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Quilombola Nego Bispo questionou cânones da modernidade

Antônio Bispo dos Santos. Foto: Divulgação
Antônio Bispo dos Santos. Foto: Divulgação

Humanismo é uma palavra companheira da palavra desenvolvimento, cuja ideia é tratar os seres humanos como seres que querem ser criadores, e não criaturas da natureza, que querem superar a natureza”. Com uma frase tão simples quanto contundente, Antônio Bispo dos Santos, desmontou um dos conceitos da modernidade, o humanismo, quase unanimidade no campo progressista.

Às vezes é preciso que uma voz bastante fora do sistema, como é o caso do quilombola Nego Bispo, como ele costumava ser chamado, para que algumas certezas até então consolidadas passem por uma necessária revisão.

Nomes como os indígenas Ailton Krenak e Davi Kopenawa há décadas vêm apontando que o respeito e a convivência com a natureza são condições para se adiar o fim do mundo e evitar a queda do céu, mas a eles se juntou esse quilombola, com um desses livros básicos que se propõem a repensar a condição do própria planeta: A terra dá, a terra quer, publicado agora em 2023 pela editora Ubu junto com Piseagrama, e ilustrações de Santídio Pereira.

 "A terra dá, a terra quer"

Na publicação de 109 páginas, longe portanto de um tratado, Nego Bispo, que nasceu em 1959, traz uma série de conceitos a partir de sua experiência nos quilombo Saco Curtume, no município de São João do Piauí, sendo o primeiro de sua família a ser alfabetizado. Exercendo papel de liderança, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí, tendo vivido algum tempo em áreas urbanas.

“Fiquei na cidade grande por cerca de cinco anos, até chegar o momento em que compreendi que ali não era meu lugar. (…) A cidade não me cabe. Enquanto a sociedade é feita por posseiros, as nossas comunidades são feitas por pessoas. Na cidade, as pessoas tinham medo da gente. Nas comunidades (…) vivíamos tranquilos”, escreve ele em sua linguagem direta.

É central em seu pensamento, e certeiro em sua análise, toda a alienação e submissão ao medo, que é o que se tornou viver nas metrópoles, assim como a centralidade do sistema mercantilista em todas as áreas. “Os adultos da cidade brincavam de fazer as coisas e outros adultos pagavam para vê-los: era o que chamavam de teatro. Quando a arte vira mercadoria, passa a ser uma brincadeira de não fazer nada”, escreveu ele. E a conclusão é muito semelhante a tudo que se defendeu em arte desde os anos 1960, ou seja, que arte é vida, portanto não há razão para representação, é preciso simplesmente ser: “O teatro, assim como qualquer outro tipo de arte que é mercantilizada, bloqueia a conversa das almas, porque a arte é conversa das almas, a arte alimenta a vida, ela não pode ser mercadoria.”

Ilustrações de Santídeo Pereira,

Nego Bispo desconstrói várias certezas ao longo do livro a partir de conceitos inovadores como “afroconfluentes”, “confluências” e “contracolonialismo”, repensando até mesmo projetos sociais de repercussão como as moradias de Minha Casa, minha vida”, que, em sua visão, ignora conhecimentos e práticas locais para padronizar um tipo de habitação “colonizadora”.

Não é só no livro que Nego Bispo repassa seus petardos contra a decadência da civilização monoteísta ocidental. No episódio 81 de Confluências – o podcast da ocareté, ele apontou como até mesmo o ensino público é problemático: “A educação pública é colonialismo, escolas públicas não ensinam o que se precisa para viver na Caatinga, na Amazonia. Escolas públicas só ensinam a viver nas grandes cidades, na lógica industrial, mercadológica, sintética”, conta.

Em um momento que a democracia volta a se normalizar no país, vozes como Nego Bispo são essenciais para avançar em uma agenda que repense conceitos e pensamentos que nem as universidades, nem os partidos políticos estão dando conta de abarcar.

 

Célia Tupinambá reata um fio de 400 anos

Na 60ª Bienal de Veneza, na Itália, a partir de 24 de abril do ano que vem, o
Brasil será representado por uma obra da artista visual, cineasta, escritora,
antropóloga e pesquisadora baiana Glicéria Tupinambá, conhecida como Célia
Tupinambá. Célia vai levar a Veneza a exposição Ka’a Pûera: nós somos
pássaros que andam, de Glicéria Tupinambá e convidados, com curadoria
de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana. Ka’a
Pûera é como se designa uma grande área de mato que está em processo de
regeneração após uma queimada ou utilização como lavoura ou pasto.
A mostra na Itália prevê também que o Pavilhão do Brasil nos Giardini della
Biennale seja renomeado para Pavilhão Hãhãwpuá (nome Pataxó que era
usado para descrever o Brasil antes do avistamento português). Segundo a
Fundação Bienal de São Paulo, a mostra de Célia Tupinambá a ser instalada
na Itália aborda “questões de marginalização, desterritorialização e violação
dos direitos territoriais, convidando à reflexão sobre resistência e a essência
compartilhada da humanidade, pássaros, memória e natureza”, o que a integra
ao tema geral da 60ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di
Venezia: Foreigners Everywhere (Estrangeiros em toda parte).

Nascida em 1982 na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, em Olivença, no Sul da Bahia, Célia é mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e encabeçou as negociações para repatriar ao Brasil, em 2024, o Manto Tupinambá que se encontra atualmente no Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague. Durante a colonização do Brasil, os mantos dos Tupinambá viraram objetos de escambo, saques ou negociações, e sua tecnologia construtiva perdeu-se no tempo. Ela reaprendeu a confeccionar o manto, tornando-se a primeira mulher a construir tal artefato em mais de 400 anos.

Nos próximos dias 25 e 26 de novembro (sábado e domingo), o Festival ZUM, organizado pela revista de fotografia do Instituto Moreira Salles, reunirá artistas, fotógrafos e pesquisadores para conversas, oficinas, exposições, feiras e outras atividades gratuitas. O evento, que chega a sua 8a edição, acontece na sede do IMS de São Paulo (Av. Paulista, 2424), e terá como destaque uma ação de Célia Tupinambá, no dia 25 (sábado), às 14h. Ela irá à frente de uma caminhada coletiva, com o Manto Tupinambá, pelos espaços do
IMS, acompanhada de representantes de outras Nações indígenas. Glicéria Tupinambá concedeu a seguinte entrevista à arte!brasileiros:

ARTE!✱ – O Censo do IBGE, divulgado recentemente, informou que a população indígena hoje no Brasil representa 0,83% do total de brasileiros, cerca de 1,7 milhão de pessoas. E é uma representação muito diversa, há grupos com 12 indivíduos e outros com 20, 30 mil pessoas. É muito complicado ir a Veneza representando toda essa diversidade?

Depende de que ponto de vista você tá falando. Porque, se você pensar que o Brasil é território indígena, e se você pensar que esse percentual que o IBGE levantou, tentando demarcar essa presença, essas populações tentando resistir, tentando não ser engolidas… Bom, eu estou indo representando o povo indígena. Mas tem uma parceria imensa com outras Nações Indígenas, como por exemplo Denilson Baniwa, que é do Amazonas; Arissana Pataxó, que é da Bahia, Gustavo Caboco, que é Wapixana, de Roraima. É uma geografia bastante intensa, territorialmente. Ocupar esses espaços coloca a população
indígena em evidência, faz com que se compreendam os povos indígenas que estão sendo engolidos por uma dinâmica muito agressiva. Ajuda para que vejam a presença indígena.

ARTE!✱ – Na próxima semana, você mostra o Manto Tupinambá que você confeccionou no Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista, em São Paulo. Qual é a importância do Manto Tupinambá nessas itinerâncias? Para essa atividade eu estou convocando os parentes. Então tem Pankararu, Pankararé, Guarani, Tukano. O manto traz esse espaço de diálogo e ruptura, a gente tende a encontrar as tensões, os desafios. E não é somente Célia Tupinambá, é uma carga histórica, e essas alianças, esse estar com os parentes (serve) para ver em que situação estão, em que lugares estão. Então, é importante é fundamental essa presença do manto faz as pessoas pensarem, reelaborarem outras concepções. Estar com os parentes, por conta dos possíveis diálogos, é importante, como é importante que o manto esteja em movimento para que as pessoas possam entender uma outra lógica. O Manto é um corpo provocante.

Manto tupinambá. Foto: Pérola Dutra
Manto tupinambá. Foto: Pérola Dutra

ARTE!✱ –Você fez o primeiro Manto Tupinambá em 2006. Isso já tem 17 anos.
Quantos mais você fez depois daquele primeiro?

Fiz mais dois. Esse que vou apresentar agora é o manto feminino, tem uma diferença. O primeiro eu fiz a partir de uma imagem, uma imagem que eu vi do manto que está na Dinamarca. Então ele é uma aproximação, não dava para ver a trama, era muito cheio de penas. Em 2018, quando eu vi na França um manto, e logo depois, outro manto na Suíça, em Basel, eu passei a tentar entender a malha. Tem um manto lá em Basel que é mais desgastado, dele dá para ver a malha perfeitamente. A minha ideia era entender o cerne o osso do manto. Eu tentei, anteriormente, que as minhas tias-avós me ensinassem o seu
jeito de fazer o manto. Mas elas me disseram que, como eu já tinha sonhado o manto, eu já sabia como fazer, não havia o que ensinar. Então eu aceitei o conselho delas e fiz o primeiro manto, que hoje está no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Ele foi incorporado a partir da itinerância da exposição Os Primeiros Brasileiros, com curadoria de João Pacheco de Oliveira, em 2021. Em 2020, eu fiz o segundo manto, que foi para o meu irmão, que é o cacique Babau do povo Tupinambá. Foi então que o manto falou para mim que ele era feito por mulheres. Quando isso aconteceu, eu fiquei com essa “cosmo-agonia” (risos). Eu não tinha o que as pessoas chamam de “provas”, eu só tinha essa autorização dos Encantados. Então eu fui atrás. Depois, a Fernanda Liberti (fotógrafa e artista visual) chegou lá na aldeia e me trouxe um livro chamado O Rio Antes do Rio, de Rafael Freitas Silva (Editora Relicário, 2021). Na capa desse livro tem uma mulher em uma ilustração, uma mulher usando o manto com uma criança nas costas. É uma xilogravura. Essa imagem, da mulher usando manto, depois eu fui ver novamente em outros três desenhos. Em outro desenho, ela usava o manto, a saia e o maracá. Mais adiante, a (antropóloga) Daniela Alarcon e eu acabamos encontrando esse material. Mas ainda era pouco vestígio. Em 2022, quando estive na Dinamarca, o manto falou comigo.

ARTE!✱ – O manto fala com você quando você está perto dele?

Quando eu estou perto dele, ele fala comigo, e ele me disse que era feminino. Eu já tinha essa comprovação, por ter visto manto sendo utilizado por seis a sete mulheres, e cada textura do manto era diferente. Em 2023, eu estive no Palácio de Versalhes, na França, e no Salão Real vimos essa ilustração lá de uma obra que representava os continentes. No continente sul-americano havia uma mulher vestindo o Manto Tupinambá. As pessoas que estavam com a gente me disseram: “Ah, Célia, mas esse manto tem um traço grego”. E eu respondi: “Isso muda o fato de que é uma mulher?”. No imaginário do Hans Staden (1525-1576), o manto só é utilizado pelos pajés, e nós sabemos que era utilizado também pelos caciques. É o pajé e a sociedade Tupinambá em torno dele e do manto. Mas quando encontramos essas imagens, fechamos esse círculo de seis mulheres usando o manto. A última foi no mapa que eu vi da França Atlântica, que tem uma ilustração com outra mulher usando o manto. Então eu me dei conta que o manto era feminino.

ARTE!✱ – Quantos Mantos Tupinambás existem hoje no mundo?

São 11 mantos. Estão em Bruxelas, Copenhague e Basel. Há também muitos objetos Tupinambá nos gabinetes de curiosidades, Na França, há um machado, uma borduna, uma rede. Aquela semana em Versalhes foi bem intensa, a gente viu muitas coisas na França, e a memória Tupinambá muito forte. Foi então que eu tive essa comprovação de como o povo Tupinambá era recebido. A gente, na narrativa histórica, nunca teve um lugar político de igualdade, mas as várias representações dos indígenas que eu pude ver, e uma delas é um afresco exclusivo, coisas que a gente nunca tinha visto, demonstram que havia uma aliança e respeito. A história contada no Brasil a respeito dos Tupinambás tem outro recorte, invisibilizando a nossa presença. Para as pessoas entenderem porque esses mantos europeus se encontram na posse de reis na Europa, é preciso saber que é isso aconteceu porque era uma aliança de rei para rei. As pessoas falam um monte de coisa, mas é preciso entender esse fio contínuo.

ARTE!✱ – Originalmente, o manto era feito de penas de guarás. Mas isso não é mais
possível hoje, é?

Graças a Deus, existem ainda os guarás. E, agora, os guarás chegaram à Bahia, tem uma cidade chamada Salinas que tem um mangue que tem guarás. Mas o manto que eu fiz, eu fiz com as penas da arara que estavam ali à minha disposição. Os pássaros deixam as penas para mim, não precisa matar, eles trocam de penas a cada ano. Eu uso as que tenho à mão: sabiá bico de osso, gavião, canário da mata, inhambu, tururim. Agora mesmo recebi centenas de penas de Guará de um artista de um quilombo. Depois que a gente aprende o nó, a malha, o fio condutor, tudo é possível. Não é uma réplica. Trata-se de entender essa complexidade, porque isso faz entender o fio. É preciso internalizar, ouvir. Em geral, a gente pensa no outro sempre ensinando, né? As pessoas já não sonham mais, acham que tudo é material, tudo é factual, tudo é marxista, né (risos). Então, esse manto que eu vou apresentar agora, feminino, eu apresentei em 2021 na Casa do Povo. É esse aí que está fazendo o trabalho de abre-alas para o manto que vai vir da Dinamarca no ano que vem.

ARTE!✱ – A questão é: se já é possível fazer novos mantos, já há o conhecimento,
qual o sentido de trazer o manto da Dinamarca? É porque é sagrado?

O manto e os Encantados me mandaram escrever uma carta em 2022. Eu encaminhei a carta em setembro de 2022 para a Dinamarca. Depois que fiz a escuta, o manto me disse que eu pedisse essa doação para o Museu Nacional. Aí eles me perguntaram: qual manto teria que vir? O embaixador me perguntou e eu disse: “O manto principal, o que está em exposição. Ele me disse que já estava preparado para voltar”. As pessoas riram, acharam que não ia acontecer. Eu acho que muita gente trata o manto como um objeto, e ele é um ancestral. O retorno do manto, em primeiro lugar, serve para poder diminuir esse oceano de distância. Ele tem quase 400 anos, é um manto idoso (risos). E tem uma estrutura, mas essa força de vontade que ele demonstra de regressar para o seu povo tem que ser respeitada, é um ancestral regressado é assim que eu defino. Um ancestral há muito tempo silenciado. Nós chamamos isso de objeto agenciado. Ele carrega a espiritualidade, é um artefato agenciado pelos rituais Tupinambá. Nem todo mundo entende o que é um objeto agenciado; as pessoas de formação cristã, católica, evangélica, elas têm uma visão de sagrado que eu considero mais volátil, que reduz a quantidade daquilo que significa para gente. Um ancestral é um ser vivo. E isso explica o que levou essas pessoas a cuidarem dessa coisa tão frágil durante tanto tempo; você o vê hoje, ele parece novo. Parece que foi feito ontem. É muito mais do que sagrado para a gente; dizer que é sagrado reduz a potência do que ele representa.

ARTE!✱ – Até 2009, os Tupinambás eram considerados extintos no Brasil. Agora, estão já repatriando sua História, seus artefatos. Tem sido uma série intensa de acontecimentos, não?

Eu, na minha ignorância do pensamento do outro, digo que é difícil dizer o que eu tô sentindo. Tem gente que olha para o manto e não vê e vê um objeto estético, tem gente que pensa também que nós nunca existimos. Mas nós existimos e estamos aqui. A gente precisou se isolar para não ser totalmente extinto, né? Porque nós habitamos a região cacaueira, a região dos coronéis, e vocês sabem como é isso. Em 2000, quando a gente começou o processo de reconhecimento, nós precisamos reunir todas as provas porque não havia ainda a Convenção 169, a da autodeclaração (norma estabelecida pela Organização Internacional do Trabalho, assinada pelo Brasil em 2002), então nós tivemos que reunir todas as provas, até os sítios arqueológicos, para poder provar que nós existimos. Tivemos que buscar documentos, fotografias históricas. Então a gente voltou à cena, voltou a coexistir, e sempre num cenário de conflito que não é pequeno na nossa região. O manto volta para estabelecer essa conexão. Mas ele não cabe dentro dos parâmetros cristãos, evangélicos. Embora ele tenha que ser reintegrado, a sua existência deve ser restabelecida em um diálogo com os códigos de vocês. E é um tratado de doação, não existe o conflito nesse caso. O retorno do Manto Tupinambá se dá em uma situação na qual o outro entende o que é que o outro necessita. E concorda com isso, né? Eu me lembro que o embaixador da Dinamarca brincou comigo um dia: “E aí? o manto tá pronto para voltar?”. E eu disse sim, ele me disse que está pronto, e ele perguntou: “E qual vai voltar?”. Eu respondi: o principal, o que está em exposição na Dinamarca. E ele riu, e no entanto o manto está voltando agora, e eu gostaria de encontrá-lo de novo para lembrar disso.

ARTE!✱ – Quantos Mantos Tupinambá existem no mundo atualmente?

Nós temos 11 mantos Tupinambá na Europa. Estão em Bruxelas, Basel e Copenhague. E outros três na Itália: dois em Florença, um em Milão. Outros na França.

ARTE!✱ – O Censo do IBGE estimou em mais de 7 mil indivíduos o povo Tupinambá no Brasil. Esse número surpreendeu você?

Olha, eu não trabalho com números, eu acho que ainda é pouco. É preciso lembrar que a gente não fala a linguagem do colonizador. Eu não falo português, eu não falo inglês, eu não falo africano. Eu não falo tupi. A gente fala a nossa língua, a gente conseguiu contrariar essa lógica de invisibilização. Cada vez mais as pessoas vão criando consciência para entender que seu lugar no território é único, é um lugar seu, da sua existência dentro de uma Nação. E aí elas vão elaborando a sua consciência do mundo.

Inhotim inaugura último ato em homenagem a Abdias Nascimento e instalação de Luana Vitra

Obra presente na exposição "Quarto Ato - O quilombismo", no Instituto Inhotim. Foto: Ícaro Moreno

A partir de diálogos iniciados entre o Instituto Inhotim e o Ipeafro em novembro de 2020, foi inaugurado em dezembro do ano seguinte o programa de exposições intitulado Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra. Abdias Nascimento (Franca, SP, 1914 – Sao Paulo, SP, 2011) é uma das principais referências de atuação crítica quando o assunto é luta antirracista. Foi poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário, pan-africanista, parlamentar e fundador do Teatro Experimental do Negro, projeto que idealizou o Museu de Arte Negra. Em oposição ao eurocentrismo nas artes, o MAN foi projetado por Abdias e companheiro dedicados à valorização da produção artística e do pensamento de pessoas negras e grupos minorizados. É composto por obras reunidas por Abdias de 1950 a 1968, depois no exílio, entre 1968 e 1981, e após o retorno ao Brasil. A diversidade e quantidade de obras e artistas reforça o caráter de articulador e comunicador próprios a Abdias.

Organizada por atos, a agenda se realiza tanto através de exposições semestrais do acervo do MAN, que ocupam a galeria Mata, do Instituto Inhotim, quanto exposições temporárias e o comissionamento de obras. Cada ato é presidido por um orixá: o Primeiro ato – Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra, tomou como referência epistemológica a orixá Oxum, entidade da fertilidade e prosperidade, presente nas cores amarelas das paredes; o Segundo Ato: Dramas para negros e prólogo para brancos, foi presidido por Oxóssi, orixá do conhecimento; o Terceiro Ato: Sortilégio, trouxe Exu, orixá da comunicação; e, por fim, Quarto Ato – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, está sendo apresentado em novembro de 2023, junto a Xangô, orixá da Justiça, como um anseio por reparação.

Fundamentado no conceito de “quilombismo”, proposta de mobilização sociopolítica a partir de perspectivas afro-diaspóricas elaborada por Abdias, o Quarto Ato apresenta momentos da trajetória de vida do autor mesclados com suas práticas de organização e articulação coletiva que resultaram na criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) e no Museu de Arte Negra. Outros eixos da mostra do Instituto Inhotim falam sobre a Santa Hermandad Orquídea (1939), grupo de poetas que marcou a trajetória de Abdias, e as viagens ao continente africano (1974-77), onde buscava seus referenciais epistemológicos e estéticos. A última parte da exposição mostra obras do MAN que revelam o pensamento pan-africanista de Nascimento. Toda a mostra é habitada por trabalhos de diversos artistas pertencentes à coleção.

Giro, Luana Vitra

Como parte do programa, no último sábado (11/11) foi aberta ao público, também no Instituto Inhotim, a instalação Giro (2023), da artista Luana Vitra (Contagem, MG, 1995), comissionada pelo Inhotim como primeira ocupação da Galeria Marcenaria. Dois meses antes, ocorreu a abertura da impressionante instalação Pulmão da mina, comissionada para a 35ª Bienal de São Paulo, na qual Vitra utiliza o recurso de repetição para realizar uma oração pelas vidas humanas e não humanas perdidas em desastres durante atividades de mineração no período escravista. Com o seu olhar formado pelas cadeias de montanhas das paisagens distantes de Minas Gerais, a artista mineira segue permeada pelas histórias e poéticas locais na instalação Giro. A obra recebe este nome devido ao interesse de Vitra com o movimento do torno, que ao rodar uma matéria base como a madeira ou o barro, permite que a mesma seja moldada.

Ao entrar na galeria, que parece uma casa estreita e comprida com um único cômodo, nota-se a parede branca marcada de ponta a ponta por um caminho de pregos de ferro aplicados um ao lado do outro a formar a silhueta de montanhas mineiras. Sobre eles, pequenos vasos de cerâmica foram cuidadosamente posicionados. Próximas ao chão, pequenas flechas feitas de cobre apontam para o alto. Acima deste conjunto, um fino tecido azul transparente sobe a parede e cobre todo o teto da sala, como um véu a imantar o ambiente. Na borda do tecido, pequenas encruzilhadas feitas de cobre se repetem linearmente por toda a sala. Cobre, barro, pedra de minério de ferro, tecido e anil são os elementos que compõem a instalação de Luana para o Inhotim e vêm se repetindo em seus últimos trabalhos.

À direita do visitante, grandes urnas de cerâmica estão posicionadas sobre pedras de minério de ferro coletadas pela artista no Inhotim. De dentro de cada uma delas, sai uma grande flecha de cobre que aponta para o teto. No ano em que se completam quatro anos do rompimento da barragem em Brumadinho, Luana recupera desenhos que fez na ocasião do crime ambiental. Na época, desenhar as serras e cadeias montanhosas de Minas era, para a artista, como recuperar a paisagem local que vem desaparecendo. Compreendendo que o limite do olhar humano só permite observar um objeto distante até o ponto deste ser tomado pela cor branca, a artista escolhe a raspagem da cerâmica como procedimento poético para revelar montanhas com a cor do barro ao fundo. Neste sentido, retirar a cor branca da cerâmica e trazer à vista o marrom traz para a obra não apenas dimensões cromáticas, mas também sociais.

Seguindo o procedimento de escuta dos materiais, Vitra encontra maneiras de perceber o ferro, matéria local mais abundante e explorada. Sendo o cobre o segundo metal mais condutivo, as flechas apontadas para o alto sinalizam o sentido da energia, o que dá ao trabalho a potência de cura para os metais e para a terra local, em conexão com outros lugares do mundo onde a terra é explorada. A obra se conecta ainda a diversos outros trabalhos espalhados pelo museu e que possuem o ferro como principal elemento, como em Beam Drop Inhotim (2008), de Chris Burden, e Sonic Pavilion (2009), de Doug Aitken. Tendo Minas Gerais como lugar de afeto e ancestralidade, Luana Vitra cria na galeria Marcenaria uma instalação de fé, com o cuidado ético e estético de trabalhar com artistas mineiros e realizar uma prece coletiva para cura local.

***

Maria Luiza Meneses é curadora independente e educadora. Graduanda em história da arte
pela UNIFESP, integra os coletivos RedLEHA, Nacional TROVOA e Rede Graffiteiras
Negras. Realiza o projeto Pinacoteca Digital Mauá (2019 – ), foi curadora das exposições
Travessias do moderno em Mauá (2022) e Resíduos Mundanos (2023). Foi assistente pessoal da curadora Diane Lima, atuando com ênfase em pesquisa, produção e curadoria durante a 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível (2022-2023). Possui textos publicados sobre arte contemporânea, artistas afro-brasileiros, cultura hip-hop, educação freireana e guerras culturais.

Sesc Pompeia apresenta filmes e fotografias da artista Ana Mendieta

Ana Mendieta

“Ana Mendieta: Silhueta em Fogo”, em cartaz no Sesc Pompeia, é uma mostra inédita na América Latina de filmes e fotografias da artista cubano-americana.

Simultaneamente, acontece a coletiva “terra abrecaminhos”, na qual 30 artistas dialogam com a obra de Mendieta em sua dimensão ancestral e dos feminismos.

O projeto, em cartaz até 21 de janeiro de 2024, tem curadoria geral de Daniela Labra, curadoria adjunta de Hilda de Paulo e assistência de Maíra de Freitas. Confira a nossa conversa com as curadoras:

Após suspensão, acontece neste sábado (28), em São Paulo, o leilão da coleção de Emanoel Araujo

Anjo Querubim, de Mestre Valentim, do séc. XVIII. Foto Divulgação Coleção Emanoel Araujo
Anjo Querubim, de Mestre Valentim, do séc. XVIII. Foto Divulgação

Acontece neste sábado (28), a partir das 16h, na Bolsa de Arte (SP), o leilão da coleção particular de Emanoel Araujo (1940-2022) – artista plástico, ex-diretor da Pinacoteca, idealizador, diretor e curador do Museu Afro Brasil. O pregão deveria ter acontecido no fim de setembro, mas o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), autarquia responsável pela Política Nacional de Museus (PNM), pediu a suspensão, para que os integrantes do Sistema Brasileiro de Museus, pudessem “exercer seu direito de preferência na aquisição dos bens culturais”, conforme lei vigente.

O prazo legal para os museus manifestarem interesse junto aos organizadores do leilão era até o dia 9/10. O marchand Jones Bergamin, da Bolsa de Arte, afirmou a arte!brasileiros que neste sábado o leilão será fechado a instituições culturais, fundações e museus.
A arte!brasileiros recebeu uma carta (leia abaixo na integra) em que colecionadores, galeristas, artistas, professores, curadores etc., afirmam que “permitir que essa coleção com itens que representam nossa cultura e história seja distribuída em um leilão é um ato de negligência com nosso patrimônio cultural”.

O conjunto a ser leiloado – cerca de 4 mil tens – e estimado em R$ 30 milhões. Neste sábado, o objetivo do pregão é vender em lote único, para um mesmo comprador. Caso isso não ocorra, haverá dois outros pregoes, na segunda e terça-feira, em dois horários (16h e 20h).

Os itens estão divididos em sete categorias: arte africana (bronzes, cerâmicas, marfins e têxteis); arte afro-brasileira (cerâmicas, esculturas, gravuras, Joias de Crioula); modernos (esculturas, gravuras, mobiliários, pinturas, porcelanas e tapeçarias; arte oriental (armaduras de cavalaria e espadas, marfins e porcelanas); arte europeia (gravuras, Imaginárias Católicas do século 16 ao 19 e pinturas); arte brasileira (esculturas, gravuras, mobiliários, peças brasonadas e pinturas). 

Entre as raridades estão criações de Mestre Valentim (1745-1813) e Xavier das  Conchas (1739-1814), dois importantes nomes do barroco brasileiro, e um conjunto de Joias de Crioula, do século XIX, usados por mulheres negras escravizadas, alforriadas ou libertas, sobretudo na Bahia. O item mais valioso, com lance inicial de R$ 1 milhão, e um óleo sobre tela do pintor renascentista italiano Niccolò Frangipane. 

*

Prezades,

É com profunda preocupação e tristeza que nos dirigimos a todas as pessoas que
compartilham a paixão pela cultura e pela arte neste momento crítico. A notícia de que a coleção pessoal do renomado Emanoel Araújo será leiloada é motivo de grande consternação. Entendemos que o direito dos herdeiros deve ser respeitado, e concordamos que o pagamento justo é uma obrigação. No entanto, permitir que essa coleção com itens que representam nossa cultura e história seja distribuída em um leilão é um ato de negligência com nosso patrimônio cultural.

Emanoel Araujo, um grande nome da cultura afro-brasileira, dedicou sua vida a enriquecer nossa compreensão da arte e da história. Ele deixou um legado impressionante, como curador, museólogo e artista. Sua coleção, que em parte compõe o acervo do Museu Afro Brasil, deveria ser honrada como um compromisso de longo prazo com a valorização da cultura afro-brasileira.

Nossos esforços agora devem se concentrar em convencer o estado (federal, estadual ou municipal), alguma empresa privada ou grande fortuna da importância de manter essa coleção, de criar exposições e incentivar a pesquisa em um material tão relevante. A história dessas obras e sua importância para nossa cultura merecem um destino melhor do que um leilão que pode dispersá-las para sempre.

A situação de Emanoel Araujo não é única; muitas outras coleções importantes também enfrentaram destinos semelhantes. Coleções valiosas que deveriam ser mantidas em museus públicos foram dispersadas por falta de recursos. É hora de repensarmos o papel dos colecionadores e das grandes fortunas na proteção do nosso patrimônio cultural. O legado de Emanoel Araujo é um patrimônio cultural inestimável. Como nação, como estado, como município e como empresas, temos a responsabilidade de preservar esse legado e enriquecer nosso patrimônio cultural. A integridade dessa coleção não deveria ser exposta para o público ao menos uma vez?

Este é o momento de agir, de encontrar soluções criativas para preservar a coleção de Emanoel Araujo e outras como ela. Não podemos permitir que o leilão aconteça e, posteriormente, lamentar a perda irreparável desse valioso patrimônio. Unidos, podemos proteger o presente e garantir que as futuras gerações possam desfrutar da riqueza cultural que Emanoel Araujo tanto valorizou.

Atenciosamente,

Alayde Alves
Abiniel João Nascimento / artista visual
Adriana Barretto Figueiredo / chefe de cozinha
Alan Diniz / jornalista
Alice Yura / artista visual
Ana Gentil / artista visual
Ana Lenice Fonseca da Silva / psicologa e presidente do Projeto Leonilson
Ana Rey / artista visual
Anna Biondo / artista visual
Arthur Arenari / jornalista
Beatriz Lopes Paulino / advogada
Beatriz Morgado / professora
Beth da Matta / artista visual, gestora cultural
Caroline Fucci / pesquisadora
Daniela Castro / curadora, artista, pesquisadora
Eliana Francisca de Queiroz
Gabriel Pessoto / artista visual
Guilherme Borsatto / artista visual
Gustavo Torrezan / artista visual
Guta Galli / artista visual
iah bahia bruno de carvalho / artista visual
Izabel Pinheiro / galerista
Jaqueline Votja / artista visual
José Patricio / artista visual
José Roberto Aguilar / artista visual
Júlia Buenaventura / curadora
Júlia Pereira / artista visual
Juliana Asmir
Juliana Notari Nascimento / artista visual
Jussi Szilágyi / artista visual
Laura Lima / artista visual
Leonardo Antan / curador, escritor
Leonardo Nones / pesquisador
Liana Vila Nova / pesquisadora, produtora e curadora.
Lília Malheiros / artista visual
Lu Grecco / arquiteta, cenógrafa
Luciana Molisani / editora
Luciana Monteiro / psicóloga, artista visual
Manoel Sá e Benevides / colecionador
Marcelo Poloni / bancário
Maria Amélia Sallum / administradora de empresas em Arte e Cultura
Maria Aparecida de Oliveira Lopes / professora
Michaela Affonso Ferreira Nardone / arquiteta, artista visual
Milton Kanashiro / colecionador
Mônica de Souza Gouvêa / psicóloga
Mônica Tinoco / artista e professora
Nelson Fernando Inocencio da Silva / professor
Paula Braga / professora
Raimundo Rodriguez / artista visual
Renata Melo Barbosa do Nascimento / historiadora
Ricardo Alves / artista visual
Rita Leite Pereira / colecionadora
Rita Maria Mourão Barbosa / gestora do Desapê
Shanon Botelho / curador
Sofia Carvalhosa / assessora de comunicação
Sueli Espicalquis / artista visual
Tania Chreim / mediadora de exposições
Thaís Hilal / galerista
Yhuri Cruz da Silva / artista visual

MinC lança maior investimento público em cultura na história do país

Posse do conselho superior do cinema. Ministério da Cultura
Posse do conselho superior do cinema. Foto: Filipe Araújo / MinC

Foi lançada oficialmente na última quarta-feira, 27, no Museu Nacional da República, em Brasília, pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), maior inversão de recursos destinada à área da cultura na história do país até esse momento. A partir da publicação do decreto 11.740/2023, assinado pelo presidente Lula no dia 19 de outubro, o Governo Federal destinará anualmente, pelos próximos 5 anos (até 2027), 3 bilhões de reais para o setor cultural, totalizando um investimento de 15 bilhões de reais ao final do período.

Até hoje, os investimentos do Estado brasileiro em cultura nunca passaram de 3 bilhões de reais por ano, incluindo-se aí as leis de incentivo e o orçamento direto do governo. A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura é investimento direto e será executada de forma descentralizada, por meio de repasses de recursos financeiros da União aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal, mediante editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e a suas áreas técnicas. Somado ao orçamento direto do Ministério da Cultura, a Lei Rouanet, a Lei do Audiovisual e os recursos do Fundo Nacional de Cultura, além do investimento extraordinário de 3,8 bilhões de reais da Lei Paulo Gustavo, é possível afirmar que esse é um momento único para o setor cultural no Brasil, um dos que foi mais penalizado com os acontecimentos recentes – a pandemia, a guerra cultural da extrema direita, a perseguição e a censura e o negacionismo.

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, afirmou que a PNAB é estruturante (já que é voltada à consolidação do Sistema Nacional de Cultura), abrangente, plural e presta-se à resolução da necessidades atuais do setor. “É isso que faz dela uma iniciativa única e efetiva, voltada para quem está na ponta (da atividade cultural)”, afirmou. “A partir de agora, o setor tem uma política permanente, com recursos anuais de 3 bilhões de reais, que transformará os parâmetros do fomento em todo o País”, festejou a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), presente ao lançamento, assim como Mary Sá Freire, viúva do compositor Aldir Blanc, cujo nome batiza o programa.   

Para o recebimento dos recursos da Política Nacional Aldir Blanc, que começarão a ser repassados a partir de 2004 – quando serão lançados os editais, prêmios e chamamentos públicos ao setor – os entes federativos (Estados e municípios) e consórcios públicos intermunicipais devem cadastrar os planos de ação com informações (como as metas e as ações previstas) na plataforma TransfereGov. As informações servirão de base para o Plano Anual de Aplicação dos Recursos (PAAR). “A PNAB tem o caráter transformador, vai mudar e consolidar as políticas públicas da cultura do país com o aporte anual de R3 bilhões, um recurso inédito pro setor”, afirmou o secretário-executivo do MinC, Márcio Tavares. “O valor que cada ente irá receber se enquadra como despesa obrigatória, não podendo sofrer qualquer corte ou contingenciamento, assim como as despesas com educação e saúde. Isto demonstra a importância da cultura para este governo”, esclareceu Tavares.

Segundo informações da Assessoria de Comunicação do Ministério da Cultura, os entes federados devem promover discussão e consulta à comunidade cultural e aos demais atores da sociedade civil sobre a execução dos recursos da PNAB. Isso deve ser realizado por meio de conselhos de cultura, de fóruns direcionados às diferentes linguagens artísticas, de audiências públicas ou de reuniões técnicas com potenciais interessados em participar de chamamento público, de sessões públicas presenciais e de consultas públicas. “Dessa forma, será possível implementar um processo de gestão e promoção das políticas públicas de cultura, capaz de promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais, observado o respeito à diversidade, à democratização e à universalização do acesso”, informa o texto.

Para regulamentar a PNAB, o MinC afirma que realizou escutas e dialogou com a sociedade, organizações e movimentos para a construção coletiva e colaborativa do texto. Foram feitas reuniões com movimentos sociais, sociedade civil e dirigentes de cultura e debates com o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), o ConECta, Fórum Nacional de Conselhos Estaduais de Cultura e movimentos nacionais de cultura.

“A regulamentação participativa reforçou a transparência, a coletividade e o fortalecimento da cultura brasileira. A colaboração entre sociedade civil e poder público é essencial para a criação de políticas culturais que refletem as diversas realidades do país. O esforço do MinC permitirá que estados e municípios estabeleçam editais e outras medidas alinhadas com as necessidades locais e nacionais”, afirmou a secretária de Comitês de Cultura do Ministério da Cultura, Roberta Martins.

O decreto que criou a PNAB prevê a aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e a suas áreas técnicas e outros instrumentos destinados à manutenção, formação, desenvolvimento técnico e estrutural de agentes, espaços, iniciativas, cursos, oficinas, intervenções, performances e produções; desenvolvimento de atividades de economia criativa e economia solidária; produções audiovisuais; manifestações culturais e realização de ações, projetos, programas e atividades artísticas, do patrimônio cultural e de memória.

De acordo com o texto, os entes federativos priorizarão o repasse dos recursos aos agentes culturais locais de modo a valorizar práticas, saberes, fazeres, linguagens, produção, fruição artística, patrimônio, memória, diversidade, cidadania e cultura local. Já os agentes culturais que executem atividades de natureza itinerante (artistas circenses, nômades e ciganos), poderão concorrer nos editais de fomento nos locais onde exerçam atividades culturais ou estejam estabelecidos formal ou informalmente, com dispensa do comprovante de residência. No mínimo 20% dos recursos devem ser destinados a ações de incentivo direto a programas, projetos e ações de democratização do acesso à fruição e à produção artística e cultural em áreas periféricas, urbanas e rurais, e em áreas de povos e comunidades tradicionais.

A mostra ‘O Grito!’ é cancelada em Brasília, e curadora diz que isto abre precedente perigoso

Detalhe do painel da artista Marilia Scarabello, na exposição "O Grito!". Foto: Reprodução
Detalhe do painel da artista Marilia Scarabello, na exposição "O Grito!". Foto: Reprodução

Aberta no dia 17/10, na Caixa Cultural de Brasília, a exposição O Grito! foi cancelada na última segunda-feira (23). A mostra trazia críticas ao ex-presidente Jair Bolsonaro e, em uma das obras, Damares Alves (senadora e ex-ministra), Paulo Guedes (ex-ministro da Economia) e o presidente da Câmara, Arthur Lira, eram retratados dentro de uma lata de lixo, com as cores da bandeira nacional.

Para Sylvia Werneck, curadora da mostra, trata-se de censura. “Eu não tenho como entender de outra maneira. A ala conservadora da sociedade pressiona, e a exposição é vetada”, disse Werneck, em entrevista à arte!brasileiros.

O Grito! estava prevista para permanecer em cartaz até o dia 17/12. Seu objetivo, segundo Werneck, era “problematizar os 200 anos de Independência do Brasil”, e reunia criações de sete artistas. A série de colagens Coleção Bandeira, de Marilia Scarabello, foi a obra rechaçada pela oposição. Além de Damares, Guedes e Lira na lata de lixo, o trabalho também retrata Bolsonaro defecando sobre a bandeira do Brasil. A curadora ressalta que ambas imagens são meros fragmentos de um total de 600 que compõem o painel de Scarabello e afirma que a artista vem recebendo ameaças por causa das críticas.

A escolha do projeto pela Caixa Econômica Federal gerou reclamações por parte de parlamentares da oposição por ter patrocínio do banco e do governo federal. As críticas começaram depois que o influenciador Evandro Araújo, que visitou a exposição, publicou em suas redes sociais um vídeo afirmando que a mostra era “dinheiro público jogado no lixo” e que a Caixa estava “patrocinando revanchismo político”. Não demorou para a deputada federal Bia Kicis protocolar um requerimento de convocação ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para ele prestar esclarecimentos.

O cancelamento de O Grito! lembra outro episódio: em 2017, a exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira foi cancelada pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, após críticas de movimentos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL).

Querida Patricia ou … A arte é que é isto

Detalhe de uma obra da artista plástica mineira Sonia Gomes, presente na 35ª Bienal de São Paulo. Foto: Eduardo Simões
Detalhe de uma obra da artista plástica mineira Sonia Gomes, presente na 35ª Bienal de São Paulo. Foto: Eduardo Simões

Saudade de conversarmos pessoalmente. Enquanto não o fazemos, e porque já me cansei das mensagens em grupos de WhatsApp, resolvi lhe escrever essas mal traçadas, tudo bem?

Em sua última mensagem, você me perguntou se eu já havia lido o artigo que o Rafael Cardoso publicou na Folha, no último dia 15. Pois é, li e gostei do texto porque toca num ponto preocupante do nosso ambiente artístico: a falta de consistência que hoje o caracteriza, motivada, em grande parte – mas não apenas – pela avalanche de obras discutíveis que o assolam.

Quando li o artigo, a primeira questão que me veio foi: será que o jornal decidiu publicar o texto como início de um processo de mea-culpa? Afinal, a Folha é um dos jornais responsáveis, no país, pela disseminação de textos pautados em releases de galerias, alavancando artistas e/ou exposições sem nenhum significado concreto para a arte e para a cultura. Agindo assim, a meu ver, ela acaba atuando como um agente para a concretização de tudo aquilo que Cardoso escreve.

Mas acho que o artigo do nosso amigo não é o início de nada. Para a Folha, quero dizer. Mesmo depois da sua publicação continuaremos a ver estampadas semanalmente em suas páginas um tipo de texto apressado, produzido para ser lançado na véspera ou no dia da inauguração de algum desses eventos. Resenhas com críticas consistentes às exposições, por exemplo? Nem pensar!

A mostra e/ou o artista são vistos pelo jornal como produtos que – chancelados pelos marchands e/ou por um ou mais colecionador –, no dia seguinte tornam-se cartas fora do baralho, a serem substituídos por outros na próxima semana.

Outro dado que me dei conta após a leitura do texto foi o seguinte: aquele clima geral descrito por ele tem sua origem, certamente, na própria história recente das artes visuais. Leia e depois me responda, dizendo o que pensa da questão que vou levantar agora:

A partir do final da Segunda Grande Guerra, quando as vertentes artísticas modernas começam a se institucionalizar – tomando conta dos grandes museus e de importantes coleções particulares –, ao mesmo tempo se inicia a expansão/dispersão do próprio conceito de artes visuais.

Lembre-se que, até mesmo durante o período moderno, esse campo estava fundamentalmente circunscrito às modalidades tradicionais – pintura, desenho, gravura, escultura. Na medida em que as artes visuais abriram suas portas para as neo-vanguardas, ela também se abriu para uma série de outras modalidades compostas, tanto pela fotografia e pelo cinema (ou vídeo) de autor, quanto para a performance, para a instalação etc. Assim, o terreno das artes visuais deixava aos poucos de estar voltado para assuntos apenas concernentes ao seu universo tradicional, para abrir-se a outras áreas da atividade humana. O artista-artesão –especializado em pintura ou escultura etc. –, passou a conviver com o artista-antropólogo, o artista-botânico e o artista-sociólogo, entre muitos outros.

Assim, ao mesmo tempo em que assistíamos à apoteose da institucionalização do moderno, vivenciávamos também o solapar desse processo por meio de obras ou ações que, em última instância, colocavam em xeque os pressupostos estéticos e artísticos expandidos pelo modernismo triunfante. Esta situação introduzia questões até então estranhas à arte moderna.

Não sei o que você pensa a respeito, mas para mim essa abertura trouxe um ganho para o terreno da arte. Muitas obras, hoje fundamentais para a consciência que temos do mundo contemporâneo, apenas surgiram porque os horizontes das artes visuais foram expandidos. Mas essas mudanças tão importantes não significaram que essas novas formulações do conceito de artes visuais mudaram o sistema de arte. Pelo contrário, apesar de toda a radicalidade assumida por algumas propostas, sabe-se bem que todas foram devidamente tragadas pela institucionalização. Se surgiram como alternativa ou negação do sistema da arte, esse, desde o início, abriu-se para o alternativo para abarcá-lo e, consequentemente, neutralizá-lo.

Enfim, o que estou querendo lhe dizer é que, dentro dessa situação, ganhava força a consciência de que os parâmetros artísticos e estéticos que haviam dominado as vanguardas históricas agora perdiam a hegemonia, assim como, antes, a arte tradicional também perdera a sua. A arte contemporânea não era a arte moderna.

Lembro até de um texto de Ronaldo Brito que, a meu ver, ainda resume bem essa situação. Ele escreveu – não sem ironia, é claro – que, se naquela época, alguém se colocasse escandalizado frente a uma obra de arte contemporânea e bradasse: – Mas isto é arte?! A obra responderia: – Não. A arte é que é isto.

Fico pensando: o que Brito queria despertar em seus leitores com essa espécie de parábola? Para mim, ele queria chamar a atenção para o fato de que a obra de arte contemporânea pauta – ou deveria pautar – suas próprias premissas e que, assim, ela só pode ser analisada a partir desses pressupostos, e não de outros. Está me entendendo, Patricia?

Pois bem, o problema é que tudo isso acontecia em um momento em que o circuito, supostamente buscando “democratizar” a arte, equivocadamente elevou à última potência outra afirmação que também surgia (ou ressurgia) naquela época: “Todo ser humano é ou poderia ser um artista”, máxima proferida por alguns artistas (entre eles, Beuys, mas também, e do seu jeito, Warhol, entre outros). O que muitos, equivocadamente, concluíram com essa frase? Que, se todos eram artistas, tudo poderia ser arte. Então ninguém era artista e a arte não existia.

Como em outros momentos em que foi anunciada a morte da arte, sabemos que também nesse caso, a arte e o artista não acabaram. Pelo contrário, criadores e criaturas proliferam e proliferaram prodigiosamente durante essas últimas décadas, ressoando uma situação nova, típica das últimas cinco ou seis décadas: a ampliação do número de escolas de arte, de estudantes, de colecionadores, do público para as exposições em novas e velhas galerias, novos e velhos museus, antigas e novas bienais (Hal Foster tem um texto interessante sobre isso, Patricia).

“Aberto” e “democrático” (escrevo essas palavras entre aspas porque sabemos que de aberto e democrático o circuito não tem nada), o ambiente artístico se abria para todas as novas possibilidades que a arte oferecia ou passava a oferecer, assim como – e é para isso que eu gostaria de chamar sua atenção – também se mantinha aberto para as modalidades artísticas convencionais.

Para complicar ainda mais, essa últimas – produzidas no passado remoto ou recente –, já estavam com seus maiores e melhores exemplares devidamente confinados, em coleções públicas ou privadas, e valendo cada vez mais. Impossível para a imensa maioria de colecionadores surgidos nas últimas décadas no Brasil, por exemplo, comprar um Hélio Oiticica ou uma Lygia Clark.

Por mais consagrados que sejam esses artistas, por mais que estejam representados nos melhores museus e nos mais importantes acervos particulares, esses colecionadores medianos – com ou sem muito dinheiro, mas todos sem muita cultura também – não estão, de fato, dispostos a gastar um dinheirão para poderem “pendurar no teto um monte de tecido costurado” – como os trabalhos de Sonia Gomes –, ou espalhar fios de metal pelo chão, como alguns trabalhos de Tunga. Não estão dispostos mesmo.

E é aí que eu chego a meu ponto, Patricia:

Será justamente nesse momento de desamparo dos compradores de arte – sem o apoio de um verdadeiro debate – que o mercado surgirá para “salvar” esse colecionador doido para comprar, mas sem ter exatamente o que comprar porque, ou não tem dinheiro, ou não tem real paciência com “essa tal de arte contemporânea”?

Aproveitando-se daquela permissividade e daquele relativismo que mencionei acima, o mercado providenciará uma série de novos produtos para colocar à venda, produtos preferencialmente ligados às modalidades artísticas tradicionais. Para o colecionador mediano que não pode mais comprar um Volpi, um Portinari, um Sérgio Camargo ou uma Maria Martins seria ok colocar mais uma obra de arte convencional na parede – desde que “nova” e de autoria referendada pelo repórter do jornal – uma peça que case bem com o sofá e o tapete da sala (para, quem sabe, um dia sair nas páginas das revistas de decoração).

Penso que propositadamente o circuito se esqueceu de que, se as regras da tradição e da arte moderna foram superadas, outras foram colocadas em seu lugar. Tunga e Sonia Gomes são importantes, porque são fiéis às questões que seus respectivos trabalhos determinam. Apenas por isso, e não porque são primeira página do caderno de cultura desse ou daquele jornal.

Entendendo a arte contemporânea como uma espécie de “terra de ninguém”, como um território destituído de regras, o mercado impõe as suas, é claro. Não é propriamente que “tudo é arte”, não. Na atual indigência cultural em que vivemos, é arte aquilo que está na galeria, aquilo que é produzido para o rápido consumo, incensado pela imprensa.

Obras impecáveis do ponto de vista formal ou obras com acentuado apelo político? Não importa, não interessa se a obra se resolva com qualidade ou não. Tudo vale nesse mercado, desde que ela possa ser colocada na parede ou no pequeno pedestal da sala. Ou seja: é arte aquilo que está na galeria e que se comporta como uma obra de arte “de verdade” e por um preço razoável.

A lástima é que, como diz o texto de Cardoso, grande parte dessas obras que invade o circuito e que, de lá, vai para coleções públicas e privadas – antes passando por bienais e outras grandes mostras –, não consegue ser o “isto” que deveria ser.

Você me pergunta o que fazer para mudar esse quadro, Patricia? Não sei, mas acredito que esta situação poderia começar a mudar se outros setores do circuito da arte e da cultura começassem a se sentir incomodados com essa precessão absoluta do mercado em tudo o que diz respeito à arte.

Patricia, foi mais ou menos isso o que me veio à cabeça a partir da leitura do texto de Rafael.

Fico por aqui. Beijo saudoso,

Tadeu.

Bernardo Mosqueira fala da nova sede do Solar dos Abacaxis e do cargo de curador-chefe do ISLAA

Bernardo Mosqueira, curador e diretor artístico do Solar dos Abacaxis. Foto: Mason Wilson
Bernardo Mosqueira, curador e diretor artístico do Solar dos Abacaxis. Foto: Mason Wilson

Bernardo Mosqueira não para. O Solar dos Abacaxis, do qual é diretor artístico, anunciou para o dia 18/11 a abertura da primeira mostra de artistas residentes de sua Oficina Solar, em seu novo endereço. Participarão os cariocas Ana Bia Silva, Janice Mascarenhas, Fujioka e Loren Minzú, e ainda Anti Ribeiro, de Recife (PE) e Carchíris, de São Luiz (MA); de fora do Brasil, estão Carolina Favre (Argentina) e GianMarco Porru (Itália). Antes, dia 4/11, ocorre o encerramento da exposição inaugural da nova sede da instituição carioca, Vida Transbordante e os Desejos do Mundo, uma coletiva com obras de 11 artistas, muitas delas inéditas. A proposta curatorial é assinada por Lorraine Mendes – assistente de Igor Simões em Dos Brasis –, Mosqueira, Ana Clara Simões Lopes e Catarina Duncan.

Participam da coletiva os artistas Denise Alves Rodrigues (MT), Dyó Potiguara (RJ), Efe Godoy (MG), Felipe Meres (RJ), Iah Bahia (RJ), Juno B (CE), Luana Vitra (MG), Manfredo de Souzanetto (MG), Patricia Dominguez (Chile), Rubens Takamine (RJ) e Zheng Bo (China). Neste sábado (21), Transbordante e os Desejos do Mundo realiza seu terceiro e último ciclo, uma programação especial do projeto educativo, destinada a alunos da rede pública de ensino.

O Solar também fez uma chamada aberta para o envio de obras para a exposição Corações à Desmedida, em homenagem à fotógrafa e pintora Rochelle Costi, morta em novembro do ano passado. As inscrições vão até 29/10, e os trabalhos devem ser encaminhados a instituição entre os dias 30/10 e 6/11. A mostra vai acontecer em paralelo à dos artistas residentes.

Em junho, Mosqueira foi anunciado como o primeiro curador-chefe do Institute for Studies on Latin American Art, em Nova York. Uma de suas primeiras missões no ISLAA, que esteve envolvido na exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, em 2018, na Pinacoteca de São Paulo, é a abertura ao público, em 28/10, da nova sede em Tribeca. Ao mesmo tempo, ele permanece permanece no Comitê Curatorial do Prêmio Foco da ArtRio, do qual foi idealizador, e que em 2023 completou uma década.

O Solar dos Abacaxis foi fundado em 2015, no casarão histórico do Cosme Velho que leva seu nome. Em dezembro do ano passado, a instituição se mudou para um sobrado de três andares na Rua do Senado, no centro do Rio, onde em setembro, após reformas, fez a primeira mostra inaugural. Na edição deste ano da ArtRio, fez mais uma edição de seu edição Halo Solar, o Círculo de Apoiadores da organização sem fins lucrativos, apresentando 36 fotos inéditas produzidas por Ayrson Heráclito – artista participante da 35ª Bienal de São Paulo e curador de Reversos e Transversos, em cartaz até 28/10 na Galeria Estação –, com imagens dos elementos usados no candomblé para curas e tratamentos.

Apesar do novo cargo no ISLAA, o Solar, no entanto, não perde espaço (ou tempo) na agenda de Mosqueira, um de seus fundadores. Em entrevista à arte!brasileiros, o também curador, pesquisador e escritor conta que o Solar nasceu num ambiente de “oposição ao sistema institucional do Rio”, por meio de exposições na rua ou da criação de instituições temporárias, entre outras experimentações propostas por “uma geração que estava mais radicalmente pensando a inclusão de artistas e formas de prática artística que vinham sendo relegadas às margens”.

O Solar dos Abacaxis, prossegue Mosqueira, surge de um cruzamento dos anseios de duas gerações, entre os anos 1990 e 2000: de um lado, desejava-se criticar modelos institucionais e criar novos; de outro, havia um interesse em refletir como inserir quem não estava fazendo parte de tais instituições. “Uma prática que busca construir outras modalidades institucionais que pudessem dar conta de outras formas de vida, de outras formas de sentir e pensar, de produzir resultados mais alinhados com uma certa ideia de justiça ou de construção, no presente, de outras possibilidade de viver”, explica Mosqueira.

Mais de exposições depois, Mosqueira pondera que o Solar dos Abacaxis é, hoje, um “projeto robusto”. “Estou vivendo hoje coisas que a gente sonhou e planejou lá em 2015”, diz. Sonhando a seu lado, estava o arquiteto Adriano Carneiro de Mendonça, hoje diretor executivo do Solar, cuja primeira sede era pertencente a sua família. “Quando nos conhecemos, por meio da artista Marina Simão, ele entendeu rapidamente qual era minha proposta. Com o tempo, entendemos que  o Solar, institucionalmente, não dependia da casa. Estávamos gastando mais tempo. energia e pensamento com aquele imóvel [que cogitaram comprar] do que com a nossa missão de fato”.

Mosqueira conta que ficaram “nômades” por cerca de um ano e meio, em que fizeram exposições em parceria com outras instituições, como a residência Bela Maré , outra com o MAM Rio, uma série de ações em Recife, São Paulo e outras cidades do Rio enquanto procuravam uma nova sede. Em Nova York, antes do ISLAA, Mosqueira fez um mestrado, mas reputa à experiência com o Solar a expertise que leva agora para cargo de curador-chefe do instituto.

“Aprendi fazendo o Solar, literalmente construindo-o, o que é a plasticidade de uma instituição, como é possível criar uma instituição de outras formas. Portanto é algo mais da prática institucional do que curatorial que eu trago bastante do Solar para o ISLAA”, reflete. “Um dos princípios do Solar é a ideia de que a gente não tem a menor obrigação de repetir formas de ser institucionais antigas e que não dizem respeito aos nossos valores. No ISLAA, essa experiência é muito importante porque o instituto não tem um formato convencional, não é um museu, uma galeria, uma agência, um embaixada. Não tem um modelo específico”.

Mosqueira também explica que parte de suas responsabilidades no novo cargo é cuidar da coleção do ISLAA, mas, sobretudo, organizar exposições a partir dela – segundo o curador, o acervo é muito extenso, rico e complexo – e fazer aquisições para complementá-la. Uma das futuras mostras, prevista para ser aberta em 28/10, revisita O princípio Potosí, apresentada em 2010 no Reina Sofía, entrelaçando-a com a coleção do instituto. “É um momento de grande expansão, cujo grande objetivo é fortalecer sua dimensão pública, não apenas por meio da construção da nova sede, mas ao criar novas parcerias, fazer novas publicações novas e estabelecer novos protocolos internas e externos”, diz. “Essa é das coisas que eu mais gosto de fazer: inventar a forma de fazer”.

 

 

 

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Aracy Amaral participa de bate-papo em torno da exposição ‘O curso do sol’, na Gomide & Co

Obra de Alina Okinaka, presente na exposição "O curso do sol", na Gomide & Co. Foto: Edouard Fraipont
Obra de Alina Okinaka, presente na exposição "O curso do sol", na Gomide & Co. Foto: Edouard Fraipont

crítica de arte e historiadora Aracy Amaral participa nesta quinta-feira (19), a partir das 19h, de uma conversa com o escultor e ceramista Megumi Yuasa (São Paulo, 1938), um dos artistas participantes da exposição O curso do sol, em cartaz até 14 de novembro, na Gomide & Co. A mediação será de Yudi Rafael, curador da mostra.

A coletiva, que teve consultoria de Roberto Okinaka, tomou emprestado para seu título o primeiro verso de um poema de Matsuo Bashō (1644-1694), um poeta peregrino, “um viajante, uma figura perfeita para se pensar sobre a ideia de trânsito [de pessoas, imagens e ideias] proposta por O curso do sol“, diz Rafael. São mais de 40 artistas, por meio dos quais se busca “apresentar narrativas da arte na diáspora japonesa da América Latina a partir das viagens de artistas nipo-brasileiros pela região”, segundo comunicado da galeria.

Também atravessam a mostra “os diálogos culturais que marcam o abstracionismo informal, lírico e caligráfico do período do pós-guerra, expandindo-se, ainda, para outras trajetórias ligadas a vertentes artísticas modernas e contemporâneas”, diz o texto. Para tanto, Rafael se debruçou sobre a produção pictórica e escultórica de artistas nipo-diaspóricos de Brasil, Argentina, México e Japão, “além de latino-americanos cujas obras entrelaçam-se com a cultura visual japonesa a partir de referências culturais e políticas locais”, prossegue a nota da Gomide & Co.

O curso do sol se estrutura em dois eixos: um vertical – Grupo Seibi, associação artística fundada em 1935 e, em torno da qual, reuniram-se nomes como Manabu Mabe, Tomie Ohtake e Massao Okinaka, “num contexto de muita precariedade, porque muitos desses artistas vieram para cá na infância e trabalharam na lavoura de café”, aponta Rafael; e outro, horizontal, que diz respeito à constelação transnacional da arte abstrata no pós-guerra, e que tem em Kazuya Sakai, da Argentina, um dos exemplos presentes na exposição. Há também artistas não nipônicos, como Adriana Varejão, León Ferrari, Mira Schendel e Rivane Neuenschwander, entre outros.

CONCEPÇÃO

Em conversa com a arte!brasileiros, Yudi Rafael conta ainda que as primeiras conversas para conceber a exposição tiveram início no ano passado. Segundo ele, o galerista Thiago Gomide “tem muito interesse tanto na arte japonesa em si, quanto na produção dos artistas de origem japonesa, no Brasil e restante da América Latina. E esta noção das diásporas está no centro dos debates da arte hoje em dia, mas, agora, em O curso do sol, ela destoa de posicionamentos nacionalistas, vai além, e a gente busca outras genealogias”, pondera.

Já Luisa Duarte, diretora artística da galeria, destaca que O curso do sol “se dá dentro de um programa, dentro da Gomide & Co, que tem se voltado para temas afins à América Latina. Então temos uma singularidade, uma exposição extremamente importante que acontece concomitantemente à 35ª Bienal de São Paulo, de modo similar ao que a galeria fizera há dois anos, com a mostra Nosso Norte é o Sul, montada ao mesmo tempo que a Bienal anterior”, lembra Luisa. “A exposição se dedicava a toda uma produção pré-colombiana que já tinha ali, no seu DNA, uma espécie do que viria ser um certo construtivismo geométrico no século XX. Fazia essa intercessão entre essas obras muito remotas, oriundas da América Latina, e uma produção moderna de caráter construtivo”.

Rafael ressalta que as obras expostas em O curso do sol têm particularidades de ordem cultural, ligadas ao modo de pensar e até mesmo à estrutura da língua desses artistas japoneses que vieram para o continente latino-americano. O objetivo de Rafael foi dar maior “atenção ao abstracionismo formal” que “teve uma presença forte no Brasil nos anos 1950 e 1960”, lembra o curador, e que permeia o conjunto de obras em exibição, de autoria ainda de artistas aqui radicados, como Flavio-Shiró (Sapporo, Japão 1928), extrapolando para nomes de Bolívia, Peru, México etc.

Luisa salienta ainda que o processo de feitura da exposição envolveu uma troca periódica Rafael e a equipe da Gomide, como um todo. “Em que eu tinha uma voz, o Thiago Gomide tinha outra, então é realmente um fruto dessa parceria feita ao longo dos meses, com uma rotina de encontros semanais”, conta. Já Rafael aponta que O curso do sol não “uma exposição exaustiva”, no sentido de abrangência. Temos um partido curatorial, até porque não daria para abrigar todo mundo. Muitas figuras importantes não entraram porque a gente tem os limites de tempo e de espaço”, pondera o curador.

“A gente pega um período específico, que são as décadas de 1950 e 1960, um momento fértil, em que a gente encontra diálogos na América Latina toda, dentro da abstracionismo. O Kazuya Sakai, na Argentina; o Manabu Mabe, Shiró e Tomie no Brasil, uma marca muito forte da diáspora japonesa no abstracionismo informal no continente”, conclui.

SERVIÇO
O curso do sol
Curadoria: Yudi Rafael
Até 14/11
Gomide & Co – Avenida Paulista, 2644 – São Paulo (SP)
Horários: de segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 11h às 17h
Entrada gratuita