A pintora Marina Rheingantz, em seu ateliê. Foto: Eduardo Ortega/Cortesia da artista e da Fortes D'Aloia & Gabriel
A pintora Marina Rheingantz, em seu ateliê. Foto: Eduardo Ortega/Cortesia da artista e da Fortes D'Aloia & Gabriel

Em meados de 2019, quando estava em cartaz com duas exposições simultâneas – Todo mar tem um rio, no Galpão da Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo, e Rebote, na Carpintaria, espaço da galeria no Rio de Janeiro – a paulista Marina Rheingantz era saudada como uma pintora em ascensão, sobretudo à sua escalada no mercado internacional à época, após realizar mostras no Japão, na Bélgica e nos EUA, e a seu bom desempenho em leilões – telas como Pelada caipira (2016) haviam sido arrematadas por cifras acima da expectativa em casas como a Philips.

Em cartaz até 21 de dezembro com Sedimentar, novamente no Galpão da FDAG, na capital paulista, a artista consolida uma transição também apontada no período pré-pandemia, uma virada da representação de paisagens, vista em obras como Forrest row – de 2011 e pertencente ao acervo Banco Itaú – para telas monumentais, em que, numa prática marcada pelo gestual, camadas generosas de tinta e breves pinceladas podem até sugerir, a distância, alguma figuração. Mas Marina, ela mesma, prefere deixar em aberto eventuais leituras:

“Tenho dificuldade de verbalizar sobre meu trabalho, de criar narrativas a respeito do que faço. Nem acredito que elas devam haver. A pintura tem esse lugar onde você pode inventar situações”, diz, em entrevista à arte!brasileiros. Logo em seguida, curiosamente, elabora com clareza o desenrolar de sua produção artística em anos recentes. A abstração vem de um processo mais longo, iniciado ainda na primeira metade da década passada.

“Num certo sentido, minha pintura sempre flertou com uma ideia de ficção, uma mistura entre a figuração e a abstração. Ela nunca foi uma representação fidedigna de algo, sempre misturou a ideia de um lugar com a pintura abstrata. Sempre esteve claro que era tinta, que ela estava ali, sua materialidade presente, impondo-se”, afirma.

Sobre as obras apresentadas logo antes da pandemia – como Rabetão de ouro, tela em parecia haver uma alusão aos crimes ambientais cometidos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambos em Minas Gerais – e na nova exposição, em que o distanciamento da representação de paisagens parece mais demarcado, Marina fala:

“O Rabetão de ouro foi feita logo após a eleição Bolsonaro para a presidência. Eu comecei a pintar umas fontes de lama. Como se o país estivesse imerso nelas. Era um momento pós-eleição, de desespero. Até sempre fico na dúvida se essa mudança no meu trabalho não tem a ver com estes últimos quatro anos, com esta situação tão difícil no país”, reflete. “Abstrair seria quase como abrir uma janela para outro lugar. E, de fato, essa transformação aconteceu nesse período. As coisas se relacionam. Não que seja algo tão objetivo, mas há uma tensão que aparece forte naquelas obras.”

Marina nasceu em 1983, em Araraquara, a pouco mais de 270 quilômetros de São Paulo. Filha de um engenheiro e uma socióloga, teve, na vivência no campo e na educação pelo método Waldorf – criado pelo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), e em que a aprendizagem tem forte inclinação para a manualidade e a expressão artística – dois dos estímulos criativos para o que viria ser a sua produção como pintora. Mas a carreira, em si, não ocorreu de forma tão óbvia.

Filha de um engenheiro, como já foi dito, e neta de um arquiteto, Marina conta que viajava o interior de São Paulo inteiro na infância, visitando obras. “Eles sempre apontavam os detalhes das construções, e tudo isso era algo que me interessava muito. Meu trabalho sempre teve alguma conexão com essa ideia de construção também”, avalia.

Em 2001, Marina passou seis meses na Inglaterra, fazendo intercâmbio numa escola baseada na Antroposofia, outro conceito de Steiner, que alicerça sua pedagogia Waldorf. Lá, tinha muitas aulas de trabalhos manuais, como escultura em metal, pintura, desenho, cerâmica, entre outros.

“Para mim foi uma descoberta impressionante ver a possibilidade de abrir outros caminhos, trabalhar de outras formas, de uma forma humanizada”, ressalta. “Ao voltar, comecei a pensar em estudar artes. Tinha desde a adolescência, um amigo mais velho, que já estudava artes na Faap, e ele falava diversas vezes que eu deveria fazer o curso também”. Marina iniciou seus estudos em 2003, na própria Faap. De início, no entanto, ela conta que pensava em seguir um caminho mais pedagógico, em vez de atuar como artista, profissionalmente, para o seu sustento.

“Cheguei a trabalhar como assistente de professores de artes para crianças, assistente de florista etc. Nunca imaginei que fosse um vender uma pintura. Naquela época, nem havia um mercado consolidado no Brasil. As coisas começaram a acontecer mais a partir de 2007 em diante”, conta artista, cujos trabalhos estão hoje em acervos de peso, como a Pinacoteca de São Paulo, o Inhotim e o MAM Rio, no Brasil; e, lá fora, no Rubell Museum, em Miami, assim como na coleção Pinault, em Paris, entre outros.

Durante todo o tempo na faculdade, Marina trabalhou em diversas atividades, algo que tinha em comum, ressalta ela, com seus colegas de ofício no ateliê da Casa 7, grupo formado nos anos 1980, no bairro paulistano de Pinheiros, por artistas como Nuno Ramos e Carlito Carvalhosa. “Todos tinham um trabalho paralelo: o [Rodrigo] Andrade era capista da Veja, o [Fabio] Miguez fazia livro. Então, eu também pensava em dar aulas para crianças, e paralelamente fazer meu trabalho”, conta.

As coisas começaram a mudar de figura depois que Marina passou uma temporada no departamento educativo do Instituto Tomie Ohtake e, em seguida, fez outro intercâmbio, desta vez acadêmico, numa universidade do Chile, que tinha parceria com a Faap. “Quando eu voltei, pensei: ‘Bom, agora que eu já que não gosto de fazer tudo isso, vou tentar um trabalho de assistente de produção em museu ou galeria’. Trabalhei um pouco como assistente de montagem e, na sequência, a Fortes D’Aloia & Gabriel estava abrindo vaga de estágio, e eu entrei em 2006”, conta. Na galeria, todos a conheciam como Marina Barbieri, o sobrenome de meu pai. Quando começou a pintar, assinava com o sobrenome da mãe, Rheingantz. Inclusive nos salões realizados pela Faap com seus alunos.

“No fim daquele ano (2006), [a galerista] Márcia Fortes viu a exposição anual da Faap, deparou-se com uma obra de uma Rheingantz, mas não ligou os pontos. Ela descobriu que era eu, me mandou para casa, porque só teria exposição no ano seguinte e disse para eu ir pro ateliê trabalhar”, conta Marina. “Neste começo, eu tinha muito frio na barriga. Mas como dividia o ateliê com um amigo, o Bruno Dunley, havia, de certa forma, um ambiente mais acolhedor, fazia com que eu acreditasse mais que aquilo, de fato, viria a ser o meu trabalho.”

As paisagens

Terminados os estudos na Faap, em 2007, Marina fez já no ano seguinte sua primeira individual, Algum dia, na então Fortes Vilaça. Nela, fazia “uma redução geométrica da paisagem realçando elementos que se identificam individualmente como a cerca, a casa ou o toldo”, segundo o texto curatorial que acompanhou a mostra.

“No começo, e por muitos anos, minha pintura teve uma relação bem forte com a arquitetura na relação com a paisagem”, conta Marina, lembrando de uma entrevista que deu à curadora e crítica Luisa Duarte, para o livro Pacto Visual 2 (2016). Na conversa, ressaltava-se como sua produção tinha uma forte relação com a infância no campo, quando “o mundo era enorme” e Marina vivia solta no pasto, andando muito a cavalo. Para a pintora, no entanto, esta relação depois se amplia, para a paisagem nacional.

“Eu cresci viajando o interior de São Paulo. Meu irmão era uma pessoa que viajava muito pelo Brasil todo, trabalhando numa multinacional ligada ao agronegócio, à soja, como engenheiro agroindustrial. Ele também sempre mandava muitas fotos. Uma vez, fizemos juntos uma expedição para estudar a paisagem do Piauí”, lembra. “O que me interessava de fato era a identidade do país e sua potência cultural”.

A ascensão da carreira anunciada em 2019 foi pausada pela pandemia no ano seguinte. Marina então passou um mês com a mãe em Botacatu, também no interior de São Paulo, logo no começo da crise sanitária. Com dificuldade de se concentrar no trabalho, conta que, lá, fez alguns retratos e pinturas de cavalo, para “ter alguma coisa mais palpável”. “Foi a primeira vez que eu pintei pessoas ou animais. Acho que justamente por estar vivendo aquele isolamento”, conta.

As obras mais monumentais, como Rastro, um dos destaques da mostra Sedimentar, surgiram quando Marina mudou de ateliê em 2015, de Perdizes, onde ela chegava a fazer telas de 2mx3m, para um novo espaço, na Vila Ipojuca. O objetivo era aumentar as dimensões de suas obras. “Hoje, gostaria de ter um galpão para fazer pinturas ainda maiores, chegar a dimensões como 5mx10m, por exemplo, criações mais próximas de murais, mesmo”, diz.
Nos últimos anos, conta, tem procurado dar mais atenção à sua saúde. Há 20 anos faz análise, hoje com um terapeuta “freudiano, mas não tão cartesiano”. Para as sessões, conta que leva, com frequência, questões ligadas à sua prática. “Porque eu vivo certa angústia de como lidar com o meio de arte, no sentido do trabalho, não eu, pessoa física”, explica. Ao mesmo tempo, a pintora ressalta que acha “saudável vislumbrar um lugar aonde se quer chegar” como artista, “pensar em exposições fora, para não somente mostrar meu trabalho, como levar a cultura brasileira adiante, mostrar sua importância, a riqueza que temos aqui. A arte no país é muito forte.”
Porém, diz Marina, o mais importante para ela é sua relação com o ateliê, “o que mais me entusiasma no dia a dia.” Seu trabalho, salienta, “é fruto de muita prática, de muito exercício, muito trabalho. Mais suor que inspiração. A exposição que fez no ano passado, na galeria Bortolami, em Nova York, se chamou Suor, por causa de uma pintura que demorei muito, muito para fazer”, conta.
Ultimamente, diante de crises institucionais que têm marcado o cenário artístico brasileiro, como a ocorrida e posteriormente sanada entre o Masp e as curadoras do núcleo Retomadas, da exposição Histórias Brasileiras, Marina tem também refletido sobre a importância de se estar em espaços que acolham. “Afinal, a arte é isso: é poder levar para as pessoas o que quer que seja, afeto ou indignação. Qualquer relação que surja entre o público e o trabalho de arte é saudável”.
Ela, porém, acredita que tudo tem sido “muito racionalizado, relacionado objetivamente a um ato político, a uma determinada situação” no panorama das artes. “Às vezes, mesmo que por uma espécie de oposição, meu trabalho acaba sendo também político, nesse sentido: ele não precisa levantar uma bandeira. É mais próximo ao afeto, mesmo. Ligado à importância de se olhar para o outro”, conclui.
SERVIÇO

Sedimentar
Até 21 de dezembro de 2022
Galpão Fortes D’Aloia & Gabriel
R. James Holland, 71 – Barra Funda, São Paulo – SP
Visitação: de t
erça a sexta-feira, das 10h às 19h; sábados, das 10h às 18h

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