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Um artista lapidado por migrações, memórias afetivas e autoconhecimento

Sem título (2023), Rafael Pereira. Foto: João Liberato
Sem título (2023), Rafael Pereira. Foto: João Liberato

Os portraits de olhos expressivos são uma marca da produção de Rafael Pereira, que até o dia 20 (sábado) apresenta sua primeira individual na Galeria Estação, em São Paulo. Com curadoria de Tiago Sant’Ana, Lapidar imagens reúne 20 óleos sobre tela do pintor paulista, cujas obras dialogam com a estética modernista. “Se você olha os fundos dos trabalhos dele, você vê Tarsila, Segall, Guignard, Portinari, Di. E sei que isso é espontâneo na prática dele. Eu não gostaria se não o fosse”, afirma a galerista Vilma Eid, em entrevista à arte!brasileiros. “Vejo que ele pesquisa muito em livros de arte. Mas o resultado não é uma reprodução de sua pesquisa, ele remete ao programa da galeria, em que apresentamos os não eruditos”.

A trajetória sinuosa de Rafael Pereira é uma chave importante para compreender a sua produção, que inclui ainda paisagens e naturezas mortas. Nascido em 1986, na capital paulista, trabalhou na adolescência, em Teófilo Otoni (MG), com a lapidação de joias preciosas, ofício que serviu de inspiração para o título de sua exposição. Na infância, conta ele, mesmo não tendo contato com obras de arte em sua casa, já esboçava interesse pela pintura e por desenhos. “Minha mãe e os meus familiares sempre falavam que eu gostava de ter contato com materiais artísticos”, diz.

O primeiro empurrão teria vindo em 2001, quando ganhou tintas e papeis do colecionador Torquato Sabóia Pessoa e de sua mulher, a ceramista Claudete Guitar. Sua mãe, Maria do Carmo Alves Jardim, trabalhava como funcionária doméstica para o casal. E, curiosamente, Pessoa havia sido sócio de Vilma na primeira galeria que a marchand teve, ao lado ainda de Paulo Vasconcellos. “Torquato sempre falava em apresentar o Rafael a mim, mas o tempo passou, e isso nunca aconteceu”, lembra Vilma. Não seria a única coincidência.

Em 2008, Pereira deixou a lapidação e passou a se dedicar à sua produção como artista, que vendeu por 13 anos na Rua Augusta, na Avenida Paulista e na Praça da República, entre outras via da cidade. Na Rua Teodoro Sampaio, perto da Praça Benedito Calixto, vendera há cerca de dez anos uma obra para o colecionador Edmar Pinto Costa. Foi por meio dele e da artista plástica Germana Monte-Mór que Vilma Eid foi finalmente apresentada ao artista, há cerca de dois anos.

Em 2013, Pereira começou uma série de viagens pelo Brasil, sempre vendendo suas obras nas ruas. Esteve em Novo Airão (AM), em Ouro Preto (MG), no Rio de Janeiro (RJ) e em Pontal do Paraná (PR), até voltar a se estabelecer em São Paulo, em 2018, em Caraguatatuba, no litoral norte do estado, onde mora atualmente. Com o confinamento durante a pandemia, em 2020, teriam surgido as primeiras naturezas mortas e paisagens. “Foi a partir desse momento que eu comecei a resgatar minhas memórias afetivas e soltei meu imaginário dentro da pintura”, conta Pereira.

A exposição traz uma dessas memórias afetivas do pintor: uma paisagem verde, uma colina salpicada por moradas e outras construções, que ele via desde sempre da janela de sua casa, na infância, e que ele pintara a partir de uma fotografia guardada por sua mãe. Seus retratos, no entanto, são geralmente pintados de memória. E mais recentemente o pintor procurou retratar mais corpos negros, consciente da invisibilidade a que são sujeitos, e também o resultado de um processo de autorreconhecimento.

Em sua prática, Pereira costuma mesclar e acrescentar novas técnicas. Começou com a tinta acrílica sobre papel, incorporou o giz pastel oleoso e a nanquim, até chegar aos óleos sobre tela presentes na individual. “Minha pintura está sempre em transformação, e eu não tenho medo de usar materiais diferentes”, diz.

Há cerca de dois anos, Pereira foi finalmente apresentado a Vilma Eid. “Combinamos que faríamos a exposição, mas antes daríamos um tempo de amadurecimento, tanto na  relação com a galeria, quanto com esse sistema de arte com que ele nunca trabalhou. Porque às vezes é algo assusta e bloqueia o artista”, diz a galerista. “Eu tinha medo de que o interesse por parte da galeria provocasse uma corrida por produção. Mas isso não aconteceu. Nunca o vi trazer um número grande ou pequeno de trabalhos. Era sempre a mesma quantidade de telas, o que mostra que ele tem uma rotina de trabalho constante.”

O amadurecimento envolveu também um curso online – a pandemia ainda empunha restrições – com o pintor Paulo Pasta. Segundo Pereira, nas aulas com Pasta vieram dicas sobre luz e composição que foram incorporadas a seu trabalho. “Foi uma orientação que ele me deu que eu levo até hoje”, afirma o pintor.

Ao longo desses dois anos, a Galeria Estação não guardou os trabalhos de Pereira. “Fomos mostrando, e não houve uma pessoa sequer que visse e não tivesse gostado. Todo mundo gosta muito. Eu brinco inclusive que ele é vendedor. Foram mais de 20 trabalhos vendidos”, conta a galerista.

A galerista destaca ainda que os trabalhos de Pereira trazem uma “poética singular”, que “reside na alma dele”. “Em suas obras isso é algo mais perceptível nos retratos, principalmente nos rostos. E na maneira como ele contextualiza seus personagens, estejam sentados, olhando na janela, pescando. Ele sempre tem uma narrativa”, diz Vilma. “Esse é o trabalho de que gosto de fazer: conhecer estes jovens, que são talentosos, mas ainda não tiveram oportunidade e dar a eles uma chance. E assim foi com o Rafael.”

Pretos & prósperos: na Secult de Salvador, Pedro Tourinho quer ir além da visibilidade da cultura afro

Integrante do Bloco Afro A Mulherada. Foto: Luan Teles.
Integrante do Bloco Afro A Mulherada. Foto: Luan Teles.

Prestes a completar um ano de mandato à frente da Secretaria de Cultura e Turismo (SECULT) de Salvador, Pedro Tourinho já começa a vislumbrar os resultados dos desejos ou impulsos que o levaram assumir o cargo, ainda no auge de uma carreira de ímpar capilaridade: nascido na capital baiana, formado em comunicação social, é um especialista em entretenimento e mídia. Já foi empresário de, entre outros, a cantora Anitta. É investidor e advisor de startups. Em 2019, lançou o livro Eu, eu mesmo e minha selfie, obra que fala sobre imagem pública.

Nada disso, porém, ergueu-se sobre os desafios – e os desejos – que ele colocara para si ao aceitar o cargo: finalmente inaugurar o Museu da Cultura Afro-Brasileira (Muncab); investir na sustentabilidade dos Blocos Afro de Salvador, e criar um programa municipal de audiovisual. Todas as ações, obviamente, refletem um objetivo de reparação, que vai bem além da folclorização da Cidade da Bahia e de suas gentes. Para Tourinho, a gente (preta) de Salvador não quer apenas a diversão e arte de que é, ressalta-se, protagonista nesta cidade, em que mais de 80% da população é afro-descendente. Quer renda, quer a devida prosperidade.

“Em Salvador, o maior vetor econômico da cidade é o turismo, que está diretamente ligado à cultura. Quem vem aqui, vem para viver a cultura da cidade”, assevera o secretário. “E a identidade dessa cultura é negra. Por que, então, os negros não se beneficiam economica e politicamente disso como deveriam?”, indaga Tourinho, em entrevista à arte!brasileiros.

Pedro Tourinho, secretário de Cultura e Turismo de Salvador. Foto: Luan Telles
Pedro Tourinho, secretário de Cultura e Turismo de Salvador. Foto: Luan Teles

Ao assumir a secretaria, Tourinho partiu de uma obviedade – seria um contrassenso competir com a sazonalidade da programação cultural de Salvador. Fossem as festas juninas, hoje inseridas em grandes shows que ultrapassam a tradição do forró para incorporar manifestações musicais de grande parte do país, em especial do universo da música sertaneja. Ou as comemorações dezembrinas, como o Festival da Virada pré-Réveillon, que, por sua vez, antecede, as Festas de Largo, cujos ápices são a Lavagem do Bonfim (janeiro) e a Festa de Iemanjá (fevereiro). Todas realizadas em antecipação ao Carnaval, diga-se de passagem.

A solução foi criar uma “nova sazonalidade”, com o Novembro Salvador Capital Afro. Suas vivências como soteropolitano e suas experiências no mundo do entretenimento e da cultura, no Brasil e fora dele, deram um tempero singular à programação. Com mais de 23 projetos, o calendário inédito incluiu, entre outros, desfiles de moda (Afro Fashion Day), festivais de empreendedorismo e inovação negra (Salvador Capital Afro) e o Liberatum, um evento internacional humanitário, que já passou por 13 países, incluindo Reino Unido, Índia, México, EUA, Filipinas, Turquia.

Em Salvador, o Liberatum reuniu lideranças negras do mundo das artes, tecnologias e dos negócios. Entre as personalidades presentes estavam as atrizes Viola Davis, Angela Bassett e Taís Araújo; o intelectual nigeriano, e vencedor do prêmio Nobel de literatura, Wole Soyinka; e a ministra da Cultura, Margareth Menezes, entre outros.

O Novembro Afro apresentou também o Festival Internacional do Audiovisual Negro do Brasil, com convidados internacionais que debateram a cadeia produtiva do audiovisual com produtores da capital baiana. O mês festivo marcou também a tão esperada reabertura do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), uma das prioridades de Tourinho a assumir o cargo na SECULT.

“Eu tinha três objetivos iniciais: um deles era não ia perder a viagem. Eu iria entrar para, ações mais urgentes abrir o Muncab. Inicialmente, a gente pensava em fazer uma instituição nova, do zero, procurar um espaço. Até separamos investimento para isso. O Munca vinha num imbróglio há muito tempo, quase 20 anos”, conta o secretário.

Ao mesmo tempo, conta Tourinho, ele soube que a gestão da associação por trás da instituição havia mudado, e duas diretoras teriam saneado todas as pendências jurídicas e financeiras. “Então, o prefeito e eu entendemos que não era o caso fazer de se fazer um museu novo. A gente tinha de fortalecer o que havia. Isso foi em abril e reabrimos o museu em novembro com a exposição Um Defeito de cor“, conta.

O segundo objetivo, diz Tourinho, foi investir na sustentabilidade dos Blocos Afro de Salvador, “colocá-los também num lugar de protagonismo no cenário cultural”. Tourinho fortaleceu o apoio às agremiações e, atualmente, em todos os dias da semana há um Bloco Afro se apresentando no Centro Histórico, para os turistas e a população da cidade.

“A gente também aumentou nossos investimentos durante o Carnaval, reformamos a sede do Malê Debalê, em Itapuã, e vamos fazer o mesmo com o Ilê Aiyê, um prédio no Curuzu que está há quase uma década sem obras”, conta. “Vamos climatizar, fazer com que a escola volte a funcionar, que tenha espaço para a capacitação da comunidade. E em 2024 vamos ter um Carnaval em homenagem aos 50 anos dos Blocos Afro”.

A segunda coisa foi investir na sustentabilidade dos Blocos Afros de Salvador, colocá-los também num lugar de protagonismo no cenário cultural. Conseguimos aumentar o apoio, então hojem todos os dias da semana há um Bloco Afro se apresentando no Centro Histórico para os turistas e a população da cidade. A gente também aumentou nosso apoio durante o Carnaval, reformamos a sede do Malê Debalê, em Itapuã, e vamos fazer o mesmo com o Ilê Aiyê, um prédio no Curuzu que está há quase uma década sem obras. Vamos climatizar, fazer com que a escola volte a funcionar, que tenha espaço para a capacitação da comunidade. E em 2024 vamos ter um Carnaval em homenagem aos 50 anos dos Blocos Afros.

O terceiro item, prossegue o secretário, era ter um Programa Municipal de Audiovisual para Salvador. “Nós lançamos em março a SalCine, um projeto completo que vai desde capacitação e formação de profissionais para trabalhar no audiovisual visual. São mais de 5 mil vagas em cursos profissionalizantes, que vão das áreas técnicas até aulas de roteiro e de produção executiva, entre outros”, explica.

“Também tivemos um edital bem robusto na Lei Paulo Gustavo para o audiovisual, com uma previsão de quase R$ 40 milhões, e também anunciamos a Salvador Film Comission [órgão municipal que incentiva, facilita e apoia a produção cinematográfica, televisiva ou publicitária em locais públicos da cidade]. A secretaria também está em tratativas com o setor empresarial, com vistas a uma PPP [parceria público-privada] para a construção de estúdios na cidade”.

Em janeiro, Tourinho promove outro evento ligado à cultura afro-diaspórica em Salvador: os Rolês Afro. Ao longo do mês, 30 pontos e dez roteiros estão sendo montados para turistas e a população local, claro. Serão locais e programações cultural e historicamente relevantes para promover e discutir questões relacionadas à diáspora.

Para além das iniciativas diretamente ligadas à cultura, Pedro Tourinho também abraçou, junto à prefeitura, um projeto de urbanismo voltado ao Centro Histórico de Salvador, de desenvolvimento socioeconômico por meio do turismo e, claro, da cultura.

“São três pilares”, explica. “Um de zeladoria, em que a gente aumentou a atuação da prefeitura na área de coleta de lixo, segurança e iluminação e no ordenamento público. Então os incidentes de criminalidade caíram 70% de março para cá. Outro, um programa de habitação, em parceria com o Banco Internacional de Habitação, o Ministério da Cultura e o Iphan. Por fim, uma programação cultural diária, que envolve desde os Blocos Afro, até as comemorações de São João e de Natal, por exemplo”.

Nas artes visuais, Pedro Tourinho destaca não somente a reabertura do Muncab, mas também o apoio ao Acervo da Laje e à exposição Memórias para Dona Antônia. “Estamos também conversando para construir um espaço próprio deles em Plataforma [bairro no subúrbio ferroviário da capital baiana]”, conta.

O secretário lamenta a grande dificuldade que tem com a captação de recursos junto ao setor privado. “Não houve nenhum apoio substancial de qualquer marca a esses projetos. Enquanto você vê marcas investindo milhões para fazer uma ativação ou mesmo estandes em festivais como o Rock in Rio ou o The Town, o Afropunk, que é um evento internacional, não teve qualquer patrocinador grande, tampouco o Liberatum”, pondera. “Existe um direcionamento do eixo Rio-São Paulo de não investir no restante do Brasil, como se isso não fosse importante. E a contradição é esta: a Bahia está presente em todos esses eventos com seus artistas. A cultura baiana é muito forte”.

Tourinho lastima ainda que o Muncab não tem “qualquer doador, patrocinador ou mecenas privado”. “A cultura dos artes visuais Salvador, a cultura negra é tão importante para as artes visuais brasileiras, como é que essas pessoas pretendem alimentar isso?”, questiona. “Querem apenas criar uma ideia de raridade e assim valorizar, gerar aquela velha especulação? Não pode ser assim. É preciso entender que a criatividade vem da dor, vem da dificuldade, mas também vem com a prosperidade. Ela não precisa estar ligada somente às questões sistêmicas. É possível, e é muito bom, criar na prosperidade”.

Sobre as obras e seus títulos

"Redenção de Cã", 1895, óleo sobre tela, 199 x 166 cm, assinada M. Brocos Rio de janeiro. 1895. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: Rômulo Fialdini
"Redenção de Cã", 1895, óleo sobre tela, 199 x 166 cm, assinada M. Brocos Rio de janeiro. 1895. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: Rômulo Fialdini

Um dia alguém deveria escrever um livro, ou mesmo um artigo, sobre os títulos das obras de arte. Saber se aqueles, pelos quais hoje as reconhecemos, sempre foram, ou não, sua denominação original pode trazer dados interessantes sobre a própria obra, sobre seu autor e sobre o momento de sua primeira recepção.

Eu mesmo já me interessei sobre o assunto publicando um texto sobre Tropical (1917), pintura produzida por Anita Malfatti e hoje pertencente ao acervo da Pinacoteca de São Paulo. Ali chamava a atenção para o fato de que, de início, a obra era denominada Negra baiana e que apenas posteriormente passou a ser reconhecida como Tropical[1].

Tempos depois da publicação do artigo, e na continuidade dos meus estudos sobre o modernismo paulistano, encontrei dados que apontavam para o fato de que, desde o início, o título Tropical foi usado em concomitância ao de Negra baiana. Esse último dado, no entanto, não retirou a validade do que desejava chamar a atenção no artigo: durante algum tempo, a pintura de Malfatti – junto à artista e a seus admiradores –, oscilou entre uma proposição naturalista/nacionalista (o retrato de uma mulher de pele negra, nascida na Bahia) e uma alegoria (a pintura como síntese figurativa das regiões tórridas, entre os trópicos de Capricórnio e Câncer).

A meu ver, tal oscilação diz muito sobre a construção da própria imagem do modernismo de São Paulo que tentava responder à demanda naturalista/nacionalista do debate artístico da cidade e, ao mesmo tempo, buscava criar obras que, pelo próprio título – Tropical – reivindicavam para si a responsabilidade pela criação de um corpo de pinturas e esculturas concebido dentro da grande tradição da arte, porém uma tradição “renovada”, moderadamente “moderna”.

***

Essas questões me voltaram à mente enquanto relia um importante estudo sobre as relações do teatrólogo e jornalista brasileiro Arthur Azevedo com as artes visuais[2]. Ali, acompanhando a série de crônicas/críticas, em que o intelectual refletia sobre a produção e o ambiente artístico carioca do final do século XIX, deparei-me com um artigo, publicado em agosto de 1894, em que Azevedo dizia ter encontrado, no ateliê dos irmãos Rodolpho e  Henrique Bernardelli (então na Europa), “três dos nossos mestres da pintura”: João Zeferino da Costa, Pedro Weingärtner e Modesto Brocos, que ali reuniam seus trabalhos e produziam novas obras.

Ao comentar as pinturas do artista espanhol, radicado no Rio, Modesto Brocos, o teatrólogo após referir-se às paisagens que o artista havia produzido em sua mais recente viagem a Minas Gerais, afirma que, no jardim do ateliê dos Bernardelli, Brocos estava terminando a pintura A redenção de Cã, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Azevedo descreve a obra:

[…] No jardim do ateliê ao ar livre, Brocos está concluindo um grande quadro, A evolução, em que trabalha há já bastante tempo. Não se assustem com aquele título: a evolução de que se trata [é] da evolução das raças no Brasil. O quadro mostra-nos uma família inteira: a mãe africana, preta – a filha, brasileira, mulata – o marido desta, europeu, branco, e o fruto desse casal, um pequenino louro rosado.

O trabalho que esse quadro tem dado ao artista! Como se sabe, é Brocos um dos nossos pintores mais conscienciosos, e tem um respeito absoluto pela sua arte. A falta de modelos de profissão, que se prestem com docilidade a posar durante longas sessões, põe-no em verdadeiros trances [sic]. Entretanto, a obra há de lhe sair completa, e os leitores terão ensejo de admirá-la na próxima exposição de belas artes.[3]

De fato, A redenção de Cã foi apresentada na Exposição Geral de Belas Artes, da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, de 1895, conquistando a Medalha de Ouro daquele certame. Assim, a obra seria reconhecida como um dos principais trabalhos ali exibidos e, muito rapidamente, torna-se uma das pinturas mais significativas produzidas no Brasil, no final daquele século. Tal significação, no entanto, não se deu (e ainda não se dá) pelas suas supostas qualidades técnicas, mas por ter praticamente inaugurado, no campo da arte erudita do país, um nicho de obras cujos temas aderiam à questão racial no Brasil.

***

Antes de continuar nessa questão, no entanto, atento para um fato que os leitores e leitoras já devem ter percebido: Arthur Azevedo, quando descreve a tão afamada pintura, a ela não se refere pelo título que a acompanharia pelo resto de sua trajetória. Ele a denomina A evolução.

Pode ser que o intelectual tenha usado esse título porque, na época em que publicou o artigo, Brocos ainda a pintava e, apesar de bem adiantada, talvez não tivesse ainda recebido o título solene de A redenção de Cã. Tal hipótese é provável. Porém, sete anos depois, em 1901, quando Azevedo comenta uma gravura produzida por Brocos, em que retratava o poeta Gonçalves Dias, ele afirma:

É uma água-forte digna de ser apreciada em Londres, embora passe, como é natural, despercebida no Rio de Janeiro, onde a curiosidade pública só é despertada pelo escândalo. O aplaudido pinto d’A evolução e de A debulhada deu ao grande poeta um olhar penetrante, de uma expressão profunda que reflete, pode-se dizer, a obra do pensador e do artista. Não creio que o instrumento do gravador produzisse ainda, no Rio de Janeiro, uma estampa de tanto merecimento como esse retrato.[4]

"Engenho de mandioca" (1892), óleo sobre tela, 59 x 75,5 cm, assinada M. Brocos, 1892. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: César Barreto
“Engenho de mandioca” (1892),
óleo sobre tela, 59 x 75,5 cm, assinada M. Brocos, 1892. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram
Foto: César Barreto

 

Mesmo passados alguns anos, Azevedo continuava se referindo à A redenção de Cã como A evolução.

De fato, pode ser que ele tenha absorvido o primeiro título concedido à pintura, talvez pelo próprio Brocos, para ser referida informalmente enquanto ainda era produzida. Pode ser que, mesmo tendo passado um determinado período, Azevedo não tenha assimilado sua nova denominação.

Independentemente de quanto tempo a obra foi conhecida – entre o pintor e seus amigos – como A evolução, e independentemente também do fato de que, ao que tudo indica, somente Arthur Azevedo tenha continuado a denominá-la como tal, o que interessaria sublinhar é que ocorreu, com a pintura de Brocos, o mesmo que, poucos anos mais tarde, ocorreria com Tropical, de Malfatti.

O título A evolução, tão explícito, escancarava o que uma parcela da intelectualidade pensava sobre a solução para a questão racial no país: a miscigenação – caminho “natural” para o embranquecimento da população, a meta a ser buscada para a “evolução” da sociedade brasileira.

Concebida a partir de valores estéticos que enfatizavam, tanto a descrição étnica dos personagens, quanto seu entorno[5], a pintura de Brocos, pela composição e pelo título inicial, autoexplicativo, sintetizava uma resposta direta , produzida no campo da arte, ao debate que então era travado sobre os destinos da “raça” brasileira.

No entanto, na época, a boa recepção das obras de arte no ambiente carioca, necessitava do aval da Escola Nacional de Belas Artes – núcleo do poder legitimador do campo das artes no Brasil, também por ser a organizadora das Exposições Gerais. Brocos não podia usar aquele título tão direto para submeter sua pintura ao escrutínio rigoroso da Escola.

Afinal, apesar de algumas “modernidades” absorvidas, seja no âmbito da técnica, seja na temática, a instituição ainda era a guardiã de princípios sobre o papel das belas artes em uma sociedade, princípios considerados nobres e acima de qualquer circunstância. Ou seja: por mais efetiva que fosse a pintura em seu escopo – inclusive devido ao seu título original – era necessário que ela adquirisse uma dimensão moralizante, exemplar, como toda obra de arte deveria ser, ou tentar ser, para que fosse aceita naquele ambiente fundamentalmente tradicional da Escola.

É por esse motivo que, ao que tudo indica, Brocos buscou, primeiro na tradição bíblica, depois no senso comum, um título que se adequasse à grande tradição de exemplaridade da arte, mesmo que sua pintura, pela técnica e pela temática, tentasse quebrar aquelas amarras.

***

Como é sabido, Cã, filho mais novo de Noé, tem sua descendência amaldiçoada pelo pai por tê-lo flagrado nu e embriagado. Noé vaticinou que o filho de Cã, Canaã, assim como seus descendentes, iriam servir para sempre aos seus outros dois filhos, Jafé e Sem. A tradição afirma que Jafé e herdeiros povoariam a Europa, os de Sem, os países do Oriente Médio, e os de Cã e Canaã, o continente africano.

Esta lenda, por muitos anos, justificou, para muitos, que os africanos fossem vistos como amaldiçoados e nascidos para servirem os descendentes de Jafé e Sem, ou seja, os povos europeus e do Oriente Médio.

É disso, então, que passa a se tratar a pintura de Modesto Brocos. Do laico e “científico” A evolução, ela almeja, agora, uma transcendência absoluta e exemplar, a partir da apropriação do texto bíblico.

A história da senhora negra, descendente de Cã e Canaã, à esquerda na tela, é salva, é redimida, pela miscigenação de sua prole. Sua descendência deixa de ser escravizada, mas também deixa de ser negra.

Ao mudar o título da pintura, de A evolução para A redenção de Cã, Modesto Brocos encobre com um verniz de moralidade bíblica o desejo “científico” de apagamento da presença dos negros na história do país.

***

É claro que a importância de A redenção de Cã não reside apenas na existência dessa sua outra denominação. Porém, creio que, levado em conta nas reflexões sobre essa que foi, como mencionado, foi uma das pinturas mais importantes do século XIX, aquele pequeno “lapso” laico – logo corrigido –, pode contribuir para ampliar ainda mais as discussões sobre A redenção de Cã e seu papel como elemento catalisador da questão racial no país, durante o início da República.

[1] – CHIARELLI, Tadeu. Tropical, de Anita Malfatti. Novos Estudos CEBRAP, vol. 80, 2008, pág. 13 e segs.

[2] – SILVA, Frederico Fernando Souza. Arthur Azevedo: o crítico de arte como colecionador/o colecionador como crítico de arte. São Paulo: Tese de doutoramento. PPGAV ECA USP, 2016.

[3] – AZEVEDO, Arthur de. Coluna Palestra, Rio de Janeiro: Jornal O Paíz, 12 de agosto de 1894. Apud SILVA, Frederico Fernando Souza. Arthur Azevedo: o crítico de arte como colecionador/o colecionador como crítico de arte. Op. cit. Pág, 236.

[4] – Idem, pág. 291. A obra referida pelo crítico como A debulhada, seria reconhecida como Engenho de mandioca, 1892, hoje no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro.

[5] – Descrição esta, próxima daquela empregada pelo pintor Almeida Jr., embora não com a qualidade das pinturas “caipiras” desse último.

Clamor feminino

Ti’Iwan Couchili, Guiana Francesa, Otsenene, Ma’ekom | Bienal das Amazônias
Ti’Iwan Couchili, Guiana Francesa, Otsenene, Ma’ekom, 2016, fazendo referência aos suicídeos do povo indígena. Fotos: Nailana Thiely/acervo Bienal das Amazônias

Idealizada por Lívia Condurú, em parceria com as curadoras Sandra Benites, Keyna Eleison e Vânia Leal – e com a assistência curatorial dos “múltiplos pensatórios”, de Ana Clara Simões Lopes e Débora Oliveira – a primeira Bienal das Amazônias aconteceu entre o meses de agosto e novembro de 2023, na cidade de Belém, no Pará, às margens do Rio Guamá.

Um verdadeiro encontro de mulheres fortes, com diferentes identidades e saberes, deu à luz um projeto que levou o nome derivado da língua tupi, Sapukai, que em português podemos traduzir como clamor, grito, trabalhar por adição e não por extração, ampliação e abraço.

Um diálogo entre a direção, as curadoras, os artistas e os produtores, operou uma força coletiva e fez associações respeitando a voz de uma enorme quantidade de gestos peculiares vindos de vários lugares, às vezes nunca revelados do Brasil. Basicamente, a mostra desperta a vontade de mergulhar nesse mundo, povoado de ancestrais e árvores milenares. Belém é banhada pelos rios, e o vento, permanente, alivia o calor da região.
Um dos conceitos que sustentou a Bienal é o fato de a Amazônia ser conhecida pelas suas grandes áreas florestais e por suas fauna e flora diversas, mas é a presença da água – vinda das chuvas e de sua extensa rede fluvial – que contorna o imaginário da região. Daí o título da primeira edição, Bubuia: águas como fonte de imaginações e desejos, que celebra a relação ética e cultural entre as águas e os corpos que nela se movem.

A Bubuia é diretamente inspirada no dibubuísmo criado e defendido pelo filósofo e professor João de Jesus Paes Loureiro, nascido em Abaetetuba, cidade paraense [Leia, nesta edição, a íntegra da entrevista exclusiva com Paes Loureiro]. Flutuar sobre as águas, diz o texto curatorial da mostra, simboliza “uma conjugação de movimento e inércia em favor do prazer, da reflexão e da integração com o meio ambiente, e diz muito sobre a perseverança e resistência de quem habita a região. É certa predisposição calculada para o devir e para o deixar vir, que se estabelece como conhecimento de herança constituinte de saberes caboclos ribeirinhos, transmitidos pela oralidade em caráter de resistência, imbuídos por um conhecimento oriundos da relação com a natureza e relacionados entre os seus iguais.”

E prossegue o texto curatorial: […] “Em meio a drástica crise climática planetária e os crescentes antagonismos ideológicos que se espalham pelo Brasil e pelo mundo, anunciar a multiplicidade de desejos como o campo de forças que circunda corpos em território amazônico é, antes de tudo, uma proposta de instauração de espaços relacionais que levam em conta a experiência humana nela acumulada, seu humanismo, seu imaginário social. espaços de auto reconhecimento, de celebração e, principalmente, espaços de luta, resistência e reexistência pelo prazer de ser plural. Dessa forma, o cerne curatorial da Bienal busca instaurar aproximações possíveis não só entre os nove países que delimitam o bioma e o território aquático do Rio Amazonas e os nove estados brasileiros compreendidos como Amazônia Legal, como também ambiciona a inclusão das muitas Amazônias multifacetadas e invisíveis que populam o imaginário contemporâneo, para além de seus limites físicos, sociais e geográficos.”

Alguns dos eixos curatoriais que organizam a mostra foram inspirados em lendas e vocábulos da região, como Fontes Vitais Cambiantes, que partiu da pesquisa sobre o princípio e os princípios do Rio Amazonas e da sua movimentação. Diz o texto curatorial: “Desde a nascente à desembocadura. assim chegou-se em Apurimac, região peruana onde existe uma das nascentes. e, a partir da pesquisa deste lugar, a ampliação de Apurimac; seu conceito e narrativas. O vocábulo designa uma região do Peru onde está localizado sayhuite, um sítio arqueológico considerado um centro de culto religioso para o povo inca, notado por sua particular atenção e dedicação à água. Em quechua, apu refere-se aos deuses, sábios e também às montanhas. Apurimac, por sua vez, designa o “deus falador”, algo que se pode entender como uma espécie de oráculo observado e ouvido pelos povos andinos que habitam a região. Apurímac é ainda o nome de um rio, uma das nascentes do Rio Amazonas. Na cosmovisão andina, este rio que nasce em meio às montanhas corre até a planície amazônica (correrá até o Marajó, no litoral norte brasileiro do Pará. Deságua no Oceano Atlântico entre os estados do Pará e do Amapá) e retorna aos Andes por baixo da terra. Acreditava-se que, à noite, o sol se punha sob a terra, viajando em canais subterrâneos e bebendo o excesso de água para que Apurimac não transbordasse durante sua viagem de retorno.”

Outro eixo relevante é o de Cisão como contrato, que nasce da tomada de consciência da curadoria dos pactos e das estruturas (sociais, econômicas, raciais) que regem nossa existência e como, partindo disso, podem-se encontrar formas de ruptura ou resistência. Ou ainda Clima(x) T(r)emor, que “surge da afirmação e desejo da impossibilidade da totalidade. É um eixo que acata a ideia de que é impossível dar conta de um “todo”, até porque a ideia de todo, quando aplicada à Amazônia, não cabe, devido a incontáveis narrativas de povos diversos que habitam os campos, as estradas vicinais, florestas, águas e outros territórios de um ambiente complexo e dinâmico, que faz parte do território brasileiro.

Novamente, segundo o texto curatorial, “são vidas e realidades que necessitam de constantes reflexões acerca das etnias, fauna, riquezas minerais, entre tantas dinâmicas de saberes e práticas das plantas medicinais da floresta e, significativamente, o equilíbrio ambiental do planeta. Ritmos advindos de influências fronteiriças que se misturam à criatividade de cada lugar, dança, vozes, pajelanças e pensamentos que não nos deixam estar no mesmo lugar. Escutando as variantes intelectuais afroindígenas, caiçaras, ribeirinhos, assentados, indígenas, quilombolas, de escuta e de silêncios. E, nessa dinâmica, reconhecemos que a tentativa de dar conta da totalidade é engessante e violenta, além de totalmente exaustiva e desnecessária.”
Já o eixo Vidas Linguagens reconhece as distintas verdades, vidas e linguagens propostas por diferentes cosmovisões. Por último, há o eixo Encontros de Desejos.
O manifesto da Bienal defende: “Amazônia […] é também uma commodity global no tempo do antropoceno e da crise climática. A Amazônia que já foi paraíso edênico ainda é tida por muitos que acreditam ser o pulmão do mundo. Esse imaginário surge em sua maior parte do cenário externo, muitas das vezes distorcidas e exotizadas, afinal tudo que se refere à Amazônia ganha dimensões mundializadas e ampliadas. Mas algo é real, a Amazônia é sim a chave fundamental para a sobrevivência da humanidade no mundo contemporâneo.”

Conversa com Lívia Condurú
Idealizadora e diretora executiva da Bienal das Amazônias, Lívia Condurú é mestre em Artes, pela Universidade Federal do Pará, onde desenvolveu pesquisa sobre políticas públicas para a cultura no norte do Brasil, e atua há duas décadas como produtora cultural na Amazônia.

arte!✱ – A ideia de se fazer uma Bienal das Amazônias é recente? Sustentada em alguma medida pelo debate nacional e internacional?

A Bienal é um desejo meu de produtora, desde o começo da minha vida profissional, no início dos anos 2000. Com o passar dos anos foi ganhando forma e se voltando mais para a minha área de atuação principal enquanto produtora executiva, nas artes visuais, e em 2011 ganhou o nome e o formato que tem hoje. Desde então ele foi sendo aprimorado até ser colocado na Lei Rouanet ,em 2019.

O objetivo principal sempre foi o de criar uma plataforma de debate, construção e fortalecimento do território amazônico, a partir da nossa produção contemporânea de arte. Uma bienal que se pretende plataforma para que muitas vozes, locais sobretudo, expressem seus pontos de vista sobre o que é ser amazônida. O nome Bienal das Amazônias já surgiu enquanto provocação, pois existe um bioma, mais infinitas culturas e formas de se compreender o território embaixo da alcunha Amazônia.

Para além disso é crucial que não necessitemos ir sempre ao que entendemos por eixo, para sermos validados enquanto artistas, pensadores, criadores. Se faz urgente mudar o movimento da roda. A Amazônia não precisa ser salva por ninguém, ela precisa ter a devida atenção e o investimento para que todos aqueles que a constituem se sintam fortalecidos em suas inventividades e metodologias e possam manter a floresta em pé, a partir da possibilidade de se permitir que seus habitantes vivam dignamente.

arte!✱ – Quando o projeto foi aprovado? O orçamento inicial deu conta dos gastos?

A Bienal das Amazônias, enquanto projeto incentivado, foi aprovada no início de 2020, e suas primeiras captações se deram no final deste mesmo ano fiscal. Em razão da pandemia e de todas as dificuldades impostas pelo então Governo Federal acabamos por desenhar a sua realização para o ano de 2022. Até aquele momento realizaríamos a Bienal em diversos aparelhos culturais do Estado e do município, e construíriamos 20 obras públicas que, para além de debater os usos que fazemos da cidade de Belém, faria a liga entre estes diversos prédios. No entanto, por questões administrativas, acabamos por jogar nossa realização para o ano de 2023 e, com isso, o Governo do Estado do Pará nos informou que não mais teríamos as pautas dos espaços museais que tínhamos acordado. Então, acabamos jogados, por assim dizer, para a necessidade de criar um novo aparelho cultural que desse conta do que estávamos propondo institucionalmente.

Se politicamente nosso cerne institucional se pauta no fortalecimento do território a partir das gentes que o compõem, por que se distanciar das pessoas? Para além disso, somos instituição porque eis o modus operandis de existir/resitir no (e ao) mercado, mas até que ponto precisamos de mais uma instituição de arte? Com o problema de não ter mais os espaços delimitados anteriormente, e com todos estes questionamentos, comecei a buscar um lugar não institucional que veio a abrigar a 1ª edição da Bienal das Amazônias.
O prédio escolhido finalmente, de quase oito mil metros quadrados, já foi a casa da mais antiga loja de departamentos da cidade de Belém, a Y.Yamada, há muito tempo fechado, no centro comercial da cidade, e veio coroar nossas crenças enquanto Bienal das Amazônias. Mas nem toda coroação é simples. O prédio precisou de diversas reformas, tivemos de refazer sua estrutura elétrica, hidráulica, criar sistema de incêndio, construir salas, banheiros, sistema de acessibilidade, sistema de refrigeração, tudo isso somada a montagem do projeto expográfico, em exatos 43 dias. Isso tudo com o orçamento desenhado em 2019, captado nos anos subsequentes e sem qualquer ajuda financeira dos entes municipais e estaduais que tanto ganharam com a Bienal. Então claro que tivemos problemas financeiros e somente agora vamos conseguir sanear todos os custos.

É muito importante para a Bienal das Amazônias, para mim enquanto sua idealizadora, e para todos os profissionais que abraçaram esse projeto, que ele se realize num lugar popular. Arte é sobretuto um ato político. Precisamos instrumentalizar a nossa população, e que meio mais forte se não a arte para fazê-lo? Precisamos requalificar o nosso centro comercial, mas para isso é urgente que não o gentrifiquemos, que todos que fazem dele realidade hoje, permaneçam nele. Muitas questões.

arte!✱ – A Bienal foi um sucesso de público

Em razão do hercúleo trabalho possível graças ao coletivo, a Bienal foi um sucesso e com isso conseguiremos manter o prédio como a sede da instituição, logo a próxima edição da Bienal das Amazônias em 2025 acontecerá nele, também, bem como diversas programações no ano de 2024.

Em 2024, para além das atividades que realizaremos no nosso prédio sede, vamos itinerar com recortes desta primeira edição para as cidades de Manaus (AM), Macapá (AP), São Luis (MA), Canaã dos Carajás (PA) e Marabá (PA). Assim como faremos itinerância por meio de um barco-obra por até 30 cidades que não possuem aparelhos culturais e que estão às margens de rios amazônicos. A itinerância começa a circular no mês de abril, e o barco-obra será inaugurado em maio e começa a navegar em junho.

Ti’Iwan Couchili, Guiana Francesa, Otsenene, Ma’ekom, 2016
Ti’Iwan Couchili, Guiana Francesa, Otsenene, Ma’ekom, 2016, fazendo referência aos suicídeos do povo indígena

arte!✱ – Como você montou essa equipe guerreira? Já conhecia seus integrantes ou surgiram após pesquisas?

A Bienal das Amazônias é um projeto de mulheres, sobretudo. Eu e Yasmina Reggad começamos esse desenho lá em 2011, muita gente da minha equipe de produtores da época ajudaram nesse desenho. O tempo foi passando e fui reencontrando profissionais, parceiros. As únicas pessoas que pesquisamos, avaliamos, foram as curadoras. Eu e Yasmina passamos muito tempo pensando que queríamos que fosse coletivo, que fossem mulheres e que cada uma carregasse em si um mundo, e conseguimos. No percurso pessoas foram chegando, acreditando e só consegui realizar a Bienal das Amazônias porque estas pessoas que hoje são a Bienal, acreditaram no meu sonho e passaram a sonhar os seus próprios sonhos a partir do meu sonho. A Bienal das Amazônias é um desejo de construção de uma nova possibilidade de coletividade, ou pelo menos um resgate de ser coletivo, de ser aldeia. Por sorte, e eu tive muita, apesar de todos os pesares, dos entraves, das diversas descrenças em nós, o afeto fez a liga para que resistíssemos e fizéssemos acontecer. Sobrevivemos, foi lindo, mas igualmente difícil.

arte!✱ – Foi um sucesso, mas não tiveram claramente apoio de mídia regional e nacional … por quê?

Assumo que não sei dizer se claramente não tivemos apoio da mídia. Fomos poucos, sem orçamento e o que conseguimos acredito que tenha sido o suficiente. O Brasil tende a não dar atenção para o que não está posto, para os que não fazem parte do mainstream, para além do que o Brasil do eixo, não nos leva muito a sério, então acho que o que aconteceu é o que acontece normalmente com todos os que produzem nas margens, nas bordas que, diga-se de passagem, é a grande maioria do território brasileiro. ✱

Hora da imaginação radical

Livro Decolonizar o museu – Programa de desordem absoluta
Livro Decolonizar o museu – Programa de desordem absoluta, da autora Françoise Vergès, publicado pela Ubu Editora em 2023

Com Decolonizar o Museu – programa de desordem absoluta (Ubu, 2023), a ativista e pensadora francesa Françoise Vergès faz uma precisa análise da atual situação dos museus que, se por um lado buscam novas práticas contrárias ao colonialismo que está no próprio gene de seu surgimento, seguem usando o mesmo sistema hierárquico e patriarcal de sempre. “É preciso ir além”, defende ela em entrevista exclusiva em São Paulo, no início de outubro passado, quando veio para o lançamento da publicação e diversas conversas em vários estados do país.

Sob o impacto de Coreografias do Impossível, a primeira Bienal de São Paulo com uma curadoria majoritariamente negra, além de diversas mostras na cidade que buscam o sentido da reparação, Vergès sentencia: “Não é suficiente.”

Como ela defende no próprio livro, “não basta expor obras ‘decoloniais’ (…), diversificar o que é pendurado nas paredes, falar de preservação e conservação em um estando de guerra permanente contra subalternos e indígenas”. Parece aqui que ela se refere às polêmicas do Masp em torno da mostra Histórias Brasileiras, no ano passado, mas ela diz que não conhecia o caso. De fato, contudo, não há muitas diferenças entre a arrogância dos museus franceses com os quais ela está acostumada e sobre os quais reflete na publicação e aquele da avenida Paulista.

O livro ainda adianta outro assuntos urgentes agora, como as más condições de trabalho denunciadas por funcionários da Bienal de São Paulo: “É preciso criar um lugar onde as condições de trabalho daqueles/as que limpam, vigiam, cozinham, pesquisam, administram ou produzem sejam plenamente respeitadas; onde as hierarquias de gênero, classe, raça e religião sejam questionadas.”

Foto: Anthony Francin

Leia, a seguir, algumas reflexões de Vergès após ter visitado a Bienal de São Paulo e a Ocupação 9 de Julho, que recebe a mostra Refundação:

ARTE! – Você escreveu que, em 2011, ainda acreditava que era possível fazer uma exposição que não disciplinasse fisicamente os quilombolas. Penso hoje na Bienal de São Paulo porque é um tema importante para eles e sei que você esteve lá. Você pode dizer algo sobre essa afirmação e Coreografias do Impossível? 

Françoise Vergès: Quando eu disse isso, pensei que era possível realmente fazer do jeito que queríamos, não apenas para mostrar algo sobre os quilombolas e a escravidão, mas fazer de forma diferente, muito densamente, para que realmente houvesse mudança. Não é necessário que se conte a história que não foi contada, porque isso está sendo feito, é realmente para mudar totalmente. E percebi que não era possível porque não somos livres. Então, o museu não é um espaço de liberdade, precisa ser fora dele, em um lugar que teríamos criado como um lugar de liberdade, pelo menos por um tempo, talvez por muito tempo. Ainda é o que penso hoje. 

Na Bienal há coisas que são absolutamente fantásticas e há um desejo real e um impulso para algo além. E o fato de você ter o Movimento dos Sem-teto é realmente algo próximo de uma proposta que vá além do campo da arte. Mas ainda é uma Bienal. Não estou dizendo que não deveríamos fazê-la ou que isso seria ruim. Não tenho um vírus para julgar, mas o que quero dizer é que sabemos o suficiente hoje que deveríamos fazer outra coisa. Sabemos o suficiente, pois temos trabalhado em estratégias pós-coloniais e decoloniais, sobre representação, analisando imagens, produzindo textos. Mas estamos em um momento decisivo em que realmente é preciso dar um salto de imaginação, fugir da norma ocidental. 

Muita gente esperava, já que é a primeira vez que a curadoria da Bienal é majoritariamente negra, que haveria uma revolução. Mas quando ela abriu, as pessoas perceberam que ainda é uma bienal, afinal essa é a regra….

Isto é o que eu digo: a impossibilidade dentro do sistema em permitir que você vá além dos limites. Você pode transformar o espaço, não colocar a mesa e a cadeira no mesmo lugar da casa do senhor patriarcal. E isto já provoca desafios à perspectiva da forma como circulamos no espaço, mas a parede ainda está lá. Ainda não desafiamos o sistema. Permanecemos dentro do sistema. Fazemos as coisas de maneira diferente e elas são incríveis, mas como eu digo, é hora de ir além, porque senão o espaço impõe uma certa forma de ser.

Às vezes sim, mas, digamos que a documenta quinze, em 2022, foi muito surpreendente ao repensar o uso dos espaços, porque as pessoas dormiam e cozinhavam no museu, havia um lugar para crianças. A meu ver, eles mudaram completamente a estrutura.

Sim, eles ocuparam o espaço que foi dado de forma diferente, e com esta ocupação de uma maneira diferente, eles estavam efetivamente contestando, desafiando o sistema. Quando você não consegue alterar as paredes, você muda o conteúdo e a documenta no ano passado tentou fazer isso. Então, o que você pode fazer se estiver dentro de um espaço dado é transformar ele em um quilombo ou repensar aquele espaço a partir daquela cidade, mas dentro daquele ambiente que foi construído por forças sociais que são racistas, patriarcais, usando o espaço da forma possível.

Estive na Ocupação 9 de Julho, e existe lá um espaço de liberdade, onde a vida está sendo inventada, a vida no sentido de que o que temos fora de lá não é vida. Então para mim os espaços de liberdade não ocorrem necessariamente em um museu ou em uma bienal.

Mas ao menos a documenta apontou que há possibilidades…

Sim, há possibilidades. Mas, na verdade, o que eu quero dizer é que é preciso dar às pessoas o poder de efetivamente agarrar e fazer o que elas quiserem. Sugeri a um amigo em Paris que fizéssemos uma bienal do bairro com as pessoas daquele bairro. É preciso começarmos com as pessoas, os vizinhos serão a equipe de curadoria e trabalharemos com elas. Pode ser que saibamos também a melhor maneira de fazer isso ou aquilo, mas podemos trabalhar juntos. Esse seria o tipo de bienal, tudo a partir dos moradores de um bairro.

Ao mesmo tempo, há uma espécie de paradoxo no trabalho com arte, já que na Ocupação 9 de Julho o que eles colocam dentro da galeria Reocupa é, de alguma forma, uma arte convencional, com molduras…

Na verdade, é para esse debate que eu vou. Nunca fomos representados, nossas vozes não foram ouvidas, então vamos participar, mas aí o modelo é tão hegemônico que acabamos fazendo o que foi feito antes, apenas mostrando coisas diferentes na parede. No final não sabemos fazer nada diferente.

Então é aqui que quero que estejamos agora: o que faremos. Queremos mostrar algumas lembranças e como vamos fazer? Se estamos caindo novamente no modo ocidental, isso é compreensível, afinal temos feito este trabalho por um tempo, haverá alguma ideia da tradição ocidental que tomaremos emprestada. Mas precisamos libertar nossa mente disso. Tenho trabalhado muito com artistas e faço workshops coletivos. Sempre percebemos o quão rápido voltamos ao normal. Então, é esse movimento de imaginação radical que temos que encarar agora.

Temos que desaprender…

Sim! É tão difícil, sabe? A certa altura, fiz um exercício sobre o que seria um museu decolonial há quatro anos. A resposta foi: vamos mudar o texto. Eu disse não, porque é claro que podemos trazer mais diversidade e textos diferentes, mas ainda será a mesma arquitetura. A casa principal tem que ser demolida. Para mim a questão da arquitetura é muito importante porque vejo que todo espaço público está sendo projetado de forma que quando você entra você sabe onde está entrando e se comporta como se espera que se comporte naquele espaço. É a ditadura da arquitetura.

Em seu livro você cita a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, como uma ferramenta para se desaprender… 

Sim, acho que a pedagogia é importante porque temos que retreinar nossos sentidos sobre o que vemos, como ouvimos, como cheiramos, como mudamos nossos sentidos, porque todos nós temos uma educação estratégica para servir ao capital.  Precisamos dizer de forma diferente, olhar de forma diferente e ouvir de forma. Então é necessária uma pedagogia no sentido de que reaprender, desaprender e aprender novamente é necessário. Precisamos ouvir uns aos outros. No workshop eu digo que não há ideias estúpidas. Se uma ideia é muito simples, talvez possamos fazer de uma maneira diferente, ou depois de uma longa discussão concluímos que não funciona e abandonamos essa ideia, mas então se abandonarmos sabemos por quê. Significa que não é a ideia que será mais importante, mas a forma como decidimos é que precisa ser a chave do processo. ✱

Um marco existencial

Um marco existencial

Como confrontar a orientação dos trabalhos artísticos dos povos indígenas frente ao dilema do novo, que move o sistema de arte no mundo? As obras reunidas na mostra Histórias Indígenas, em cartaz no Masp, fazem um recorte significativo da produção desenvolvida por indígenas de sete países: Austrália, Brasil, México, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Noruega. O debate contemporâneo sobre a identidade de tais artistas aponta que grande parte deles é aceita e tem uma produção constante, sendo que alguns estão em acervo de museus ou em galeria de arte. O marco temporal da mostra vai desde 200 A.C até os dias de hoje e reafirma o poder das cosmologias presentes nos oito núcleos da mostra. Como tal, Histórias Indígenas envolve 175 artistas cujas etnias estão espalhadas pelas comunidades ou em cidades. Por uma parte, as narrativas sustentam que as produções do conjunto guardam histórias de ensinamentos milenares, absorvidos pelos “brancos”, e também narrativas sobre o apagamento da cultura indígena provocada pelo racismo, abusos e violência contra os considerados “diferentes”.  

Histórias Indígenas provoca a leitura de algumas manifestações, como a que abre a exposição, o vídeo em que Airton Krenak, uma das lideranças indígenas brasileiras, reconhecido internacionalmente, apresenta-se em 1988, ano da Constituinte, na Câmara dos Deputados em Brasília, com um texto curto e potente, no qual defende o direito dos povos originários do Brasil. Neste sentido a exposição conta com outros ativistas, alguns deles artistas visuais como Kenhiporã, também conhecido por Feliciano Lana, que desenvolve uma pintura com papel e guache, na qual materializa visões transcendentais que problematizam o conceito de identidade. A produção resultante das etnias dos sete países atesta que todos conseguiram salvar suas culturas como comprovam os textos dos curadores convidados. O segmento brasileiro coube a Edson Kayapó, Kássia Borges Karajá e Renata Tupinambá. 

Ao lado, Sophus Tromholt, Elen Clemetsdatter com as filhas, Kautokeino

Como ocorre com várias pessoas, antes de visitar a exposição eu não conhecia nada sobre o território Sápmi, no norte da Europa, onde vive o povo Sami, em grandes territórios da Noruega, Suécia, Finlândia e, Península Kola, no noroeste da Rússia. Durante séculos o sol é adorado nesse povo como o mais forte dos poderes da natureza, como explica a curadora Irene Snarby Sápmi no catálogo da mostra. Um dos artistas escolhidos, Alf Salo (1959-2013) é um pintor consagrado com obras no acervo do Musus Riddo Duotta Museat, na Noruega. Sua pintura é sensorial e experimental, uma delas registra o momento ápice da capacidade do olho humano permanecer olhando diretamente para o sol. O resultado traz alguns traços do psicodelismo.

De forte influência política e de participação ativa, os indígenas do México têm como curador Abraham Cruzvillegas que propõe trabalhos pontuais, de vários momentos da luta daquele país. O estudioso ressalta a identidade como conceito plural instável e contraditório do “eu”, porque, como explica a linguista mixe, Yásnaya Aguiar Gil, a palavra “eu” não existe em nenhuma língua nativa. Em toda a exposição descobrem-se inserções de técnicas singulares, como a serigrafia realizada com chocolate feita por Minerva Cuevas, uma espécie de cartaz com um texto provocador “Canibal es el índio, el esclavo, el proletário, el revolucionário”.

Uma nova ordem se espalha pelo mundo e tenta minimizar o regime disciplinar que apaga o indivíduo. A Austrália, que tem protagonizado movimentos ativistas em defesa dos aborígenes, convidou o curador Bruce Johnson-Mlean para dar caráter ao conjunto. Ele discorre sobre a região do Deserto Ocidental, a última das fronteiras da Austrália colonial. Em alguns territórios dessa região, pelo fato das terras ancestrais estarem localizadas nas áreas mais remotas e inóspitas, a colonização europeia não chegou lá proporcionando uma vida em estilo tradicional até 1984, como comenta Johnson-Mlean. As reivindicações que envolvem o problema da água nesse território desértico têm décadas, e já geraram violências culminando no Massacre de Coniston (1928), quando dezenas de indígenas morreram. O artista australiano escolhido é Shorty Jangala Robertson que trabalha uma pintura pontilhada com destaque para a tela Ngapa Jukurrpa – Água Sonhando (2005), inspirada na falta nesse elemento fundamental para a vida. 

A ancestralidade do Peru é uma das mais reverenciadas no mundo, Machu Pichu anualmente atrai milhões de visitantes de todo o planeta. Em contraste com essa riqueza étnica, as comunidades peruanas contemporâneas sofrem um racismo estrutural. Assistimos a uma violência social que a curadora Sandra Gamarra comenta em seu texto curatorial. “O lugar que o sistema reserva para o índio peruano na sociedade é um local de subalternidade, selvageria e inconsciência de seu próprio subdesenvolvimento. Esse é o lugar ocupado pelo chamado ‘índio’, irônica e humoristicamente”. Entre os trabalhos escolhidos por ela, vale ressaltar a obra de Carlos Dominguez Hernández, que retrata uma família com as fotos do pai e de um filho desaparecidos. A luta dos povos originários peruanos, assim como a dos demais do planeta  arrasta-se até hoje.

A Nova Zelândia, país que foi rebatizado pelos parlamentares como Aotearoa Nova Zelândia, escolheu como curador o crítico Nigel Borell que descreve como a arte maori tem um legado poderoso como linguagem visual. “Trata-se de um sistema de conhecimento, uma forma de relembrar e registrar eventos e entendimentos sobre o mundo ao nosso redor”. Os artistas representados estão conectados pela arte maori-whakapapa que conseguiu sobreviver às atrocidades, apesar da ruptura causada pelo domínio colonialista. Com técnica que se reporta a grafites, Jessica Hinerangi mostra a pintura Confront the colonisers (enfrente os colonizadores) da série Tino Rangatiratanga (2022). Do segmento ativismo, que retrata a luta permanente em todos os países, destaco a imagem icônica de uma jovem indígena com o punho erguido em uma zona rural. Trata-se do trabalho Máxima Acuña en BrigadeiroTragadero Grande en frente a la Lagoa, (2012).

Com protagonismo individual, os Estados Unidos aparecem com uma única artista, a navajo Melissa Cody, que faz uma exposição dentro da exposição. Com o título Céus tramados, Melissa realiza uma mostra em um espaço diferente, todo rosa, em que expõe tapeçarias trabalhadas com assuntos geométricos coloridos, e que tem a curadoria de Isabella Rjeille e Ruba Katrik. Um dos textos do catálogo é de Connie Butler, diretora do MoMA-PS1, que nos leva à história excepcional desta artista que desenvolve sua obra em tear original do povo Navajo. Butler explica que “as tapeçarias são produzidas com base em técnicas de tecelagem Germantown, utilizando sofisticadas sobreposições geométricas”. Melissa é uma Navajo de quarta geração e, segundo Butler, ela nos orienta para o futuro, por destacar técnicas duradouras, enfatizando as formidáveis contribuições de artistas indígenas que continuam a fazer avançar diálogos relevantes sobre a criação de espaço e identidade, por meio da engenhosidade e da resiliência.

Com o título bem original Na Trama da Mulher Aranha, o ensaio da curadora Isabella Rjeille toca na cosmovisão diné/navarro, em que o tear é a representação do universo. “A barra superior representa o céu e a inferior, a terra. A tensão que sustenta os fios é simbolizada pelo trovão, que estabelece uma conexão entre o mundo celeste e terrestre”. Ela ressalta que, pelo uso de padrões e cores vibrantes, os trabalhos de Melissa são associados ao movimento estilístico Germantown Revival, que nasceu depois que o povo Diné foi expulso de suas terras ancestrais. Em seu texto, conta ainda que esse processo de migração ficou conhecido como a Longa Caminhada ou Hwéedi (1863-1866). Houve incêndios criminosos, pilhagem, destruição dos rebanhos liderados pelo major-general James H.Carleton (1814-1873), que buscava inviabilizar os modos de vida tradicionais dos povos daquela região. Melissa cresceu nos anos de 1980 entre o Arizona o sul da Califórnia, e alguns trabalhos trazem a marca dessa territorialização. Chama a atenção a tecelagem Navajo Transcendent, com o “estudo” de diferentes tridimensionalidades. Isabella ressalta que “a tecelagem é também uma forma de reconexão e retorno ao território ancestral a partir da memória”. A ideia de território está fortemente presente na obra Cliff DwellerHabitante do Penhasco, em que a artista trabalha com graduação de marrons e vermelhos que se reportam à parte rochosa dos cânions da região. Completando a individual, um catálogo, especialmente editado para esta exposição, traz uma coleção de obras de Melissa Cody e um conjunto representativo de textos críticos e ensaios de vários autores.

Atualmente a artista navajo desenvolve seu trabalho com as pintoras Jaune Quick-to-See Smith, do povo Salisch de Montana e Emmi Whitehorse, do povo Diné. Entre seus colecionadores estão museus e fundações internacionais.

Lugares de Memória e resistência

Ensaios para o Museu das Origens

Ensaios para o Museu das Origens, ampla exposição que ocupa o Instituto Tomie Ohtake e o Itaú Cultural até janeiro, revisita e atualiza a proposta revolucionária apresentada pelo crítico Mario Pedrosa em 1978, depois que um incêndio destruiu o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Diante da crise sem precedentes enfrentada pelo museu, cuja necessidade de reconstrução corporificava o anseio de atualização em relação à produção hegemônica dos grandes centros, Pedrosa segue em direção singular. Ao invés da apostar na quimera de mais um projeto de vanguarda defendido pelas elites locais, volta-se para os lugares, as identidades e os elementos constituintes de uma identidade múltipla, invisibilizada e prenhe de referências a um conturbado e incompleto processo de formação nacional. Ao invés de locus de reverberação e reafirmação da alta cultura, ele concebe um modelo de museu plural, em movimento, estruturado em cinco grandes eixos: os museus do Índio, do Inconsciente, da Arte Moderna, do Negro e das Artes Populares. Os dois últimos ainda nem existiam de fato e, embora os três primeiros já funcionassem, viviam em situação precária naquele momento, no final da ditadura militar.

Tomando essa proposta como ponto de partida, quase cinquenta anos depois, Ensaios articula não cinco, porém mais de 20 organizações diversas. Alguns desses movimentos são pequenos, iniciativas quase heroicas de indivíduos ou grupos de resistência, que lutam persistentemente pela sobrevivência em cenário profundamente adverso, sobretudo se considerarmos os anos recentes de pandemia e governo Bolsonaro. Outros têm mais solidez institucional. Todas as regiões do país estão representadas, e as questões mobilizadoras fundamentais estão contempladas. Mas não se trata apenas de uma tentativa de catalogar as principais ou mais inovadoras ações espalhadas país afora.

Segundo Paulo Miyada, que responde pela curadoria juntamente com Izabela Pucu, a exposição foi sobretudo um trabalho de escuta, criando uma rede e fortalecendo lugares, contextos e pessoas. Repertoriar, como vimos em iniciativas como as várias Histórias, contadas pela curadoria do Masp, é importante, mas não suficiente. É a relação entre diferentes olhares e ações, combinando práticas criativas, experimentais e de pesquisa (como escreveu Pedrosa no diagrama que esboçou para o Museu das Origens) e a troca de experiências e diálogo entre elas que pode ter este efeito mais amplo de contaminação, espraiamento e transformação, fomentando a percepção dos processos de apagamento e dominação, que não se restringem somente a uma etnia, um gênero ou qualquer outro critério e sim a uma lógica de classes. Izabela Pucu, que também coordena a Plataforma Mario Pedrosa, sintetiza: “Ao colocar, lado a lado, as manifestações culturais dos consagrados e dos excluídos, o popular e o erudito, sem hierarquias, preservando suas diferenças e conflitos em convívio, a proposta expôs a complexidade de nossa origem, marcada pelos processos colonizatórios do passado e de hoje.”

Assim, as propostas de Pedrosa continuam a reverberar e, apesar de não terem sido adotadas na prática, ainda podem ser consideradas um farol, capaz de orientar um movimento de resgate e luta pela transformação cultural e política – dois elementos indissociáveis em seu pensamento e sua ação –, mas também um potente instrumento crítico em relação ao atual status quo do sistema da arte, cada vez mais excludente e submetido ao peso das instituições e do mercado.

A interação entre os agentes também é fundamental na tentativa de instituir um processo de reconfiguração e espraiamento de novas formas de trabalhar acervo, memória e uma concepção mais alargada e inclusiva e generosa de arte. O número de participantes também foi determinado pelas condições objetivas. Afinal, como lembra Miyada, se houvesse mais tempo ou mais espaço, as configurações da mostra seriam totalmente diferentes. Ou, como diz Sofia Fan, gerente do Núcleo de Artes Visuais e Acervos do Itaú Cultural, “sabemos que tocamos apenas a ponta do iceberg”.

Ensaios tem por princípio fundamental o trabalho realizado a muitas mãos. Junto com a equipe curatorial geral, a estrutura de cada uma dessas organizações foi convocada a estabelecer a forma de contar suas histórias invariavelmente marcadas por desafios e superação de obstáculos. O conjunto parece, assim, desdobrar-se em núcleos menores autônomos e ao mesmo tempo conectados. Resgatam, aqui e ali, a importância de outras figuras e outros interlocutores fundamentais para o pensamento da cultura brasileira a partir do século XX, como Emilio Goeldi, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro e Lina Bo Bardi. Para além desses nomes mais conhecidos, outros estudiosos, pensadores e militantes também foram rememorados, como Guilherme Tiburtius, que fez um trabalho silencioso e precioso de estudo, preservação e catalogação dos sambaquis. O volume de textos, documentos, cartas, fotografias e material iconográfico é impressionante e por vezes predomina em relação ao núcleo expressivo, poético, presente em cada um dos segmentos.

A primazia documental é, porém, contrabalançada, em primeiro lugar, pela presença de conjuntos importantes de acervo, como aquees trazidos pelos núcleos Museus Mineiros, Acervo da Laje e Museu do Índio. Segundo Sofia Fan, “a curadoria foi muito feliz em trazer não aqueles conteúdos previsíveis, em olhar para as museologias”, num tipo de resgate que pode inspirar novos projetos. Também é fundamental a presença de obras de referência (de autores como TGO, Antonio Manuel, Mira Schendel ou Ubirajara Ferreira Braga) ou de trabalhos comissionados, junto a uma maioria de artistas mulheres em torno de lugares e questões fundamentais à pesquisa. Destacam-se, por exemplo, as pesquisas e reelaborações que Andreia Hygino e Josi desenvolveram a partir da vivência em dois locais de grande força simbólica: o cais do Valongo, maior porto de desembarque de escravizados do mundo, e a Serra da Capivara, onde estão os mais antigos registros de arte rupestre das Américas e maior sítio do gênero no mundo. A pequena peça de cerâmica criada por Josi a partir da observação das pinturas ancestrais, parece dar corpo a ideia de “origens”, no plural, ao configurar uma figura antropomórfica que remete (em material, forma e gesto) àquelas mais antigas plasmadas no território hoje ocupado pelo Brasil e que tem uma única cabeça, mas inúmeros pés.

Uma congregação de forças semelhante àquela que anima o projeto visionário de Pedrosa e que está presente em diversas empreitadas desenvolvidas pelo crítico, a exemplo de seu projeto de exposição Arte, Alegria de Viver, em estágio já avançado de organização quando o MAM pegou fogo. Congregação na qual ecoam alguns dos elementos centrais de seu pensamento: a articulação entre arte e política, a ideia de criação como exercício emancipatório, a visão de que a arte não é confraria apenas para especializados ou ainda combate a noção de arte como mera mercadoria. Por uma feliz coincidência, é possível conhecer um pouco mais sobre a radicalidade crítica na exposição Ocupação Mario Pedrosa, mostra que perfaz a trajetória do crítico e foi organizada em paralelo a Ensaios pelo Itaú Cultural. Resgate fundamental se levarmos em conta que, apesar de ser um dos principais críticos atuantes no país ao longo do século XX, ele é pouco lido. Izabela Pucu relembra com espanto que, durante seus 12 anos de estudo na Federal do Rio de Janeiro, nunca lhe pediram para ler um texto de sua autoria. Além disso, um alentado catálogo com o registro dos processos, documentos e obras presentes em Ensaios deve ser lançado em dezembro.

Nordestes

Nordeste Expandido

Ao longo de três dias, em novembro de 2023, o Banco do Nordeste realizou o primeiro seminário Nordeste Expandido: estratégias de (re) existir, em Recife (PE), em que apresentou e debateu a diversidade nas artes visuais dos nove estados do Nordeste, e ainda em parte de Minas Gerais e Espírito Santo. 

Aberto ao público, o seminário aconteceu no tradicional espaço da Galeria Janete Costa, no Complexo Cultural Dona Lindu, na praia de Boa Viagem, onde, durante rodas de conversas, performances e cafés de socialização, artistas, curadores e produtores culturais foram convidados a participar e apresentar seus trabalhos, suas experiências e seus projetos. 

Dentre os artistas e pesquisadores estiveram presentes Nicolas Soares (ES), curador do Museu de Arte Moderna de Vitória, e ainda os artistas, curadores e produtores culturais Arissana Pataxó (BA), Ariana Nuala (PE), Geoneide Brandão (AL), Kauam Pereira (BA), Luciano Feijão (ES), Lins (PE), Samantha Moreira (MA), Gustavo Wanderley (RN), Rayana Rayo (PE),
 Aslan Cabral (PE), Tieta Macau (MA),
 Adriano Machado (BA), Dinho Araújo (MA),
 Ziel Karapotó (AL), Consuelo Véa Coroca (RN), Ani Ganzala (BA), Josi (MG), Tieta Macau (MA), Samantha Lira (PE), Diogo Viana (PE), Carlos Melo, Aslan Cabral (PE), Yacunã Tuxá (BA), Simone Barreto (CE), Clara Moreira (PE), Liliana Sanches (ES), Guga Carvalho (PI), 
Iris Helena (PB),
 Alan Adi (SE),
 Charles Lessa (CE),
 Bruna Rafaela Ferrer (PE), e, de Minas Gerais, as Bordadeiras do Curtume/Mulheres do Jequitinhonha (MG), Viviane Fortes, Andressa Guimarães, Marli de Jesus Costa, Maria da Aparecida Leite e Celina Hissa. 

Luciano Feijão, Antianatomia negra

O objetivo do seminário foi mostrar, a partir da diversidade de participantes, a construção coletiva da exposição, que reúne mais de 216 obras, produto de um trabalho horizontal entre curadores de cada região e a gestão do BNB Cultural, que resultou numa mostra sensível, preocupada em acolher a diversidade. 

O encerramento do seminário contou com a presença especial de Sandra Benites (MS), diretora da FUNARTE. Jacqueline Medeiros (CE),  coordenadora de artes visuais do Centro Cultural Banco do Nordeste, e também curadora geral da coleção, falou da importância do projeto que reúne aquisições recentes do Banco do Nordeste em todos os estados de atuação. As obras também fizeram parte das exposições comemorativas dos 70 anos do Banco do Nordeste.

“Nessas novas aquisições buscou-se a equidade de territórios, gênero, raça e etnia para a Coleção BNB, com uma curadoria indígena e curadores representativos de cada Estado e região. Abrange xilogravuras, o que se denomina arte popular e todas as técnicas das artes visuais como vídeo, objeto, esculturas, pinturas, desenhos e instalações que, apesar de distantes geograficamente, se articulam entre si, como pode ser visto na exposição”, explicou.

Este projeto faz parte de uma estratégia de fortalecimento das cadeias produtivas da cultura nas áreas de atuação do BNB, chamada Banco do Nordeste Cultural. As diferentes ações são programadas e realizadas de forma integrada, envolvendo os centros culturais presentes nas cidades de Fortaleza e Juazeiro do Norte, no Ceará, e Sousa, na Paraíba, os acervos artísticos, históricos e bibliográficos, além de projetos estruturados, como é o caso do Ecossistema Musical, do Galerias Urbanas e do Ecossistema das Artes Visuais. 

“O Banco do Nordeste Cultural vem desempenhando um importante papel no processo de visibilização da produção artística dos agentes da área de atuação do Banco, por meio de programas como o Galerias Urbanas, o Ecossistema Musical e o Ecossistema das Artes Visuais. São ações, somando-se ao fornecimento de crédito, que fortalecem a marca da instituição e cumprem o papel de agente fomentador das cadeias produtivas das artes”, afirmou Murilo Albuquerque, gerente de Gestão da Cultura do BNB.

Obra da artista maranhense Gê Viana

Alguns palestrantes trouxeram as experiências culturais de seu estado de origem, como no caso de Samantha Moreira, fundadora do CHÃO, em São Luís (MA). “Encontros como este confirmam nossa intenção de fazer acontecer, de criar um espaço de afeto. O CHÃO não é um projeto que começa só comigo, começa com um grupo de artistas, educadores, gestores, com o desejo de pensar processos a partir do Maranhão. Tem grandes parceiros e tinha, anteriormente, o Tiago Martins de Melo, a Márcia Araújo e a Nova Frente. Hoje somos eu, Dinho, Camila Grimaldi e Tadeu Macedo que, enfim, gerimos o espaço, sempre trazendo novas parcerias para a programação acontecer, para ser um espaço aberto a receber articulações, pensamentos e tradições do Maranhão.” 

O CHÃO hoje é um galpão que fica no Centro Histórico de São Luís,  onde funcionavam os antigos armazéns do Saber, da Praia Grande, tombado no final do século XVIII. “É aberto, fica numa rua do Passa Carro. Isso é maravilhoso, porque a gente tem uma expansão de uma praça, que permite realizar performances para o público. É um espaço de experimentação que vive dessa nossa forma de ser, do desejo de fazer acontecer junto aos artistas que estão lá, junto às nossas outras parcerias. Na programação do CHÃO a gente recebe  muitos projetos de residência para acolher. Existem instituições parceiras que possibilitam acontecer outros projetos, como o Festival Verbo de performances, junto à Galeria Vermelho de São Paulo. Esse ano, expandimos para Fortaleza, e nos apresentamos na nova Pinacoteca. No Rio, por exemplo, o CHÃO é uma residência parceira da feira ArtRio, já faz cinco anos. A gente recebe os artistas premiados, assim como outros projetos de residências junto a outros artistas selecionados, numa chamada pública que a gente fez em caráter nacional e com artistas também do Maranhão.”

Bordadeiras do Curtume
Bordadeiras do Curtume, Vale do Jequitinhonha, Belo Horizonte – @mulheresdojequitinhonha

O artista Luciano Feijão, graduado em Artes Plásticas e mestre em Arte pela Universidade Federal do Espírito Santo, foi professor no Departamento de Artes Visuais da UFES. Trabalhou com ilustração e gravura em Vitória, São Paulo, México e Eslováquia, com destaque para as ações do Museu Capixaba do Negro. Feijão também explicou seu percurso: “Venho trabalhando sobre o corpo, principalmente o corpo negro, desde 2016. Foi exatamente o ano que eu assumi que o meu trabalho, enquanto artista visual, falaria fundamentalmente do corpo negro.” 

A exposição Nordeste Expandido: estratégias de (re)existir ficará aberta ao público até o dia 5 de janeiro de 2024, período em que poderá ser visitada de quarta a sexta, das 10h às 17h, e aos sábados e domingos, das 10h às 16h. O acesso é gratuito.

Mundo (quase) mágico

Urna Marajoara | Museu Paraense Emílio Goeldi
Urna Marajoara estilo Joanes. Réplica em tamanho original de uma urna funerária marajoara do estilo Joanes pintado, com pintura polícroma em preto, vermelho e engobo branco e rico detalhamento de formas, cores e grafismos, misturando elementos humanos e não humanos. Coletores da peça original: Betty Meggers, Clifford Evans e Peter Hilbert

Na ocasião da visita à Bienal das Amazônias, no mês de novembro de 2023, em Belém, no Pará, tivemos a oportunidade de adentrar-nos num mundo quase mágico, construído pelo trabalho de equipes dedicadas à pesquisa e conservação de uma parte substancial da história do Brasil, não apenas sustentada em documentação, como por centenas de vestígios coletados por especialistas arqueólogos – escavadores, que revelaram uma riqueza milenar.

O Museu Paraense Emílio Goeldi é uma instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações do Brasil. Está localizado na cidade de Belém, Estado do Pará, região amazônica. Desde sua fundação, em 1866, suas atividades concentram-se no estudo científico dos sistemas naturais e socioculturais da Amazônia, bem como na divulgação de conhecimentos e acervos relacionados à região.

A instituição guarda uma das maiores e mais antigas coleções de arqueologia amazônica do Brasil e do mundo e já emprestou várias peças fundamentais para museus internacionais, como o Museu Britânico de Arqueologia ou o Museu Etnográfico de Berlim.

Ao nos receber, a Dra. Helena Pinto Lima – arqueóloga, pesquisadora titular do museu, onde atua também como curadora da coleção arqueológica e professora do programa de pós-graduação em Diversidade Sociocultural – contextualiza para nós os desafios e objetivos do Emílio Goeldi:

“Em meados dos anos 1950, 1960, construiu-se a ideia de que a Amazônia é vazia, uma floresta pronta para ser ocupada, um lugar para ser colonizado. Sob o argumento de que aqui a floresta não daria conta de sustentar, do ponto de vista de proteína de alimentação, grandes civilizações como as dos incas, ou as da América Central, por exemplo. Do ponto de vista da antropologia e da arqueologia, as comunidades, os povos indígenas dos anos 1940, 1950 e 1960, quando começaram a ser melhor documentados, estavam num dos momentos mais críticos da história, com muitas epidemias, violência colonial e pós-colonial. Nesse momento as comunidades estavam minguando.

Com um ethos em que predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânticas de transformação corporal”

O certo é que a floresta, tal como a conhecemos, a biodiversidade é fruto das ocupações humanas, fruto da sociobiodiversidade, das interações entre essas comunidades, esses povos e a floresta. As terras pretas, a Terra Preta de Índio é um solo extremamente fértil, procurado até hoje em dia para agricultura, para roça.

São resultados de produção intencional. E isso foi um processo de gerações e gerações. São 13 mil anos de história de povos e floresta e rio. A gente tem na Amazônia as cerâmicas mais antigas das Américas, que estão na região de Santarém, que são cerâmicas de capelinha, no Sambaqui, inclusive. Estudamos hoje uma história de inovação cultural, de tecnologias, criação de tecnologia, de manejo de floresta, manejo de engenharia de terra, construção de textos etc. As evidências de diferentes partes da Amazônia revelam tecnologias sofisticadas de transformação da natureza. Com nossas pesquisas hoje, temos o trabalho, a tarefa de desmontar, de recriar e recontar essa história.”

Na publicação conjunta do Iphan e o MPEG, de 2016, Cerâmicas arqueológicas da Amazônia – Rumo a uma nova síntese, as organizadoras – Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima e Carla Jaimes Betancourt – descrevem a história das cerâmicas da Amazônia, a classe mais abundante de vestígios arqueológicos, subindo o rio Amazonas, trazendo estudos e reflexões de diversos sítios cerâmicos de cada região e tentando entender as suas diferentes tecnologias para posteriormente trabalhar na reconstrução destas tradições ancestrais. No museu existem oficinas de restauro e reprodução de peças, altamente capacitadas.

“Toda arte impõe uma forma a uma matéria. Mas entre as artes ditas da civilização, a cerâmica é provavelmente aquela na qual a passagem entre a matéria prima e o produto, se dá de forma mais direta, com menos etapas intermediárias entre a matéria-prima e o produto, saído das mãos do artesão já formado, antes mesmo de submetido a queima.” (Claude Lévi-Strauss, 1985:235) (pág. 20)

As vasilhas tiveram diferentes papéis: consumo de bebidas e alimentos, mídia para compartilhar e transmitir ideias através de imagens pintadas, gravadas ou modeladas em suas paredes, urnas funerárias capazes de preservar os restos humanos ou representações de um lugar simbólico, como a demarcação de territórios sagrados. Todas trazem diferenças nas pastas e argilas utilizadas, na queima, torração ou oxidação, já que pertencem a territórios e grupos sociais diferentes.
Hoje se sabe, por meio destas e de outras pesquisas, que vestígios encontrados por escavadores datam de até 13mil anos atrás. No caso das cerâmicas da Amazônia, elas estão entre as mais antigas das Américas. “Se considerarmos as datações de Taperinha, no Baixo Amazonas (remontando a ca. de 8000 AP), e da Tradição Mina, no litoral do Pará, (remontando a ca. de 6000 AP).” (pág.23)

Dentre os diferentes grupos, as cerâmicas Marajoaras foram das mais estudadas da Amazônia. À diferença das cerâmicas andinas ou mesoamericanas, em que as representações de cultivos são comuns, na iconografia das cerâmicas Marajoaras enfatizam-se corpos animais e humanos. “Com um ethos em que predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânticas de transformação corporal (Viveiros de Castro, 2002).”

Replicando o passado, cortesia do Museu Goeldi
Replicando o passado, cortesia do Museu Goeldi

Estas cerâmicas pertencentes à Tradição Polícroma – que se expande ao longo de 6.600 km em distintos pontos da bacia amazônica e, cronologicamente, por mais de 1000 anos – possuem técnicas decorativas, enorme repertório de símbolos, a determinação de certas partes de animais como cobras e escorpiões no lugar de olhos e braços, constituindo exemplos claros da vivência cosmogônica, homem-natureza, da Amazônia.
Há uma infinidade de grupos estilísticos, com diferentes particularidades: as das guianas; as do complexo do Amapá; a cerâmica Mina do Pará, as do Maranhão; as do Tupi Guarani no Baixo Amazonas; do Baixo Xingu Guarani, Médio-Baixo Xingu, Volta Grande do Xingu, Foz do Xingu, Alto Xingu, as de Açatuba e Manacapuru, da Amazônia Central, do Caiambé no Lago Amanã, no meio Solimões.

Dentre tantas, as da cultura de Santarém e Baixo Tapajós pertencem a sociedades indígenas que habitaram a região entre os séculos VIII ou IX até XIX, no período pós-colonial, marcando, a partir daí, culturas híbridas. Mais recentemente estudadas, possuem uma diferença substancial das outras, apresentando, por exemplo, nos denominados vasos de cariátides, iconografias e esculturas de elementos zoomorfos (cabeças de urubus) e antropomorfos (figuras femininas sentadas) desenhadas e aderidas às suas bordas.

Souza Lima (2020), construiu a história de vida de uma urna marajoara que foi historicamente individualizada e descontextualizada

O desafio e as estratégias para dialogar com a memória
Em Devires para a diversidade no campo museal, artigo que faz parte do projeto Arqueologias, materialidades e paisagens entre os povos da floresta, Helena Pinto Lima coloca uma das maiores preocupações dos acadêmicos e curadores na contemporaneidade:
“Qual é o papel do museu nos atuais tempos de crise, tempos de transformação? Essa é uma discussão não somente pertinente, mas latente no campo dos museus, mundialmente. Produtos da lógica eurocêntrica e da empresa colonial, os museus operaram historicamente nas rememorações coletivas e no esquecimento seletivo a serviço de tal empreita nacional. Apesar dos importantes avanços sociais liderados pela nova museologia da década de 1970, só mais recentemente a problemática da descolonização ganha mais espaço nas práticas, alinhada com reivindicações identitárias hoje em voga. Junto com o Conselho Internacional de Museus (ICOM), estamos enquanto sociedade na busca de uma nova definição de museu que se enquadre melhor a este contexto. A consulta pública à comunidade museal mundial expressa um vislumbre deste novo lugar dos museus, agora e para o futuro. A nova de definição de Museu, aprovada em Praga em 2022, expressa bem essa ideia:

“Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos e ao serviço da sociedade que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Com a participação das comunidades, os museus funcionam e comunicam de forma ética e profissional, proporcionando experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimentos. (ICOM, 2022)

(…) “A curadoria arqueológica é, por definição, um campo investigativo interdisciplinar. Ela integra arqueologia, museologia, conservação, educação e outras áreas, para nós, de salvaguarda, pesquisa, ensino e divulgação de acervos. Saliento que a curadoria é também potencialmente um campo fértil para a pesquisa intercultural. E é esta a ideia, a de fertilização interdisciplinar e intercultural da curadoria arqueológica, que pretendo abordar neste texto. O foco de reflexão se situa nas inter-relações entre comunidades, materialidades, e as coleções arqueológicas musealizadas.”

(…)“Com vistas a “acordar” os objetos na reserva técnica à novas possibilidades de geração de conhecimento, os estudos para reconexão de acervos (tridimensionais e documentais) e sujeitos têm guiado nossas iniciativas enquanto diretriz para pesquisa e gestão. Para as urnas funerárias Maracá, Lucas Silva, aluno de museologia da UFPA (Universidade Federal do Pará) desenvolveu uma pesquisa de forma a reconectar urnas funerárias com os remanescentes humanos, e aos contextos em que foram originalmente encontradas (SILVA et al., 2021). Aqui (no MPEG), os corpos cerâmicos estão sendo reunidos aos seus corpos biológicos (osteológicos), devolvendo a individualidade de cada um destes sujeitos Maracá que hoje habita a reserva técnica”. (PR: Aqui a dra. Helena se refere a uma das salas especiais construídas no museu, fechada ao público, devidamente climatizada, proibida de ser fotografada, onde mais de 200 urnas funerárias, estão expostas sobre uma plataforma e, embaixo, em gaveteiros catalogados, jazem os restos osteológicos referentes a cada uma”

(…) “Com as cerâmicas marajoaras, a abordagem rendeu importantes reflexões sobre a dispersão, ou êxodos, de enormes coleções do Marajó distribuídas por vários museus, bem como sobre o ato de exibir estes itens funerários para o grande público.” (…) Neste mesmo contexto, Simas nos provoca a refletir sobre questões complexas relacionadas com a conservação e gestão dessas coleções, doações e descontextualização de acervos, políticas de empréstimo e partilha de coleções de objetos formados por fragmentos ao cuidado de diferentes instituições.” (IDEM).

Anita Ekman: Tupi or not Tupi.
Anita Ekman: Tupi or not Tupi. Como se deve (re)escrever a história do Brasil. 2022. Série Ocre Marajó – Museu Paraense Emílio Goeldi. Fotogra a de Edu Simões. A série integra a pesquisa curatorial do projeto Ore ypy rã – Tempo de Origem, de Sandra Benites e Anita Ekman. Realizado com a Bolsa de Artes Visuais -2021 concedida pelo Instituto Goethe e Consulado da França no Rio de Janeiro. A obra foi exposta na mostra “Deep Marajó : Contemporary Marajoara Ceramic” no Americas Society em Nova York (jan-jul 2023) e foi exposta na Bienal das Amazônias em Belém (ago-nov 2023).

Souza Lima (2020), construiu a história de vida de uma urna marajoara que foi historicamente individualizada e descontextualizada (SOUZA LIMA, et al., 2020), bem como analisou o processo de reprodução de sua imagem em diversos suportes no Marajó e a feitura de uma réplica artesanal dela na reserva técnica (SOUZA LIMA, 2023). De fato, a proposta de construir histórias de vida (de pessoas e de objetos, ambos entendidos como sujeitos) a partir do acervo tem mostrado um enorme potencial.
Aqui, por exemplo, as fotografias da Performance de Anita Ekman (pintura corporal com carimbos marajoara e ocre) com Urna Marajoara (estilo Joanes) no Museu Paraense Emílio Goeldi, 2022.

“Para além dos muros da reserva técnica vejo igualmente importante explorar, in loco, a experiência sensível do mundo material dos objetos e das paisagens construídas, enquanto lugares significados, para nos aproximarmos mais das complexas teias de relações entre essas materialidades e as sociedades humanas, no presente e no passado. Para isso, os métodos convencionais da arqueologia e ciências sozinhos, são insuficientes para revelar elementos latentes do universo material que são, em alguns casos, essenciais para entender os conhecimentos, conceitos e práticas indígenas e de outros povos da floresta amazônica.”

É preciso dizer que as cerâmicas, e outros vestígios arqueológicos, falam e têm muito a nos dizer. Cabe a nós saber escutá-los.

Arte sem fronteiras

Miguel Penha, Igarapé / Bienal das Amazônias
Miguel Penha, Igarapé. Foto: Patricia Rousseaux

Por Vânia Leal*

Nasci às margens do Rio Amazonas, em Macapá, no Amapá. Ser conterrânea fortalece o vínculo que tenho com a região Norte do Brasil porque este rio foi o primeiro que me levou a navegar por outras águas que me trouxeram à 1ª Bienal das Amazônias. Evento que já inicia com abordagens do próprio lugar e nos convoca para uma construção discursiva acerca da complexidade de distintos ecossistemas que formam o bioma, como florestas densas de terra firme, florestas estacionais, florestas de igapó, campos alagados, várzeas e formações pioneiras que, naturalmente, constituem os múltiplos tempos do espaço amazônico.

Debater e refletir arte na Amazônia requer a compreensão desse espaço geográfico de diferentes épocas e ambiências. A partir desses diferentes, o geógrafo e escritor brasileiro Milton Santos se torna uma inspiração pessoal quando diz sobre tempos onde convivem, simultaneamente, diferentes temporalidades. É com essa referência que sigo a jornada atenta à urgência de repensar e decolonizar o espaço da arte enquanto lugar que pode ser ocupado por corpos de artistas diversos, compreendendo a perspectiva intercultural do Brasil. 

Valorizar a produção de artistas nas Amazônias aqui e agora também é evidenciar um corpo amazônida de multiplicidade de povos indígenas, negros, afro-indígenas, caboclos ribeirinhos, mulheres, quilombolas, corpo LGBTQIAPN+ e de outros artistas que estão cravados na floresta. Todos com distintas nuances aliados a uma linguagem pessoal, que potencializam esse espaço da arte – não como um ambiente estanque, mas como um território de ocupação resistente aos processos coloniais e que se reinventam potencialmente com o diálogo entre as culturas, que não se dá num vazio de relações sociais e de poder.

Além da riqueza da biodiversidade amazônica, ressalta-se a diversidade cultural existente no Norte. Realidade que deve nos conscientizar de que existem Amazônias e amazônidas e o desafio em pensar a região como uma extensa floresta tropical úmida e complexa, com uma área equivalente a 8 milhões de km2, como se fosse homogênea implica tornar invisíveis ecossistemas habitados por diversos povos e suas territorialidades ancestrais, que aliam experiências próprias com as ambiências dos lugares de origem.

O lugar do sujeito artista produzindo arte nas Amazônias com o sentimento de pertencimento do lugar, com atitude e olhar de dentro para fora, cria diferenciadas experiências de práticas artísticas. Cada uma advinda com o conhecimento intrínseco que acontece, por vezes, através de tensões, violências, intimidade, aproximações e distanciamentos. Infindáveis narrativas que visibilizam o seu potencial político e cultural sem enrijecimentos dos modos de vida. As narrativas não são fantasiosas, são reais.

Neste sentido, a bienal aponta que é imprescindível não desperdiçar o grandioso acervo de conhecimentos e os complexos tecnológicos dos povos que habitam a região Norte do Brasil. Apostar na pluriculturalidade é necessário, no diálogo de saberes e práticas para qualquer projeto de futuro da Amazônia. Importante ressaltar que o conhecimento e a intimidade com a natureza para os povos que aqui habitam é condição do viver. Não há fazer sem sentir e saber. 

Evna Moura, Brasil, Pará, Orí da série “Água”, 2017. Fotoperformance
Evna Moura, Brasil, Pará, Orí da série “Água”, 2017. Fotoperformance.
Foto: Patricia Rousseaux

Amazônias na Bienal

Diante disso, é inegável a importância da 1ª Bienal das Amazônias ao trazer visibilidade ao que as Amazônias têm projetado e produzido com artistas já consolidados no circuito das artes e outros com novas produções que estão surgindo. O evento abre caminhos de descentralizações oportunas de produção e fruição sensível a todas as regiões que compreendem as Amazônias como um território transcultural, com potencial para constantes trocas de experiências com outros lugares do país.

Nesta perspectiva, a representatividade na produção dos artistas do território da Amazônia brasileira – nas cidades que fazem parte do território amazônico previsto em lei (Amazônia Legal), que compõem esta edição do evento, de forma alguma é alicerçada por uma história única e alienígena. Pensar nesta possibilidade é reforçar um imaginário regional exotizado amparado por oposições semânticas que não cabem. 

Por exemplo: centro e periferia, pois chegará o dia em que entenderemos que não há “centro” e, como diz o escritor e teórico da arte brasileira Ariano Suassuna, “ao redor do buraco, tudo é beira”. Outro ponto de atenção importante é persistir no pensamento da existência de um fazer artístico Amazônico como algo modelado esteticamente. Tais afirmativas, além de nivelar as multifacetadas diferenças culturais e territoriais, é o disparador de um pensamento colonial. 

Acredito que visibilizar o potencial político, social, intelectual e cultural da produção artística das Amazônias é premissa necessária na agenda. Tentar padronizar a arte produzida nas Amazônias é fazer o caminho inverso que diz respeito à relação com a natureza. Os artistas, os povos amazônicos e os espíritos florestânicos são guardiões e não importam modelos e relações. Colocam-se como interlocutores em qualquer debate sobre o futuro da região e do mundo. Afinal, a arte nos ensina a ver e fortalece a existência.

Por sua vez, os artistas lançam o convite para conhecer a vida pulsante desses territórios. Compreender o jeito de ser dos povos daqui é o início dessa jornada para escutar e vivenciar as infindáveis histórias que transbordam nos cantos, pajelanças, ciência caseira, rezas das benzedeiras, alternâncias de marés, festas coloridas, florestas, águas, cheiros, danças, mulheres erveiras e tantas outras experiências significativas. Como cabocla tucuju do Amapá, reforço a nossa amorosidade desejante para que estejamos em comunhão. É o que me move na arte e na vida.

*Curadora da primeira Bienal das Amazônias