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A Magia do Manuscrito: o que documentos pessoais contam sobre personalidades históricas e a sociedade em que viveram

Reprodução Sesc Avenida Paulista.
Reprodução Sesc Avenida Paulista.

A exposição A Magia do Manuscrito – Coleção de Pedro Corrêa do Lago, em cartaz no Sesc Avenida Paulista, traz ao público brasileiro aproximadamente 180 documentos manuscritos de figuras de destaque da arte, da política, da ciência e da história. São cartas, fotografias assinadas, partituras e bilhetes de personalidades como Juscelino Kubistcheck, Carmen Miranda, Freud e Ronaldo Fenômeno, entre outros grandes nomes.

A curadoria é do próprio colecionador, o economista e ex-diretor da Biblioteca Nacional, Pedro Corrêa do Lago. Seu hábito de colecionar começou quando ainda era pequeno, “como um simples hobby, e o que eu colecionava eram simples assinaturas, que são os chamados autógrafos, mas autógrafo é uma palavra muito mais ampla que significa qualquer coisa escrita na sua própria letra, só que virou sinônimo praticamente de assinatura e não tem mais como mudar isso, então eu uso a palavra manuscrito… na verdade muitas das coisas que estão [na exposição, não são autógrafos], a exemplo de uma página do [Oscar] Niemeyer que não está assinada, mas é muito mais interessante do que uma simples assinatura dele no papel”.

Mesmo depois de 50 anos colecionando, Pedro afirma que sua curiosidade continua muito acesa: “O grande prazer da minha vida foi a aquisição do conhecimento, sob todas as formas. Eu tive a sorte de ter um trabalho que me fazia viajar muito, o fato do meu pai ter me levado nos postos dele como diplomata para viver em outros países quando eu era garoto me ensinou diferentes línguas, culturas e isso abriu muito os horizontes”. A coleção de manuscritos pode ser dividida em seis áreas, a história, a literatura, a música, a ciência, o entretenimento e a arte – “fico fascinado pelas cartas dos pintores, sobretudo quando é uma troca entre um e o outro, o Monet escrevendo pro Manet, por exemplo”. E, na ambição de cobrir todas, a coleção torna-se abrangente e, praticamente, panorâmica de todos esses setores, sobretudo no mundo ocidental e desde 1500, como destaca o colecionador, embora faça a ressalva que “esses documentos são patrimônio da humanidade, estão na minha posse temporária, aprecio muito tê-los, mas eu tenho uma obrigação com relação a eles. A primeira obrigação é conservá-los, a segunda obrigação é divulgá-los” – os documentos da coleção Corrêa do Lago são, não raramente, emprestados a instituições e pesquisadores, seguindo tal mote de compartilhar o conhecimento histórico que eles guardam.

Já em relação à conservação, Pedro observa algo que pode surpreender: “A maior parte desses documentos é mais forte do que a gente imagina; muitos deles estão escritos em papel de trapo que é um papel que era usado até o século XIX, que é muito mais resistente e vai continuar branco daqui a mil anos quando o papel que a gente usa hoje já tiver virado pó”. Ele aponta ainda que os grandes inimigos na conservação de tais documentos são o fogo e a umidade: “Essas peças são conservadas em arquivos à prova de fogo, seu entorno pode queimar a mil graus durante uma hora que o interior [da estrutura] não fica danificado e protege também da água que os bombeiros vão jogar para apagar esse fogo”, e brinca, “[mas] eu nunca testei, graças a Deus”. Quando expostos, no entanto, outro desafio à conservação dessas peças está, na verdade, relacionado ao que está escrito nelas, mais especificamente sua tinta, neste ponto Pedro comenta que “alguns [documentos] vão permanecer iguais, mas a maioria é sensível e pode desbotar, então eu sou muito contrário, por exemplo, a você emoldurar documentos a não ser que você os mantenha em lugares muito protegidos da luz”.

Andy Warhol (1928-1987) | Jean-Michel Basquiat (1960-1988); Josephine Baker (1906-1975; e Touro Sentado (1831-1890). Reprodução Sesc Avenida Paulista.
Andy Warhol (1928-1987) | Jean-Michel Basquiat (1960-1988); Josephine Baker (1906-1975; e Touro Sentado (1831-1890). Reprodução Sesc Avenida Paulista.

Entre descobertas e curiosidades históricas, a exposição fornece um olhar sobre a mudança dos costumes e também da sociedade em maior escala. Em meio a tantas cartas de figuras notórias é impossível não refletir sobre a transformação da comunicação nas últimas décadas. “As cartas estão fisicamente desaparecendo, mas a comunicação escrita talvez esteja até mais intensa. É claro através de e-mails, através das mensagens, mas eu tenho a impressão que a minha geração escrevia menos do que a atual”, observa Pedro, “só que a carta era a única opção possível [de comunicação] com uma pessoa distante, foi aliás por isso que os correios se desenvolveram tanto, porque elas eram fundamentais, inclusive para o comércio. Eu confesso que sou de uma geração que ainda escrevia cartas, de vez em quando uma pessoa me apresenta uma carta que escrevi há 40 anos, é uma coisa até engraçada… Isso mudou, realmente, a carta, o correio, a coisa de você escrever a mão e ir pro correio colocar, isso está se perdendo, mas, no fundo, o que não se perde é a mensagem”.

A mensagem, em alguns casos desses manuscritos, pode nunca ter visto a luz do dia antes. Desta forma, elas acabam revelando constantemente, segundo o curador, coisas admiráveis e deploráveis sobre seus autores. “Todas as grandes figuras tem momentos que nós preferimos que não tivessem ocorrido, e elas próprias, muitas vezes, lamentam essas fases… O maior erro é você julgar o que é dito em determinado contexto com a visão de hoje”.

Infelizmente, para A Magia do Manuscrito não foi possível realizar a transcrição completa dessas relíquias, mas parte da coleção foi transcrita quando de sua exposição na Morgan Library & Museum de Nova York, em 2018; embora a seleção de peças seja ligeiramente diferente – considerando sua adaptação e costura para o público brasileiro – o catálogo resultante da mostra de 2018 foi publicado pela editora alemã Taschen, traduzido para o português e pode ser conferido no Sesc Avenida Paulista. Ao comparar as duas ocasiões, Pedro exprime que a oportunidade de apresentar a coleção no Sesc foi “extremamente estimulante”, principalmente no que concerne essa nova seleção, feita junto com a equipe da instituição, para que não faltassem nomes que pudessem tocar mais o público atual, “tudo isso mostra que essa coleção está sempre em movimento, a própria apreciação do que é importante na cultura e na história está mudando constantemente”.

SERVIÇO

A Magia do Manuscrito
Coleção de Pedro Corrêa do Lago
Sesc Avenida Paulista – Avenida Paulista, 119 – Arte I (5° andar)
GRÁTIS – Livre

Visitação:

28/9/2022 a 15/1/2023
Terça a sexta, das 10h às 21h30
Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30

Jonathas de Andrade e a ambiguidade dos encontros

Caravana Museu do Homem do Nordeste, de Jonathas de Andrade, na exposição "O rebote do bote"
Em 2020, Jonathas de Andrade fez uma caravana pelo interior de Pernambuco pra itinerar com alguns trabalhos. Nessa viagem, o "Museu do Homem do Nordeste" foi transformado em peça interativa, para que as pessoas construissem os seus museus. Hoje esse projeto deságua na "Caravana Museu do Homem Nordeste", que "enquanto móbile traz esse movimento constante de equilíbrio e desequilíbrio, nesse lugar de uma disputa entre individual e coletivo na configuração dos imaginários", diz Ana Maria Maia. Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo

Um convite para representar o Brasil na Bienal de Veneza, a montagem de uma exposição panorâmica de grande porte na Pinacoteca de São Paulo — uma das mais importantes instituições de arte do País — e os 40 anos completos. Tudo isso, em meio a um Brasil fervilhante de eleições e efemérides históricas. 2022 se apresenta de forma emblemática para Jonathas de Andrade. 

Quem visita a Pinacoteca Estação, em São Paulo, tem a oportunidade de conhecer um pouco de seus 15 anos de trajetória artística. O rebote do bote, em cartaz até fevereiro de 2023, reúne 20 das 40 obras produzidas pelo alagoano durante sua carreira, e vai desde seus primeiros trabalhos — Amor e felicidade no casamento (2008) e Recenseamento moral do Recife (2008) — até uma obra inédita, comissionada para a mostra — Decalque Estilhaço (2022), primeiro exercício de autorrepresentação do artista, que sempre se dispôs a mostrar a figura do outro e do coletivo. A expografia, porém, propõe um olhar não cronológico, colocando lado a lado projetos de diferentes períodos, mas que travam entre si diálogos e conflitos. Assim, convida o público a refletir sobre os conceitos, dinâmicas e dispositivos que permeiam essa trajetória artística. 

A curadoria de Ana Maria Maia busca, mais do que um enfoque nas obras em si, um olhar para a política das relações que as envolve: “ou seja, o que extrapola as imagens, que por vezes está nos bastidores ou nas sutilezas delas, que diz respeito ao modo dele trabalhar. As abordagens que ele faz, as pessoas com que ele trabalha como colaboradores, como modelos e como fornecedores. Essa espécie de performance oculta, esse jogo de corpos que ocupam certos lugares, para mim é o que existe de mais importante no trabalho do Jonathas”, afirma Maia, que acompanha o artista desde a faculdade de jornalismo, que cursaram juntos no Recife nos anos 2000. 

Jonathas de Andrade faz coro: “Olhar pra minha história não é olhar pra história desse autor antigo, que pega a pena e escreve; é uma autoria muito tramada pelo outro”. E completa: “Diante das pautas do hoje, passei a entender que não é falar pelo outro, mas é falar com o outro. Isso que é saboroso, inspirador e desafiador pra mim. É reconhecer a potência da resistência, que é tão múltipla, tão potente, e entender como é que isso de algum jeito me inspira e explicita minhas próprias questões, contradições, privilégios e fragilidades”.

A individual compõe uma programação voltada a revisões históricas na Pinacoteca, ao lado de Ayrson Heráclito: Yorùbáiano, Atos Modernos, Enciclopédia Negra etc. “Achamos que ele era um bom intérprete e um bom aliado nesse gesto de escovar as histórias brasileiras a contrapelo”, diz Ana Maria Maia, atualmente curadora-chefe da instituição. “É um artista com muito fôlego para discutirmos História. Chega trazendo esse aporte de um cara que se arrisca a mexer num vespeiro de narrativas hegemônicas, que são racistas e violentas, que exercem violências de gênero, de raça, de classe.”

À frente, "Museu do Homem do Nordeste", de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
À frente, “Museu do Homem do Nordeste”, de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
A ambiguidade como palco do mundo

Ao construir um museu dedicado ao homem nordestino, em 2013, Jonathas já dialogava com essa leitura da curadora. Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste retrata 77 trabalhadores da região. Ao fazer referência à instituição criada por Gilberto Freyre em 1979, a obra dá palco às convenções e estereótipos sobre a identidade do nordestino — atrelada à virilidade e ao trabalho braçal —, propõe um olhar às dinâmicas sexistas — ao que faz o uso da palavra ‘homem’ como humanidade, mas, simultaneamente, transforma o trabalho “num museu do homem, do macho e do homoerotismo”, explica Maia — e provoca o público da arte contemporânea a repensar questões de desigualdade social. “Esse trabalho é feito para desestabilizar e constranger, justamente porque é magnético. As imagens são, de fato, muito intensas e problemáticas, falam o quanto a gente não olha para aquelas pessoas”, completa Andrade. A obra, hoje exposta no acervo da Pinacoteca, tem um desdobramento em O rebote do bote: a Caravana Museu do Homem do Nordeste, que estende as reflexões do projeto original a partir da interação com outras pessoas.

Ambas as obras trazem um ponto central do trabalho do alagoano: a ambiguidade. “Assim como a vida, os projetos não precisam ser sobre uma coisa só, são estilhaços de possibilidades e de tensões. São sobre afeto-amor, mas também carregam diferenças, estranhamentos, que são partes das relações humanas”, compartilha. E complementa: “Acredito que é importante que a ambiguidade seja um tempero nos trabalhos, para que as obras possam requisitar de quem vê, do próprio repertório da pessoa, para que ela, então entenda o que vê com amor ou violência, como certo ou errado. Acho que esse meio termo tem um potencial pedagógico e de debate gigante.”

O rebote do bote explicita ainda mais essa proposta ao que a extrapola para a expografia. Um exemplo é a proximidade entre a Caravana do Museu do Homem do Nordeste e A Batalha de Tejucupapo — obra baseada em um episódio histórico de expulsão dos holandeses por uma comunidade de mulheres na Zona da Mata de Pernambuco, usando seus utensílios domésticos. “É uma história de protagonismo feminino e, até hoje, um conjunto de mulheres que mora nessa cidade encena a batalha, um pouco para deixar vivo esse legado de luta das mulheres da região. A proximidade dos trabalhos tensiona essa narrativa dedicada ao universo masculino”, explica Ana Maria Maia.

Ao propor essas desestabilizações, nas obras e na expografia, o trabalho de Jonathas de Andrade busca expor questões pungentes da realidade brasileira. “Os projetos não têm a intenção de reescrever a história totalmente, mas de revirar ela ao avesso, problematizá-la, dar palco às suas contradições”, diz o artista. 

O risco do flerte

Esse olhar para a história tem uma tônica particular: as relações pessoais. A ambiguidade que o artista propõe em suas obras se dá no âmbito dos encontros. 

Por um lado, pode-se pensar no contato com o público. “Estou convidando-o a completar e brincar com o que a obra está propondo. É muito saboroso, porque tem uma capoeira aí, é dança e luta ao mesmo tempo. Completar aquilo depende muito do outro, é só a interação que define”, diz o artista. Talvez o maior exemplo nesse sentido seja O peixe, também presente em O rebote do bote. O vídeo mistura documentário e ficção ao retratar pescadores em seu labor diário, mas propondo que eles abracem o peixe até a morte do animal. “Você tem o carinho e a violência”, explica o artista. A depender de quem e como assiste, é possível um efeito distinto do trabalho: “a pessoa pode rejeitar o assunto, bem como ficar completamente inebriado pela paixão que a imagem evoca”.  

As relações pessoais também estão presentes na construção dos projetos, ao pensarmos nos corpos que os compõem. Esses encontros carregam suas ambíguidades, trazem uma série de tensões e desconfortos.“No próprio processo de concepção e criação, esses trabalhos trazem mil questões, que é o que me faz de fato crescer. Então não é sobre ser questionado ou não, é sobre como essas estruturas são vivas o suficiente pra me desafiar a me reelaborar, a me confirmar ou reinventar nos processos”, explica o artista. 

Questões essas das quais somos lembrados ao andar na exposição da Pinacoteca Estação e ler, numa porta no canto da última sala: “Departamento de ética e culpabilidade”. “Foi muito bonito revisitar o Departamento de ética e culpabilidade, entender que nele tem um processo de aprendizado e o impulso do Jonathas de voltar a tomar seu assento como indivíduo. Isso envolve negociar a aparição da sua própria imagem. Isso envolve entender e cuidar tanto da formulação de trabalhos, quanto da formulação dos seus mecanismos de crédito, de repartição de lucros. Entender a dimensão ética para um artista com visibilidade e que fala dessas feridas coloniais, desde um lugar de homem que nunca se racializou e que sempre teve privilégio socioeconômicos, e também tem a ver com delimitar muito bem o seu lugar como aliado e os seus limites”, diz a curadora Ana Maria Maia. 

Para Andrade, a retrospectiva ajuda a compreender como os trabalhos ganham tempo histórico, como a percepção deles vai mudando no passar dos anos, ao que novas discussões sobre o decolonial, o lugar de fala e o olhar antropológico se travam. Assim, os trabalhos parecem ganhar uma nova camada de ambiguidades, ao que dão palco às próprias tensões de seus processos e permitem repensar as dinâmicas do mundo das artes no hoje, criar repertório para esses debates, em especial quando pensamos na relação do artista que retrata o outro e o coletivo.

“O rebote do bote tem a ver com essa dimensão das consequências, do desejo pelo outro, do desejo de abocanhar aquele outro desejo, que é da ordem de um apetite sexual, mas também de aprendizado, de convívio, de revisão histórica”, declara Maia. 

“A arte é esse organismo vivo, e eu quero me desafiar a ser esse organismo vivo também. É um desafio gigante, porque a gente cria, mas também reproduz muita coisa. A gente tem consciência e às vezes não tem. Então, o desafio é que a arte me coloque a ser uma célula viva, em transformação o tempo todo”, completa o artista.

O artista entra em cena

Com essas questões, chegamos à última sala de O rebote do bote, com a primeira autorrepresentação dessa trajetória, Decalque estilhaço. A obra põe Jonathas de Andrade em foco.

Nascido em Maceió, Alagoas, o jovem cursou anos de Direito em Florianópolis, Santa Catarina. Foi durante a graduação que se envolveu mais intensamente com os movimentos sociais e com temáticas que até hoje traz em seu trabalho. “Entendi um Sul muito intenso socialmente, uma relação muito europeia e conservadora. Foi um momento que me senti muito nordestino, uma experiência que ainda não tinha experimentado sendo um jovem classe média em Maceió. Foi uma hora de tomada de consciência de corpo.” Andrade, então, decide trocar de área, tranca o curso e se matricula na Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco. É nesse momento que conhece Ana Maria Maia – na época também estudante e hoje curadora de sua individual -, passa a fotografar exposições de arte e monta, como trabalho de conclusão de curso, sua primeira exposição individual – Amor e felicidade no casamento.

Na sequência, tem seu portfólio lido pelo curador Eduardo Brandão e é convidado a montar uma exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. Através de Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo, faz uma exposição no Banco Real do Recife. A partir desses encontros, outros se travam, Andrade viaja pela América do Sul, se une ao coletivo Dois Pontos, participa de sua primeira bienal – do Mercosul – e posteriormente da Bienal de São Paulo, curada por Moacir dos Santos, com assistência de Ana Maria Maia.

Através desses encontros ao longo da vida, cruza saberes e perspectivas. Descobre seus caminhos profissionais no diálogo entre pessoas, linguages artísticas e campos de conhecimento. “Uma série de coisas que podiam ser pra nada, mas que a arte amarrou. Então devo muito a esses encontros, e devo honrar esses encontros”, completa o artista.  

“Desvairar 22” convida o público a um exercício de imaginação histórica

Vista da exposição DESVAIRAR 22
Vista da exposição "Desvairar 22", com sarcófago em primeiro plano. Foto: Ricardo Ferreira

“Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô. Mas que calor ô ô ô ô ô ô. Atravessamos o deserto do Saara. O sol estava quente. Queimou a nossa cara”. É com a famosa marchinha de carnaval que o público tem seu primeiro contato com Desvairar 22, exposição em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Com curadoria de Marta Mestre, Verônica Stigger e Eduardo Sterzi, a mostra faz um convite à imaginação a partir de quatro marcos de 1922: a Semana de Arte Moderna, o centenário da Independência do Brasil, a primeira transmissão de rádio no País e a descoberta da tumba de Tutancâmon, no Egito.

Mais de 270 itens – entre pinturas, fotografias, livros, excertos literários, vídeos, músicas e um carro alegórico da Grande Rio – nos conduzem pela coletiva, que transita entre fatos e ficção, literal e poético, costurando as efemérides. “Desvairar 22 é um grande convite a colocar a imaginação como um fio condutor dessa relação com o modernismo brasileiro”, diz Verônica Stigger, ao que Eduardo Sterzi dá continuidade: “É em alguma medida invocar a imaginação modernista para se transportar um pouco para aquele tempo”. Stigger completa: “Daí acho também que vem o nome da mostra, é um convite pra que o espectador também desvaire junto conosco esses anos de 1922 e 2022.”

A arte!brasileiros vistou a exposição e conversou com dois de seus curadores, Eduardo Sterzi – escritor, crítico literário e professor de Teoria Literária – e Verônica Stigger – escritora e professora universitária. Confira:

A mostra se organiza em quatro núcleos: Saudades do Egito, Os ossos do mundo, Meios de transporte e Índios errantes. Em Saudades do Egito estão obras de Abdias Nascimento e Tarsila do Amaral (que passou lua de mel no Egito com Oswald de Andrade), projetos “faraônicos” registrados por Marcel Gautherot, fotos de viagem de D. Pedro II ao país africano e um sarcófago original.

A seção Os ossos do mundo é inspirada no livro homônimo de Flávio de Carvalho. Para o modernista, as ruínas e coleções dos museus possibilitam compreender as várias camadas da História, nos ajudando a compreender não apenas o passado, mas o presente e o futuro. “O passado interessa, sobretudo, enquanto imagem a ser ativada no presente. Essa ativação, segundo Flávio, cabe ao ‘arqueólogo malcomportado’, que, ao contrário do ‘bem-comportado’, apreende ‘a força penetrante da elaboração poética’ naquilo que resta: os resíduos, as inscrições, as ruínas”, explica o texto de parede, dando tom ao núcleo.

Meios de transporte, por sua vez, transita entre o real e o poético. “Usamos a noção meios de transporte literal, mas também usamos a ideia no sentido metafórico: como a arte e a poesia são meios de transporte também. Nós entramos nelas e nos transportamos pra outros lugares, pra outros tempos e outras formas de pensar”.

Em Índios errantes, entre diversas variações de Iracema, destacam-se obras de Denilson Baniwa, Anna Maria Maiolino, Carybé, Hélio Oiticica, Lygia Pape e Paulo Nazareth. Sterzi explica que nesta seção, a curadoria buscou “fazer um percurso pelo qual a gente primeiro apresenta essas imagens de povos indígenas tal como figuradas pelos modernistas, mas a gente traz também artistas indígenas. A gente propõe em alguma medida que num determinado momento foi preciso que alguns artistas imaginassem essa presença pra que ela pudesse se fazer efetiva em um país que é racista e excludente. Em alguma medida para que as coisas existam na realidade, é preciso que primeiro elas existam na imaginação. O espaço imaginário abre um espaço político”.

Desvairar 22 fica em cartaz até 15 de janeiro de 2023 no Sesc Pinheiros. As visitas ocorrem de forma gratuita, de terça a sábado, das 10h30 às 20h30; e aos domingos, das 10h30 às 18h.

Arjan Martins: “Colecionismo negro é quase uma intenção utópica de público alvo para mim”

O pintor fluminense Arjan Martins, em seu ateliê no Rio de Janeiro. Foto: Pepe Schettino
O pintor fluminense Arjan Martins, em seu ateliê no Rio de Janeiro (s/d). Foto: Pepe Schettino

O recente (e crescente) sucesso de artistas negros no Brasil e no mundo tem levado o pintor Arjan Martins, 62, a uma ponderação. Para ele, a nova geração “ganhou muito dinheiro precocemente”, mas ainda precisa pensar seu projeto artístico e fazer uma reflexão sobre “as grandes galerias, os fortes braços do mercado”. Vencedor do Prêmio PIPA em 2018, objeto de um livro sobre sua trajetória, lançado pela Cobogó, no ano passado, Arjan acumula ainda em seu percurso artístico participações em bienais (São Paulo, Dakar e Mercosul, entre outras), celebra 20 anos de carreira em 2022 – sua primeira individual, em 2002, no Museu da República, é o marco zero – e vem colocando, para si a mesmo, pergunta que faz agora, em entrevista à arte!brasileiros, a seus jovens pares:

“Vocês não gostariam que sua produção migrasse para um colecionismo igualmente negro? E isso levanta outra questão: será que já criamos um colecionismo negro? Temos grandes colecionadores negros no Brasil, colecionando artistas negros?”, indaga. “Vi que minha produção foi muito bem acolhida em Nova York e outros lugares nos EUA. E, para minha surpresa, eu a vi chegando a outras camadas sociais, a afro-americanos, colecionadores. Isso é genial. Quando vamos vislumbrar um afro-colecionismo brasileiro? Isso é quase uma intenção utópica de público alvo para mim.”

Representado desde 2016 por A Gentil Carioca, Arjan está em cartaz na filial paulistana da galeria até sábado (12/11), com obras inéditas, na individual Hemisfério 1. Na capital fluminense, o pintor está presente em três outras exposições: até 22 de janeiro, no Museu de Arte do Rio (MAR), ele é um dos artistas selecionados para a itinerância da 34ª Bienal de São Paulo, com o trabalho Complexo Atlântico (Oceano), que já havia apresentando na própria mostra paulistana, em 2021. Já no Centro Cultural da PGE-RJ, Arjan participa da coletiva Passado Presente: 200 Anos Depois; e no MAM Rio tem uma de suas obras expostas em Atos de Revolta: outros imaginários sobre independência, em cartaz até 26 de fevereiro de 2023.

A partir de 19 de novembro, pela segunda vez, Arjan marcará presença em Inhotim, para onde levou, em maio, sua Instalação de Birutas (2021), no contexto do programa Acervo em Movimento. Desta vez, ele levará a Brumadinho um trabalho de 2019, a ser exibido na Galeria Lago, dentro da exposição Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, fruto da parceria do instituto mineiro com o Ipeafro. Juntas, as duas instituições vêm pesquisando a obra do artista e ativista Abdias Nascimento.

Diferentemente de seus jovens pares, Arjan não viu nada acontecer “precocemente”. Nascido em Mesquita, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Argentino Mauro Martins Manoel fez o ensino básico na Federação Nacional das Associações de Benefícios (Fenaben) e na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem), atual Fundação Casa. Fosse em casa – criado pela mãe, após perder o pai com apenas 2 anos – ou naquelas instituições, ele não tinha qualquer contato com arte, tampouco se sentia inclinado para o ofício, como costumam relatar muitos de seus colegas.

Arjan começou a trabalhar ainda adolescente. Foi barman, office-boy, assistente de pedreiro. Na passagem para a vida adulta, conta o pintor, ele começou a frequentar, apenas como ouvinte, algumas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, que se tornou um “ponto de interesse, de escuta” para ele. Era a segunda metade dos anos 1980 e, em 1990, Arjan iniciou alguns cursos na EAV, agora pagos, com a venda de pães que fabricava em casa.

“Fui parar lá [na EAV] com certa naturalidade, por assim dizer. Quando ainda era viva, minha mãe me apresentou fotografias em que estávamos minha irmã, uma prima e eu, subindo a rampinha do Parque Lage. Eu teria ficado muito feliz se esta imagem pudesse ter sido a capa do livro [Arjan Martins, organizado por Paulo Miyada] publicado em 2021 pela Cobogó, até porque, ela detecta já ali uma convivência com este outro Rio de Janeiro, que é uma cidade multipartida”, conta.

Ainda a propósito do Rio, o pintor se lembra de um amigo, nascido em Marechal Hermes (bairro da Zona Norte carioca), que já vive há alguns anos em Nova York, mas que atravessou o Túnel Rebouças para a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, somente aos 17 anos. “Foi ali que ele, como eu no Parque Lage, viu outro Rio de Janeiro. Ele entendeu que havia outro país dentro de uma cidade”, pondera.

As primeiras experiências de Arjan como artista tiveram início em coletivos, “fazendo intervenções na arquitetura de alguns lugares, práticas bem livres com o desenho, como fazer sulcos numa parede”, conta. Ao mesmo, ele passou a visitar exposições com mais frequência.

“Ainda tinha um olhar distanciado, ao mesmo tempo fazia um contato mais pungente com a arte, com as provações que dali surgiam, as fricções. Surgia também aí uma necessidade de, como jovem artista, encontrar um repertório próprio e compartilhá-lo com os pares. Alguns dispositivos recorrentes em minha obra, como uma rosa dos ventos, a simulação dos planisférios e, a partir daí, um mergulho na busca por um Brasil além da história oficial.”

Entre os anos 1990 e o início da década seguinte, participou de coletivas diversas, entre o Rio de Janeiro, sobretudo, e São Paulo. Sua primeira individual, intitulada Desenhos, aconteceu em 2002, no Museu da República. Ainda no Parque Lage, afirma ter ouvido, “de algumas vozes”, que a pintura havia acabado. “Era algo muito duro para um jovem estudante, pesquisador, porque eu não entendia muito bem essa informação. Foi aí que eu quis apostar ainda mais na pintura, eu revalidei a experiência pictórica. É difícil? Ótimo, adoro o difícil. Essas definições são ditaduras provisórias”, diz.

Porém, de alguns professores da EAV – Fernando Cocchiarale, Elizabeth Jobim e Paulo Sérgio Duarte – afirma ter conseguido “uma honrosa atenção sobre sua pesquisa”. Eles incentivaram o artista a fazer uma individual no MAM Rio, ideia abraçada anos depois pelo então curador do museu carioca, Luiz Camillo Osorio. Nascia Américas, realizada em 2014, com curadoria de Duarte, que à época escreveu que o tema da exposição era “o da alteridade, o da solidariedade étnica”. Ali, já apareciam elementos que viriam a ser recorrentes em sua produção, como caravelas, rosas dos ventos e a cartografia, entre outros, alusões a questões caras ao artista, como migração e escravidão.

A propósito de Américas, as experiências que Arjan fizera antes com estruturas anatômicas o ajudaram a “migrar para a representação do corpo negro”. O pintor conta que encontrou, num sebo, fotos em preto e branco, “provavelmente da década de 40, de pessoas anônimas, senhoras numa beira de estrada, vendendo frutas numa bacia”. Ele afirma que aquelas pessoas “muito se assemelhavam a parentes antigos, ancestrais, traziam uma atmosfera boa ao lugar”. E lembra:

“Foi aí que tive um insight de colocar aquelas senhoras nas telas. Pensei que estava a fim de falar daquele corpo, descoberto num antiquário, que não traz a sua identidade, e tampouco a do fotógrafo. Eu aceitei a individualidade deles, o anonimato, e daí começou a surgir a ideia de uma figuração que não é figurada. Não vai para o hiper-realismo, vai tender sempre para uma abstração, a friccionar a experiência da figura. Uma experiência de pintura em que podemos falar de Francis Bacon, Willem de Kooning e outros autores cuja abordagem da figuração é a partir de outro lugar, evita certas convenções”, explica.

Mais recentemente, conta o pintor, ele buscou interpretações distintas sobre a construção do retrato. No ano passado, na mostra Descompasso Atlântico, n’A Gentil Carioca do Rio, ele diz que buscou “passar algo histórico”, nas representações de João Cândido (o Almirante Negro), e de Luiza Mahin, líder da Revolta dos Malês (1835), na Bahia. “Foram obras em que trouxe uma exaltação quase classicista, respeitosa, às duas figuras. Deixando claramente definidos quem eram os personagens”, diz.

Já na exposição Enciclopédia Negra, que aconteceu também em 2021, na Pinacoteca, em São Paulo, Arjan foi convidado para retratar Zumbi dos Palmares. “Mas aí eu abstraí sua figura. Nunca tive de perto um retrato preciso da figura dele. Portanto, isso me deixou um pouco confortável para poder abstrair. Claro que ela pode ser bem entendida ou criar um ruído visual na retina de algumas pessoas, mas estava sinceramente ali uma ideia de desfiguração, em que se reconhece ele, respeitando um ícone histórico.”

Quanto às cartografias, explica o pintor, vieram da necessidade de olhar para o Brasil e entender de que perspectiva ele é visto historicamente. “Eu, quando jovem artista, não via ninguém arriscando esse lugar. Logo vi que iriam transbordar dali muitos problemas, muitas questões. Isso foi naturalmente sendo incorporado em algumas obras, um olhar que não perde contexto histórico, mas, ao mesmo tempo, uma agenda ligada ao presente, que não é o lugar do coitadismo, é outra proposta. O Atlântico ainda está bastante desajustado e complexo, e é uma fonte preciosa de conteúdos para minha prática.”

Com obras presentes nos acervos do MAM Rio e da Pinacoteca, Arjan se prepara agora para participar de mais uma edição da feira Art Basel Miami, nos EUA, onde apresentará a obra Isto aqui é o Capricórnio. Ele afirma que é “interessante” ser um artista ser reconhecido, mas “também quitar seus boletos”. Sente-se um artista já consagrado? “São muitas variáveis que devem ser equacionadas. Meu perfil, acredito, foi o último: preto, hétero, essencialmente pintor. Foi uma múltipla vitória. E, apesar de ser um pintor hétero, meu trabalho está tratando de gênero também, todo o tempo. Embora minha pesquisa, ainda hoje, tente evitar qualquer resquício de sectarismo”, conclui.

Após veto, Ipiranga alega que aguarda ‘ação educativa’ para lançar HQ crítica ao Brasil atual

Trecho da HQ "Contra Tempo – Uma Viagem de Duzentos Anos", obra produzida pelo Instituto Ciência na Rua. Crédito: Reprodução
Trecho da HQ "Contra Tempo – Uma Viagem de Duzentos Anos", obra produzida pelo Instituto Ciência na Rua. Crédito: Reprodução

A HQ Contra tempo – uma viagem de duzentos anos, uma distopia em forma de quadrinhos, projeto que questiona a visão cristalizada em torno da Independência do Brasil – cujo bicentenário é celebrado neste ano –, acabou tornando-se foco de debate esta semana, quando a Folha de S.Paulo revelou que a distribuição da revista no recém-inaugurado Museu Paulista havia sido desautorizada pelo conselho da instituição. A interdição vai na contramão da estratégia do museu de privilegiar a memória social, problematizando uma visão congelada e oficialista da história. E revela muito de nosso frágil momento político.

A instituição garante que não houve veto, mas que julgou melhor postergar uma eventual distribuição, vinculando-a a uma estratégia planejada de divulgação. “Pedimos apenas que a sua distribuição ocorresse com mediadores, dentro do contexto de uma ação educativa, para que fosse possível propor um debate sobre as questões apresentadas na obra”, afirma a comunicação do museu. O fato é que a linguagem direta do material assustou. Sobretudo no que se refere aos desenhos, que mostram a personagem principal inserida num cenário sombrio, que tem muito a ver com a realidade do Brasil atual, com referências a ruas renomeadas em homenagem a torturadores, propaganda de armas e à presença massiva de igrejas neopentecostais nas periferias das cidades.

A revista começou a ser idealizada ainda em 2020 pelo instituto Ciência na Rua, projeto de jornalismo sem fins lucrativos, voltado para o público jovem. O intuito era aproveitar a efeméride para oferecer uma narrativa diferente acerca do processo de independência, conta Mariluce Moura, diretora da associação, que tem por objetivo atingir os alunos de escola pública e conseguiu apoio do SBPC para imprimir a história em quadrinhos. Segundo ela, o museu parecia ser um lugar natural de distribuição. Com autoria coletiva de Ana Cardoso, Hyna Crimson, Igor Marques e João Paulo Pimenta, a revista trata de questões importantes, como a participação popular em diversos movimentos emancipatórios, e enfatiza uma visão da independência como um “processo histórico sem heróis”, impulsionada pela luta de brasileiros anônimos.

Excesso de zelo ou receio de retaliação em um período delicado como o atual? Difícil saber. De qualquer forma, a revista segue à disposição dos interessados em sua versão digital e lançamentos do material impresso também vêm sendo planejados Brasil afora, como o que ocorreu no último dia 21, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com palestra e distribuição do material.

Pivô tem chamada aberta para residências artísticas

Ateliê Aberto no Pivô Pesquisa 2020
Ateliê Aberto Pivô Pesquisa 2019 - Ciclo III. Foto: Julia Thompson

Compreendendo a arte como um campo formado por múltiplas linguagens e saberes, o Pivô Pesquisa aposta num formato transdisciplinar de residência em sua edição 2023. Para isso, abre-se à participação de artistas, curadores, pesquisadores, educadores, críticos, escritores, gestores, editores e outros agentes da arte.

Serão oferecidos dois ciclos, para os quais será possível aplicar para uma estância de curta (três meses) ou longa duração (cinco meses), e dois ateliês do Pivô Pesquisa serão abertos para uma ocupação anual – que inclui a participação nas diversas atividades que integram o programa e a utilização do espaço individual de ateliê durante a realização da residência. Confira as datas e editais específicos:

Ciclo I
Residência de longa duração: 1 de março a 19 de julho de 2023
Residência de curta duração: 27 de março a 25 de junho de 2023
Acesse o edital clicando aqui

Ciclo II
Residência de longa duração: 27 de julho a 13 de dezembro de 2023
Residência de curta duração: 14 de agosto a 12 de novembro de 2023
Acesse o edital clicando aqui

Residência anual
1 de março a 13 de dezembro de 2023
Acesse o edital clicando aqui

Estão previstas na programação atividades públicas e educativas, que compreendem aula inaugural com convidados, conversas e orientações individuais com interlocutores, debates, workshops e encontros mensais, além de acompanhamento curatorial permanente.

As residências dos ciclo I e II são gratuitas e serão oferecidas bolsas-auxílio aos participantes, no valor de R$ 1.300 mensais. Todas as pessoas selecionadas para residência terão acesso a um espaço individual de trabalho de 24m² ou 32m², à biblioteca e ao arquivo do Pivô e a atividades diversas propostas pelo programa – como acompanhamento curatorial, master class com convidado, conversas individuais com interlocutores convidados, práticas e oficinas em grupo, entre outras. A residência anual, por sua vez, tem uma mensalidade de R$ 1.500.

As inscrições ficam abertas até às 16 horas do dia 6 de novembro e são feitas diretamente no site do Pivô.

Trauma e reparação

Hélio Campos Mello, Parque de la Memoria - Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado, Buenos Aires, Argentina
Hélio Campos Mello, Parque de la Memoria - Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado, Buenos Aires, Argentina

A seguir, reproduzimos dois textos extraídos do livro Travessia do Silêncio, Testemunho e Reparação (2015), publicado pela Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos, em São Paulo, sob a coordenação do Dr. Moisés Rodrigues da Silva Júnior e de Issa Fernando Sarraf Mercadante.

PROJETO CLÍNICAS DO TESTEMUNHO DA COMISSÃO DE ANISTIA

Por Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia

Projeto Clínicas do Testemunho é uma nova etapa do programa de reparações da Comissão de Anistia; busca, por meio de Chamada Pública, selecionar projetos da sociedade civil para fomentar a implantação de núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados por violência de Estado a que se refere a Lei n. 10.559/2002. Os reflexos da violência do Estado praticada no período da repressão se perpetuam no psíquico das vítimas mesmo com o passar dos anos, e a falta de uma política pública no sentido de reparar essas violações reforçam a negação do Estado em reconhecer os erros cometidos por seus agentes, e contribuem para uma não reparação plena. O atendimento clínico às vítimas dos danos produzidos pela violência do Estado brasileiro é necessário para que se busque a reparação plena. Uma reparação apenas nos campos financeiro e moral deixa uma fissura no campo psicológico que precisa ser estudada e erradicada por meio de uma política pública de qualidade. O Estado tem a obrigação de prestar apoio psicológico aos cidadãos atingidos por graves violações dos direitos humanos.

É nesse contexto que surge o Projeto Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia, que tem por objetivo a implementação de núcleos de apoio e atenção às vítimas e testemunhas, nos quais o atendido poderá trocar experiências com seus pares, por meio de escutas realizadas por equipe com conhecimento específico, através de metodologia apropriada para estas modalidades de traumas advindos da violência do Estado.

[…] Assim, a Comissão de Anistia amplia e dá efetividade às políticas públicas de reparação do Estado brasileiro, e permite que a sociedade conheça o passado e dele extraia lições para o futuro, reiterando a premissa de que apenas conhecendo o arbítrio estatal do passado podemos evitar sua repetição no futuro, fazendo da anistia política um caminho para a reflexão crítica, para o aprofundamento democrático e para o resgate da confiança pública dos cidadãos com relação às instituições estatais. O Projeto investe em olhares plurais, selecionando iniciativas por meio de edital público, garantindo igual possibilidade de acesso a todos, e evitando que uma única visão de mundo imponha-se como hegemônica ante as demais ou uma única metodologia se imponha no campo epistemológico, em respeito ao livre pensamento e o direito à verdade histórica, à memória e à reparação, disseminando valores imprescindíveis a um Estado plural e respeitador dos direitos humanos.

APRESENTAÇÃO
A TERCEIRA MARGEM DA REPARAÇÃO1

Equipe da Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos, com redação final de Rodrigo Blum

O ano de 2014 marcou os 50 anos do golpe no Brasil e 40 da sistematização da doutrina de segurança nacional, verdadeira “arquitetura de exceção” projetada pela ditadura civil-militar.

O estado de exceção no Brasil ‘destruiu livros e documentos, invadiu campi universitários, proibiu leituras de obras e de autores considerados antifascistas, socialistas, comunistas entre outros. Censurou textos, livros, letras de músicas, peças de teatro e criou a função do censor em redações de jornais e em veículos de comunicação; legitimou a delação, a espionagem entre vizinhos, a escuta telefônica e criou um clima de suspeição, incômodo e de vigilância permanente. Principalmente, instituiu a pena de morte por fuzilamento e o banimento do solo brasileiro. Não instituiu legalmente duas figuras trágicas que, se legalizadas, colocariam explicitamente o país na contramão das Convenções de Genebra: a autorização para a tortura e o desaparecimento forçado dos opositores capturados’2.

Meio século após o fatídico golpe militar de 1964, os efeitos traumáticos deste terrível período da nossa história começam a ser trazidos à público.

[…] Até os dias de hoje guardamos, através das gerações, as marcas dos efeitos devastadores decorrentes da violência traumática exercida pelo poder das ditaduras latino-americanas que, entre as décadas de 60 e 80 do século XX, amparadas pelo discurso da doutrina de segurança nacional, instituíram como política de atuação o terrorismo de estado. Um poder institucional inquestionável, implacável, com uma lógica de operar aleatória e sujeita a uma total arbitrariedade, sustentada por uma estrutura institucional que coordenou a implementação de uma política de desorientação 14 e terror.

Segundo Giorgio Agamben (2004) trata-se de uma forma de exercício de poder a partir da qual os conceitos de direito subjetivo e proteção jurídica deixaram de fazer sentido. O que se faz com este terror que assombra? É possível deixar de repetir o trauma? Como se aproximar das experiências de horror que, às vezes, só são conhecidas pelas marcas deixadas nos pais e que atravessam as gerações?

1Esse texto tem como objetivo ao mesmo tempo apresentar o trabalho realizado pela equipe da Clinicas do Testemunho – SP, assim como introduzir a temática trabalhada por diversos textos contidos neste livro. Neste sentido, encontraremos aqui uma composição entre a teoria e a clínica, bem como a produção conceitual dos diversos autores

2Maria Auxiliadora de A. C. Arantes. Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, p. 129.

MEMÓRIA SEM LEMBRANÇA

Por Moisés Rodrigues da Silva Junior*

O que exatamente se configura como tortura? As técnicas ancestrais do grande inquisidor Torquemada? O pau-de-arara, os aparelhos de choques elétricos? Na imaginação de muitas pessoas essas são as primeiras cenas que ocorrem quando falamos em tortura.

Para a grande maioria são só essas as cenas e, por isso mesmo, acabam fechando os olhos ou os ouvidos a uma série de outras formas mais sutis mas igualmente cruéis de atormentar o outro. As simulações de execuções, ser testemunha da tortura de pessoas queridas, as ameaças de estupro, o manuseio de genitais e o isolamento apareceram vinculados a, pelo menos, tanta angústia quanto à causada por métodos físicos.

Não são somente os abusos físicos e visíveis que devem ser levados em conta. A manipulação psicológica, a humilhação, a privação sensorial e as posturas forçadas causam tanto dano, estresse e angústias como a tortura física.

No Brasil, desde a Constituição Imperial de 1824, firma-se uma declaração contra a tortura e outros tratamentos desumanos: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca do ferro quente, e todas demais penas cruéis”. Ainda assim, em nossas constituições republicanas nada é apresentado sobre a prática da tortura (Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967), exceto uma menção na Constituição de 1967 quanto ao “respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário”.

[…] A tortura, por seu caráter brutal determinado pela ação humana deliberada, que tem por objetivo, anular pessoas, aterrorizá-las, e que por sua dimensão coletiva e política vale-se de características particulares humanas, não podendo ser considerada um “excesso” produzido por um sádico isolado. É, sim, uma instituição política do estado, produtora de subjetividade não apenas em suas vítimas diretas, mas também em seus familiares, descendentes e por irradiação no conjunto do tecido social.

A experiência extrema que a tortura produz sempre marca e transforma o destino do torturado que se apresenta como a testemunha encarnada de uma ferida que concerne a todos. Seu corpo ferido se oferece como símbolo, como bandeira em que se inscreve o que nele foi atingido e que Robert Antelme (2013) chama de “sentimento de pertença à espécie humana”.

Assim, o clima de terror generalizado e a institucionalização da tortura se traduzem, na subjetividade, como perda do apoio social necessário a seu funcionamento. Como descreve Eric Erikson: “(…) o eu continua existindo, ainda que tenha sofrido dano e mesmo mudanças permanentes; o tu continua existindo, ainda que distante, e pode ser difícil se relacionar com ele; mas o nós deixa de existir.” (p. 73)

Situações de grande violência e silenciamento social golpeiam diretamente os tecidos básicos da vida (social) constituídos pelos vínculos que ligam mutuamente as pessoas causando um prejuízo na confiança no entorno social, na família, na comunidade, nas estruturas do governo, na lógica mais geral em que vivemos. A matriz da constelação identificatória, base do sentimento de pertencimento à humanidade e da própria identidade, se abala de forma profunda alterando seu funcionamento.

Mesmo não tendo um quadro sintomatológico único, nem uma síndrome unívoca, as sequelas psicológicas da tortura são sérias e permanentes, com tendência ao agravamento com o passar dos anos, e mais. Segundo Léo Eitinger (1995), a lista de danos é extensa:

*a experiência traumática produz sequelas transgeracionais;

*o índice de psicoses é cinco vezes mais elevado do que nas populações que não as sofreram;

*a taxa de suicídio é de 16 a 23% mais elevada nas sociedades onde a tortura ocorreu a inserção social é muito difícil, as rupturas familiares são frequentes;

*a inserção social é muito difícil, as rupturas familiares são frequentes;

*a capacidade laboral fica muito diminuída, às vezes até impossibilitada;

*além do traumatismo inicial, devem ser levados em conta os efeitos agravantes produzidos pela retraumatização posterior;

*alguns sintomas de sequelas aparecem logo depois de longos períodos aparentemente assintomáticos (20, 30, 40 anos após o ato);

*as doenças físicas, as hospitalizações, as intervenções cirúrgicas etc. são mais graves e frequentes em sociedades que sofreram atos de tortura.

Pensando nessas condições que a tortura imprime na sociedade, direcionamos o foco de nosso trabalho às sequelas psicológicas dos envolvidos nos atos de tortura e numa possível abordagem clínica dessas situações.

CLÍNICA SEMPRE POLÍTICA

Segundo Gilles Deleuze (1988), as questões com as quais a psicanálise se defronta são inevitavelmente políticas. Tratam sempre do “quanto” e do “como” o desejo pode se produzir e se expressar diante das injunções de assujeitamento. Responder clinicamente aos traumas de natureza diversa aos traumas sexuais infantis desafia o clínico a elaborar conceitos úteis à situação, em que a experiência traumática está determinada por uma política de estado com um primeiro e explícito objetivo de fazer falar secundado por uma busca de silenciamento social.

Nicolas Abraham & Maria Torok (1995), comprometidos com a ideia de uma psicanálise com feições humanas e atenta à aceitação do humano, em todo seu sofrimento, diziam que, se alguém lhes pedisse para resumir em uma única palavra o conjunto da temática ferencziana, esta seria catástrofe e seus sinônimos: traumas, acidentes, afecções, pathos.

Para Sándor Ferenczi (1931), a reação imediata ao trauma é uma “agonia psíquica e física que acarreta uma dor tão incompreensível e insuportável” (p. 79) que o sujeito precisa distanciar-se de si mesmo, vivendo num estado de suspensão. As descrições de Ferenczi (1934) em relação à comoção psíquica fazem referência ao terror, à catástrofe, à morte. O desprazer causado pelo excesso não pode ser superado, estando o sujeito enfrentado com a máxima vulnerabilidade e impotência, restando apenas “(…) a autodestruição, a qual, enquanto fator que liberta da angústia, será preferida ao sofrimento mudo.” (p. 111)

TRAUMA E DESMENTIDO SOCIAL

Ferenczi (1931) postula a realidade do trauma. O fundamental aqui não é a noção de realidade, mas, principalmente, o que pode ser entendido como traumático. Uma catástrofe não é necessariamente traumática; ela pode se tornar traumática se, ao desastre, se somar esse outro elemento, capaz de minar a confiança básica em si, no outro, na vida. “O pior é realmente o desmentido, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento (…) é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico.” (p. 79)

Por desmentido entenda-se o não reconhecimento e a não validação perceptiva e afetiva da violência sofrida. Trata-se de um descrédito da percepção, do sofrimento e da própria condição de sujeito daquele que vivenciou o trauma. Portanto, o que se desmente não é o acontecido, mas o sujeito. Este modelo não privilegia personagens, e sim relações. Relações de poder, de desvalorização, de desrespeito, enfim, relações políticas com o envolvimento de afetos como vulnerabilidade, humilhação e vergonha, cujas implicações são necessariamente políticas.

RECONHECIMENTO: CAMINHO DA CURA

Considerar o reconhecimento como o avesso do desmentido implica dizer que efeitos traumáticos podem ocorrer quando alguém não é reconhecido na sua condição. Não é possível uma posição neutra a este respeito: o desmentido, enquanto não-validação das percepções e dos afetos de um sujeito, pode ser entendido como um reconhecimento recusado. Nessa linha, podemos dizer que o reconhecimento é, em primeiro lugar, reconhecimento da vulnerabilidade de um sujeito.

Para Ferenczi (1932) o sujeito é vulnerável na relação com o outro, o que implica também o reconhecimento da própria vulnerabilidade. Inaugura-se, assim, a possibilidade de uma comunidade constituída horizontalmente, “comunidade de destino” a partir da precariedade de seus membros. Nas palavras de Ecléa Bosi (1995): “A comunidade de destino se refere ao fato de que um grupo de pessoas pode reunir-se, sem certezas prévias, para discutir ou construir seu próprio destino.” (p. 34)

[…] O pensamento de Ferenczi nos aponta para uma possibilidade de vínculo que, ao invés de constituir-se em torno da autoridade e da ilusão de garantias, sustenta-se sobre uma mesma “comunidade de destino”. O quanto se  quanto se acolhe um sujeito traumatizado, o quanto se admite a sua queixa de uma injustiça sofrida, o quanto se reconhece a sua necessidade de reparação: tudo isso configura uma necessidade que deve se estender ao campo da cultura, do direito, e da política. O grande ensinamento destes tempos em que vivemos tem sido que o laço social está ancorado no próprio fundamento do político enquanto arte de viver juntos.

Referências

ABRAHAM, N. & TOROK, M. A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta. 1995

ANTELME, R. A espécie humana. São Paulo: Record, 2013

DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

EITINGER, L. Prisión en campo de concentración y traumatización psíquica. In: AZPIROZ, M. R. A. (Org.) Represión y olvido: efectos psicológicos y sociales de la violencia política dos décadas después. Montevideo: Roca Viva, 1995.

ERIKSON, E. Trauma y comunidade. In: ORTEGA, F. (Org.) Trauma, cultura e historia: reflexiones interdisciplinarias para el nuevo milenio. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2011.

FERENCZI, S.

(1922). Psicanálise e política social. In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

(1931). Análises de crianças com adultos. Op. cit., v. IV

(1932). Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990

*Moisés Rodrigues da Silva Júnior, médico, psicanalista, analista institucional. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientia e Professor do Curso de Psicanálise do mesmo instituto. Coordenador da Clínica do Testemunho do Projetos Terapêuticos (2013-2016).

Colaboradores da edição #60

ERNANI CHAVES é Professor Titular da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará. Estuda as relações entre filosofia, psicanálise e racismo. Para este número da arte!brasileiros, ele disserta sobre o conceito de necropolítica, de Achille Mbembe, trazendo-o para o contexto da realidade brasileira, marcada pela escravidão e pelo racismo.


RODRIGO NAVES é crítico, historiador da arte e professor, com doutoramento em estética pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Publicou ensaios e artigos em diversas revistas, jornais e catálogos brasileiros e do exterior. Nesta edição, escreve sobre a artista plástica Germana Monte-Mór, que apresenta exposição na Galeria Estação.

FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, escreve sobre as iniciativas governamentais no universo das artes no Espírito Santo e faz uma análise sobre as polêmicas da documenta quinze.



LEONOR AMARANTE é jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Recebeu os prêmios ABCA pela edição da revista arte!brasileiros (2012) e do Ministério da Cultura de Cuba (2009) pela atuação cultural naquele país. Nesta edição, assina matérias sobre as mostras Histórias Brasileiras e José Claudio: Uma Trajetória.


SIMONETTA PERSICHETTI é jornalista e crítica de fotografia. Mestre em Comunicação e Artes, doutora em Psicologia Social e pós-­doutora pela ECA-USP. É membro do Conselho Editorial da arte!brasileiros. Neste número, faz uma análise sobre o questionável uso de imagens jornalísticas de grande impacto na mídia e em exposições.

Fotos: arquivo pessoal

Conexão e diálogo

Emmanuel Nassar exposto em LUGAR-COMUM no MAC USP
Emmanuel Nassar, sem título, 2007-2009, placa metálica pintada. Foto: Divulgação

Lugar-comum, exposição realizada pelo Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP), é um exercício de conexão e diálogo que nasce de um projeto voltado para a desierarquização de obras e agentes, misturando categorias e agregando novas camadas poéticas ao longo do tempo. O processo se desdobrou por vários meses e foi organizado em três diferentes fases de trabalho. No Ato 1, 12 artistas de diferentes gerações e linguagens foram convidados a selecionar e mostrar criações de autoria própria e pertencentes ao acervo para exibir. No Ato 2, esses mesmos artistas assumiram o papel de curadores e pinçaram obras da coleção e de autorias diversas para serem exibidas junto com o primeiro conjunto. Já no Ato 3, que pode ser visitado até agosto de 2023 e reúne cerca de 150 obras, foram incorporadas ainda escolhas feitas por esse colegiado, mais a equipe curatorial do museu e seis outros artistas e curadores convidados. É possível identificar por meio do sistema de legendas o momento de incorporação de determinado trabalho, bem como qual artista foi responsável por sua inclusão, caso o visitante tenha interesse em adentrar mais a fundo nos bastidores do processo.

O resultado concreto não foi uma, mas três exposições sucessivas, que foram sendo adensadas a partir das contribuições. A cada ato – como são chamadas as fases pela montagem – novas adições foram trazidas à luz. Peças icônicas ganharam diferentes configurações e convergências pouco evidentes se estabeleceram, gestando um modelo mais horizontal e complexo para se pensar os ocultos nexos poéticos e formais da produção moderna e contemporânea.

São muitos os encontros improváveis decorrentes desse processo. Dentre eles estão a aproximação cromática e formal entre Lucio Fontana, Alexander Calder e Emmanuel Nassar e a ênfase na intensa relação entre arte e o mundo do trabalho presente nas gravuras de Renina Katz e na instalação de Laercio Redondo. Curiosamente, há inclusive duas obras que compartilham o mesmo título, Foi assim que me ensinaram, adotado tanto por Flávio Cerqueira como por Felipe Cama. A natureza-morta e, de forma mais ampla, uma relação afetiva com o mundo das coisas e dos objetos, permeia praticamente toda a exposição, ecoando nas obras de Eleonore Koch, Giorgio Morandi, Marcelo Zocchio, Nina Moares, Sidney Amaral, Yozo Yamaguchi, entre outros. Outro destaque desse processo subjetivo de valorização e ressignificação do acervo – como lugar não apenas de guarda e preservação, mas também de fonte para novas investigações – é o painel de desenhos de Di Cavalcanti selecionados por Carmela Gross dentre os cerca de cinco mil trabalhos em papel do artista modernista presentes nesse acervo.

Enfatizando o caráter processual e polifônico de Lugar-comum, Marta Bogéa, Helouise Costa e Ana Magalhães, que respondem pela curadoria do museu e pela coordenação geral da mostra, relembram como a exposição de certa forma resgata o legado de Walter Zanini. Vista como uma espécie de “mito de origem” do museu, a gestão do crítico à frente da instituição está explicitamente representada pelo resgate – proposto por Rosângela Rennó a partir da leitura de um texto de Helouise Costa –, da mostra Fotógrafos desconhecidos, organizada por ele em 1972. Edital público, teve 263 inscritos. Depois de uma série de desentendimentos entre os jurados, optaram por eliminar qualquer critério de exclusão e exibir todos os trabalhos apresentados. A atual versão reúne apenas as fotos que permaneceram no acervo do MAC, assinadas por autores como Moema Cavalcanti e Paulo Cleto.

A ênfase na liberdade e na experimentação acabou também por movimentar a instituição internamente, envolvendo todas as instâncias do museu, acionando e mobilizando setores como documentação, educativo e conservação das obras, que se ocupam de bastidores e detalhes muitas vezes não tão visíveis. Este último, por exemplo, acabou aprovando, depois de análises técnicas bastante cuidadosas, a ideia de retirar provisoriamente a moldura de telas icônicas como as de Morandi, Volpi e Matisse, num movimento singelo, porém transformador.

O obsceno da imagem

Nos últimos meses, imagens jornalísticas de grande impacto foram utilizadas pelo seu alcance midiático. Foi o caso, na recente Bienal de Berlim, da polêmica exposição do artista francês Jean-Jacques Lebel, Poison soluble. A obra, criada em 2013, é um labirinto de imagens recortadas e ampliadas das torturas sofridas por prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib. Por conta disso, 15 artistas iraquianos se retiraram e removeram seus trabalhos da Bienal, acusando os curadores do uso indevido das imagens.

Só para lembrarmos do fato: em 2004, em meio à Guerra do Iraque, o mundo se espantou quando as primeiras páginas dos jornais estamparam prisioneiros iraquianos sendo torturados por soldados americanos. O complexo penitenciário de Abu Ghraib ficava a 32km de Bagdá e era administrado pelos norte-americanos. O que mais chocou naquele momento, além do fato bárbaro em si, é que os soldados haviam registrados aquelas cenas com uma estética que muito se aproximava de álbuns de férias: eles, sorridentes, diante dos prisioneiros.

Na contemporaneidade, em que os museus cada vez mais trabalham histórias do passado, evitando um apagamento histórico, a espetacularização nem sempre é sinal de sucesso, mas muitas vezes causa de naturalização de um evento, como o das torturas, ou até mesmo de alienação.

No mesmo mês, julho deste ano, outra polêmica envolvendo imagens: a revista Vogue contratou a reconhecida fotógrafa Annie Leibovitz para retratar o casal presidencial da Ucrânia, que posou em frente aos escombros de guerra e dentro do palácio oficial em que residem. Imediatamente, as redes sociais entraram em polvorosa criticando a atitude de todos: da revista, da fotógrafa e do casal. O problema da matéria não são as fotos em si, mas sim o contexto, a publicação para a qual foram realizadas, uma revista de moda. Talvez, se elas tivessem sido feitas para a capa de uma revista de informação, o debate não teria sido tão acalorado.

No Instagram também surgiram registros realizados por um professor, um pedido de seus alunos ucranianos, para que fossem fotografados em meio aos escombros de sua escola no dia da sua formatura. A justificativa foi a de se fazer um ensaio-protesto contra a guerra, numa estética de redes sociais.

Não é de hoje que filósofos e estudiosos da comunicação falam sobre a cada vez mais crescente onda do entretenimento midiático. Aliás, este processo se potencializa na virada do século 20 para o século 21, quando o ataque às Torres Gêmeas nos foi apresentado como um evento cinematográfico.

Cada vez mais as imagens que diariamente desfilam diante de nossos olhos nas telas do computador, ou de um smartphone, são mais espetaculares, sensacionalistas ou escandalosas. O filósofo francês Gilles Lipovetsky e o professor da faculdade de Grenoble, Jean Serroy, em seu livro A estetização do mundo, de 2015, já avisavam que vivemos numa hipercultura midiática-mercantil em que “a arte contemporânea se pretende ‘experencial’ proporcionando sensações fortes, um choque visual pelo espetáculo do desmedido, do excessivo.” Uma estética midiática, que nem sempre pretende ou busca a reflexão, mas o susto.

A colocação da imagem como um megaevento que nos desconcerta, não fica presa a imagens jornalísticas. Devemos pensar hoje também na “moda” de exposições imersivas, que por si só são bastante interessantes, mas nem tudo deveria ser imersivo. São mostras muitas vezes criadas com o único intuito da distração, do divertimento. Não que o lúdico não seja importante, mas a forma que nos são apresentadas parecem mais cenários prontos para selfies, ou possibilidades de criar engajamento nas redes sociais.

Nem toda obra se presta a esta experiência. Algumas, feitas no início do século 20, foram criadas para um outro tipo de diálogo, de rupturas estéticas e históricas, de questionamento dos estados vigente da arte e não como cenários fake de um parque de diversões.

A polêmica e desafiadora crítica de arte e de cultura Camille Paglia, em seu livro Imagens cintilantes, de 2015, retoma uma constatação já por muitos colocada: “A vida moderna é um mar de imagens. Nossos olhos são inundados por figuras reluzentes e blocos de texto explodindo sobre nós por todos os lados.” Ela se pergunta como podemos viver diante desta sensação de vertigem, já que perdemos nossa capacidade da contemplação, que é quase sinônimo de calma, sensação que parece impossível se vivemos na contemporaneidade: “Em meio a tamanha e neurótica poluição visual, é essencial encontrar o foco, a base da estabilidade, da identidade, da direção da vida”, diz Camille, em outro trecho.

Diante desta espetacularização das imagens contemporâneas, precisamos compreender o papel da arte ou, como afirma a própria Camille Paglia, “precisamos reaprender a ver”.