Mural Marielle Franco (criação coletiva), Escadão Marielle Franco (criação coletiva) e Fumaça Antifascista (criação coletiva). Imagem feita em memória aos três anos do assassinato de Marielle Franco, uma ocupação de várias ações artísticas lembrando que a justiça ainda não foi feita. Foto: Reprodução

Frente ao caos sócio político do momento, o homem ainda conta com a memória como refúgio para reconstruir o espaço da utopia, do sonho e da resistência. A coletiva Histórias Brasileiras, que ocupa o 1º andar e o segundo subsolo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), provoca conexões do homem contemporâneo com a sua ancestralidade, mistura ciência, saberes populares, reflexão sobre os povos originários e afros, rememora lutas sociais e políticas enfrentadas pelos brasileiros ao longo dos tempos.   

Seguindo as pulsões entre a tradição e a novidade, Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu, e Lilia Moritz Schwarcz, antropóloga convidada, junto com mais nove curadores, orquestram a exposição com quase 400 obras assinadas por 250 artistas. O disparador conceitual da mostra é fugir da história oficial, imaginar enquadramentos temáticos que provoquem reflexões renovadas sobre nossa colonização. Pedrosa e sua equipe têm realizado exposições amarradas em torno de diferentes narrativas que começaram com Histórias da Infância (2016), Histórias da Sexualidade (2017), Histórias Afro-Atlânticas (2018), Histórias das Mulheres, Histórias Feministas (2019) e Histórias da Dança (2020), que ocorreu somente online por conta da pandemia. 

“Agora com o bicentenário da Independência realizamos Histórias Brasileiras. O Masp é um dos únicos grandes museus brasileiros a não criar nada em torno da Semana de Arte Moderna de 1922”, diz Pedrosa. Segundo ele, a instituição está mais voltada para a história social e para o campo da cultura. “Essa coletiva faz mais sentido para nós.” 

Os oito núcleos que balizam a grande exposição não constituem um guia, todos têm vida própria e são eles: Bandeiras e Mapas, Paisagens e Trópicos, Terra e Território, Retomadas, Retratos, Rebeliões e Revoltas, Mitos e Ritos, Festa. A coletiva começa mostrando a que veio. Em Bandeiras e Mapas, Bruno Battistelli mostra sua obra Bandeira Afro-Brasileira (2022), que não é só indicador do gosto do autor, mas uma prova de resistência e militância. O artista muda as cores da bandeira nacional e a transforma em bandeira afro-brasileira. Lilia, que divide a curadoria desse segmento com Tomás Toledo, vê essa obra como um troco. “Aqui temos o sequestro de volta, não só pelo ativismo negro, mas também pelo ativismo LGBTQ+ e pela retomada dos mapas. Todo mapa é imaginário e um mapa do século 16 não é menos imaginário do que o mapa do Jaime Lauriano, que desmistifica a democracia racial.” 

Na verdade, os artistas estão fazendo a ocupação dos símbolos nacionais, como observa Lilia. Tudo é feito com suportes de várias procedências – tela, saco de lixo, objetos descartados – enfim, uma mistura do que é mais provisório com o que é mais permanente. Diante de uma sociedade armada e violenta, é agregadora a presença de 5664 Mulheres, (2014), trabalho de Beth Moysés. As cápsulas de balas de revólver são sustentadas por tule com pérolas e representam as 5664 mulheres assassinadas por seus parceiros no Brasil, em 2013. 

Em Mitos e Ritos há o questionamento da ocupação colonial portuguesa que até hoje parece mantida em segredo público. A maioria dos artistas desse segmento é de origem africana e suas obras foram garimpadas pelos curadores Fernando Oliva, Glaucea Britto e Tomás Toledo. “Muito mais do que religiões esse núcleo trata de mitos, religiosidade, questionando o projeto colonizador,” comenta Oliva. Os cruzamentos que movem os dois grupos de inflexão com as religiões de matrizes africanas e indígenas reverberam na história da arte brasileira, embora, segundo Oliva, seja difícil detectar isso no Brasil, no campo da visualidade.

Gênero canônico dentro da história da pintura, o retrato ganha um grande “corredor” na exposição, com dezenas de obras. Segundo Pedrosa, o Masp tem tradição de retrato de corpo inteiro, de escala natural como os de Velázquez, Rubens, Ticiano, Victor Meirelles. “Quis comissionar e fazer justaposição, contraste, contraponto deles com a obra de artistas contemporâneos.” Nesse contexto, o curador solicita a Panmela Castro, para o núcleo dedicado ao gênero, um retrato da Maria Auxiliadora da Silva; no mesmo segmento, o pintor No Martins mostra uma obra a partir de uma fotografia, a única aí que não é autorretrato. 

A história do Brasil é tensionada por qualquer ângulo que se tente entendê-la. Terra e Território deixa latente as lutas por espaços territoriais desde o século 16. Pedrosa cura esse segmento com Isabella Rjeille e comenta que o tema envolve artistas nacionais e estrangeiros. O pintor afro-americano Hank Willis Thomas, criou uma das obras mais sintéticas do gênero, o mapa da América do Norte ligado ao da África, numa clara alusão à rota dos navios negreiros. O poeta Langston Hughes, negro, comunista, ligado aos beatniks e ativista na década de 50, já havia falado sobre essa ponte maldita sobre esses dois continentes.

O Brasil, com seus quilômetros de litoral e densas florestas, é um multiplicador de paisagens. Com Guilherme Giufrida, Lilia trabalha o tema Paisagem e Trópicos e lembra que o Brasil sempre foi representado pela humanidade decaída, que são teorias da mestiçagem e, por outro lado, pela eternização da paisagem nos grandes trópicos, como o éden na terra. Aqui está em jogo a questão da horizontalidade tema debatido entre os curadores, portanto não é surpresa que Histórias Brasileiras tenha essa linguagem que se revolve num horizonte contínuo, endêmico, como explica Lília. Entre as obras garimpadas destacam-se as pinturas Paisagem com Jiboia (1660), de Frans Post, que representa a paisagem brasileira, e a fotografia Natureza Morta 1 (2016), de Denilson Baniwa, que traz a silhueta de um indígena morto na floresta amazônica, uma analogia ao extermínio simultâneo tanto da mata quanto dos povos tradicionais.

Com André Mesquita, Lilia revive Rebeliões e Revoltas. “O Brasil sempre guardou a imagem mitológica de país pacífico, harmonioso, no entanto foi o último a abolir a escravidão.” Hoje as revoltas nascem contra o passado, como o protagonismo de falsos heróis como os Bandeirantes. A curadora ressalta a presença da obra Confronto com as Tropas de Arthur Oscar, do cearense Descartes Gadelha, além do coletivo a Linha do Horizonte, que fala de censura com bandeiras das mães de maio. André Mesquita comenta pontos da mostra como a greve dos de anarquistas nas ruas de São Paulo em 1920. Essas lutas são feitas com o uso de panfletos, a partir de uma produção efêmera que é transformada em arte. No meio da sala, a escultura agigantada de Rubens Gerchman de 1968, criada sinteticamente com as letras L.U.T.E., fez parte do ativismo do artista contra a ditadura militar nos anos 1960.

Avançamos para o núcleo Retomadas, com a curadoria de Clarissa Diniz e Sandra Benites, que decidiram cancelá-lo em protesto contra a não inclusão de fotos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da luta indígena, feitas por João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ Xakriabá. Depois das negociações com a diretoria artística do Masp, as fotos voltaram, e elas concordaram em retomar o núcleo. 

Clarissa aponta vários trabalhos de ocupação com diferentes formas de luta presentes neste segmento. A curadora milita na fronteira entre a resistência e a descoberta. Entre os achados de Histórias Brasileiras destaca-se a “ressureição” do povo puri, por meio da cultura, da língua, e, sobretudo pelo trabalho de organização e pela publicação de um dicionário cujo vocabulário foi recuperado com viajantes ou jesuítas puri. “Com isso, um grupo de descendentes, que não conhecia nada sobre essa etnia, começou a estudar puri e também a compor, fazer poesia e se comunicar nessa língua,” explica Clarissa. 

Múltiplas narrativas contra-hegemônicas estão por todos os núcleos. O movimento de descolonização iniciou-se por volta de 2010 e hoje ganha corpo e espaço. Chama a atenção Monumento à Voz de Anastácia (2019), obra de Yhuri Cruz, representação da escrava torturada e obrigada a usar grilhão e máscara de flandres até sua morte. 

De descendência Guarani, Sandra Benites diz que a luta dos povos indígenas no Brasil é ampla e violenta. “A diversificação é grande, há indígenas morando em zonas demarcadas, na cidade, nas favelas, todos apagados como sujeitos. Nos confrontos pela retomada de nossas terras, a grande mídia vê a todos como invasores”, lamenta Sandra.

O núcleo Festas encerra a exposição e os seus curadores, Amanda Carneiro e Adriano Pedrosa, acreditam que os trabalhos ali presentes coloquem o público em contato com as contraditórias maneiras de celebrar, de diferentes grupos. Chama a atenção a navalha da Madame Satã (Pernambuco, 1900-Rio de Janeiro, 1976). João Francisco dos Santos, o mítico Madame Satã, era homossexual, uma espécie de bandido grã-fino, que vivia na Lapa dos anos 1930, território-livre da malandragem carioca, e que também faz parte das lendárias histórias do Brasil. 

SERVIÇO

Histórias Brasileiras
Masp (Museu de Arte de São Paulo): Av. Paulista, 1578 – Bela Vista, São Paulo (SP)
Em cartaz até 30 de outubro de 2022
Horários: Terças-feiras, das 10h às 20h (entrada até as 19h); de quarta a domingo, das 10h às 18h (entrada até as 17h)
Agendamento on-line obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos
Ingressos: R$ 50 (entrada); R$ 25 (meia-entrada); terças e quinta-feiras grátis

 

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