrumento toca uma nota, um som.” Elaine Lima, líder da comunidade quilombola do Barro Branco, na região do Belo Jardim, foi outra pessoa importante no projeto que se estendeu até aquela área.

Com o trabalho concluído, uma das formas de viabilizar a exposição, que acontece digitalmente, foi gravar o som em estúdio, separado dos instrumentos. Por motivo de orçamento não houve a queima do barro, o que deve ocorrer mais tarde, segundo Tejo. “Tínhamos a urgência de falar a partir do Teatro Legislativo, do Boal, isso era importante nesse contexto e era nossa prerrogativa. Cada elemento da equipe vive em lugar diferente, com sua formação, desconstruindo o protagonismo do curador. Tudo foi pensado em rede, cada um com o seu saber”, comenta Tejo.

Foto horizontal, colorida. Um jovem, sentado no chão do ateliê na Residência Belojardim, leva as mãos, com argila, aos olhos. Cena é parte do projeto Corpos de Phonosophia.
Criatividade, liberdade e experimentação nortearam as oficinas envolvendo barro e música, com 14 residentes de Belo Jardim. Foto: Jadiel Silva

Os instrumentos estão prontos, alguns com curva volumosa que se multiplica em bocais, outros com sua exterioridade curvilínea que lembra um vaso de flores. Todos escondem seu som secreto que corresponde, de modo sutil, aos humores, ritmos e objetivos diversos de seus autores. Os objetos/instrumentos exteriorizam os aspectos formais do aprendizado e agora se transformaram em protótipos digitais. Os residentes escolheram os três locais onde os instrumentos serão mostrados em situações espaciais de contraste: na cidade de Belo Jardim, na fábrica Mariola e nas margens de uma cachoeira, tudo em vídeo mostrando obras, espaços, pessoas, com direção de Ruda Cabral. Tejo considera a cena final meio surreal: um instrumento sozinho figurando num espaço e o som gravado ecoando digitalmente. Lembrando Jean-Paul Sartre, esses músicos/ceramistas souberam dar à sua matéria a única unidade verdadeiramente humana: a unidade do ato. É isso que difere um projeto estruturado de outros expostos ao exotismo turístico, chamariz para artistas estrangeiros em trânsito. A Residência Belojardim talvez não ocorra no próximo ano, tudo depende do atual governo. A esperança é que em 2023 tudo volte ao normal e a cultura reencontre o seu lugar, de onde nunca deveria ter saído. ✱

Mercado de arte em 2021: longe da crise

Vista da 17ª edição da SP-Arte, no galpão ARCA. Foto: Divulgação

Por Giulia Garcia e Marcos Grinspum Ferraz

Foto horizontal, colorida. Vista da 17ª edição da SP-Arte, no galpão ARCA. Pessoas circulam pelos estandes e corredores. Mercado de arte 2021.
Vista da 17ª edição da SP-Arte, no galpão ARCA. Foto: Divulgação

Em 2020, após quase um ano do início da pandemia de Covid-19, a arte!brasileiros conversou com uma série de galeristas, leiloeiros e especialistas em mercado para fazer um balanço de como havia sido o período para o setor, notadamente no Brasil. A constatação, surpreendente à época, era de que após um baque inicial com a decretação da quarentena, o reaquecimento dos negócios foi rápido e consistente, em contraste até mesmo com outras regiões do globo como Europa e América do Norte. Neste fim de 2021, após mais um ano de pandemia, entrevistamos novamente uma série de profissionais da área para saber dos resultados de um período que, apesar das restrições, envolveu também uma série de flexibilizações. A conclusão, praticamente unânime entre os cerca de 15 entrevistados, é de que o ano foi ainda melhor do que o anterior, mesmo em meio a um cenário – sanitário, político, econômico e social – tão conturbado no país.  

“O ano de 2021 foi muito melhor do que 2020 e melhor também se comparado com o ano anterior à pandemia”, conta Luisa Strina, uma das mais importantes galeristas do país. O leiloeiro Aloísio Cravo, que teve uma atuação mais oscilante no início da quarentena, segue a mesma linha: “Os leilões de 2021 tiveram faturamentos comparáveis aos de 2014 ou 2015, antes de entrarmos numa sequência muito ruim com todas as instabilidades políticas e econômicas no país”. Com as particularidades que envolvem cada casa, as afirmações dos galeristas seguem sempre em sentido parecido. Vilma Eid, da Galeria Estação, conta que duas das mostras realizadas na casa tiveram todas as obras vendidas ainda nos primeiros dias de exibição. André Millan (Galeria Millan), por sua vez, resume: “Por incrível que pareça, pelo menos aqui no Brasil, esses tempos de pandemia surpreenderam a todos e, em linhas gerais, as vendas foram muito boas, o mercado de arte reagiu surpreendentemente bem”.

Alguns dos motivos desse resultado, constatados já no primeiro ano da pandemia, soaram mesmo inesperados: o maior tempo passado dentro de casa e a diminuição com outros tipos de gastos, como viagens e restaurantes, incentivaram as pessoas a comprar mais obras de arte para seus ambientes privados; a migração dos negócios para o ambiente virtual aproximou uma parcela de compradores mais jovens, menos acostumados aos ambientes de galerias e feiras e bastante inseridos no mundo online; além disso, a criação de projetos de parcerias entre galerias, antes raros, e uma experimentação com novos formatos de venda trouxeram resultados. Isso tudo considerando, é claro, que “a elite é quem compra arte e é quem menos sofreu com a pandemia”, como destacou a avaliadora e consultora de mercado de arte Tamara Perlman ao fim de 2020.  

O que se viu, portanto, foi até mesmo a abertura de novas galerias – HOA, Projeto Vênus e Index no ano passado; Marli Matsumoto, Arte 132 e Bailune Biancheri neste ano, entre outras – e de filiais de casas já estabelecidas como Jaqueline Martins, DAN Galeria e A Gentil Carioca. Mas, se foram dois anos positivos, há também diferenças notáveis entre a atuação das casas e o comportamento dos compradores nos dois períodos.

O papel do online e a (des)aceleração do presencial

Se em 2020 o online se tornava o centro das negociações, dobrando o número de vendas nele executadas – como apresenta o relatório anual da Art Basel e UBS -, com o início da vacinação e a redução no número de novos casos de Covid-19 no Brasil e no mundo, 2021 teve parte desse cenário alterado. As atividades presenciais foram retomadas gradativamente ao longo do ano, galerias e museus reabriram suas exposições e feiras de arte nacionais e internacionais adotaram um formato híbrido. 

No caso dos leilões, “o online se consagra como uma alternativa sólida de operação”, como garante Aloísio Cravo. O leiloeiro destaca que seus dois eventos deste ano ocorreram virtualmente e tiveram bons resultados, chegando a dobrar os valores das peças. Há também uma profusão de pequenos leilões por canais virtuais, com patamares de preços mais baixos, como afirma Tamara Perlman. 

Estande da Galeria Nara Roesler na The Armory Show 2021. Foto Charles Roussel

Porém, esse não parece ser o cenário geral para as artes. O modelo híbrido se firma como um caminho sem volta, o online não parece disposto a recuar, mas talvez não persista do modo que se esperava. “Acho que, neste ano, o virtual foi mais um processo de aproximação, menos de venda. Ele não perdeu a importância, mas a venda voltou a ser mais presencial”, afirma Murilo Castro, de Belo Horizonte. Vilma Eid e Alexandre Roesler, sócio da Galeria Nara Roesler, fazem coro e destacam os viewing rooms como um complemento, mais do que uma frente de negócios. A diretora da ArtRio, Brenda Valansi, pôde verificar isso na edição deste ano da feira carioca: “A plataforma virtual acaba sendo muito usada como pesquisa, para quem depois quer ver no presencial, ou às vezes a pessoa vê fisicamente e finaliza a compra no online”. Para o fundador da Gomide & Co. (antiga Bergamin & Gomide), Thiago Gomide, a comparação entre os resultados dos eventos presenciais e virtuais é desleal: “Acho que os viewing rooms vieram para ficar, mas é ridícula a comparação. As vendas que foram resultado de alguma coisa online foram irrisórias no meu faturamento”. 

Apesar da programação digital não ter a mesma potência da física, como aponta Roesler, ela é muito mais barata. Esse parece ser um dos fatores chave para o sucesso de 2020. Se por um lado as vendas foram menores, foi a capacidade de reduzir custos operacionais que permitiu a alguns galeristas manter a lucratividade. A volta do presencial traz um impacto nesse sentido, em especial com o aumento da cotação do dólar e do euro. “Participar de feira física, por exemplo, é caríssimo. Atualmente está mais caro ainda, porque os custos de logística mais do que duplicaram”, destaca Roesler. 

Nos anos anteriores à pandemia, as feiras eram responsáveis por quase 50% das vendas de galeristas ao redor mundo, segundo o relatório da Art Basel e UBS. Em 2020, esse número caiu para 13% em decorrência dos eventos cancelados. Diversos galeristas no Brasil e no mundo apontam que essa diminuição na dependência das feiras pode ter vindo para ficar. Segundo reportagem do The Art Newspaper, só em 2019 aconteceram 178 feiras de arte paralelamente a bienais ou trienais e às exposições de museus e galerias. “É um sistema predatório. Não há casa que consiga bancar financeiramente todo esse investimento”, compartilha André Millan. “Quando você para um pouco, percebe que não fez nenhuma feira [em 2020] e continuou vendendo bem, aí você se pergunta: será que realmente preciso fazer tudo isso?”, indaga Roesler.

Para Thiago Gomide e Thais Darzé (Paulo Darzé Galeria), a pausa decorrente da pandemia permitiu que os galeristas – geralmente imersos em rotinas intensas de eventos – pudessem pensar sobre o quanto o custo operacional e o processo de estresse, cansaço e expectativa revertem financeira e institucionalmente. O resultado brasileiro parece conversar com as previsões estrangeiras, que apontam uma diminuição das viagens e participação em feiras por parte das galerias. Márcio Botner, sócio d’A Gentil Carioca, por outro lado, acredita que a tendência seja uma retomada muito próxima ao que existia antes. “Claro que dá uma sensação de que talvez não dê para ser tão veloz assim, que talvez fosse melhor de alguma outra maneira, mas continuo achando o contato presencial fundamental”, afirma o carioca. Apesar das discordâncias, a opinião não destoa totalmente da postura dos demais galeristas, que defendem que mesmo com a diminuição da dependência das feiras, não é possível se desprender completamente, seja pelas possibilidades de vínculo e socialização criadas, pelos resultados em vendas a longo prazo ou pela expansão para outros mercados. 

Estande da Cassia Bomeny Galeria na ArtRio. Foto: Divulgação

Os resultados dos dois maiores eventos nacionais em 2021 demonstram, de fato, que o interesse nas feiras segue elevado. Ao longo dos cinco dias de evento, a SP-Arte – que esse ano trocou o Pavilhão da Bienal (25 mil m2) pelo galpão ARCA (9 mil m2) – recebeu cerca de 18.500 pessoas, esgotando praticamente todos os ingressos disponibilizados, e contou com 40 mil acessos em sua versão virtual. Para a Gomide & Co., a feira apresentou um dos melhores resultados do ano. A Verve Galeria vendeu 95% do primeiro acervo exposto e a Portas Vilaseca vendeu a totalidade de obras selecionadas antes mesmo do fim do evento. A ArtRio, por sua vez, contou com 14.500 pessoas na versão física e, pouco após a edição, anunciou sua expansão em uma nova empreitada: a ArtSampa, uma feira em território paulistano com data já marcada para março de 2022.

Cabe, porém, destacar que ambas as feiras – assim como as internacionais – aconteceram de forma mais local, com menos expositores e visitantes estrangeiros, em decorrência das dificuldades de trânsito entre países provocadas pela pandemia. Outras alterações de público também foram notadas, não só nas feiras, mas na cena artística como um todo.

Entre ativismo e financeirização

Mesmo sendo um movimento já perceptível ao longo dos últimos anos, o período pandêmico viu se intensificar a entrada de novos compradores no mercado de arte, especialmente jovens, alguns dispostos a ter uma postura mais “ativista”, outros interessados em fazer negócios. Este movimento, verificado globalmente, inclui especialmente os chamados millenials – geração que tem hoje entre 20 e 40 anos -, como mostra a pesquisa da Art Basel e UBS: “A mudança para o digital trouxe melhorias na transparência de preços, acesso a informações e aos artistas. A redução das barreiras de entrada no mercado permite o desenvolvimento de uma base mais ampla de novos colecionadores em diferentes níveis de preços”, diz o relatório.

Ao menos parte dos galeristas brasileiros percebeu este movimento em seu dia a dia. “Houve um crescimento de compradores de 35 a 45 anos. Não foram apenas os colecionadores tradicionais que alimentaram o mercado de arte neste período, mas sim novos. Ou talvez pessoas que nem sejam ainda colecionadores, mas novos compradores com potencial de se tornar colecionadores”, afirma o galerista Murilo Castro. Gomide e Strina, que trabalham com obras em faixas de preços mais elevadas, também perceberam a mudança, por mais que ressaltem que a manutenção dos velhos compradores seja essencial.

“É um público consistente e que já chega com muita informação”, relata Cravo, atuante há 40 anos no mercado. “Até os anos 1990 sinto que a gente precisava informar muito mais o novo cliente, que vinha com vontade, mas muito cru. Hoje você observa o jovem que já pesquisou, que sabe o que gosta, que já vem com material para iniciar o diálogo. Acho que isso também tem muito a ver com a internet, com esse enorme acesso à informação”. Tem a ver também, segundo Perlman, com a expansão de uma rede de profissionais qualificados voltados a apoiar este mercado, desde os chamados art advisors e avaliadores até os catalogadores e restauradores, entre outros. “Ou seja, toda uma infraestrutura de serviços que facilita o crescimento do mercado”, explica. 

Segundo Brenda Valansi, o impacto desta geração mais jovem foi sentida na ArtRio de 2021, e se relaciona também a uma produção mais engajada no país: “O que eu percebo que acontece no mercado, em decorrência do contexto político e social, é uma mudança na escolha dos artistas e dos assuntos tratados, que acompanham as discussões que estão acontecendo na sociedade. Junto a isso, há um fortalecimento de um colecionismo ativista, uma preocupação do colecionador em ser mais socialmente atuante, e isso se dá muito fortemente com as novas gerações. Então o mercado precisa também estar atento e oferecer outros caminhos”. Em uma escala global, o foco internacional na arte latino-americana e produzida por grupos minorizados – negros, indígenas, mulheres ou população LGBTQIA+ – também favorece o mercado brasileiro. Servem como exemplo – em uma faixa mais elevada de preços – a venda realizada pela Gomide & Co. para o Guggenheim de Abu Dhabi, em 2020, de uma obra de Lygia Clark por cerca de R$ 10 milhões; ou a transação recente, em leilão da Sotheby’s Nova York, de um autorretrato da mexicana Frida Kahlo por quase R$ 200 milhões – valor recorde para uma obra de artista latino-americano.

Autorretrato “Diego y yo”, de Frida Kahlo, leiloado pela Sotheby’s, em novembro de 2021, por quase R$ 200 milhões – valor recorde para uma obra de artista latino-americano. Foto: Angela Weiss / AFP via Getty Images

Mas há ainda uma parcela cada vez mais significativa de compradores, como revelam pesquisas nacionais e internacionais, que está pouco – ou nada – preocupada com o conteúdo dos trabalhos, mas apenas com a arte enquanto investimento financeiro. Perlman, ao analisar dados divulgados este ano pela consultoria Deloitte, explica que há um grupo crescente de compradores mais jovens, “ligado a tudo que é digital, inclusive arte digital”, que entra no mercado para fazer negócios, ou seja, comprar e vender obras com relativa velocidade, não colecioná-las. Surgem cada vez mais, neste sentido, tipos de operações em que o comprador nem mesmo se torna dono da obra, mas apenas de uma fração do trabalho, como quem compra ações na Bolsa de Valores.

A desigualdade que não afeta o mercado

Para Thais Darzé, essa relação da arte como investimento talvez seja um dos motivos que leve os anos de pandemia a resultados bons de venda. “Obra de arte é um investimento material, muita gente em momento de crise opta por fazer esse tipo de transação”, diz. Com um acervo diverso, a Paulo Darzé Galeria apresenta obras de artistas jovens emergentes, bem como nomes consagrados, como Amilcar de Castro, Frans Krajcberg, Leda Catunda e Tunga. Os dois lados do negócio tiveram resultados muito distintos em 2021. “Temos um mercado de arte aquecido para obras mais caras, porque a crise impacta menos as grandes fortunas do país. No ponto de vista dos jovens artistas, o negócio fica bastante precário. São obras mais em conta, de artistas emergentes e o impacto de vendas é muito significativo.” 

A crise que se impõe sobre o país, inclusive na área cultural – com a paralisia na Lei de Incentivo a Cultura, a falta de investimentos nas instituições públicas e até mesmo o cerceamento à criação artística – não chega a afetar significativamente o mercado. “Acho que temos um desmonte acontecendo, um momento muito complexo em relação aos recursos públicos da cultura, mas de fato o mercado no Brasil é muito dependente dos colecionadores privados, e esses colecionadores continuam capitalizados, continuam fazendo o dinheiro circular de alguma forma, então não tem um impacto direto no mercado”, diz Bruna Bailune, das jovens Galeria Aura e Bailune Biancheri. As constatações vão de encontro ao contexto atual. Como aponta o relatório sobre riqueza global feito pelo banco Credit Suisse, a concentração de renda aumentou em todo o mundo no período da pandemia. No Brasil, vivemos o pior nível de concentração de renda desde 2000, com 49,6% da riqueza do país na mão de 1% da população. “Acho que tem muita grana no mercado de arte. Cada dia entram novos colecionadores e novos patronos. Sinto que estamos no início de um grande boom, que a próxima década vai ser a melhor que o mercado de arte já teve na história”, diz Thiago Gomide. 

A previsão do galerista não parece distante do que mostram as pesquisas. “O relatório da Deloitte mostra que o número de super ricos no mundo cresceu muito nos últimos anos, e que isso ainda não resultou num aumento proporcional nos números de venda de arte, o que significa que esse mercado ainda tem muito para crescer”, aponta Perlman. Segundo a pesquisa, até 2025 deve-se ver um grande crescimento no investimento em artes não só no Brasil, como em todo o mundo.

Da radicalidade na cenografia das mostras

Por um sopro de fúria e esperança – uma declaração de emergência
Vista de "Por um sopro de fúria e esperança – uma declaração de emergência", no MuBE. Foto: Hélio Campos Mello

Potencializar as obras em exposição é uma das principais tarefas da curadoria e, nesse sentido, gestos radicais são bem-vindos quando buscam ir além da representação, ao permitir uma experiência de fato. Por um sopro de fúria e esperança – uma declaração de emergência climática é um dos melhores exemplos recentes desse gesto ao alagar o Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia (MuBE) para tratar sobre a catástrofe climática em curso no planeta, que tem entre seus principais promotores o atual governo federal.

A mostra tem curadoria de Galciani Neves e Natalie Unterstell, mas a instalação cenográfica Inundação é assinada por Ary Perez e Flavia Velloso. Ao encher de água o piso do museu e permitir que se caminhe apenas sobre estruturas de madeira, cria-se uma experiência que aproxima o público de uma realidade não muito distante da que é denunciada em muitas das cerca de cem obras em exposição.

Trata-se, é evidente, de uma mostra com caráter militante, que ocorreu simultaneamente à COP26, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas ocorrida em Glasgow, na Escócia, no início de novembro passado, com resultados abaixo dos esperados, ampliando assim os alertas de um futuro difícil para o planeta.

Se por um lado o negacionismo dos dados científicos, em grande parte incentivado por grandes corporações e o agronegócio, faz com que muita gente desdenhe das necessidades de atenção à sustentabilidade, a mostra é exemplar ao criar um ambiente, em um dos bairros mais privilegiadas e elitistas do país, que atesta que o futuro distópico já chegou e não apenas simbolicamente, como é o caso da exposição.

É notável que esse gesto radical – programado para as primeiras semanas da exposição, mas que já não existe mais de dezembro a 30 de janeiro, quando ela será encerrada -, tornou praticamente impossível saber de quem são as obras na mostra. Mas quando se trata de emergência climática, parece coerente que autorias individuais sejam “prejudicadas”, pois é disso que se trata afinal: o possível fim de uma espécie. Ao mesmo tempo, o site do museu elenca todas as obras em imagens e seus devidos créditos, o que permite a quem tem mais compulsão em identificar autoras e autores, tenha seu desejo realizado.

Há assim uma relação ética entre o que está exposto e o contexto. Alagar um museu traz ainda uma forte carga de crítica institucional a um circuito de arte marcado pela hipocrisia: colecionadores ocupam espaços determinantes em instituições de arte, moldando essa cena e adquirindo tudo que surge como transgressão, ao mesmo tempo em que suas empresas seguem em políticas anti-civilizatórias.

Surreal

A história das exposições está repleta de gestos radicais desse gênero, como a instalação de Marcel Duchamp na mostra The First Papers of Surrealism (os primeiros artigos sobre surrealismo), realizada em 1942 na Whitelaw Reid Mansion, em Nova York. Lá, em meio a considerada maior exposição de obras surrealistas nos Estados Unidos, Duchamp espalhou mais de 1.600 metros de barbante, criando um ambiente repleto de teias, que dificultavam o caminhar dos visitantes. Essa atmosfera surreal tinha, afinal, tudo a ver com o tema da mostra.

No mesmo ano e cidade, outra mostra dedicada ao surrealismo, desta vez na galeria Art of this Century, de Peggy Guggenheim, criava também um ambiente de estranhamento com iluminação dramática e um ensurdecedor som de trem passando, que ocorria a cada dois minutos. São dois bons exemplos de estratégias criadas, antes mesmo do conceito de curadoria, para potencializar os trabalhos expostos, evitando o higienizado e neutro cubo branco.

Nem sempre encenações tão contundentes conquistam unanimidade, como o que ocorreu ao longo da Mostra do Redescobrimento, em 2000. Considerada a maior exposição já realizada no país, ao ocupar três dos quatro edifícios projetados por Oscar Niemeyer, no parque Ibirapuera, ela fez um percurso de 500 anos de história das artes no país, dividindo 15 mil obras em 13 módulos, sendo o mais controverso aquele dedicado à arte barroca. Concebido por Bia Lessa, ele se compunha por ambientes imersivos, com milhares de flores de papel envolvendo esculturas. A questão, quando se trata de gestos radicais, está em até que ponto a cenografia chama mais atenção que as próprias obras e, neste caso, decisivamente foi o que ocorreu.

Outro exemplo constrangedor do exagero na cenografia vem da própria Bia Lessa quando ela simplesmente dispôs no chão, e em sentido horizontal, 22 telas na mostra Itaú Contemporâneo, 1981-2006, realizada no Itaú Cultural em 2007, para surpresa e ira de seus autores.

Efeito redutor

Assim, a cenografia potencializa, esconde e pode ser contrária ao que a própria obra propõe, como se vê no caso das pinturas na horizontal. Recentemente, dois casos nesse segmento podem ser observados, ambos no Museu de Arte de São Paulo, o MASP, em exposições de duas artistas: Erika Verzutti e Maria Martins.

Verzutti é uma das artistas mais originais de sua geração, com obras que provocam estranhamento, ao mesmo tempo em que se aproximam da natureza, seja de animais como cisnes, ou frutas, como jacas e melancias. Esses elementos orgânicos formam figuras um tanto bizarras e difíceis de classificar. Pois Erika Verzutti – a indisciplina da escultura, que esteve em cartaz até outubro passado, apresentou uma cenografia gélida e racionalista, composta de ângulos retos, com obras dispostas em bases brancas que distanciam esse universo onírico dos visitantes. O museu, assim, higieniza a obra da artista, contrariando sua poética.

Algo semelhante ocorre com a mostra Maria Martins: desejo imaginante, que pode ser vista no museu até 30 de janeiro de 2022. Entre os modernistas brasileiros, Maria Martins (1894-1973) é figura chave ao tropicalizar o surrealismo e a mostra no MASP é repleta de obras exemplares. Contudo, ao dispor as esculturas em bases brancas com fitas que ainda criam um distanciamento das obras, remete à sociedade de controle, sem buscar saídas criativas para manter a necessária segurança das obras. A opção pelo óbvio é uma forma de reduzir a potência das obras. A divisão dos ambientes por cortinas parece ainda uma cópia da cenografia de Ludwig Mies van der Rohe e Lilly Reich para a exposição The Velvet and Silk Café (o café de veludo e seda), realizada em Berlim há nada menos que 94 anos.

Foto horizontal, colorida. Vista da exposição CAROLINA MARIA DE JESUS: UM BRASIL PARA OS BRASILEIROS, no Instituto Moreira Salles, ilustra a cenografia da mostra a qual Fabio Cypriano se refere. As paredes vermelhas tem quadros e textos curtos, nota-se obras no chão à distância.
Vista da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Foto: Ádima Macena / Divulgação IMS

Ao menos na mesma avenida Paulista, o Instituto Moreira Salles homenageia outra mulher, no caso a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), de forma muito mais digna. Trata-se da primeira exposição do programa criado por João Fernandes, e é digno de nota que ele repasse a mostra para uma equipe brasileira composta por Hélio Menezes e Raquel Barreto, na curadoria, e Isabel Xavier, no projeto expográfico.

Com muitos trabalhos comissionados, a exposição apresenta a obra de Carolina de Jesus de forma complexa, criando muitos diálogos entre textos e imagens, às vezes até dificultando a identificação de seus autores e autoras, mas no final criando um ambiente que potencializa a obra da homenageada. Ela é vista, afinal, em uma perspectiva da cultura, que não se utiliza apenas da literatura e artes plásticas, mas inclui ainda moda e carnaval, incluindo aí o histórico desfile da Mangueira de 2019, Histórias para ninar gente grande.

Em um momento em que preconceito e racismo ganham ares institucionais, a exposição em sua forma e conteúdo é corajosa, seguindo o que a própria autora defendia: “A vida não é para covardes”. Criar o ambiente correto para exposições também não.

Colaboradores da edição #57

Patricia Rousseaux é pedagoga, estudou psicologia. Trabalha no desenvolvimento de projetos editoriais ligados à educação, arte e cultura há 35 anos. É fundadora e diretora editorial da arte!brasileiros. Nesta edição escreve sobre a FIAC Paris, o Fundo Arthur Piza, a reabertura da Bolsa de Comércio de Paris e o artista Julio Villani.


Hélio Campos Mello é fotojornalista. Foi editor de fotografia e secretário de redação da revista Senhor, diretor de redação da revista Istoé e da revista Brasileiros, diretor de fotografia da Agência Estado. Como fotógrafo cobriu guerras, cobriu paz. Hoje faz fotos de arte e fotos de rua. Gosta das duas.


Tereza de Arruda é historiadora de arte e curadora independente. Vive desde 1989 entre São Paulo e Berlim, onde cursou a Universidade Livre de Berlim. Realizou curadorias em instituições como CCBB, Museu da República (DF), me Collectors Room Berlin e Kunsthalle Rostock, onde é curadora-adjunta desde 2015.


Fabio Cypriano, crítico de arte e jornalista, é diretor-adjunto da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Nesta edição assina ensaio sobre a cenografia de exposições e matérias sobre o artista Jaider Esbell e o novo livro de Jacques Rancière.


Miguel Groisman é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero. Pesquisa o cinema, representação visual e o fotojornalismo, tendo já colaborado com publicações especializadas na imagem, como a Aperture. Atualmente é repórter da arte!brasileiros.


Fotos: arquivo pessoal

Escolha brasileira em Veneza reflete autoritarismo da Fundação Bienal de São Paulo

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Cena de "O Peixe", 2016, de Jonathas de Andrade, artista escolhido para representar o Brasil na Bienal de Veneza. Foto: Divulgação

Mais uma vez a indicação do representante brasileiro na Bienal de Veneza é fruto de uma escolha antidemocrática, como tem se caracterizado desde que Edemar Cid Ferreira, em sua saga personalista, convenceu o Ministério das Relações Exteriores a repassar essa tarefa à Fundação Bienal, nos anos 1990.

Na maioria dos países com representação em Veneza, ou ao menos naqueles com tradição democrática, como Estados Unidos, França e Alemanha, a escolha se dá por processos públicos, que envolvem editais abertos, gerando muitas vezes polêmicas sobre as escolhas – como a recente decisão de Portugal, que preteriu Grada Kilomba no concurso por manobras consideradas racistas na seleção (ver artigo de Ana Teixeira Pinto).

No Brasil, a Fundação Bienal segue usando a representação de Veneza como prêmio para o bom comportamento de um curador durante a Bienal de São Paulo. Se a presidência não gosta das propostas curatoriais, como ocorreu com Manoel Pires da Costa, que se desentendeu com Lisette Lagnado em 2007, Veneza vai para alguém com mais pinta de dócil e comportado, prêmio que naquele foi dado a Jacopo Crivelli Visconti, o mesmo que agora foi responsável pela bienal Faz escuro mas eu canto. Aliás, não deixa de ser estranho que Paulo Miyada, que dividiu a curadoria dessa edição, tenha sido alijado do processo. Em 2011, Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, que compartilharam a curadoria da 29ª Bienal, também dividiram a indicação de Artur Barrio para Veneza.

Contudo, tendo em vista que a decisão monocrática veio de José Olympio Pereira, presidente reeleito da diretoria da Fundação Bienal e que apoiou a eleição de Bolsonaro em 2018 – e agora tem sido visto com o juiz suspeito Sergio Moro -, não há o que se estranhar. Essa abismal discrepância entre os gestores das instituições culturais e a maioria dos artistas é um tanto incompreensível, mas é histórica: Ciccillo Matarazzo defendia a ditadura militar quando era o presidente da Bienal, que naquela época ao menos sofria boicote de artistas. Hoje, todo mundo fica mudo.

A escolha de Jonathas de Andrade para a Bienal de Veneza de 2022, no entanto, revela como a 34ª Bienal de São Paulo foi hipócrita ao assumir a alcunha de “Bienal dos índios”. Em Veneza, afinal, seria o momento de se consolidar essa aposta, que na verdade não foi bem uma aposta – como Jaider Esbell revelou em uma longa entrevista à revista digital Elástica, manifestando sua contrariedade: “Não estamos satisfeitos. Porque primeiro a Bienal disse que não queria índio nenhum.”

Jonathas é um artista de obras reconhecidas internacionalmente e seu trabalho “O Peixe” foi sensação na 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, que teve à frente Jochen Volz. Mas depois de dois anos pandêmicos, quando movimentos como #meetoo e #blacklivesmatter ganharam poder e ressonância, a partir das conquistas de negros e mulheres, a escolha de Visconti apenas reforça o quanto a Fundação Bienal está distante do contexto social e sem sintonia com o tempo atual.

Enquanto isso, Maria Eichhorn, com sua obra crítica das estruturas econômicas, vai representar a Alemanha em Veneza, a afro-americana Simone Leigh os Estados Unidos, e a francesa descendente de argelinos Zineb Sedira a França. Viva a democracia!

O boicote à Grada Kilomba na representação oficial portuguesa da Bienal de Veneza 2022

Foto vertical, colorida. Retrato de Grada Kilomba
A artista e escritora Grada Kilomba. Foto: Ute Langkafel

Por Ana Teixeira Pinto*

No passado dia 11 de novembro de 2021 a DGARTES (Direção Geral das Artes) anunciou o resultado do concurso para a representação oficial portuguesa na 59ª Bienal de Veneza em 2022. A candidatura da artista Grada Kilomba e do comissário Bruno Leitão com o projeto A Ferida foi preterida pelo júri. Esta decisão é chocante não só porque Grada Kilomba seria, segundo critérios objetivos, a melhor escolha – é uma artista plástica cuja obra abre horizontes críticos, em diálogo com os mais importantes movimentos intelectuais contemporâneos, com um percurso e trabalho singular, duma complexidade que se estende a registos literários e performativos –, mas porque o seu pavilhão teria um enorme valor simbólico: Grada Kilomba é uma artista com ascendência em São Tomé e Príncipe e Angola, duas ex-colônias portuguesas, sendo que Portugal carrega um brutal legado colonial que permanece sub-teorizado e o qual a maioria branca se recusa ostensivamente a reconhecer. Claro que um pavilhão em Veneza não pode pagar a imensa dívida colonial do país, essa dívida é impagável, mas é justamente por isso que esta reparação simbólica assumiria uma tão grande importância. Que melhor opção em termos de representação nacional do que representar a sub-representação da sociedade portuguesa na figura duma artista brilhante, reconhecida e respeitada internacionalmente?

grada kilomba
A artista e escritora Grada Kilomba. Foto: Ute Langkafel

Se o júri tivesse tomado a sua decisão, uma decisão que eu só posso classificar como racista e misógina, apenas por incapacidade de reconhecer o mérito da artista e a urgência do tema da sua candidatura, o caso seria grave. Questões de mérito e demérito não são questões subjetivas, são questões que revelam a dimensão racial das estruturas semióticas e semânticas. Mas esta história não é apenas uma história de negligência ou déficit intelectual. Esta história é uma história de manipulação maliciosa da pontuação atribuída de forma a impedir que Grada Kilomba fosse a artista escolhida: a sua candidatura foi literalmente boicotada por um dos elementos do júri, Nuno Crespo, professor da Universidade Católica Portuguesa.

Numa carta aberta, o comissário Bruno Leitão tornou público que esse jurado atribuiu uma pontuação aberrante à sua candidata, injustificável em termos de quaisquer parâmetros imparciais, atribuindo-lhe uma classificação de dez pontos (numa escala de zero a vinte) em diversas categorias, em flagrante discrepância não só com os outros elementos do júri mas também com as pontuações que atribui às demais candidaturas. O mesmo elemento do júri, justificou a sua pontuação dizendo:

“(…) a ideia de racismo como ferida aberta foi já objeto de inúmeras outras abordagens; de modo que a proposta apresentada não deixa perceber como numa exposição poderá rever, criticar ou prolongar, essa ideia tão já discutida e mesmo exibida de múltiplas formas (…).”

“(…) ainda que a equipe técnica e artística seja competente, o mérito artístico da artista Grada Kilomba (…) não é satisfatório.”

“Grada Kilomba é uma brilhante escritora e pensadora, e são inegáveis as suas competências em termos da famosa ‘narrativa oral’, contudo enquanto proposta expositiva, o projeto apresentado não possuí o alcance artístico que, a meu ver, a representação oficial tem obrigatoriamente de possuir (…).”

“(…) não está comprometido com a dinamização e internacionalização da ‘cena’ artística e cultural portuguesa.”

É difícil interpretar frases como “não está comprometido com a dinamização e internacionalização da ‘cena’ artística e cultural portuguesa” como não conotando uma ideia racial de cidadania: quem, exatamente, pode representar a cena artística portuguesa? Há portugueses mais portugueses do que outros? Ou numa bizarra inversão de causa e consequência, estará o jurado a usar o fato de Grada Kilomba nunca ter sido incluída na “cena” artística Portuguesa para justificar a sua exclusão do pavilhão nacional, ao invés de julgar a falta de inclusividade da dita “cena” artística um sintoma da assimetria e injustiça histórica que seria o seu dever retificar? Outro indício de disparidade sistêmica é o fato da artista Mónica de Miranda e a curadora Paula Nascimento terem tido a pontuação mais baixa do grupo de candidatos, tendo o júri mais uma vez selecionado uma representação branca.

Mais, é irônico que os argumentos avançados para rejeitar a candidatura de Grada Kilomba, A Ferida, cujo projeto tematiza as continuidades entre passado e presente, entre a colonialidade e a crise climática, entre a valorização de certas subjetividades e a desvalorização de outras, repitam o padrão sistemático de desvalorização, hierarquização, marginalização e trivialização que o projeto se dedica a questionar.

É também preciso sublinhar que esta história não é só uma história de preconceito individual: o restante do júri aceitou um resultado arbitrário sem se demitir ou questionar a decisão, embora a disparidade de votações fosse flagrante; a entidade tutelar, a DGARTES, declinou intervir demonstrando que a instituição é incapaz de reconhecer má-fé processual e não está equipada com os protocolos adequados para identificar dolo e prevenir que este tipo de problema recorra no futuro; o ministério da cultura não se pronunciou, num silêncio que grita que Portugal continua a investir na branquitude, no revisionismo histórico e no chauvinismo insular e isolacionista.

Talvez, como Djamila Ribeiro escreve na Folha de S.Paulo, Grada Kilomba seja grande demais para Portugal, ou talvez Portugal seja pequeno demais para Grada Kilomba, de qualquer forma, e para que Portugal cresça ao ponto de ter capacidade para representar de forma justa e equitativa, todos aqueles a quem continua a negar representação, é preciso lutar contra esta decisão tanto formalmente, exigindo uma intervenção da tutela, como informalmente, forçando o debate público que Portugal se recusa a ter.

✱ A autora publicou um artigo de opinião anterior no jornal Público sobre este assunto.


*Ana Teixeira Pinto é teórica e crítica de arte, professora no DAI (Dutch Art Institute) e AdBK Nürnberg. Edita a série On the Antipolical para a Sternberg Press, e está a organizar o projecto Whose Universal? na HKW em Berlin com Kader Attia e Anselm Franke. É membro da equipe artística que organiza a 12ª Bienal de Berlim, junto com o curador Kader Attia.

Casa de Cultura do Parque oferece oficinas gratuitas e inaugura novo ciclo expositivo

Vista de obras de Germana Monte Mór na mostra coletiva "De Terra e Gás", na Casa de Cultura do Parque. Foto: Divulgação

Buscando estimular reflexões sobre a agenda contemporânea e ampliar a compreensão e a apreciação de arte, a Casa de Cultura do Parque oferece ampla programação gratuita durante o mês de dezembro. As atividades, voltadas para públicos de diferentes idades, trabalham a intersecção das artes com a educação no intuito de fomentar uma produção cultural plural e inclusiva.

No último dia 27 de novembro, a instituição deu início ao II Ciclo Expositivo 2021, com direção artística de Claudio Cretti. Quem visita o espaço, em frente ao Parque Villa-Lobos, em São Paulo, tem agora a oportunidade de ver a coletiva De Terra e Gás, com trabalhos de Germana Monte-Mór, Paulo Monteiro e Solange Pessoa; uma individual de Luís Teixeira; e a exibição de Pepinos, Sad & Brazilian, uma série de 27 pinturas de Estela Sokol. Em paralelo, a Casa de Cultura oferece oficinas presenciais e virtuais.

As exposições

A coletiva De Terra e Gás propõe um diálogo entre as obras de Germana Monte-Mór, Paulo Monteiro e Solange Pessoa – artistas que se estabeleceram na cena de arte nacional entre o início da década de 1980 e 1990, com ênfase na pesquisa tridimensional e pictórica. Com trajetórias semelhantes, o trio apresenta produções artísticas repletas de referências ao pós-minimalismo, à arte povera italiana, ao neoconcretismo brasileiro e à arte popular nacional. Tendendo quase sempre à abstração, em desenhos e na escultura, os trabalhos oferecem um diálogo poético, revelando um embate entre matéria e forma. “São furos, buracos, casulos, linhas e massas informes, como se fosse revelar algo que não está ali, exalar um gás, fazer uma surpresa”, comenta Cretti.

Por sua vez, Gargalo evidencia uma vontade cinética de objetos e imagens estáticos. Reunindo 10 obras, a individual de Luís Teixeira cria uma noção de “gargalo”, como propõe o título, ao que aspectos estáticos da obra aparentam se mover por um espaço estreito. “As pinturas de Luis Teixeira aludem a uma dicotomia: sua condição estática em contraste com seu desejo cinético, esse gargalo em si é um trajeto, é movimento”, aponta o escritor e curador Tiago de Abreu Pinto no texto crítico.

O Projeto 280 x 1020 – parede localizada entre espaço interno e externo da Casa de Cultura do Parque – apresenta Pepinos, Sad & Brazilian, mostra de pinturas de Estela Sokol. Realizadas sem o uso de tinta, as obras elaboradas com feltros coloridos sobre chassis de madeira se apropriam de toda a paleta de cores de feltros disponível na indústria para criar um policromático jogo entre figura e fundo. O título da série faz alusão direta ao meme Sad & Brazilian, que viralizou na Internet durante o ano de 2020, e a escolha do pepino como personagem principal não é em nada aleatória, faz referência ao significado popular da palavra: problema – relacionando o vegetal à situação econômica, política e social do país.

Oficinas

Durante 2020 e 2021, em decorrência da pandemia de Covid-19, as oficinas da Casa de Cultura do Parque foram ministradas de forma online, no programa #NoQuintal. Neste final de ano, a equipe educativa selecionou duas dessas atividades para serem ministradas presencialmente.

A primeira, intitulada mo.du.lar, é inspirada nas obras da Lenora de Barros expostas em AR, mostra do ciclo de exposições anterior. A proposta é investigar as palavras como módulo, decompondo-as em prefixos, sufixos, radicais, invertendo a ordem e até virando do avesso. O encontro acontece sábado, 11 de dezembro, às 15h. Já no dia 18, os participantes são convidados a desenvolver e estudar sobre bandeiras na oficina Dando bandeira. A atividade foi desenvolvida com base na exposição Pátria amada?, de Edgar Racy, exibida em 2020. Para participar, é necessária inscrição prévia (clique aqui). Porém, para quem não está em São Paulo, ou não consegue visitar a Casa de Cultura nessas datas, é possível aproveitar essas e outras oficinas de forma virtual, através do canal de Youtube da instituição.

As atividades são intergeracionais, e buscam convidar toda a família à experiência. “Dessa forma, cada participante tem a possibilidade de investigação sobre a proposta de acordo com seu repertório e seus recursos”, explica a instituição.

SERVIÇO

II Ciclo expositivo 2021
Local: Casa de Cultura do Parque – Av. Prof. Fonseca Rodrigues, 1300 – Alto de Pinheiros
Período expositivo:
27 de novembro de 2021 a 13 de março de 2022
Horário: de quarta a domingo, das 11h às 18h
Entrada gratuita

Oficina educativa modular
Local:
Casa de Cultura do Parque – Av. Prof. Fonseca Rodrigues, 1300 – Alto de Pinheiros
Data: 11 de dezembro, das 15h às 16h
Inscrições gratuitas

Oficina educativa Dando bandeira
Local: Casa de Cultura do Parque – Av. Prof. Fonseca Rodrigues, 1300 – Alto de Pinheiros
Data:
18 de dezembro, das 15h às 16h
Inscrições gratuitas