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Jacques Leenhardt analisa a obra de Wifredo Lam

Wifredo Lam
Wifredo Lam diante de La Jungla (1943) e La Mañana verde (1943) em seu estúdio em Havana. La Silla (1943) está sobre o piso, 1943 Foto: Wifredo Lam Archives, Paris

A sala de Wifredo Lam na 35ª Bienal de São Paulo é um dos marcos positivos desta edição. O artista cubano foi reconhecido por Picasso, Breton e pelos surrealistas logo que chegou a Paris em 1938. Antes, ainda muito jovem, foi para Espanha onde fez parte de seus estudos de arte. Só depois, como grande parte dos artistas de sua geração, é que se fixa em Paris. Mesmo com a amizade próxima de Picasso, Lam conseguiu desenvolver uma obra personalista, reconhecida no mundo e que suscitou o desejo de possui-la por parte de importantes museus e colecionadores. Das oito obras agora expostas em sala especial na 35ª Bienal, duas são do Malba (Buenos Aires), duas do Centre Georges Pompidou (Paris), e as demais pertencem a colecionadores particulares.

Jacques Leenhardt, crítico francês, com trânsito fluído pelas universidades da América Latina, proferiu palestra nesta Bienal sobre o artista e, entre os muitos compromissos no Brasil, dá uma sucinta entrevista à arte!brasileiros.

ARTE!✱ – Hoje o decolonialismo está na pauta da academia, nos discursos políticos, nas manifestações estudantis de rua. No livro Mi pintura, Wifredo Lam escreveu “Minha pintura foi um ato de descolonização”. Você poderia comentar?

Jacques Leenhardt – Acho muito perigoso querer incluir um artista da importância e da complexidade de Wifredo Lam imediatamente no debate “decolonial”, que tomou um rumo muito distante da busca de síntese que caracteriza sua obra pictórica. O importante, e que vem em primeiro lugar, deve ser: ver e meditar acerca das obras.

Le sombre Malembo
“Le sombre Malembo, dieu des carrefours”, 1943, de Wifredo Lam. Crédito: Reprodução

É claro que Lam era um anticolonialista. Anticolonial por meio de uma preocupação constante em construir a possibilidade de um modo de ser diferente. Isso lança luz sobre debates que muitas vezes são simplistas demais. Lam trabalhou a partir de várias origens e heranças culturais que, em suas próprias contradições, constituíram sua identidade. Ele fala de seu “antigo desejo de integrar na pintura toda a transculturação que havia ocorrido em Cuba entre aborígenes, espanhóis, africanos, chineses, imigrantes franceses, piratas e todos os elementos que compõem o Caribe. E eu reivindico”, disse, “todo esse passado para mim. Acredito que essas transculturações transformaram essas pessoas em uma nova entidade de valor humano indiscutível.”

Nessas poucas palavras, posso ver os contornos de sua posição ideológica. Por meio da noção de transculturação, que ele toma emprestada de seu amigo, o antropólogo cubano Fernando Ortiz, ele deixa claro que o advento de um ser humano no auge de sua humanidade exige a destruição de barreiras, sejam elas raciais, econômicas, sociais ou nacionais.

Esse é o trabalho que ele realiza em suas pinturas, nas quais retrata e supera a violência que caracteriza as relações humanas. Assim como as guerras e os poderes não democráticos, a colonização explorou toda essa violência. Ela deve ser combatida, assim como seus efeitos posteriores, por meio da aceitação e da abertura, e não por meio de novas violências.

A Bienal fez muito bem, acho, em incluir seu trabalho nesse debate altamente atual, pois pode-se dizer que muitas de suas principais pinturas, como El tercer Mundo (1956), Os Abalochas dançam para Dhambala, deus da unidade (1970), são apelos para curar as feridas da história. O objetivo de seu trabalho é tornar possível a reunificação do que foi brutalmente separado. A onipresença de lâminas e tesouras em suas pinturas fala do estado do mundo, não de seu futuro. Em 1943, ele pintou A Selva, uma metáfora das trágicas condições históricas criadas pela indústria açucareira e seu modo de produção escravagista. A partir de então, durante as décadas de 1950 e 1970, Lam construiu uma coreografia de figuras e símbolos em suas pinturas, extraídas das diferentes culturas que o nutriram, em particular a santeria cubana e o vodu haitiano. Se suas figuras parecem dançar na tela, é porque o artista está transmitindo a elas um movimento de transcendência que tende a uma unidade perdida. Acredito que essa seja sua luta anticolonial.

Le Matin vert
“Le Matin vert”, 1943, Wifredo Lam. Crédito: Reprodução

ARTE!✱ – O aprendizado de Wifredo Lam na Espanha pré-revolucionária, numa época de muitas discussões sobre o futuro daquele país, imprimiu qual tipo de influência na obra do artista?

Leenhardt – O aprendizado espanhol de Lam o levou ao desenho de Dürer e à pintura de Goya, que ele revisitou mais tarde, seguindo Picasso, por meio da representação multifocal do cubismo. Matisse lhe trouxe uma concepção antiperspectivista do espaço pictórico que o ajudou a se distanciar de sua própria herança europeia. Nenhuma dessas tradições se perdeu desde então, e todas alimentaram seu trabalho com essa multiplicidade.

ARTE!✱ A sala de Wifredo Lam nesta 35ª Bienal de São Paulo exibe algumas obras fundamentais feitas no contexto de exílio político e de suas jornadas transatlânticas pelos mares dos navios negreiros. O que você destacaria?

Leenhardt – As oito pinturas expostas na Sala Especial ilustram o ponto de virada da década de 1940: expulso pela Guerra Civil Espanhola e, depois de se estabelecer em Paris em 1938, expulso pelas tropas alemãs, Lam retornou a Cuba e embarcou na grande síntese transcultural que o torna tão contemporâneo. Compreendendo que não era chinês, nem africano, nem europeu, ele descobriu que era “caribenho”, parte desse arquipélago de culturas que a violência da história havia criado no coração da indústria açucareira. Em seus olhos, assim como nos olhos de seus amigos martinicanos Aimé Césaire e Edouard Glissant, do próprio coração das contradições que constituem esse arquipélago, surge a possibilidade de imaginar, de sonhar e de pintar, um futuro para a humanidade. ✱

O grande coro de vozes negras, indígenas e LGBTQIAPN+

Um dos primeiros trabalhos de Coreografias do impossível no térreo do Pavilhão da Bienal de São Paulo é o pedestal de um monumento. Essa base serviu para uma performance da artista de origem maya-caqchiguel, da Guatemala, Marilyn Boror Bor, na qual suas pernas foram cimentadas. Após alguns minutos, contudo, ela deixou o pedestal vazio.

Durante a 35ª Bienal de São Paulo, Monumento vivo será visto como um pedestal que não idolatra a ninguém e tem em sua base escrito: “Em memória dos defensores da terra; em memória dos guias espirituais, em agradecimento aos presos políticos; em agradecimento aos líderes comunitários; para os rios, os lagos, as colinas, as montanhas.”

O vazio do monumento é um gesto que me parece simbolizar a mostra, organizada por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, na primeira vez em que uma equipe com maioria negra, em nada menos que 72 anos de história, é responsável pela Bienal de São Paulo.

Não é uma mostra de trabalhos com efeitos sensacionalistas, aqueles que se costumam chamar de obras de bienal, mas, como o Monumento vivo, apontam para gestos que buscam questionar o cânone universal, sem, contudo, colocar outro no lugar. E isso é muito bom.

É como o trilho de trem sem serventia, que está logo na entrada da exposição, parte da instalação Parliament of Ghosts (Parlamento de fantasmas) de Ibrahim Mahama, artista de Gana, que lembra das iniciativas dos colonizadores na África com toda sua violência estrutural. Ao lado, contudo, ele recria arquibancadas de tijolos vermelhos do salão de seu estúdio, um local para criação e diálogo.

Seria então essa uma bienal decolonial? Esse não é um conceito reivindicado pela equipe curatorial, mas não há dúvida que a opção foi elencar uma serie de iniciativas e narrativas que questionam a história oficial, por meio de trabalhos e gestos não necessariamente no campo da arte convencional.

Entre eles estão tanto coletivos atuais, como a paulistana Frente 3 de Fevereiro e o argentino Archivo de la Memoria Trans Argentina (AMT), a trabalhos de quase dois séculos atrás, como os do boliviano Melchor María Mercado (1816-1871).

Mercado é visto com o Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes, realizado entre 1841 e 1869, que faz uma narrativa bastante surrealista sobre a nação boliviana em seus primórdios, ironizando o poder político e apontando para a corrupção da elite colonial. É genial.

Já a Frente 3 de Fevereiro é vista em uma instalação que conta e contextualiza sua história, marcada por denúncias em espaços públicos, como as icônicas faixas Onde estão os negros e Zumbi somos nós estendidas em estádios do campeonato brasileiro de futebol, em 2005. Na instalação, por meio de recursos tecnológicos, Dona Maurinete Lima (1942-2018), uma das criadoras do movimento, surge narrando o trabalho. É comovente.

Enquanto isso, o coletivo argentino AMT apresenta uma seleção de imagens de seu acervo de 12 mil peças, que tem por objetivo conectar pessoas, chegando a reunir mais de mil mulheres trans, em 2018. O arquivo também é acessível de forma online, e na mostra parece uma nuvem de imagens.

Essas três iniciativas apontam para como esta Bienal visa mais do que olhar para o campo da arte, expondo iniciativas que repercutem na cultura de forma mais ampla. É o caso também da série de fotos de Rosa Gauditano feitas por dois meses em 1978, das 23h às 6h, com as frequentadoras do Ferro’s Bar, tradicional bar lésbico no centro de São Paulo, uma série censurada pela revista Veja, e agora encenada com como fosse exibida em um ambiente boêmio. Nas imagens, há uma intimidade incomum com as mulheres, em uma época que o fotojornalismo ainda era marcado por frieza e distanciamento. São esses gestos inovadores, mesmo que invisíveis quando realizados, que essa Bienal expõe. O impossível se tornando possível por pequenos movimentos.

Sobre silenciamento, aliás, é particularmente tocante a seleção de trabalhos de Aurora Cursino dos Santos (1896-1959), que fez parte de sua produção no hospital psiquiátrico do Juquery, internada após uma vida que mesclou casamento, viagens pela Europa e prostituição. Momentos de sua vida são narradas em suas pinturas, que a curadoria expõe de forma a perceber como elas eram feitas sobre pacotes de chiclete. Outros internos em manicômios, como Stella do Patrocínio, Arthur Bispo do Rosario e Ubirajara Ferreira Braga também comparecem em Coreografias do impossível com amplas séries de trabalhos.

Agora, é inegável que esta Bienal também tem uma presença retumbante da produção de dentro do sistema da arte, especialmente em obras de mulheres como Citra Sasmita, Rosana Paulino e Carmézia Emiliano. A nova série de Rosana, pinturas de grandes dimensões de mulheres que criam raízes e se mesclam a árvores, é de tirar o fôlego, assim como também são impressionantes as pinturas de Citra. A artista de Bali apresenta o projeto Timur Merah (Leste Vermelho), no qual mulheres indonésias de longos cabelos negros interpretam nuas vários papeis, humanos e animais, retomando aqui a perspectiva que faz da natureza uma grande família, como em Rosana Paulino. Essa visão holística é vista também nos quadros de Carmézia, que expõe o dia a dia dos povos Macuxi, em Roraima. Aliás, há uma constelação de trabalhos indígenas, seja nos poéticos vídeos de Aida, Edmar e Roseana Yanomami, seja nas pinturas do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku), ou nas obras de Denilson Baniwa e Edgar Calel.

NÃO LINEAR

Como se percebe, a mostra é cheia de fricções, mas não é nada literal, o que é um alívio, já que não há um conceito que delimite como se olhar os trabalhos. A temporalidade também é algo relativizado na mostra, sem dispor as obras como se fizessem parte de uma linearidade cartesiana. Um dos destaques nesse sentido é a pintura de Juan van der Hamen y León, o Retrato de Dona Catalina de Erauso. A freira alferes, de cerca de 1625, que apresenta uma imagem masculinizada de uma monja, apontando para um sexualidade líquida já no século XVII, ao lado dos documentos do século XVI que apontam a escravizada Xica Manicongo como a primeira travesti do Brasil.

Aliás, o retrato é o tema do vídeo Uma voz para Erauso. Um epílogo para um tempo trans, da dupla espanhola Helena Cabello e Ana Carceller, que há dois anos trouxe a público a complexa figura do barraco espanhol, que se livrou do binarismo de gênero.

A questão LGBTQIAPN+ de fato é um eixo forte da mostra, e outro trabalho que merece atenção é o filme Línguas desatadas, de 1989, feito por Marlon Riggs (1957-1994), um documentário autoral sobre a vida de gays negros nos Estados Unidos.

Ao reunir obras e trabalhos de distintos períodos, como esses últimos três, esta Bienal opta por ser menos explícita em relação ao tempo presente, como muitas mostras deste gênero costumam fazer, mas falam de debates atuais sob uma perspectiva mais ampla, transformando a exposição em um contexto mais museográfico.

A morte é companheira
“A morte é companheira”, de Ubirajara Ferreira Braga. Foto: Patricia Rousseaux

Essa impressão é reforçada pela própria arquitetura da exposição. Não é fácil enfrentar o pavilhão modernista de Oscar Niemeyer, que com sua amplitude e linhas curvas, tendem a dominar os espaços. O grupo de arquitetos Vão, sabiamente, usou dessas curvas para questionar o próprio espaço, reorganizando o percurso do prédio – do primeiro andar pula-se para o terceiro para se encerrar a visita no segundo andar, fechando-se ainda o vão central, em uma gesto radical, mas eficaz.

Paredes brancas, poucas salas com intervenção mais radical, essa é uma Bienal de muito respiro e grandes espaços, mas que também conduz o visitante a ambientes mais íntimos quando necessário. É com muita elegância que se aborda as mazelas do mundo em (im)possíveis gestos de superação.

Elegância e crítica estão presentes nas obras selecionadas de Sidney Amaral (1973-2017) para a mostra. Em sua pintura O estrangeiro (2011), ele se autorretrata como um barqueiro que estaria nos subterrâneos obscuros do pavilhão da Bienal, sem ter a chance de pertencimento a este território – daí o título da obra. Agora em 2023, quem diria, ele não é mais um estrangeiro, mas parte de um grande coro de corpos negros, o maior que essa bienal já viu. Finalmente, o impossível ficou agora possível. ✱

Poesia em trânsito

Com 121 artistas e mais de mil obras ocupando uma área de 30 mil metros quadrados, a 35ª Bienal de São Paulo concentrará ao longo dos próximos meses as atenções do circuito das artes no país. Esse poder imantador se dá pela atração de milhares de visitantes ao Pavilhão, mas sobretudo pela enorme capilaridade desse processo, capaz de transformar as questões centrais discutidas na mostra em elementos centrais do debate, da produção e da disseminação do pensamento sobre arte. Sob o tema Coreografias do impossível, a mostra agrupa uma quantidade recorde de artistas não brancos, cujas poéticas desafiam uma noção eurocêntrica e linear da história, resgatam tradições, jogam luz sobre questões e comunidades invizibilizadas. Predominam com grande intensidade as estratégias comunitárias, a combinação de diferentes linguagens e técnicas e uma permanente sedução dos sentidos.

Quem abre a 35ª Bienal de São Paulo é Ibrahim Mahama, artista de Gana que já foi destaque na Bienal de Veneza, com uma amplíssima instalação composta por elementos como um trilho de trem, uma série de vasos de cerâmica que pontuam o espaço e uma grande arquibancada de tijolos, que deve receber uma série de ações ligadas ao programa público do evento, que conta com uma extensa programação de performances, debates e conversas. (disponível em 35.bienal.org.br/agenda).

A sensação inicial de amplitude se prolonga ao logo de praticamente toda a exposição, graças à expografia projetada pelo escritório Vão, que propôs o fechamento parcial das aberturas que conectam a lateral do segundo andar ao vão central, criando espaços mais livres para os vários núcleos expositivos e possibilitando uma quebra da ideia já consolidada de que o terceiro andar funcionaria quase que naturalmente como um espaço mais museológico dentro da Bienal.

A transdisciplinaridade, em termos de conceito e linguagem, é uma das marcas dessa edição. O hermetismo prenunciado nos primeiros textos curatoriais deu lugar a um conjunto leve e fluido, em que a diversidade poética e o espírito coletivista parecem predominar. Chamam atenção a recorrência de trabalhos realizados em parceria e o grande número de coletivos, artísticos e políticos. Movimentos como o coletivo Ayllu, a cozinha da Ocupação 9 de julho (que assume o restaurante), a Frente 3 de Fevereiro, o Giap (Grupo de Investigación em arte y política) ou ainda o Zumví Arquivo Afro, apenas para citar alguns, têm presença marcante na mostra. Convém lembrar que a própria curadoria responde por esse princípio agregador, sendo assinada conjuntamente por Diane Lima, Grada Kilomba e Manuel Borja-Villel, num cuidadoso equilíbrio entre gêneros, origens e formações.

TEMPO ESPIRALAR

Alguns elementos parecem pontuar toda 35ª Bienal de São Paulo, revelando afinidades entre os mais diferentes autores. A forma circular ou serpenteada, que remete à ideia de tempo espiralar e à critica ao pensamento modernista ocidental e ao conceito linear de progresso – derivado do pensamento de Leda Maria Martins –, é recorrente na mostra. Compreender a história como campo aberto de possibilidades é uma estratégia comum dos convidados da 35ª Bienal de São Paulo e seu conceito de tempo espiralar. São muitos os trabalhos que ilustram essa relação, como Uma voz para Erauso. Epílogo para um tempo trans, de Helena Cabello e Ana Carceller. Ou a potente instalação de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, que conduz o visitante numa viagem imersiva e sensorial pela mata. A terra, as ânforas, vasos e alguidares são também materiais constantes, indícios de culturas milenares, de pertencimento a tradições massacradas, mas que permanecem de pé, a exemplo das obras de Castiel Vitorino Brasileiro, Daniel Lie, M’Barek Bouhchichi, entre outros.

O tom não é de urgência, apesar de já termos passado da hora de superar as questões políticas, sociais, ambientais ali abordadas. Não impera tampouco a resignação, mas uma certa sabedoria em entender os múltiplos tempos entrecruzados. O tempo do horror da escravidão e o da sabedoria dos habitantes da floresta, o tempo do drama dos imigrantes abandonados à própria sorte e aquele das vítimas da LGBTfobia, da brutalidade colonial e do sofrimento psíquico. São trabalhos que, na maioria das vezes, oscilam entre “esperança e desespero”, como sintetiza Carles Guerra no texto de apresentação da artista filipina Geraldine Javier. Ou que possuem, na definição de Diane Lima, “uma beleza terrível”.

Nous sommes ce qui vous ne voulez pas voi
“Nous sommes ce qui vous ne voulez pas voi”, 2023, M’barek Bouhchichi. Foto: Levi Fanan_Fundação Bienal de São Paulo

A ideia de coreografia, presente no título da mostra, ecoa por todos os andares do Pavilhão. São muitos os trabalhos que parecem flutuar no espaço, expandir-se de forma invisível, como Pulmão da mina: o ar também alaga, de Luana Vitra. Obras como a instalação de Niño de Elche fazem literalmente o público dançar; Pauline Boudry e Renate Lorenz investigam o movimento do corpo e fundem de forma desconcertante o espaço do vídeo e o espaço físico da exposição; isso sem falar nas referências históricas como Katherine Dunham. Mas não se trata apenas de uma presença importante de trabalhos e artistas vinculados à dança, ao movimento e à música, mas da ênfase em trabalhos que se constroem a partir do movimento – real ou simbólico – no tempo e no espaço. Assim é o trabalho de Ana Pi e do sacerdote do candomblé Taata Kwa Nkisi Mutá Imê: quatro hastes de bronze que se movem de forma sincronizada, como antenas, sobre um chão de vestígios, imagens e falas costuradas a partir das experiências coletadas pela dupla numa longa jornada que conecta África, França, Brasil, em busca de identidades, memórias e afetos. “Acelerar emoções é o papel da arte”, diz a artista.

Julien Creuzet, originário da Martinica e que representará a França na próxima Bienal de Veneza, também faz da dança elemento central de seu trabalho. Em parceria com alguns coreógrafos, entre eles Ana Pi, ele coloca para dançar esculturas tradicionais africanas ao ritmo de músicas contemporâneas como o hip hop. Ele se contrapõe assim, mesclando ironia e olhar agudo contra estereótipos, à argumentação defendida pelos cineastas Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet em As Estátuas também morrem (1953), de que os ídolos seriam cadáveres quando saem de seu ambiente de culto e proteção e são transferidas para os museus e mobiliza assim um poder permanentemente renovável de resistência.

Brincando animada
“Brincando animada”, 2023, Tadáskía. Foto: Patricia Rousseaux

Kitlat Tahimik também dialoga com o cinema – sem usar câmera ou película. Sua narrativa temporal se faz a partir de objetos. Coloca em confronto monstros e mitos, modernos e antigos, com acidez e provocação ao mostrar Mickey Mouse, com uma motosserra em mãos, prestes a castrar uma figura mitológica ancestral de enorme falo, algo como um deus da fertilidade, ou reconstrói o cavalo de troia em conexão com armamentos de última geração. Até mesmo uma obra que aparentemente seria só um exercício cinético, uma experimentação sedutora com a luz e a cor, toca em feridas profundas e propõe rever lógicas perversas de dominação. Em sua instalação Pink-Blue, Kapwani Kiwanga associa luzes fluorescentes usadas em dois dos mais terríveis ambientes de controle da sociedade contemporânea: as instituições psiquiátricas e as prisões. Enquanto no primeiro a iluminação branca supostamente acalmaria instintos agressivos, no segundo a cor azul era usada para dificultar a localização das veias, dificultando assim o consumo de drogas injetáveis. ✱

“Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro” incentiva a produção afro-brasileira

“Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro” incentiva a produção afro-brasileira

 

Com curadoria geral de Igor Simões, a exposição reúne 240 artistas de todos os estados brasileiros que apresentam trabalhos em diversas linguagens artísticas. A partir de 2024, uma parte da mostra circulará em espaços do Sesc por todo o país pelos próximos 10 anos.

O espaço expositivo se divide em sete núcleos que trazem como referência pensamentos de importantes intelectuais como Beatriz Nascimento, Emanoel Araújo, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzales e Luiz Gama.

“Dos Brasis é a prova de que nunca houve invisibilidade ou silêncio entre os artistas negros brsileiros. O que existiu foi uma escuta seletiva e uma visão seletiva”, aponta Simões.

arte!brasileiros visitou a mostra, em cartaz no Sesc Belenzinho, e conversou com o curador. Assista:

 

SERVIÇO
Sesc Belenzinho: Rua Padre Adelino, 1000 – Belém, São Paulo – SP
Em cartaz até 31 de março de 2024
Visitação: de terça a sábado, das 10h às 21h; domingos e feriados, das 10h às 18h

Na Galeria Estação, “Reversos e Transversos” busca dissolver dicotomia entre arte popular e erudita

Tia Sinoa, 2019, Dalton Paula. Foto: Paulo Rezende
Tia Sinoa, 2019, Dalton Paula. Foto: Paulo Rezende

O que tornam as esculturas do baiano Agnaldo dos Santos (1926-1962) mais prestigiadas pelo sistema da arte do que as carrancas de seu conterrâneo – e confessada referência em sua formação artística – Mestre Guarany (1884-1985)? Ou ainda a produção da pintora pernambucana Lúcia Suanê (1922-2020) abismalmente menos valorizada do que as obras de Alfredo Volpi (1896-1988), com quem guarda aproximações poéticas e de linguagem?

Na exposição Reversos e Tranversos: artistas fora do eixo (e amigos) nas bienais, em cartaz na Galeria Estação, o artista e curador Ayrson Heráclito investiga como questões de raça ou gênero, entre outras, provavelmente estão na base da paulatina segregação ocorrida entre os artistas ditos populares e aqueles tidos como eruditos, num processo consolidado ao longo de sete décadas pelas bienais.

“O Volpi, este artista imigrante italiano, que havia sido pintor de paredes, foi eleito por um grupo como um grande mestre, de grande inteligência formal, o que o retirou de um limbo de artista primitivo, sem elaboração. Quase contemporânea do Volpi, a Lúcia não teve essa mesma sorte. Será que foi uma questão de gênero?”, questiona Heráclito, em entrevista à arte!brasileiros. “Ambos, como artistas, foram próximos, mas hoje existe uma grande distância de legitimação. Então, fazemos nesta mostra uma ponte entre os artistas para salientar o abismo que há entre essas produções no reconhecimento pelo sistema da arte brasileira. Volpi não é esteticamente superior a Lúcia; ambos são muito importantes em suas construções e complexidades. Mas não são vistos nesta horizontalidade”.

Reversos e Transversos começou a ser concebida no ano passado, depois que Vilma Eid, galerista à frente da Estação, viu a exposição Yorùbáiano, em que Heráclito reuniu na Pinacoteca de São Paulo quase 40 anos de sua minha produção artística. Eid já conhecia também seu trabalho como curador, na mostra Histórias afro-atlânticas, apresentada em 2018 pelo Masp. Heráclito, por sua vez, considera-se um “grande visitante” da Estação, “galeria que tem um acervo muito diverso, sobretudo de artistas afro-brasileiros e, mais recentemente, cada vez mais artistas indígenas”.

Convite aceito, o curador, que também é um dos artistas selecionados para 35ª Bienal de São Paulo, inicialmente pensou em fazer mostras individuais na galeria, “nomes que eu achava importante apresentar para galeria e apresentar, principalmente, para o sistema da arte de São Paulo”, diz. “Com o desenvolvimento das nossas conversas, surgiu a ideia de fazer algo no contexto da 35ª Bienal. Veio então a ideia de pensar em muitos artistas, que estão na galeria, e tiveram uma história na legitimação das bienais, sobretudo as de São Paulo, na Bienal Latino-americana, na Naïf e na Mostra do Redescobrimento: Brasil+500”.

A exposição reúne trabalhos realizados com técnicas e suportes distintos, por 42 artistas de diferentes gerações, criações em sua maioria pertencentes ao acervo da Estação. Colocadas lado a lado, as obras falam por si mesmas: ora estética, formal ou tematicamente parelhas, indagam por que alguns artistas foram reconhecidos e outros, não. Além dos exemplos citados acima, Heráclito menciona Antonio Poteiro (1925-2010) em contraponto com Djanira, Marepe (1970) e Alcides Pereira dos Santos (1932-2007) e ainda um caso emblemático:

“Em 1951, na primeira Bienal de São Paulo, existiam muitos desses artistas [tidos como populares] na seleção da mostra. E o Heitor dos Prazeres [1898-1966], que é esse grande artista multimídia, que está sendo muito celebrado hoje, com uma grande exposição CCBB, e mostras paralelas em galerias privadas, ganhou uma medalha de prata, com a tela Moenda, lembra o curador. “O Heitor é um artista importantíssimo para pensar justamente esse momento de virada de uma arte moderna para uma arte, digamos assim, pop. Em seguida, a gente vai assistindo esses artistas sendo desconvidados, de certa forma, ou não convidados para participar das bienais”.

Heráclito conta que em suas pesquisas para Reversos e Transversos conseguiu identificar “alguns momentos até muito tensos, ao mesmo tempo reflexivos”, quando, por exemplo, na Bienal de São Paulo, a pop art entra no Brasil, com artistas como Andy Wahrol, Rauschenberg, Jasper Johns e Roy Lichtenstein. “Com a chegada deles a essa instituição importantíssima no mundo inteiro, que cria sistema de arte, os artistas ditos populares saem, são desconvidados, porque perdem espaço. E nesse momento se articula uma nociva ideia de que a arte contemporânea brasileira não poderia ser compreendida a partir daquelas referências populares”, afirma.

O curador ressalta que artistas como J. Cunha (1948), Aurelino dos Santos (1942) e mesmo Heitor dos Prazeres estabelecem relações “com um pop, com essa cultura de massa, a partir dessa perspectiva dos grandes centros urbanos, das grandes cidades”. Ainda assim, são alijados do sistema da arte. Entre os contemporâneos também presentes na exposição, Heráclito cita Xadalu Tupã Jekupé, selecionado para a 1ª Bienal das Amazônias, e Dalton Paula (1982), para ele um “exemplo de superação”.

“Quando começou a produzir, Dalton estava muito mais próximo da Bienal Naïf – um termo que acho muito preconceituoso, porque retira do artista o conhecimento e a sabedoria; é como se conhecimento fosse alguma coisa só acadêmica ou livresca – do que da Bienal de São Paulo. Hoje é um dos poucos artistas contemporâneos brasileiros que estão em grandes museus do mundo como MoMA. Justamente porque o mundo está mudando. Os conceitos estão sendo transformados, assim como a historiografia da arte, não só brasileira, mas mundial”.

MODERNISTAS, LINA E ABDIAS

Heráclito pondera que o “embate da arte popular como uma arte identitária no Brasil” teria sido inaugurado, de certa forma, pelos modernistas. “Foram dois projetos modernistas que se destacaram naquele período: o sudestino, em torno de Mário de Andrade, da antropofagia etc., e o nordestino, em torno de Gilberto Freyre, com o movimento regionalista”, lembra. “Esses dois projetos são muito distintos, mas tinham algo em comum, que era pensar a cultura popular como a identidade da arte brasileira, já que no século XIX toda a produção de arte brasileira era uma cópia da Europa. Mas os modernistas ainda vão estabelecer uma dicotomia entre a arte do povo, primitiva, autodidata, e a arte da elite, acadêmica ou uma arte mais de vanguarda”.

Segundo o curador, entre esses dois polos modernistas, Lina Bo Bardi (1914-1992) e Abdias do Nascimento (1914-2011) foram fundamentais em sua luta para “para desmanchar, dissolver essa dicotomia entre o erudito e o popular”, algo que busca reverberar em Reversos e Transversos. Para Heráclito, Lina foi muito importante porque começou a pensar os espaços expositivos de uma forma imersiva e refletir, sobretudo, sobre a questão afro, a questão indígena e a formação da própria cultura brasileira.

“E essa é uma cultura que se constrói a partir de diálogos, de negociações entre toda essa diversidade que é o Brasil. Mas Lina começa a construir todo esse sentido de uma forma não hierárquica, ela coloca tudo no mesmo patamar. Uma escultura do Aleijadinho com um ferro de um santeiro, como José Adário (1947). Uma carranca de Mestre Guarany com uma pintura de Portinari (1903-1962) ou Djanira (1914-1979)”, diz.

Já Abdias do Nascimento, ressalta o curador, promoveu uma reflexão importante em sua formação: aqueles artistas populares, ditos primitivos, eram tratados daquela forma porque eram negros. “Ele me ensinou, também, que dentro da história da arte brasileira há o racismo estrutural. E pensar esse racismo estrutural, a misoginia, as questões de gênero e sociais para mim é fundamental para desenhar os novos caminhos da história da arte brasileira”, argumenta.

“O que nós estamos fazendo com essa exposição é tentar escrever um capítulo, um artigo, sobre esses temas. Por isso que os textos [apresentados na mostra] são muito importantes para acompanhar não só o que está sendo exibido. São um discurso, um posicionamento político e ideológico frente a questões que são importantíssimas”, afirma. “E esse período da Bienal é um momento mais que perfeito, porque existe uma confluência muito grande. Não é à toa que a Bienal de São Paulo, nessa edição, é mais negra, feita não só por artistas, mas também curadores negros”.

SERVIÇO
Reversos e Transversos: artistas fora do eixo (e amigos) nas bienais
Até 28/10
Curadoria: Ayrson Heráclito
Galeria Estação – Rua Ferreira Araújo, 625 – Pinheiros – São Paulo (SP)
Horários: segunda a sexta, das 11h às 19h; sábados, das 11h às 15h; não abre aos domingos
Entrada:

Esquecer? Jamais! Lembrar? Sempre!

Em seu livro, Esculpir o tempo, o cineasta russo Andrei Tarkovsky (1932-1986) nos lembrava que: “o tempo constitui uma condição da existência do nosso ‘eu’. assemelha-se a uma espécie de meio de cultura que é destruído quando dele não mais se precisa, quando se rompem os elos entre a personalidade individual e as condições de existência”.

O tempo que nos cerca está diretamente ligado à memória. Memória de um tempo que vivemos, memória que nos alegra e que nos assombra. No caso do Marcelo Brodsky, 68 anos, fotógrafo argentino e ativista de direitos humanos, a memória é uma maneira de apontar e nos lembrar das crueldades do mundo: das perseguições, das injustiças, dos genocídios, das ditaduras! E a linguagem que ele escolheu para preservar esta memória foi a fotografia. Descendente de judeus russos emigrados para a Argentina, Brodsky nasceu em Buenos Aires, em 1954, e começou a fotografar na década de 1980, período em que esteve exilado em Barcelona por conta da ditadura militar em seu país natal. Na Espanha, enquanto cursava economia e fotografia, começou uma série de registros fotográficos em torno da imigração, tema presente em toda sua carreira. “Como artista judeu, necessito de imagens para expressar a importância da memória e explorar a relação com o tempo presente”, declara Brodsky.

Desta forma, o fotógrafo, durante sua carreira, resolveu acompanhar os percursos dos exilados, escolheu ser a voz dos que desapareciam pelas mãos dos ditadores, sofriam ou eram rechaçados pelas sociedades ocidentais, por suas escolhas políticas, por questões raciais. Suas imagens, suas narrativas poético-políticas podem ser acompanhadas no Museu Judaico de São Paulo (MUJ) na exposição Marcelo Brodsky: Exílios, Escombros, Resistências, uma retrospectiva de sua carreira com curadoria do crítico Márcio Seligmann-Silva: “A obra de Brodsky nasce de sua trajetória como exilado político, onde cruzam-se histórias de violência e destruição que desenham um painel da Modernidade, sendo  um local de aniquilação, mas também palco de lutas, de sonhos e de utopias”, pontua o curador sobre o artista, que trabalha na zona de encontro entre arte, história, arquivo e circuitos de informação. O caráter revolucionário da fotografia como registro contra o esquecimento é ressaltado pelo curador no texto expositivo. “Marcelo Brodsky é um artista fotógrafo, além de colecionar, ele intervém em outras fotografias, escrevendo, desenhando”.

Sã0 130 imagens histórias, revisitadas, recontextualizadas, que atravessam a história das ditaduras e suas feridas na América Latina, mas também apontam para o genocídio na Namíbia, no início do século XX, e a questão dolorosa dos refugiados e imigrantes no mar Mediterrâneo.

EIXOS CURATORIAIS

Para dar conta de tantas problemáticas a exposição organizada ao redor em três eixos: a questão dos Exílios como o primeiro deles, em séries como Migrantes – No Mediterrâneo e Abrir as Pontes, sobre problemas humanitários e a questão dos refugiados. No segundo eixo, Escombros, ele traz outra série, Remains – Escombros – AMIA, referente ao ataque terrorista sofrido pela Asociación Mutual Israelita Argentina em 1994, que deixou 85 mortos. Já em Resistências, o terceiro eixo, abre-se uma nova perspectiva para além das histórias de violência captadas por suas lentes, como, por exemplo, intervenções em que aparecem injustiças durante o período da ditadura na América Latina, questões de gênero e raciais nos Estados Unidos e no mundo afora.

Não poderia faltar na exposição a questão do assassinato da Marielle Franco em 2018. A fotografia da vereadora, realizada por Bernardo Guerreiro, foi multiplicada em diferentes cores ao estilo das séries Death and Disasters, de Andy Warhol. Pena que ficou faltando a imagem do motorista, também assassinado junto com a vereadora, Anderson Gomes.

A exposição, como bem pontua o curador, é “um colecionismo crítico de imagens dos séculos XX e XXI. Ou, como nos lembrava o filósofo da memória Henri Bergson (1859-1941), “na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças”.

SERVIÇO

Marcelo Brodsky: Exílios, Escombros, Resistências
Até 5/11
Curadoria: Márcio Seligmann-Silva

Museu Judaico de São Paulo Rua Martinho Prado, 128 Bela Vista São Paulo (SP)
Horários: terça a domingo, das 10h às 19h (última entrada às 18h30), exceto  quinta-feira, que abre ao meio-dia e fecha às 21h
Ingressos: R$ 20 inteira; R$10 meia. Sábados: gratuitos

Alunos de artes visuais da ECA planejam iniciar protestos contra a USP a partir desta segunda (14)

Escola de Comunicações e Artes (ECA). Foto: Marcos Santos/ USP Imagens
Escola de Comunicações e Artes (ECA). Foto: Marcos Santos/ USP Imagens

Por falta de docentes, o curso de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo cancelou 11 disciplinas a uma semana do início das aulas do semestre letivo, devido à revogação do contrato de diversos professores. Os estudantes e professores apontam descaso da reitoria para com os alunos das artes – o corte de professores afeta um terço da grade do curso, tornando inviável a graduação. O curso de Artes Visuais da USP foi o 12º mais procurado no último vestibular da universidade, com quase 31 candidatos por vaga.

Em uma manifestação convocada pelos estudantes de Artes Visuais da universidade para a última sexta-feira (11/7), na Avenida Paulista, foi divulgada uma carta aberta de diversos movimentos que aderiram ao protesto, como o Juventude Já Basta!. Eles receberam o apoio da Comissão Técnica Administrativa da ECA (CTA) em uma reunião na universidade no dia 8. Os manifestantes apontaram à CTA que muitos estudantes da ECA não conseguiram se matricular em disciplinas (algumas obrigatórias) e, portanto, encontram dificuldades em dar continuidade aos seus estudos. O descaso mostra uma situação paradoxal: segundo ranking divulgado há pouco mais de um mês, a USP é a melhor instituição de ensino superior da América Latina e a 85ª melhor do mundo, segundo a 20ª edição da lista QS World , um dos mais respeitados rankings de qualidade universitária do mundo. A lista já se refere a 2024.

O sucateamento, que parece programático, atinge diversos outros cursos da universidade, como Música, Artes Cênicas e Jornalismo. Há cortes de bolsas e precarização da moradia estudantil, o que pode contribuir para que a universidade entre num processo de degradação irreversível. “A falta de contratação de professores num curso como o de Artes Visuais da USP limita as oportunidades de desenvolvimento de novos talentos, como ainda compromete o prestígio da instituição e sua capacidade de atrair estudantes, parcerias e projetos relevantes, comprometendo a manutenção de um corpo docente qualificado e estável, vital para a qualidade do ensino na Universidade e desde seu início conectado à comunidade cultural e artística, desempenhando papel fundamental na formação de profissionais ligados à área”, diz a carta.

FORMATURAS ADIADAS

Das 11 disciplinas canceladas, já estava prevista a supressão de cinco delas, por falta de docentes ou sobrecarga de trabalho dos professores do Departamento de Artes Plásticas (CAP). Mas o anúncio de que outras seis disciplinas foram canceladas surpreendeu alunos e professores. As disciplinas não serão ofertadas porque os contratos de três docentes temporários do CAP deixaram de ser renovados, e não há outros disponíveis para assumi-las. Outras 11 disciplinas que deveriam ser ofertadas no primeiro semestre de 2024 também enfrentam indefinição até o momento.

A suspensão das disciplinas trouxe confusão também porque foi anunciada após a organização da grade horária do curso e das matrículas para o segundo semestre. De acordo com reportagem da Associação de Docentes da USP (Adusp), os estudantes tiveram que reorganizar às pressas as suas matrículas para conseguir o número mínimo de créditos para o semestre, e há casos de alunos que terão que adiar a formatura por falta da oferta de disciplinas. Um estudante lembrou que a situação pode ficar ainda pior, porque há previsão de cinco aposentadorias no CAP até 2026, uma delas já no ano que vem. Os alunos também alertaram que a falta de docentes pode acarretar a impossibilidade de uso do Laboratório de Modelagem e Fabricação Digitais e a redução de ofertas do Programa Unificado de Bolsas (PUB) no curso.

Fernando Leite utiliza a fotografia como um guia para a sua criação

Fernando Leite, Mira
Fernando Leite, Mira, 13 de maio de 2020. Foto: Thales Leite

Fernando Leite está em cartaz no Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro, com sua exposição individual, Ex-ótica. A mostra tem curadoria de Paulo Herkenhoff e apresenta 54 obras divididas em quatro séries de trabalhos. 

Em entrevista para a arte!brasileiros, o artista aponta que, enquanto Herkenhoff percebe um diálogo entre as obras, pelas questões comuns que envolvem a relação entre arte e natureza, Leite encara os conjuntos como “programas distintos, que podem, cada um obedecendo e desobedecendo aos critérios que criei, me levar a caminhos muito específicos”.

Foi a partir de 2007 que Leite começou a fotografar para atender demandas do seu trabalho como designer gráfico. “A edição da imagem em photoshop, que eu comecei a realizar para os livros de arte, me apresentou a fotografia como um campo de atuação, de interferência, em que eu poderia editar, manipular, fazer cortes, mudar perspectivas, alterar cores, enfim, um vasto campo de construção visual”, explica. 

Em 2014, trabalhou com Paulo Herkenhoff numa exposição no Museu de Arte do Rio (MAR) sobre a coleção Pororoca, de arte da Amazônia. O trabalho intenso resultou em uma exposição e um livro de 500 páginas. Ao longo do processo, Leite, que era responsável pelo projeto gráfico, mergulhou em obras de artistas, fotógrafos, escritores e pesquisadores que se relacionavam com um território natural. “A narrativa dos personagens de Milton Hatoum percorrendo trechos de rio para ir de um bairro a outro; as fotografias de Luiz Braga e Octavio Cardoso nas margens de rios; as performances de Luciana Magno no meio da floresta; assim como tantas outras obras, me fez perguntar a mim mesmo: ‘e o seu território natural?’, ‘e a sua floresta?’, ‘o seu rio?’. Minha resposta foi olhar para a Mata Atlântica, ou para o que restou dela, que era o meu entorno. A primeira pintura Ver te parece ser uma resposta a essa pergunta, e que me levou a empreender mais objetivamente os passeios fotográficos à Floresta da Tijuca”. 

As imagens em preto e branco que o francês Marcel Gautherot (1910-1996) registrou das áreas alagadas da Floresta Amazônica da década de 1940 serviram de referência para a série Igapós (2017-2023). Nesta, foi necessário que o artista exercitasse a imaginação para inventar e relacionar as cores que compõem o projeto. “Eu uso a fotografia como um guia, como um caminho já percorrido anteriormente pelo olhar, e que me deixa à vontade para trabalhar as relações das manchas, das áreas de cor, das matérias gordas da tinta”.

Leite não enxerga o terceiro núcleo, Mira (2020), como uma série, mas como um trabalho único, feito com mais de 20 pinturas produzidas em óleo sobre madeira durante o período mais restrito da pandemia da covid-19, em 2020. Neste trabalho, o céu é o protagonista, a partir de registros criados em diferentes horários.

“Nossa história recente envolve dois componentes trágicos, a pandemia e o bolsonarismo. Difícil escapar de alguma desestruturação. Comecei o tratamento com canabidiol (CBD) há cerca de dois anos, para tratar insônia, ansiedade e depressão. O resultado foi surpreendente, e o percurso extremamente produtivo”, revela. A partir dessa experiência, Fernando Leite foi atrás de imagens de flores de Cannabis e criou a quarta série que integra a mostra entre 2022 e 2023. “Acho que fundamentalmente a minha relação com a cannabis é poética e afetiva. Mas não deixo de perceber que o objeto de meu interesse parece ser um curativo delicado e ainda assim potente. Potente nas feridas psíquicas, patológicas e também políticas. Cannabis não dá suporte a violência, estupidez e burrice”.

Fernando Leite e Paulo Herkenhoff trabalham juntos desde 2008. Leite foi o designer gráfico de diversos projetos dos quais Herkenhoff foi o autor. De acordo com o artista, entre livros e exposições, a dupla divide mais de 40 grandes projetos no currículo. “Eu sei o que o diálogo artista-curador é capaz de produzir, já vi os ‘milagres’ que o embate crítico pode produzir para condução de problemas de uma obra ou mesmo para a produção de novas questões. Então estou muito grato de poder contar com esse diálogo que se fortalece nesse momento. O texto [de Paulo Herkenhoff] imanta a pintura de significados, produzindo um vertiginoso salto semântico. Acredito que a partir dessa generosa condução teórica, eu precise criar agora uma resposta significante ou então apresentar uma nova pergunta”, conclui. 

Marta Minujín ao vivo e em todas as cores

Marta Minujín e Andy Warhol na na fotoperformance "El pago de la deuda externa argentina con maíz, 'el oro latinoamericano'" (1985). Foto: Leonor Amarante
Marta Minujín e Andy Warhol na na fotoperformance "El pago de la deuda externa argentina con maíz, 'el oro latinoamericano'" (1985). Foto: Leonor Amarante

A dimensão transformadora da arte cria personagens que se diferenciam dos demais pela força criadora e continuidade inesgotáveis. Marta Minujin: Ao vivo, em cartaz a partir deste sábado (29/7) na Pinacoteca Luz, reafirma essa máxima exibindo uma produção alegórica, interestelar, atemporal, que celebra 60 anos de arte e delírio da icônica artista argentina.

Tudo o que se vê por trás desse repertório estético já rompeu convenções, criou muito barulho e não dissocia vida e obra alimentadas também por energias coletivas produzidas por amigos famosos como Allan Kaprow, pioneiro do happening e o lendário Andy Warhol.

O público que chega à Pinacoteca é recebido por um trabalho gigante inflável de 17 metros, a Escultura de los deseos (Escultura dos desejos, 2022), em que Minujín explora a natureza plástica dos materiais que produzem o ritmo. Essa obra de clima festivo foi feita para o Lollapalooza Argentino. O recorte afinado de Ana Maria Maia, curadora da mostra, traz dezenas de obras que compõem a “ópera” Minujín, síntese dos desejos típicos de uma artista nascida e socializada com gatilhos ambiciosos e produtivos, com objetivo claro de criar uma arte autoral inconfundível.

A exposição não é itinerante, foi pensada e desejada pela Pinacoteca, segundo a curadora. “A América Latina está na programação dos próximos anos do museu, e Minujín surge como um dos primeiros nomes da lista. Começamos a visitar o ateliê dela, em Buenos Aires, no começo do ano passado.” A mostra foi pensada em conjunto, e as obras escolhidas são o fio condutor de uma produção que atravessa vários movimentos internacionais de arte. O diretor da Pinacoteca, Jochen Volz, ressalta no catálogo que a ideia de realizar uma exposição de Minujín vem desde 2018, quando a artista participou da coletiva Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, organizada por Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta.

A exposição inaugural de Minujin foi em 1959 no Teatro Agón, em Buenos Aires, quando ela tinha apenas 16 anos. Dois anos depois obteve bolsa de estudos do National Endowment for the Arts o que lhe permitiu fixar-se em Paris, onde iniciou as estruturas habitáveis, cobertas por colchões encontrados entre os resíduos dos hospitais parisienses. Em 1963 criou La Destrucción, seu primeiro happening, quando reuniu obras com colchões e convidou colegas para destruí-las. Era o início de uma vida agitada com experiências internacionais performáticas que lhe permitiram, ainda jovem, criar uma voz feminina inovadora na competitiva e fechada cena artística portenha da época, dominada por artistas vestidos de tweed e gravata. Abrindo caminhos, Marta inventou sua maneira de lidar com a arte e com o sistema.

Entre vários trabalhos em exposição na Pinacoteca destaca-se El Batacazo (1965), por ter sido premiado no Instituto Di Tella de Buenos Aires (1963/1969), quando o espaço era o epicentro da vanguarda argentina e por onde passaram celebridades internacionais. De happenings, às instalações e ambientações, quase nada escapou da programação desse icônico instituto que pulsava em plena Calle Florida. O Prêmio Internacional Di Tella transformou-se em vitrina para o mundo da arte, quando a instituição fazia ponte com museus importantes como o MoMA e galerias influentes, como a do marchand Leo Castelli, em Nova York. Com essa premiação, Minujín chamou a atenção de Aldo Pellegrini, poeta, ensaísta e crítico de arte, que participou do júri, mas quem a lançou, de fato, foi Romero Brest, que dirigia o Di Tella. Entre 1970 e 1980, Minujín tornou-se uma artista internacional, conhecida por suas performances e instalações singulares.

A artista sempre atuou no Brasil, onde tem muitos amigos. Em 1978, a convite do crítico Walter Zanini, integrou a mostra Poéticas visuais, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), organizada por Julio Plaza e Zanini, que à época era diretor do museu. Meses depois, participou da 1ª Bienal Latino-Americana de São Paulo, cujo tema foi Mitos e magia, que foi transformado na paródia Mitos e vadios, uma intervenção organizada por Ivald Granato num estacionamento da rua Augusta, com performances de vários artistas, como Minujín, Oiticica, Aguilar e Regina Vater.

O arco conceitual da mostra abrange o neoconcretismo, a tropicália, a psicodelia, entre outros movimentos presentes na produção de Minujín. Em um de seus processos midiáticos, em 1976, criou a ação Comunicando con tierra, em que ela propõs intercambiar o solo latino-americano com interlocutores de todo o continente. Marta foi a Machu Picchu, no Peru, e coletou 23 kg de terra, dividindo-a em pacotes de um quilo, e enviou 23 deles a artistas de cidades diferentes da América Latina. No Brasil, foi José Roberto Aguilar que misturou a terra recebida com a de São Paulo, e Hélio Oiticica juntou a terra de Machu Picchu com a do Rio de Janeiro. Depois de receber todas as 23 misturas, ela voltu a Machu Picchu onde enterrou tudo de volta.

Minujín costuma dizer que política atrapalha a criação, mas, na verdade, seu trabalho toca na política à maneira dela, na convocação do corpo, na insurgência na dança, na brincadeira, no jogo. Ana Maria lembra que a artista tem séries importantes que falam do fato de ela ser latino-americana, de se colocar na cena internacional como mulher latino-americana. Um dos trabalhos mais icônicos, e eminentemente político, é o que reflete sobre o rombo que a ditadura militar argentina deixou nos cofres do governo. A curadora lembra que durante o período de redemocratização, a inflação tornou-se incontornável, o endividamento com potências internacionais foram às alturas. Então, em 1985, Minujín comentou esse episódio na fotoperformance argentina con maíz, “el oro latinoamericano” (O pagamento da dívida externa argentina com milho, “o ouro latino-americano”), na qual ela e Andy Warhol personificaram estereótipos de seus países de origem: no caso, uma argentina devedora e um estadunidense credor. Enquanto Minujín forjava um pagamento baseado em sacas de cereal, os índices de inflação na Argentina chegavam a picos altíssimos.

Outro caminho que Minujín adotou para intervir no imaginário geopolítico regional foi atuando no espaço público, conforme se vê nos trabalhos que ocupam uma das salas da exposição. Depois de El obelisco acostado (O obelisco tombado), de 1978, que criou a viagem imaginária do monumento desde a Praça da República, em Buenos Aires, até o interior do pavilhão da Fundação Bienal de São Paulo, Minujín começou a criar uma série de projetos superdimensionados para serem instalados em ruas de diferentes cidades e países. Hoje a artista soma vários deles e não para de ser convidada para criar muito mais ainda.

SERVIÇO
Marta Minujín: Ao vivo
Curadoria: Ana Maria Maia
Até 28/01/2024
Pinacoteca Luz (1º andar) – Praça da Luz, 2
Horários: de quarta a segunda, das 10h às 18h (entrada até 17h)

 

 

A sinhá modernista?

O que me levou a ler todo o romance biográfico de autoria de Luiza Lobo, Fábrica de Mentiras: do Vale do Café ao Arco do Triunfo [1], foi meu interesse por Eufrásia Teixeira Leite.

Há muitos anos lia, aqui ou ali, alguma referência sobre essa mulher. Nascida em 1850 em Vassouras, no interior do Rio de Janeiro, viveu em Paris a maior parte de sua vida, vindo a falecer, no entanto, em 1930, na antiga capital federal, vítima de uma doença que a impediu de voltar para a França.

Eufrásia é lembrada sobretudo por seu relacionamento amoroso com o intelectual e abolicionista brasileiro Joaquim Nabuco, mas seu nome também é lembrado como o de pioneira no campo das finanças, sendo a primeira, ou uma das primeiras mulheres, a investir na Bolsa de Valores de Paris, em pleno século XIX. Recentemente, Eufrásia começou a ser estudada também pelo fato de ter sido possuidora de um significativo conjunto de roupas de alguns dos principais costureiros parisienses de sua época, dentre eles Charles Worth [2].

Mas, na verdade, o que me deixou curioso a respeito de Eufrásia foram as menções esporádicas sobre o fato dela ter sido proprietária de uma significativa coleção de arte formada em Paris durante o período em que ela viveu naquela cidade, na passagem do século XIX para o XX.

Não sou daqueles que vão direto ao assunto e, assim, ao invés de procurar logo os capítulos em que poderia encontrar dados sobre a empresária e sua coleção, me dediquei à leitura integral do romance que, diga-se de passagem, caracteriza-se muito mais pela repetição e repetição de informações (sendo, portanto, merecedor do pente fino de uma boa revisão) do que, propriamente, por ser um texto de cunho, se não literário, pelo menos agradável.

Foi, portanto, pelo meu interesse pelo colecionismo que mergulhei nesse romance biográfico de Luiza Lobo, que trata da vida não apenas de Eufrásia, mas também de outros membros de sua família (ou a ela agregados), nascidos ou não no Vale do Paraíba fluminense. Foram páginas e páginas percorridas antes de chegar à parte do escrito que me interessava, ou seja, aquele o qual o Arco do Triunfo do título do romance faz referência: a vida da milionária Eufrásia Teixeira Leite, uma das personagens mais singulares da comunidade brasileira em Paris.

Luiza Lobo parece oscilar na caracterização de Eufrásia. Embora reitere à exaustão dados sobre suas relações com Joaquim Nabuco – “Quincas, o Belo” –, que conhecera por intermédio de seu pai e com quem teria tido um caso por mais de uma década [3], a autora não deixa de mencionar (ou criar) também outros “rabichos” de Eufrásia com o intuito, talvez, de enfatizar a liberalidade ou a autonomia da personagem. Se não foi “noiva” de nenhum deles – como o fora de Nabuco –, a milionária de Vassouras teria tido lá seu interesse de mulher despertado por Antônio, um escravizado, e com – quem diria! – Gaston d’Orléans, o conde d’Eu, marido de sua amiga, a notória princesa Isabel.

A ênfase nesse interesse de Eufrásia por homens tão diferentes entre si, pelo menos no romance, sublinha sua suposta personalidade de mulher liberada e que, como herdeira de uma respeitável riqueza deixada pelos pais (espólio que fez crescer exponencialmente), não se deixou tragar pelo destino de todas as mulheres brasileiras de sua época e classe social: o casamento [4].

***

Em 1873, Eufrásia e sua irmã Francisca – mais velha cinco anos –, mudaram-se para Paris, após o falecimento do pai, em 1872 [5]. Única responsável pela condução de formidável fortuna, Eufrásia ficaria conhecida por ter sido uma das primeiras mulheres a se tornar uma grande financista, ampliando em muito o que ela e irmã haviam recebido como herança. Transformada em mulher de negócios, grande investidora, aos poucos ampliou seus interesses financeiros para vários pontos da Europa, das Américas (incluindo o Brasil) e do Oriente Próximo.

Acompanhando a leitura de Fábrica de mentiras, fica-se sabendo que esse perfil de financista – aliado ao seu interesse por arte e cultura –, teria levado Eufrásia a iniciar uma coleção de arte, a partir de uma visita à segunda exposição impressionista, em 1876, em Paris. Segundo ainda Luiza Lobo, Eufrásia teria começado a se interessar por formar uma coleção de arte, assessorada por um agente e connoisseur de nome Albert Guggeinheim – supostamente primo de Solomon e Peggy (no futuro, grandes colecionadores de arte):

Foi ele que lhe apresentou os ateliês dos novos pintores impressionistas, um mercado ainda pouco explorado, e seria seu agente na compra de quadros de arte e de finanças, nos seus investimentos na Bolsa de Paris. Mostrou-lhe que investir em obras de arte estava na ordem do dia, e aqueles pintores representavam excelente negócio em termos de custo e benefício, Eufrásia sonhava em constituir uma grande coleção de arte particular para adornar as paredes da sua futura residência, e igualmente como investimento [6].

Se no romance, Albert Guggenheim é retratado como um sujeito ligado à grande finança, um investidor antenado sobre o campo da arte moderna além de parente de dois dos principais colecionadores internacionais do século passado [7], as autoras de um estudo intitulado A sinhazinha emancipada – Miridan Britto Falci e Hildete Pereira de Melo –, apresentam um perfil mais prosaico de Guggenheim: “Foi feita uma pesquisa genealógica sobre ele, encontrou-se dezenas de Albert Guggenheim, mas as pistas que foram seguidas não apontam dados positivos, ou seja, tidos como verídicos. Não foi encontrado nenhum Albert Guggenheim que tenha vivido em Paris nos anos 1920 e 1930 […]” [8]. Essa não evidência não significa, é claro que ele não tenha existido de fato.

Antes, no mesmo livro, as autoras, após esmiuçarem a troca de correspondência entre Guggenheim e Eufrásia (quando ela se encontra no Rio de Janeiro, em 1930, ano de seu falecimento), afirmam: “Acreditamos que a leitura destas cartas permita concluir que Guggenheim era um empregado, espécie de secretário particular de Eufrásia, hábito comum da elite europeia naqueles anos”. [9]

Um mero secretário particular ou – como o identificou Luiza Lobo – agente financeiro, connoisseur e parente dos dois dos principais tubarões da arte do início do século passado? Pode ser que a romancista tenha, de fato, edulcorado a biografia de Guggenheim. Porém, o que é importante guardar para averiguações futuras é que Albert Guggenheim estava ao lado de Eufrásia desde os anos 1870, podendo, sim, ter tido participação na constituição da coleção de arte da milionária, fosse apenas seu secretário ou não.

***

Conforme o romance, a coleção que Eufrásia teria formado era exibida em salas e corredores do palacete, por ela adquirido em 1877. Essa residência definitiva em Paris, possuía quatro andares além da mansarda, e era localizada perto do Arco do Triunfo e da avenida Champs Elysées.

Embora seu primeiro contato com a arte moderna possa ter sido durante a segunda mostra impressionista, Eufrásia teria iniciado sua coleção, não propriamente com os impressionistas “históricos”, mas com aqueles de uma geração mais nova, os “modernistas”:

Ela continuava a frequentar as Exposições de Paris e a comprar muitos quadros de artistas que apenas emergiam nos ateliês, os modernistas, a preços módicos. As paredes do palacete da rue de Bassano, 40 […], ficavam repletas com os modernistas Pierre Bonnard,, Fernand Léger, Amadeo [sic] Modigliani, Piet Mondrian, um Pablo Picasso, Georges Seurat, Wassily Kandinsky […] Aconselhada por Albert Guggenheim, Eufrásia apostava, de forma pioneira, num mundo artístico novo, futurista, para além da Belle Époque e do art déco… uma arte não figurativa, sem objeto definido, pura imaginação… [10]

Luiza Lobo reforça o papel de Albert Guggenheim nesse direcionamento da coleção da milionária brasileira:

[…] Albert aconselhou Eufrásia que não investisse naqueles quadros impressionistas, já valorizados no mercado de arte internacional. Havia outros, excelentes, que eram desprezados por serem ousados demais: dos modernistas! Por preços ainda não explorados, poderiam constituir uma bela coleção temática particular para a rue de Bassano, 40 […] [11]

Seriam verídicas essas informações contidas em Fábrica de Mentiras ou não passam de fantasias da autora que, prima em quinto grau de Eufrásia, deve ter crescido ouvindo as histórias e lendas que cercam a vida da famosa parente?

***

Frutos de exageros literários ou não, Luiza Lobo relata certos aspectos da coleção e de algumas obras pertencentes à prima distante que merecem atenção. Em primeiro lugar poderia ser apontado o retrato de Eufrásia, pintado pelo francês Carolus-Duran, artista de prestígio na cena parisiense do final do XIX, que se especializou em retratos de personalidades da sociedade local.

A pintura requintada, típica dos retratos do artista, apresenta a imagem de Eufrásia como um uma mulher bela, decidida e não sem alguma sensualidade. A obra, por seu tratamento, faz lembrar a grande tradição da pintura cortesã francesa, atualizada, digamos assim, pela dimensão mundana da alta sociedade de Paris na segunda metade do século 19. Captada a partir dos mesmos procedimentos usados para a retratação das damas da aristocracia e alta burguesia parisiense de então, a imagem de Eufrásia na pintura, a colocava como membro indiscutível daquele pequeno grande mundo.

Hoje pertencente ao acervo do Museu Casa da Hera [12], em Vassouras, (segundo a autora de Fábrica de Mentiras), a pintura teria sido expedida para a antiga residência de Eufrásia em Vassouras – que depois abrigaria o museu citado –, por não se adequar à característica modernista do restante de sua coleção parisiense [13].

Luiza Lobo refere-se à pouca expressividade de obras da coleção de Eufrásia que sobreviveram aos problemas surgidos com seu espólio, após seu falecimento. Ela assim relata a situação do acervo “francês” que restou no palacete em que Eufrásia morou em Paris:

No pouco acesso que se tem da parte francesa do testamento, […], realmente causa espécie o ínfimo valor alcançado pelo conteúdo da casa, vários serviços de jantar com 50 peças, de Saxe, faiança de Gubbio, mobiliário e assim por diante. Mas, além de um Watteau e dois tapetes de valor, a coleção de quadros vendida é pífia, nada que se aproxime do que Lenita, a segunda filha de Georgina [e prima de Eufrásia], ao visitar o solar, viu nas suas paredes. Uma coleção importante de arte, principalmente de impressionistas e modernistas. O único quadro que poderia se aproximar, pela data, da arte modernista é um Fantin-Latour, Baigneuses (Banhistas), no valor de 20 contos, mas que é pura arte romântica, totalmente distante de um Picasso. Ele é de 1879 e se encontra hoje no Museu de Belas Artes de Lyon! Já outro de seus quadros, Fleurs et fruits (Flores e frutas), de 1865, não reconhecido na Exposição dos Impressionistas, está hoje no Museu d’Orsay. Como terão chegado lá? Vendidos em leilão, com o inventário? Vendidos aos poucos ou junto com a coleção completa, da qual não há rastro? [14]

Essa descrição pôde ser confirmada e ampliada por meio da leitura do estudo de Falci e Melo que, revisando o espólio de Eufrásia, além dos artistas citados por Lobo, atentam também para a existência na coleção de obras de Ziem, Vinet, Dael e Henri Harpignies, entre outros. [15]

Em levantamento junto aos sites dos museus citados por Lobo, não foi encontrada a imagem de Baigneuses, no acervo do Museu de Belas Artes de Lyon, mas, naquele do Museu d’Orsay foi encontrada a imagem de uma pintura com o título Fleurs et Fruits, de 1865 – uma natureza-morta tradicional, típica de Fantin-Latour, cujo obra se desenvolveu entre a pintura naturalista/romântica da segunda metade do XIX, e as especulações estéticas levadas adiante pelos impressionistas e seu entorno.

Lobo cita ainda uma terceira obra pertencente à coleção “modernista” de Eufrásia, um seu retrato pintado por Georges Rouault:

O falecimento de Eufrásia, em 13 de setembro de 1930, foi noticiado até pelo Figaro, entre muitos outros jornais de Paris e do Rio. O quadro de Georges Rouault, de 1914, intitulado Mlle Euphrasie et son chien a representa, com traços imaginativos, elegantíssima na sua redingote, puxando pela coleirinha o querido cãozinho branco Quiqui. O quadro pertencia a seu médico, o dr. Maurice Gerardin, que o doou, em 1953, para o Museu de Arte Moderna de Paris [16]

Em busca no site do Museu de Arte Moderna da cidade de Paris, foi encontrada a obra Mlle. Euphraise, de 1914, retrato de mulher que parece puxar algo por uma correia. A data confere com a obra intitulada por Luiza Lobo como Mlle Euphraise et son chien, assim como o fato de que ele teria sido doado ao Museu pelo dr. Maurice Gerardin.

Esse retrato de Eufrásia pintado por Rouault é muito diferente daquele pintado por Carolus-Duran: ele parece fazer parte de uma série de rápidas pinturas produzidas pelo artista em meados dos anos 1910, retratos em que a celeridade da anotação pictórica e o humor que caracterizam algumas figuras destoam, e muito, de sua produção mais conhecida.

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A partir de Fábrica de Mentiras, conclui-se que o destino da maioria dos itens da coleção de arte formada por Eufrásia Teixeira Leite em Paris é desconhecido. Pelo que a autora indica – e pelo que foi dado confirmar nos sites dos museus mencionados –, sua coleção deve estar espalhada pelo mundo, sendo que, no Brasil, parece que se encontram apenas o retrato pintado por Carolus-Duran e mais um pastel, também retratando Eufrásia, de autor desconhecido, além de um retrato a óleo de sua irmã, Francisca também, sem data.

Luiza Lobo, no entanto, especula sobre o que poderia ter ocorrido com o acervo da milionária, no período em que ela já se encontrava no Brasil, mas mantinha seus interesses cuidados em Paris por Albert Guggenheim:

Contudo, em 24 de outubro de 1929, despenca vertiginosamente a Bolsa de Valores de Nova York. Albert percebe pelas cartas de Eufrásia que sua situação de saúde é desesperadora… está doente, provavelmente desenganada, presa no Rio […] nesse momento, ele podia tomar decisões por si. Estava praticamente de posse daquela coleção de arte única no mundo, que ele próprio ajudara a reunir, […] Quais eram os pintores, quantos quadros pendiam daquelas paredes, na mansão de quatro andares e uma mansarda? Quem saberia dizer, ao certo? Na verdade, Eufrásia nunca providenciara uma catalogação [17]

O que se segue, pode ser entendido como pura especulação da autora que, tentando pensar como sua prima/personagem, deixa a imaginação voar:

Ela se torturava. E se ele vendesse a pinacoteca para seu primo Solomon Guggenheim, que pretendia reunir uma coleção de arte?

[…] o famoso Solomon Robert Guggenheim, compra imensa quantidade de quadros, aproveitando a baixa da Grande depressão […] Ele adquiriu muitas coleções particulares a preços módicos, no período de entreguerras […] Em 1943, inaugura o Museu Guggenheim, no prédio branco em caracol, belo projeto de Frank Lloyd Wright […]

Quantos Robert Delaunay, Pierre Bonnard, Juan Gris, Wassily Kandinsky, Fernand Léger, Henri Rousseau, Georges Seurat, não terão provindo, nessas coleções, da “poderosa brasileira” de Paris […]

Ou teria parte da coleção de Eufrásia sido vendida para a prima de Albert, a milionária Peggy Guggenheim, única herdeira do poderoso Benjamin, que naufragou com a mulher no Titanic, em 1912, deixando-a milionária […] E se a princesa Winnaretta Polignac-Signac [herdeira da Singer, fábrica de máquinas de costura e amiga de Eufrásia] fizesse uma oferta irrecusável, para ostentá-los na sua nova Fundação Singer-Polignac, recém-inaugurada, em 1928, no seu palacete da Avenida Henri-Martin? [18]

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Como visto, Eufrásia Teixeira Leite foi uma das mulheres mais singulares de seu tempo e – tendo em vista seu perfil de financista aguerrida – a possibilidade de ter constituído uma coleção de arte protagonizada por artistas surgidos após o impressionismo não é algo remoto. Pelo contrário, parece que iria ao encontro dessa persona concebida por ela própria: uma mulher moderna, dona de seu corpo, financista interessada em negócios de risco. Portanto, uma investidora capaz de criar uma coleção de arte moderna, apostando na possibilidade da futura valorização daquele patrimônio.

Seria importante que algum/a profissional com interesse no colecionismo do século XIX/XX, se debruçasse sobre o assunto, tendo em vista os rastros aparentemente concretos deixados por esse acervo em alguns museus da França. A recuperação de dados sobre essa ainda hipotética coleção, poderia levantar questões de interesse sobre o colecionismo internacional na passagem do XIX para o XX, além de alguma reflexão mais aprofundada sobre o gosto dessa Eufrásia que, nascida sinhazinha fluminense[19], construiu para si a imagem de mulher vitoriosa num universo masculino.

A sensibilidade dessa sinhá aparentemente moderna estava mais ligada à radicalidade de um artista como Georges Rouault ou à delicadeza de Fantin-Latour? A arte moderna de fato falava à sua sensibilidade, ou não passava de puro investimento, sendo a pintura mais conservadora o que mais a sensibilizava? [20]


 

[1] – LOBO, Luiza. Fábrica de Mentiras: do Vale do Café ao Arco do Triunfo. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2022. O romance é baseado na biografia de alguns membros ligados direta ou indiretamente a Eufrásia Teixeira Leite, sendo que a vida dessa personagem é o elemento de maior destaque na obra
[2] – Pelo menos parte dessa coleção de trajes integra o acervo do Museu Casa da Hera, antiga residência da família Teixeira Leite. Mais tarde voltarei a mencionar o Museu.
[3] – Um “noivado” um tanto clandestino, recheado de encontros secretos no Rio de Janeiro, Paris, Veneza e outras cidades
[4] – Dentro do quadro das “singularidades” de Eufrásia, é importante sublinhar o fato de que ela deixou toda a sua fortuna para as áreas de educação e saúde da cidade de Vassouras.
[5] – A mãe havia morrido um ano antes, em 1871.
[6] – LOBO, Luiza. Op. cit. p. 365. Pelo que tudo indica, e poderá ser comparado adiante, a autora, quando usa a expressão “novos pintores impressionistas” está se referindo, não aos impressionistas “pioneiros”, mas àqueles surgidos logo depois do início do movimento Por outro lado, o interesse de Eufrásia pelas artes visuais, pode ser atestado a partir do texto dos estudiosos Flávio Oscar N. Bragança e Priscila Faulhaber que afirmam que o nome da milionária brasileira, “aparece também como membro associado do anuário de 1904, da Socièté des amis du Louvre, organização que buscava recursos da iniciativa privada na aquisição de obras de arte para o Museu”. “Eufrásia Teixeira Leite entre as finanças e a moda”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. São Paulo: Universidade de São Paulo, n. 84, abril 2023, p 148. https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/211002/193550
[7] – Solomon e Peggy Guggenheim.
[8] “- FALCI, Miridan/MELO, Hildete Pereira de. A sinhazinha emancipada. Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930). A paixão e os negócios na vida de uma ousada mulher do século XIX, 2ª. São Paulo: Hucitec Editora, 2021, p. 159.
[9] – Idem, p. 112.
[10] – Idem .378/379.
[11] – Idem p.379.
[12] – O referido museu foi instituído na residência em que Eufrásia e Francisca passaram os primeiros anos de suas vidas.
[13] – Segundo escreveu Luiza Lobo: “Anos depois, em 1924, [Eufrásia] trouxe de navio o quadro revolucionário [em que ela havia sido retratada com os cabelos curtos] e mandou pendurá-lo no antigo salão de baile abandonado da Chácara da Hera, pois não combinava com sua coleção de modernistas, em Paris”. (op. cit. p; 422).
[14] – LOBO, Luiza. Fábrica de Mentiras: do Vale do Café ao Arco do Triunfo. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2022. p. 483.
[15] – FALCI, Miridan Britto/ MELO, Hildete Pereira de. Op. cit. p. 158. Outro dado interessante é fornecido pelo livro das duas estudiosas. A certo momento elas comentam que, já doente no Rio de Janeiro, e sem condições para escrever pessoalmente a Guggenheim, Eufrásia solicita que seu amigo Torres Guimarães o faça. Na carta endereçada ao suposto secretário particular, dentre outras preocupações de Eufrásia que Guimarães transmite, está um dos pedidos expressos de Eufrásia: “mandar arejar a sua casa da rua Bassano, especialmente o andar térreo e fazer o favor de verificar os quadros e objetos não pendurados a fim de evitar possível deterioração – (umidade, ratos etc.). Carta de Torres Guimarães, do dia 10 de julho de 1930 (Apud FALCI, Miridan Britto/MELO, Hildete Pereira de. Op. cit. p.110/111).
[16] – Idem, p.489.
[17] – Idem, p. 481.
[18] – Idem. p. 482.
[19] – Sinhazinha cuja herança que recebeu tinha com origem, em última instância o café e, consequentemente o comércio de escravizados.
[20] – Quando este artigo estava prestes a ser publicado, recebi um e-mail de Antônio Xavier, historiador e pesquisador do Museu Casa da Hera – Vassouras, RJ – em que ele gentilmente cede uma série importante de informações sobre Eufrásia e sua fortuna. A certa altura de suas considerações, o historiado assim se pronuncia sobre o que teria acontecido com a coleção de arte moderna supostamente amealhada por Eufrásia: “Quando de sua morte em 1930, Eufrásia deixou um legado monetário considerável, algo em torno de 1,8 tonelada de ouro 24k (padrão na época, que pelos fatores da crise desencadeada pelo Crack de 29 estava muito valorizado), que colocariam esta senhora como uma bilionária, pelos padrões atuais. É de se esperar que muito desta fortuna estivesse na forma de obras de arte. /A questão é que, em suas vontades finais (e seu testamento) ela havia mandado converter todos seus pertences e posses em Títulos do Tesouro. Assim, moedas correntes de diversas nacionalidades, títulos negociáveis, ações (de dezenas de companhias e indústrias ao redor do planeta), créditos reembolsáveis, promissórias a receber, mobiliário, imóveis e propriedades, joias e obras de arte foram vendidas, cobradas e leiloadas, para que não ocorressem os intermináveis inventários e contestações dos que queriam (e achavam) ter direito a uma fração desta imensa fortuna. /A intenção primeira de Eufrásia era deixar todos os seus bens materiais para o Papa Pio XI (como chefe da Igreja Católica Romana), talvez uma influência da falecida amiga, Princesa Isabel. /Pessoas próximas a ela e de sua confiança devem tê-la feito mudar de ideia quanto a destinação desta dinheirama.  Ficou determinado então que uma parte deste dinheiro seria empregado na construção de um hospital, uma escola para meninas e outra para meninos, além de algumas benfeitorias em Vassouras e doações para pobres e desamparados (no Rio de Janeiro e em Paris). Sendo tão “conservadora”, não há evidências de que Eufrásia tivesse obras de arte modernas, talvez algumas impressionistas, mas suponho que o academicismo fosse mais “seu estilo”.” (e-mail recebido dia 06 de julho de 2023).