Vista da entrada da Pinacoteca do Ceará, inaugurada no dia 3 de dezembro de 2022. Foto: Marília Camelo

A atual gestão do governo do Ceará está deixando como legado um impressionante patrimônio cultural em museus e equipamentos culturais que totalizam nada menos que mais de 100 mil m², somando-se a área da Estação das Artes, onde se encontra a Pinacoteca do Ceará, do Centro Cultural Cariri e do renovado Museu da Imagem e do Som Chico Albuquerque (MIS).

São números impressionantes especialmente após a política de terra arrasada na cultura empreendida pelo governo federal que se encerra em 2022, tendo reduzido a liberação de recursos na lei de Incentivo à Cultura da ordem de R$ 241 milhões por ano para R$ 36 milhões, segundo dados obtidos pelo governo de transição.

Essa conquista cearense é fruto de um “ambiente de resistência”, como define o secretário de Cultura do Estado do Ceará, Fabiano Piúba, há sete anos no cargo. Ele começou como secretario adjunto no início da primeira gestão de Camilo Santana, que teve início em 2015, e no ano seguinte já se tornou secretário. Após dois mandatos, Camilo foi eleito agora senador pelo Ceará e sua vice, Izolda Cela, inaugurou os novos equipamentos entregues, como a Pinacoteca, em dezembro.

Essa política começou a se definir já em 2016, quando Juca Ferreira era ministro da Cultura, em meio ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. “O último ato do Juca foi a convocação de uma reunião do Conselho Nacional de Política Cultural porque nós sabíamos que era importante criar um ambiente de resistência”, conta Fabiano, que foi o presidente deste Conselho durante os anos Temer. Em 2016, o presidente chegou a extinguir o Ministério da Cultura, mas voltou atrás após uma semana de protestos.

Esse contexto é importante para se apontar como a criação desses novos equipamentos faz parte da percepção da importância de políticas de Estado em tempos de crise, que se tornaram mais graves com a própria extinção de fato do Ministério da Cultura na gestão Bolsonaro. “O Ministério foi reduzido a uma secretaria muito pequena e refundá-lo agora vai dar muito trabalho”, prevê Fabiano. Mesmo assim, o Fórum Nacional de Secretários de Cultura obteve ganhos importantes através do Congresso Nacional, por meio da Lei Aldir Blanc, que conseguiu R$ 3 bilhões para o setor.

Visão geral da mostra "Amar se aprende amando", dedicada ao artista cearense Antonio Bandeira. Foto: Marília Camelo
Visão geral da mostra “Amar se aprende amando”, dedicada ao artista cearense Antonio Bandeira. Foto: Marília Camelo
Microministério

Se no nível federal houve desmonte, as secretarias estudais, como a do Ceará, assumiram o papel de “microministérios”, também na definição de Fabiano: “E o Nordeste acabou exercendo a função de uma luz acesa no Brasil, assumindo a resistência cultural, com os princípios da cidadania e diversidade, das políticas afirmativas e da livre expressão do pensamento e da criação gestadas durante o exercício de Gilberto Gil como ministro.”

Fabiano também credita à própria formação do governador Camilo Santana, o interesse e a valorização na cultura na gestão. “Tivemos a sorte de ter um governador que compreende o papel e o local da cultura”, diz ele, expressando em números essa percepção: o Ceará saiu de um orçamento anual da cultura da casa de R$ 63 milhões para quase R$ 300 milhões em 2022. Assim, em oito anos, o investimento em cultura superou R$ 1,3 bilhões. São Paulo, com um orçamento de R$ 82 bilhões – o do Ceará é três vezes menor, da ordem de R$ 28,7 bilhões –, repassou para a cultura, em 2022, R$ 645 milhões. Ou seja, proporcionalmente, Ceará investe bem mais em cultura que São Paulo.

Todos os novos equipamentos estão sob o cuidado do arquiteto português José Manuel Carvalho Araújo, convidado diretamente para a tarefa. Suas intervenções, discretas e respeitosas com a história de cada local, faz certo tributo a seu conterrâneo Álvaro Siza, especialmente pela escolha de materiais e da modernidade no traço. 

Araújo é autor de vários projetos comerciais em São Paulo, além de Portugal, e seu nome veio por meio de um grupo que há anos pretendia criar um espaço para a fotografia na cidade, composto, entre outros, pelo fotógrafo Tiago Santana, organizador do Fotofestival Solar e irmão de Camilo, do professor universitário Silas de Paula, atual diretor do MIS, e do artista Rian Fontenele, atual diretor da Pinacoteca do Estado. Esse grupo acabou formando uma espécie de conselho para a implementação dos novos projetos, tanto que alguns deles assumiram funções gerenciais agora em sua implementação.

Esse complexo é constituído pela Estação das Artes, a antiga estação ferroviária do Ceará, onde estão a Pinacoteca do Estado, a nova sede da Secretaria da Cultura, o Iphan, o Museu Ferroviário e o Centro de Design, mais a ampliação do Museu da Imagem e do Som, e o Centro Cultural Cariri, no interior do estado, onde antes funcionava um seminário religioso e depois um hospital. Além de espaços expositivos, ele vai contar com teatro e planetário.

A administração destes equipamentos é feita por uma OS (organização social), o Instituto Mirante de Arte e Cultura, criado para esta função. É importante lembrar que a primeira OS dedicada à cultura no país surgiu justamente em Fortaleza para cuidar do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, inaugurado em 1999, um complexo que abriga, entre outros, o Museu de Arte Contemporânea e o Museu da Cultura Cearense.

Clébson Francisco, “Independência e morte”, 2019. Foto: Fabio Cypriano
Pinacoteca

Inaugurada no dia 3 de dezembro, a Pinacoteca possui uma área total de 9,2 mil metros quadrados, com uma área expositiva de 3 mil metros quadrados e a reserva técnica de 869 metros quadrados, área superior ao espaço expositivo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, com mobiliário projetado especialmente para ela, o que reforça a seriedade de todo o projeto. Coincidentemente, a coordenadora da nova reserva técnica é Cláudia Falcon, que antes exercia essa função no MAM paulista.

Para o secretário de Cultura, Fabiano Piúba, a criação da Pinacoteca se insere em uma política de fortalecimento institucional, que vem já desde os final dos anos 1980 com a gestão de Violeta Arraes (1926-2008) como secretária de Cultura do governo Tasso Jereissati, quando é recuperado o Theatro José de Alencar, e depois com Paulo Linhares, secretário do governo Ciro Gomes, no final dos anos 1990, e que criou o Dragão do Mar.  “Costumo dizer que não existe uma política própria para uma biblioteca, uma Pinacoteca ou para um museu. O que existe são políticas de fomento às artes, de patrimônio cultural e memória, de formação artística e cultural, de cidadania e diversidade e como esses equipamentos culturais são ambientes para o pensamento, a formulação e a execução dessas políticas culturais”, explica Fabiano.

Bandeira e Aldemir, 100

No caso da Pinacoteca, parte central de sua missão é receber um importante acervo que foi acumulado ao longo de décadas e que estava espalhado em gabinetes e espaços não muito adequados, ainda em catalogação. Recentemente, por meio da lei Aldir Blanc, foram gastos R$ 2 milhões para ampliação do acervo levando-se em conta representatividade de gênero e raça.

É possível ter uma ideia da abrangência deste acervo levando-se em conta apenas uma das exposições inaugurais, Amar se aprende amando, dedicada ao artista cearense Antonio Bandeira (1922-1967), que possui 645 obras expostas e, desse total, apenas uma é emprestada, todas as demais são da própria Pinacoteca. “A maioria das obras aqui nunca foi exposta e é um recorte que vai muito além da visão embranquecida que o mercado criou sobre o Bandeira”, revela o curador da mostra, Bitu Cassundé, que tem Chico Porto como adjunto.  

Ele precisou batalhar para tirar algumas obras icônicas de Bandeira de gabinetes do governo, mas o resultado é muito impressionante. Bitu apresenta um artista muito além do abstrato, como é mais conhecido, e suas várias relações, no Brasil e no exterior, com o circuito das artes, entre elas sua proximidade com a arquiteta Lina Bo Bardi, que inaugurou o Museu de Arte Moderna da Bahia, no Teatro Castro Alves, em 1960, com uma exposição dedicada a ele. Bandeira, que viveu em Paris nos seus últimos anos, é ainda pouco celebrado por seus autorretratos, dois deles na mostra, que o empoderavam como artista homossexual e negro, um feito raro em meados do século passado. 

Antonio Bandeira, “Autorretrato no espelho”, 1945. Foto: Divulgaçãp

Bandeira também era amigo de outro artista cearense que nasceu no mesmo ano que ele, Aldemir Martins (1922-2006), tema de outra das mostras inaugurais da Pinacoteca, No lápis da vida não tem borracha, a cargo da curadora Rosely Nakagawa, que tem como adjunta Waléria Américo. Com isso, a Pinacoteca é inaugurada no centenário de dois artistas locais, com exposições que ampliam o repertório sobre cada um deles. No caso de Aldemir, sua obra vai além dos gatos e galos conhecidos, apresentando um artista mestre do traço e muito atento à cultura local.

Finalmente, a série de mostras que inaugura a Pinacoteca é uma ampla pesquisa sobre arte contemporânea cearense, intitulada Se Arar, a cargo de Cecília Bedê, Herbert Rolim, Lucas Dilacerda, Maria Macedo e Adriana Botelho. Com 169 artistas de várias gerações, de José Leonilson (1957-1993) a Clébson Francisco (1994), a exposição traz um panorama da cena local bastante contundente, marcada por ampla diversidade. Do total exposto, 91 obras são do acervo da Pinacoteca.

Para além do acervo e das exposições, a Pinacoteca é encarada, segundo seu diretor Rian Fontenele, como “museu ateliê”. “Como artista, sei que até um caderno pode ser visto como ateliê, mas a ideia aqui é que a Pinacoteca seja um espaço de experimentação, de reflexão, de referência e memória”, conta. 

O conjunto das três mostras inaugurais é denominado Bonito pra chover, uma expressão cearense que se diz quando o céu está carregado, e vem água por aí. É um título bastante adequado ao resultado do que o “ambiente de resistência” está criando no Ceará: uma radical transformação em seu panorama cultural. 

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