Ensaios para o Museu das Origens

Ensaios para o Museu das Origens, ampla exposição que ocupa o Instituto Tomie Ohtake e o Itaú Cultural até janeiro, revisita e atualiza a proposta revolucionária apresentada pelo crítico Mario Pedrosa em 1978, depois que um incêndio destruiu o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Diante da crise sem precedentes enfrentada pelo museu, cuja necessidade de reconstrução corporificava o anseio de atualização em relação à produção hegemônica dos grandes centros, Pedrosa segue em direção singular. Ao invés da apostar na quimera de mais um projeto de vanguarda defendido pelas elites locais, volta-se para os lugares, as identidades e os elementos constituintes de uma identidade múltipla, invisibilizada e prenhe de referências a um conturbado e incompleto processo de formação nacional. Ao invés de locus de reverberação e reafirmação da alta cultura, ele concebe um modelo de museu plural, em movimento, estruturado em cinco grandes eixos: os museus do Índio, do Inconsciente, da Arte Moderna, do Negro e das Artes Populares. Os dois últimos ainda nem existiam de fato e, embora os três primeiros já funcionassem, viviam em situação precária naquele momento, no final da ditadura militar.

Tomando essa proposta como ponto de partida, quase cinquenta anos depois, Ensaios articula não cinco, porém mais de 20 organizações diversas. Alguns desses movimentos são pequenos, iniciativas quase heroicas de indivíduos ou grupos de resistência, que lutam persistentemente pela sobrevivência em cenário profundamente adverso, sobretudo se considerarmos os anos recentes de pandemia e governo Bolsonaro. Outros têm mais solidez institucional. Todas as regiões do país estão representadas, e as questões mobilizadoras fundamentais estão contempladas. Mas não se trata apenas de uma tentativa de catalogar as principais ou mais inovadoras ações espalhadas país afora.

Segundo Paulo Miyada, que responde pela curadoria juntamente com Izabela Pucu, a exposição foi sobretudo um trabalho de escuta, criando uma rede e fortalecendo lugares, contextos e pessoas. Repertoriar, como vimos em iniciativas como as várias Histórias, contadas pela curadoria do Masp, é importante, mas não suficiente. É a relação entre diferentes olhares e ações, combinando práticas criativas, experimentais e de pesquisa (como escreveu Pedrosa no diagrama que esboçou para o Museu das Origens) e a troca de experiências e diálogo entre elas que pode ter este efeito mais amplo de contaminação, espraiamento e transformação, fomentando a percepção dos processos de apagamento e dominação, que não se restringem somente a uma etnia, um gênero ou qualquer outro critério e sim a uma lógica de classes. Izabela Pucu, que também coordena a Plataforma Mario Pedrosa, sintetiza: “Ao colocar, lado a lado, as manifestações culturais dos consagrados e dos excluídos, o popular e o erudito, sem hierarquias, preservando suas diferenças e conflitos em convívio, a proposta expôs a complexidade de nossa origem, marcada pelos processos colonizatórios do passado e de hoje.”

Assim, as propostas de Pedrosa continuam a reverberar e, apesar de não terem sido adotadas na prática, ainda podem ser consideradas um farol, capaz de orientar um movimento de resgate e luta pela transformação cultural e política – dois elementos indissociáveis em seu pensamento e sua ação –, mas também um potente instrumento crítico em relação ao atual status quo do sistema da arte, cada vez mais excludente e submetido ao peso das instituições e do mercado.

A interação entre os agentes também é fundamental na tentativa de instituir um processo de reconfiguração e espraiamento de novas formas de trabalhar acervo, memória e uma concepção mais alargada e inclusiva e generosa de arte. O número de participantes também foi determinado pelas condições objetivas. Afinal, como lembra Miyada, se houvesse mais tempo ou mais espaço, as configurações da mostra seriam totalmente diferentes. Ou, como diz Sofia Fan, gerente do Núcleo de Artes Visuais e Acervos do Itaú Cultural, “sabemos que tocamos apenas a ponta do iceberg”.

Ensaios tem por princípio fundamental o trabalho realizado a muitas mãos. Junto com a equipe curatorial geral, a estrutura de cada uma dessas organizações foi convocada a estabelecer a forma de contar suas histórias invariavelmente marcadas por desafios e superação de obstáculos. O conjunto parece, assim, desdobrar-se em núcleos menores autônomos e ao mesmo tempo conectados. Resgatam, aqui e ali, a importância de outras figuras e outros interlocutores fundamentais para o pensamento da cultura brasileira a partir do século XX, como Emilio Goeldi, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro e Lina Bo Bardi. Para além desses nomes mais conhecidos, outros estudiosos, pensadores e militantes também foram rememorados, como Guilherme Tiburtius, que fez um trabalho silencioso e precioso de estudo, preservação e catalogação dos sambaquis. O volume de textos, documentos, cartas, fotografias e material iconográfico é impressionante e por vezes predomina em relação ao núcleo expressivo, poético, presente em cada um dos segmentos.

A primazia documental é, porém, contrabalançada, em primeiro lugar, pela presença de conjuntos importantes de acervo, como aquees trazidos pelos núcleos Museus Mineiros, Acervo da Laje e Museu do Índio. Segundo Sofia Fan, “a curadoria foi muito feliz em trazer não aqueles conteúdos previsíveis, em olhar para as museologias”, num tipo de resgate que pode inspirar novos projetos. Também é fundamental a presença de obras de referência (de autores como TGO, Antonio Manuel, Mira Schendel ou Ubirajara Ferreira Braga) ou de trabalhos comissionados, junto a uma maioria de artistas mulheres em torno de lugares e questões fundamentais à pesquisa. Destacam-se, por exemplo, as pesquisas e reelaborações que Andreia Hygino e Josi desenvolveram a partir da vivência em dois locais de grande força simbólica: o cais do Valongo, maior porto de desembarque de escravizados do mundo, e a Serra da Capivara, onde estão os mais antigos registros de arte rupestre das Américas e maior sítio do gênero no mundo. A pequena peça de cerâmica criada por Josi a partir da observação das pinturas ancestrais, parece dar corpo a ideia de “origens”, no plural, ao configurar uma figura antropomórfica que remete (em material, forma e gesto) àquelas mais antigas plasmadas no território hoje ocupado pelo Brasil e que tem uma única cabeça, mas inúmeros pés.

Uma congregação de forças semelhante àquela que anima o projeto visionário de Pedrosa e que está presente em diversas empreitadas desenvolvidas pelo crítico, a exemplo de seu projeto de exposição Arte, Alegria de Viver, em estágio já avançado de organização quando o MAM pegou fogo. Congregação na qual ecoam alguns dos elementos centrais de seu pensamento: a articulação entre arte e política, a ideia de criação como exercício emancipatório, a visão de que a arte não é confraria apenas para especializados ou ainda combate a noção de arte como mera mercadoria. Por uma feliz coincidência, é possível conhecer um pouco mais sobre a radicalidade crítica na exposição Ocupação Mario Pedrosa, mostra que perfaz a trajetória do crítico e foi organizada em paralelo a Ensaios pelo Itaú Cultural. Resgate fundamental se levarmos em conta que, apesar de ser um dos principais críticos atuantes no país ao longo do século XX, ele é pouco lido. Izabela Pucu relembra com espanto que, durante seus 12 anos de estudo na Federal do Rio de Janeiro, nunca lhe pediram para ler um texto de sua autoria. Além disso, um alentado catálogo com o registro dos processos, documentos e obras presentes em Ensaios deve ser lançado em dezembro.

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