Em busca do tempo perdido, a cultura se movimenta em todo o Brasil no intuito de reerguer-se após atravessar o período mais sombrio da gestão pública no setor. Depois da passagem recorde de sete titulares em quatro anos pela Secretaria Especial de Cultura, instância maior de política cultural do país, é possível afirmar que, sim, houve êxito em se ferir mortalmente e paralisar o ecossistema nacional de cultura. 

Nesse período, nada foi feito efetivamente no setor. O foco foi sempre regressivo, paralisante ou obstrutivo. Parte do tempo de gestão foi gasta com propostas negacionistas ou inócuas, que obrigaram a sociedade civil a se articular para combatê-las – no que se gastou dinheiro público, esforço qualificado e se perdeu espaço de articulação propositivo. 

Por exemplo: em plena pandemia, o policial militar extremista que respondia pela Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciuncula, editou uma portaria proibindo a exigência do passaporte de vacinação contra a covid-19 para frequentar eventos culturais financiados com recursos da Lei Rouanet. Contrapondo-se às medidas de saúde pública, a Secretaria Especial de Cultura obrigou a Justiça a examinar e derrubar mais esse factoide bizarro.

Em dezembro de 2021, o então secretário Mário Frias estabeleceu uma meta de análise de prestações de contas antigas pela secretaria de Cultura – média diária de análise de seis projetos, e mensal, de 120 projetos. A liberação de novas captações de recursos estaria necessariamente condicionada à análise dessas contas antigas – uma paralisação velada, já que não havia pessoal especializado disponível para a tarefa, o que obrigou o Congresso e o Tribunal de Contas da União (TCU) a intercederem e derrubarem a restrição. 

Em seguida, a Lei Rouanet, modificada por portarias, passou a exigir um cachê irrealista para financiar apresentações de artistas (R$ 3 mil) e a vetar que um mesmo patrocinador financiasse eventos consagrados do calendário cultural – o que levou jornadas importantes, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a deixarem de usar recursos públicos em sua realização. 

Fachada da Pinacoteca de São Paulo. Foto: Christiane Ruffato

Um certo clima de animosidade política também criou um boicote velado a instituições consagradas. A Pinacoteca do Estado de São Paulo, por exemplo, somente teve autorização para captar os R$ 27 milhões para executar seu plano anual de 2023 em novembro último, o que coloca em risco todo seu projeto de ação museológico e administrativo. Neste ano de 2022, engolfada pela agenda eleitoral de quase todo o “politburo” bolsonarista do setor, a lei de renúncia fiscal pode terminar o ano com um terço do que foi captado no ano passado. 

“Toda a estrutura pública federal vinculada à cultura está falimentar, sem recursos, sem estrutura. Só́ para dar uma ideia: houve uma redução de recursos, de 2016 para cá́, de 85%. Pulamos de R$ 241 milhões para R$ 36 milhões. É quase uma piada, se não fosse de mau gosto”, disse Juca Ferreira, um dos coordenadores do Grupo de Transição do governo eleito. O valor a que Ferreira se refere é o orçamento direto da Secretaria de Cultura, sem as quantias relativas ao incentivo fiscal e a fundos culturais – mas, para se ter uma ideia, o orçamento da secretaria de Cultura da cidade de São Paulo para 2023 é de 611 milhões. 

Mais do que evidenciar o colapso da ação federal no setor, o número mostrado por Ferreira ilustra como o Estado brasileiro abdicou de estimular toda uma área crucial para o desenvolvimento nacional. De forma deliberada. Para isso, lançou mão de artifícios de boicote ou de iniciativas contraproducentes e agressivas – alguns secretários do período, segundo revelou a imprensa, passaram até a despachar portando armas em repartições públicas, para intimidar servidores. 

Um diagnóstico encabeçado pelo cineasta Joel Zito Araújo, que trata do tema da comunicação na transição governamental, revelou que o período recente foi de censura, assédio moral e perseguição aos trabalhadores da cultura, de militarização das empresas públicas, de submissão e acriticismo voluntarista. 

No Patrimônio Histórico, o expurgo de profissionais de perfil técnico (para acomodar, por exemplo, um pastor extremista religioso como Tassos Lycurgo, exonerado em agosto) pode ter resultado em um problema muito difícil de equacionar num futuro próximo. Somente em uma única portaria, no dia 8 de dezembro de 2022, o ministro do Turismo, Carlos Alberto Gomes de Brito, nomeou 39 servidores para cargos nas diversas superintendências do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pelo país. Isso tem se repetido em todos os organismos da cultura desde a eleição do dia 30 de novembro. 

O que leva um governo a decidir que precisa repor servidores a toque de caixa a 20 dias do seu final? Na Agência Nacional de Cinema (Ancine), que gere a política audiovisual do país, foi nomeado um novo auditor-chefe um ano antes de expirar o mandato do anterior, o que aponta para uma evidente estratégia de ocupar cargos-chave da máquina pública e garantir sobrevida ao antigo regime. 

A questão do Iphan, hoje, é principalmente de aparelhamento. Há pelo menos 12 superintendentes regionais que não possuem perfil técnico, foram escolhidos por sua diretora, Larissa Peixoto, furibunda militante bolsonarista, pela afinidade com o ideário do grupo governista. É o caso de Olav Antonio Schrader, monarquista que ocupa o cargo de Superintendente do Iphan no Rio de Janeiro. Schrader tinha como meta, entre outras, tornar os museus históricos bunkers de interesses dos velhos monarquistas da família imperial, e isso se revelou no episódio da catalogação do acervo afro-brasileiro Nosso Sagrado, no Museu da República, em dezembro do ano passado. 

Museu da República, no Rio de Janeiro. Foto: Henrique Carvalho / Ibram

Além do desrespeito ao setor, da atitude belicista e arrogante, o núcleo cultural do governo Bolsonaro especializou-se também em deboche. Em 1º de julho deste ano, numa das instituições mais respeitadas e sólidas do sistema cultural do Brasil, a Fundação Biblioteca Nacional, realizou-se uma bizarra cerimônia: a entrega da comenda Ordem do Mérito do Livro para um condenado da Justiça, o ex-deputado Daniel Silveira, do mesmo partido do presidente, e que tinha sido objeto de um perdão presidencial para não ir para a cadeia, e do também parlamentar Hélio Lopes (o Hélio Negão), conhecido primordialmente como papagaio de pirata do seu chefe ideológico. Com tal evento, sarcasticamente realizado no Dia Mundial das Bibliotecas, a instituição empurrava pela sarjeta décadas de tradição e rigor. 

A inação da Fundação Biblioteca Nacional é fruto do esforço de seu presidente, um militante monarquista, Luiz Carlos Ramiro Junior, que se jacta de receber na instituição a visita de cidadãos como Luiz Philippe de Orléans e Bragança (acompanhado do superintendente do Iphan/RJ, Olav Schrader, também monarquista), investigado no inquérito das fake news no STF, precedida do seguinte texto no site da FBN: “Generoso, culto e atuante em prol da restauração do Brasil, Luiz Phillippe tem honrado a nobreza de sua família e representado os valores que a sociedade brasileira clama, de liberdade, proteção à vida, segurança, prosperidade, soberania e amor ao próximo”. Restauração do Brasil, em português claro, quer dizer o retorno da monarquia ao poder. 

A gangrena institucional causada por essa confusão de papeis é generalizada. Com 24 museus em sua estrutura, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram, o organismo do governo federal que trata da política nacional de museus), vem perdendo recursos progressivamente desde que o governo Bolsonaro começou. Em 2018, o Ibram executou R$ 136 milhões de seu orçamento. No ano passado, executou R$ 127 milhões e, neste ano de 2022, até novembro, executou apenas R$ 118 milhões de reais (de R$ 160 milhões previstos), segundo dados do Portal da Transparência. Se esse patamar se mantiver, o Ibram terá́ perdido um quarto dos seus recursos. 

Nesse período em que Pedro Mastrobuono vem presidindo o Ibram (desde o inicio de 2020, quando foi nomeado pela então secretária Regina Duarte, e prosseguindo durante todo o período Mario Frias), a integridade republicana dos museus federais não passou ilesa. Por questões ideológicas, o Ibram ignorou o resultado do processo seletivo para a escolha do novo diretor do Museu Histórico Nacional, divulgado em setembro de 2021, desobedecendo o que estabelece o Estatuto dos Museus e o Decreto-Lei nº 8124. A primeira colocada, Luciana Conrado Martins, nunca foi nomeada e, para substituí-la, o governo “convidou” a terceira colocada, Doris Couto, para assumir o cargo. Doris recusou. 

Durante a campanha eleitoral, a direção do Ibram deu ordem para que se cobrisse com um tecido preto uma placa de obra pública que continha o nome do então candidato da
oposição, Luiz Inácio Lula da Silva, de uma parede do hall do Museu Histórico Nacional. Ocorre que a placa era referente ao último período de Lula na presidência, portanto, um fato anterior às eleições de 2022, algo que configurou tentativa de revisionismo histórico. 

O advogado Pedro Machado, ligado a colecionadores e ao mercado, é também membro do Conselho Nacional e Política Cultural (Ministério do Turismo). Sua governança do Ibram foi questionada no Tribunal de Contas da União (TCU) no ano passado, por meio de uma denúncia sobre a implementação do Plano de Ação previsto no Plano Nacional Setorial dos Museus. O TCU cobra o alcance das metas acertadas pelo Ibram, especialmente o censo dos museus federais que tinha se comprometido a realizar. Mastrobuono pediu mais um ano para realizar as exigências e, em novembro, o TCU assentiu. 

Uma instituição vinculada à estrutura de outro ministério, o Museu Paraense Emilio Goeldi, o segundo maior de História Natural do País, agora sob a tutela do Museu da Ciência e Tecnologia, que estava sem direção, esperava que essa decisão fosse repassada ao próximo governo. Mas, em novembro, o museu acordou com a entronização inesperada de um apoiador do governo Bolsonaro em seu cargo máximo diretivo, outra nomeação de oportunidade. 

Museu Histórico Nacional. Foto: Jaime Acioli

A Fundação Palmares, gerida com “requintes de crueldade”, segundo Juca Ferreira, pelo ex-presidente Sérgio Camargo, atuou em prol da “desmoralização total, uma tentativa de apagar o que se conquistou em termos de reconhecimento dos africanos que vieram escravizados para o Brasil”, segundo o coordenador de cultura do grupo de transição governamental. Para corroborar esse diagnóstico, no último dia 10 de novembro, Sérgio Camargo foi condenado pela Comissão de Ética Pública da Presidência por “assédio moral, discriminação de religiões, de lideranças de religiões africanas e manifestações indevidas nas redes sociais”. 

Mas o problema é que punir esses aríetes da guerra cultural não resolve o problema principal: o sucateamento das instituições. A deputada Áurea Carolina (PSOL-MG), que participou de uma vistoria na Fundação Cultural Palmares, ficou chocada com o que viu. “A Palmares tem hoje pouquíssimos servidores efetivos, em um contexto de precarização do trabalho e adoecimento dos trabalhadores. O prédio que abriga a sede está em péssimas condições sanitárias, de acessibilidade e de infraestrutura, sem mencionar a manutenção do acervo”, ela afirmou. Essa situação se espalha pelos diversos órgãos vinculados do antigo Ministério da Cultura, que deverá ser recomposto no novo governo. 

No Arquivo Nacional, a situação, após a gestão de Ricardo Borba D’Água Almeida Braga (sujeito de uma ação do Ministério Público Federal para que fosse afastado das funções por não cumprir os requisitos legais) só́ será́ possível de ser conhecida após uma ampla auditoria nos documentos – para que se verifique o que sobreviveu ao expurgo com fins ideológicos. A passagem de Borba D’Água pelo Arquivo foi condenada em manifesto de 54 entidades do setor de arquivos, pelo alheamento ao tema e à delicadeza do material que lhe foi confiado. Na Funarte, Tamoio Athayde Marcondes, sexto presidente em quatro anos, sai com o saldo de ter interditado um acervo histórico fundamental da instituição no Centro do Rio, mas sem a resolução de seu destino. 

A questão da transparência é uma das mais graves e vai exigir um pente-fino dos novos gestores. Atualmente, no site da Agência Nacional de Cinema (Ancine), os últimos dados sobre execução do Fundo Setorial do Audiovisual são de 2019. A Ancine lança editais ao mesmo tempo em que experimenta um bloqueio da parte orçamentária destinada a pagar os bancos operadores do Fundo Setorial do Audiovisual, o que, na prática, impede ações de investimento. A Ancine foi avaliada como a segunda pior gestão pública de uma agência em 2021 pelo Índice Integrado de Governança e Gestão Pública 2021 (IGG21), um
indicador do Tribunal de Contas da União (TCU). Os números que a colocam nessa posição são evidentes: a quantidade de filmes brasileiros com mais de 500 mil espectadores caiu de sete para zero em quatro anos. O público total de filmes brasileiros caiu de 23,8 milhões para 911 mil. E, em 2021, nenhum filme brasileiro apareceu entre as 20 maiores bilheterias do ano. 

Mas a sangria da cultura assume uma dramaticidade ainda maior se se examina as suas especificidades. A indústria audiovisual, por exemplo, tem um ciclo longo em sua cadeia produtiva – leva anos entre o desenvolvimento inicial e sua distribuição final. Cada linguagem artística tem seu tempo de produção especifico, e não é somente a restauração do poder de investimento e estímulo do Estado que lhes devolverá a pujança. 

Reanimar o tecido cultural da nação será́ uma obra hercúlea, de esforços coordenados e revigoramento do entusiasmo, do orgulho, da confiança no poder da cultura. O novo governo terá de rever e melhorar as leis de incentivo e fazer um verdadeiro mutirão para a contratação de colaboradores capacitados, de profissionais especializados para as instituições culturais brasileiras.

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