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Integração é o mote da programação de Inhotim em 2024

Uma retomada de projetos monográficos, exposições solo dedicadas a obras específicas de alguns artistas, além de obras únicas, imersivas, que promovem experiências contundentes. É dessa forma que a diretora artística do Inhotim, Júlia Rebouças, descreve a programação do Inhotim para 2024, anunciada na semana passada. As inaugurações acontecerão em dois meses (abril e outubro), e as duas primeiras estão marcadas para 13/4: integrante do coletivo curatorial da 35ª Bienal de São Paulo, a portuguesa Grada Kilomba leva à Galeria Galpão a obra O Barco. No mesmo dia, o mineiro Paulo Nazareth ocupa a Galeria Praça e outros espaços do museu a céu aberto com obras comissionadas pela instituição.

Exibida em 2021 no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa, e na Somerset House, em Londres, O Barco é um trabalho inédito no Brasil, descrito como uma “instalação escultórica ativada por performance”, em que blocos de madeira carbonizada trazem versos de um poema escrito por Grada em seis idiomas (iorubá, kimbundu, crioulo, português, inglês e árabe).

Júlia Rebouças afirma que, ao ser apresentada no país, a obra vai ganhar “um acento local”, e destaca que o trabalho começa agora, mas sua presença no instituto se estende por pelo menos dois anos. “O Barco é acompanhado por um conjunto de performances com dança e música, e, ao longo do ano, faremos oficinas de modo que artistas da região participem do projeto. A obra vai assentando aqui de uma maneira que só poderia acontecer nesse contexto institucional do Brasil, nesse momento histórico e político”.

Já a criação comissionada pelo Inhotim a Paulo Nazareth tira sua inspiração do Palmital, um conjunto habitacional criado em 1984, na cidade de Santa Luzia (MG), onde o artista está sediado. Ela traz elementos caros a Nazareth, como história, território e deslocamentos, e vai se capilarizar em diversas obras, como um bananal plantado em Inhotim, em trabalhos dispostos no caminho até a instituição ou ainda proposições do artista que virão à tona ao longo do período expositivo.

“A produção do Paulo Nazareth parte da ideia de trânsitos, de deslocamentos, uma provocação que a gente quer trazer para a instituição. O que podemos fazer aqui, que não se pode fazer em outro contexto?”, indaga Júlia. “O Paulo respondeu a esse questionamento exatamente com a temporalidade de uma exposição longa. A gente vai inaugurar uma mostra que vai se transformar com as estações. Ao longo de dois anos, em cada sazonalidade, a gente não vai ter necessariamente uma exposição nova dele, mas aparições, obras que chegam e saem, performances etc. A gente vai plantar bananas e, lá na frente, colhê-las, fazer um doce com elas, enfim, qualquer coisa que faça sentido para ele.”

No segundo semestre acontecem as aberturas das exposições da mineira Rivane Neuenschvander, da suíça Pipilotti Rist e da baiana Rebeca Carapiá. Com obra presente no acervo de Inhotim, Rivane levará à Galeria Mata uma panorâmica com trabalhos de épocas diversas, entre instalações, obras audiovisuais, pinturas e esculturas. Neles, ela elabora elementos recorrentes em sua produção, como memória e infância, natureza e ecologia, história e ditadura.

Pipilotti apresentará, na Galeria Fonte, a obra Homo sapiens sapiens, filmada em 2004 nos jardins do Inhotim, mas ainda inédita no instituto.  Exibido na Bienal de Veneza de 2005, quando a artista representou a Suíça, o trabalho traz referências a corpos femininos e à iconografia barroca, entre outras. Segundo Júlia, a instalação, que será mostrada de maneira imersiva, conta um pouco da coleção de Inhotim e de seus comissionamentos, visto que a obra foi realizada no instituto e volta agora, 20 anos depois.

“É um exemplo de trabalho com videoarte da Pipilotti que, a partir daquele momento, entre 2004 e 2005, apresenta um conjunto de novidades na maneira de se expor e lidar com a imagem. A primeira vez que ela o projetou foi no teto de uma igreja, lidando com os seus ornamentos, com uma tese sobre a origem do mundo”, explica Júlia. “É uma obra com um grande apelo imagético, por meio de um efeito caleidoscópico, em que ela ainda retrata um conjunto de corpos femininos numa relação absolutamente intrínseca com a natureza”.

Júlia Rebouças ressalta que a programação de 2024 mescla balanços (como a obra de Pipilotti), um caráter mutante (em Paulo Nazareth), outro monográfico (com Rivane) e um trabalho que lança mão dos recursos de Inhotim, caso do comissionamento feito à artista baiana Rebeca Carapiá, para a área externa do instituto.

“A gente tem um corpo técnico, de oficinas, de ateliês, que é incrível e absolutamente experiente e que vem, ao longo desses 17 anos de instituição, trabalhando diretamente com os artistas. Então convidamos a Rebeca pensando um pouco também nessa artista que pode se beneficiar desse contexto e dessa infraestrutura para experimentar, de maneira conceitual, formal e técnica, em diálogo com o espaço, com uma conversa muito próxima e um apoio que não é somente auxiliar, mas também constitutivo”, diz.

Júlia Rebouças, diretora artística do Instituto Inhotim. Foto: William Gomes
Júlia Rebouças, diretora artística do Instituto Inhotim. Foto: William Gomes

A programação artística de 2024 de Inhotim inclui ainda seu primeiro Festival Internacional de Música – que prevê experiências musicais imersas nos ambientes artísticos e naturais do instituto, em julho – e, no mês anterior, durante a Semana do Meio Ambiente, o projeto Transmutar: Seminário Internacional, em que se destaca a presença de Brigitte Baptiste, bióloga colombiana que se debruça sobre a interseccionalidade entre biodiversidade e teoria queer.

“Ela vem vem fazer uma performance, uma fala e uma ativação e faz parte de um grupo de convidados, entre eles também Ailton Krenak, para experimentar outros jeitos de se fazer os programas públicos, envolvendo os acervos artísticos e botânicos”, explica a diretora artística.

Para Júlia, o conjunto de ações previstas para este seria exemplar de um novo momento do instituto, que tem outro ponto forte na criação da diretoria de educação, sob o comando de Gleyce Heitor, uma “virada importante dentro da instituição”, que vai reforçar o tripé arte, natureza e educação, “lidando com as questões do território, da contemporaneidade, nas múltiplas manifestações possíveis na interseção entre esses três”, conclui.

Júlia, que teve sua primeira passagem pelo Inhotim entre os anos de 2007 e 2015, e voltou ao instituto no ano passado, ressalta ainda que uma das iniciativas emblemáticas das mudanças iniciadas no museu por volta de 2022 seria o projeto em torno de Abdias do Nascimento, realizado em parceria com o IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros).

Ela salienta que foi um programa proveniente de um acervo emprestado, em que Inhotim abrigou também “todo um conjunto de conceitos e práticas desse grande e fundamental intelectual que foi Abdias Nascimento”. Essas práticas, ela afirma, levaram o instituto a se “reposicionar em relação ao acervo, ao programa artístico e curatorial, às práticas de trabalho e ao envolvimento com a comunidade”.

Para Júlia, a experiência se deu por um amadurecimento “desse organismo vivo que é uma instituição como Inhotim”, que permitiu outro modo de se fazer exposição, não apenas a partir do comissionamento ou do colecionismo direto, “mas também de uma parceria entre instituições, que por sua vez reverberou num programa autoral e em outros artistas, outras exposições ao longo dos anos, que não foram só obviamente dedicados ao Abdias, mas que estavam ali, no bojo desse pensamento, que permite esses outros modos de fazer”, conclui.

 

Do Jeca Tatu a Nhô Nito

Amácio Mazzaropi em "Jeca Tatu" (1959)
Amácio Mazzaropi em "Jeca Tatu" (1959)

Com exceção de Manoel Querino (1851-1923), os intelectuais que escreviam sobre as artes visuais durante a Primeira República partiam do seguinte pressuposto: no Brasil desenvolvia-se uma ramificação da arte europeia.

Alguns tentariam propor ou detectar singularidades para a arte aqui produzida, enquanto outros atentariam para a dimensão cosmopolita da arte praticada no país. Para tais reflexões foi decisivo que todos eles conceitualizassem o homem brasileiro, étnica e culturalmente. Refletindo sobre como esses autores pensavam o Brasil e o brasileiro será possível compreender qual era o tipo de arte que eles pensavam ser o mais apropriado para o país, e quais as táticas para alcançá-la.

Ao estudar o fluxo de ideias que transitavam em São Paulo nos anos em torno Semana de Arte Moderna de 1922, identifiquei conexões entre os pensamentos do então jovem intelectual Menotti Del Picchia (1892-1988) – primeira geração de imigrantes italianos – e aqueles emitidos por Monteiro Lobato (1882-1948), outro intelectual atuante em São Paulo, dez anos mais velho, e de família tradicional. Tal questão já havia sido abordada por Annateresa Fabris, em livro publicado em 1994[2], mas ainda restavam dados a serem aprofundados.

Assim, estudando a produção dos dois intelectuais percebi que, de início, há uma identificação de Del Picchia com o pensamento de Lobato que com o tempo será superada e substituída por outros posicionamentos. É significativo estudar tal questão pois ela mostrará o nascimento e/ou a consolidação de certas idealizações do Brasil e do brasileiro que jogarão um papel importante, não apenas na arte e na literatura produzida em São Paulo, mas igualmente em outras áreas.

***

Em 1920 Menotti publica uma série de artigos denominada Cartas a Chrispin, dedicado, cada um deles, a um intelectual “novo”. Dentre outros, Menotti traçará o perfil de Guilherme de Almeida (1890-1969), Oswald de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade (1893-1945) e o de Lobato.

Chegando ao final do texto elegante e elogioso dedicado a esse último, Del Picchia arremata: “O que ele é, já o sabes: um dos mais formidáveis estilistas do meu tempo. E, como ele já está consagrado pelos santos óleos da admiração nacional, é tempo de empurrá-lo na Academia…”[3]

Em julho de 1921, comentando a eleição que ocorreria na Academia Brasileira de Letras,  Del Picchia sugere o nome de Lobato, apesar de dizer que não apreciava e não concordava com tudo o que o escritor mais velho produzia. Tal posicionamento, no entanto, não o impedia de afirmar:

Monteiro Lobato foi – no sentido novo que se dá ao termo – um dos nossos primeiros futuristas. Com seus admiráveis artigos esfarelou a tacapadas épicas os estilinhos melosos que triunfavam por aí; com seus diabólicos escritos, arremangados e corrosivos, acabou com a prosa açucarada e melíflua, que tinha a soporífica faculdade de fazer concorrência ao clorofórmio ou à infusão de papoulas.[4]

Del Picchia podia não concordar com tudo o que Lobato escrevia, mas o tinha como um intelectual que rompera com a tradição, e por isso, o qualifica como “um dos nossos primeiros futuristas” – demonstrando o quanto se encontrava ainda fluído, no início dos anos 1920, os limites entre “futuristas” e “passadistas”.

Também na crítica, Del Picchia levava Lobato em conta, afirmando mais de uma vez o quanto deixou-se levar pelo pensamento do autor mais velho. Essa adesão, entre outros exemplos, encontra-se num artigo dele sobre Victor Brecheret (1894-1955): “Eu, que tenho posto todos os meus carrilhões […] a serviço da glória de Brecheret, não podia, entretanto, deixar de tentar meu repique final, uma vez que o grande escultor patrício está em vésperas de ‘deixar de fazer asneiras'”, na frase do Lobato – e ‘cometer o primeiro ato acertado’, isto é, tomar um vapor e zarpar para Paris”[5].

Mais contundente é o texto em que Del Picchia escreve que, durante um tempo, pensou não gostar da pintura de Anita Malfatti (1889-1964), seguindo apenas o que publicara Lobato sobre a exposição protagonizada pela artista, em dezembro de 1917. Del Picchia comenta o quanto aquele artigo havia abalado não apenas a artista, mas todo o público. Querendo que Lobato revisasse seus posicionamentos sobre Anita, ele declara:

Eu, sugestionado também pelo artigalhão de Lobato, sem mesmo ter visto a obra de Malfatti, senão deturpada por umas péssimas reproduções em revistas, me havia encartado entre os negadores da galharda pintora paulista. Um deste dias, porém visitei seu atelier. Saí de lá encantado. E, como sou rudemente sincero e tenho a ilusão de ser justiceiro, não me pejo em fazer aqui minha púbica penitência.

Fazendo-a deixo a Lobato a responsabilidade de meter posto ao mau caminho, no julgamento dos quadros da minha ilustre patrícia, certo de que o autor da Colcha de retalhos fará, logo que reconheça seu erro, sua penitência pública também.[6]

Estabelecidas essas evidências sobre como Del Picchia tinha Lobato como parâmetro, levanto agora outros textos em que se nota a permanência dessa dimensão paradigmática assumida pelo autor de Emília, para Del Picchia – atentando para como os primeiros textos sobre o Brasil e os brasileiros, escritos por Del Picchia, ressoavam o pensamento do intelectual mais velho.

***

Publicado por Del Picchia no Jornal do Comércio, em janeiro de 1921, o artigo Matemos Peri é ambíguo: às vezes o autor parece se referir ao personagem do romance O guarani, de José de Alencar, atentando para seu caráter falso e arbitrário, calcado no romantismo europeu. Porém, em outros momentos, Del Picchia esclarece que Peri é falso, não apenas por representar uma moda literária estrangeira, mas por se referir a um tipo de brasileiro que simplesmente não existia:

Nunca acreditei na real existência dos índios, de que os europeus julgam andar cheios nossas praças e avenidas. As notícias que deles tenho, em tratados etnográficos e em documentações de museu, fazem-me pensar neles como na vaga legenda dos primatas, dos antropotecos [sic] dos megatérios e outras cousas crepusculares. Às vezes chego a imaginar que Peri […] nunca passou de uma ficção literária de Alencar.[7]

Ele continua:

O que nos custou, porém, essa blague posta em ópera […], nem a diplomacia de cem Rios Brancos desmancha. Peri foi uma mancha nua e bronzeada a sujar a dignidade nacional. Essa mentira lírica […] chegou a perturbar nossos sociólogos. Admitiu-se essa hipótese romântica como elemento formador da raça, atribuindo-se ao índio vadio, estúpido e inútil, uma função alta no caldeamento do nosso tipo nacional, chegando-se a crer que dele nos vinha a bravura nativa, o espírito de independência selvagem, a altivez reacionária de que somos dotados.

Nada mais falso. Nunca vi índios, mas o que li de sério – […] – sobre a índole dessa gente de tez acapetada, nariz chato, higiene discutível, foi apenas um depoimento psicológico que reverte em séria acusação contra a sua inferioridade étnica e absoluta inadaptabilidade socia […][8]

A figura do indígena era insuportável para Del Picchia em dois sentidos: primeiro, porque, sendo uma criatura animalesca, ele não deveria ter servido como base para a constituição da “raça” brasileira. Por outro, transformado em símbolo do Brasil, depunha contra o país e os “verdadeiros” brasileiros. Era preciso matar Peri para que um Brasil novo finalmente surgisse:

Libertemo-nos dessas faixas que nos peiam, dessas sugestões que nos desfibram, desses temores reverenciais que nos anulam. Demos, à nossa ânsia de originalidade, à nossa vontade de libertação todo o prestígio. As nacionalidades são bem como os indivíduos, os quais só valem quando se afirmam, pessoais e rebeldes, agindo em todas as parcelas das suas forças reveladoras de personalidade. Demos ao Brasil – libertando-o do incubo de Peri – a sua feição de povo moderno, avanduardista, criador e pensador, liberto e original, crisálida saída do casulo para o grande voo no espaço e na luz. Para isso, o surge e ambula do milagre novo, resume-se nesta fórmula profética e simbólica:

Matemos Peri![9]

O posicionamento de Del Picchia sobre o indígena real e o indígena representado na ficção possui como base os textos que deram o início ao reconhecimento de Monteiro Lobato como um dos intelectuais mais significativos de sua geração.

***

Lobato publicou o artigo Uma velha praga em O Estado de S. Paulo, no dia 12 de novembro de 1914, e Urupês, no mês seguinte, no dia 23 de dezembro de 1914, no mesmo jornal. Note-se que os dois artigos serão republicados em 1918, no livro de contos Urupês[10]

Uma velha praga fala sobre os incêndios anuais que ocorriam nas florestas paulistas. Lobato compara a devastação causada por esses incêndios à destruição pela qual passava a Europa, assolada pela Primeira Grande Guerra. E vai mais longe: propõe que os brasileiros da cidade deixassem de se preocupar com a catástrofe que ocorria na Europa para refletir sobre aquela que acontecia no interior do país: “Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que, se por lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos destruidor devasta nossas florestas com furor não menos germânico…”[11] Sua voz, portanto, é a “voz do sertão”.

Somente após manifestar-se sobre as queimadas e seus malefícios, é que Lobato delatará o responsável por aqueles incêndios: o caboclo, o “caipira”. O autor, portanto, quando se pronuncia como a “voz do sertão”, é, de fato, a voz do proprietário do sertão e não de todos os que ali viviam. Ele se percebe separado do caboclo, pois é esse o responsável por seus males. Para Lobato, aquele agregado de suas fazendas não passava de um parasita, capaz de destruir seu hospedeiro.

Ao mesmo tempo em que o intelectual desqualifica essa figura até então idealizada pela literatura – o “caipira”, o caboclo, misto do indígena com o português – ele também aponta para a existência de dois tipos de brasileiros brancos: aqueles da cidade, alheios à realidade brasileira, e o proprietário rural, talvez o único com uma consciência mais estruturada da realidade. Nota-se aqui, portanto, uma primeira divisão da população brasileira: de um lado, o proprietário de terras e o cidadão, todos brancos; do outro, o caipira, o parasita, o “piolho da terra”.

No artigo seguinte, Urupês, Lobato externará seus preconceitos em relação às potencialidades artísticas e culturais do caipira. Antes de chegar propriamente ao assunto, ele traça um rápido histórico sobre como a intelectualidade branca local vinha pensando o homem brasileiro do campo:

Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar à vinda iconoclasta dos Rondons que, ao invés de imaginarem índios num gabinete com reminiscência de Chateaubriand na cabeça […], metem-se a palmilhar sertões de Winchester em punho.

Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como o sonhara Rousseau, protótipo de tantas perfeições humanas que, no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d’alma e corpo.

Contrapôs-lhe a cruel etnologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci[12].

Aqui, portanto, encontra-se a origem da argumentação que, quase uma década depois, Del Picchia usará, ao escrever o seu Matemos Peri!. Em Urupês, Lobato afirma que as ações do Exército brasileiro – menção a Rondon –, haviam “matado” a visão idealizada do indígena, mostrando como ele era de fato: “feio e brutesco, anguloso e desinteressante”[13]. Para o autor, o indianismo deixou de ser moda, transformando-se. Assim ele segue:

O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de caboclismo. O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; a ocará virou rancho de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda trochada […]

[…] Mas o substrato psíquico não mudou: orgulho indomável, independência, fidalguia, coragem, virilidade heroica, todo o rochedo, em suma, sem faltar uma azeitona dos Perís e Ubirajaras[14].

Depois de afirmar que a moda do caboclismo também iria passar, Lobato continua:

[…] Hoje ainda há perigo em bulir no vespeiro: o caboclo é o “Ai Jesus! Nacional”.

[…] Anos atrás o orgulho estava numa ascendência de tanga, inçada de penas de tucano, com dramas íntimos obrigados a flechaços de curare.

Dia virá em que veremos, murchos de prosápia, confessar o verdadeiro avô: – um dos quatrocentos de Gedeão trazidos por Tomé de Souza num barco de degredados daqueles tempos, nosso mui nobre e fecundo Mayflower.

Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso[15].

Daí em diante, Lobato conceituará o homem do interior – aquele “incapaz de evolução, impenetrável ao progresso” –, como incapaz de se manifestar até sobre as questões políticas que o afetavam. Lobato afirma que, quando a Lei Áurea “mal esvoaça o florido decreto da Princesa, e o negro exausto larga num uff! o cabo da enxada, o caboclo olha, coça a cabeça, magina e deixa que do velho mundo venha quem nele pegue de novo”[16]. Ou seja, nem a libertação dos escravizados levaria o caipira a repensar sua situação, permitindo que, ao invés dele, uma nova leva de trabalhadores – os imigrantes europeus –, ocupassem o campo[17].

Lobato segue retirando do caboclo qualquer qualidade. Ele finaliza o texto demonstrando que o caboclo também era incapaz de produzir arte. Eis os últimos parágrafos:

O caboclo é soturno.

Não canta senão rezas lúgubres.

Não dança senão o cateretê aladainhado.

Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.

Não compõe sua canção, como o felá do Egito.

No meio da natureza Brasília, tão rica de formas e cores, onde os ipês derramam feitiços no ambiente e a infolhescência [sic] dos cedros, às primeiras chuvas de Setembro, abre a dança dos tangarás, onde há abelhar de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, visa dionisíaca em escacho, permanente, o caboclo é sombrio urupês de pau podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas.

Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.

Só ele, no meio de tanta vida, não vive…[18]

***

Mais para o final dos anos 1910 Lobato pedirá desculpas ao Jeca Tatu pelo fato de que, ao escrever Urupês, não sabia que o homem do campo era doente. Essa retratação virá em 1918, quando o escritor, mais familiarizado com a situação do saneamento básico no país, lançará uma série de artigos sobre o assunto que, ainda naquele ano, voltarão à tona com a publicação de O problema vital, reunindo aqueles artigos.

É possível afirmar, portanto, que, entre 1914 até o final da década, Lobato oscilará perante a figura do camponês e do restante da população brasileira. Em um primeiro momento, enxerga o caipira como o responsável pelas mazelas do campo e o culpa por – agindo como um parasita –, não ter tido capacidade de criar nenhum índice aproveitável de arte e cultura.

Porém, antes de descobri-lo doente e desassistido pelo Estado, Lobato, ao comparar o caipira com o homem das grandes cidades, perceberá que o primeiro, pelo menos, deveria ser reconhecido como defensor das tradições locais, em oposição ao homem das grandes cidades, mais preocupado com a última moda europeia e não com os problemas do Brasil.

O intelectual perceberá a autenticidade do Jeca no mesmo período em que lança uma série de artigos em que se mostra engajado na configuração de uma arte tipicamente brasileira, pautada na representação da geografia física e humana do país. Para Lobato, lutar para que o Brasil ingressasse na grande tradição da arte europeia era aderir ao naturalismo, para ele a única estratégia capaz de introduzir um sotaque característico na arte que o Brasil herdara.

Esta nova postura o levará, em 1919, a publicar um livro com uma série de artigos nacionalistas antes veiculados na imprensa – dentre eles, aquele em que criticava a modernidade que a exposição protagonizada Anita Malfatti trazia[19]. O título do livro, como sabemos, foi: Ideias de Jeca Tatu. Ou seja, se em meados dos anos 1910, Lobato execrava a figura do Jeca Tatu – síntese caricatural do homem do campo brasileiro, responsável pelas queimadas do interior –; mais para o final da década, o criador passa a se identificar com a criatura. As ideias do Jeca tornam-se as suas ideias, uma vez que começa a projetar no Jeca Tatu todo o ideário de criação de uma arte e uma cultura, sem dúvida, de tradição europeia, mas plasmada à realidade física e cultural do Brasil, liberta da produção artística que imperava nas grandes cidades, incaracterísticas.

Creio que com a experiência lobateana mais uma vez se define a divisão que permanecerá no interior da intelectualidade paulista e brasileira em relação à arte e à cultura locais durante boa parte do século XX: tendo como base comum a crença de que éramos herdeiros da tradição artística europeia, por um lado teremos Lobato e seus seguidores, preocupados com a produção de uma arte com sinais precisos de brasilidade; do outro, os “internacionalistas” ou “cosmopolitas”, seduzidos pela tradição e sofisticação da arte e da cultura europeias.

***

A importância do mito do Jeca Tatu será tão grande que, em 1919, o jovem Menotti Del Picchia ganhará reconhecimento ao lançar o seu poema Juca Mulato – uma reinterpretação do Jeca Tatu ou, pelo menos, um poema que apenas pode ter sido concebido após o advento da figura do Jeca.

A obra narra a história de um homem do campo – Juca Mulato – que se apaixona pela filha da patroa. Juca se confunde com a própria natureza da qual é fruto, e sua vida começa a ganhar sentido a partir do amor que dedica à garota branca. Insatisfeito, o protagonista tenta criar condições para realizar o sonho de conquistá-la, mas, no final, se dá conta de que não pode deixar o seu destino já traçado: a vida simples e singela na roça.

Em Juca Mulato, ao contrário do Jeca de Lobato, a figura do caboclo está de novo idealizada, tendo sido configurado como um personagem submetido às circunstâncias da vida no campo. Sua suposta inferioridade (social e racial) em relação à amada se dá por essas “fatalidades” e não pelas circunstâncias sociais e culturais que poderiam ser superadas. Juca Mulato aceita essa determinação do destino, desistindo da mulher amada porque sabe que é “inferior” a ela.

Se o Jeca Tatu parecia alheio à sua própria vida, Juca Mulato demonstra-se consciente de sua inferioridade em relação à garota branca. Por outro lado, ele também se difere do Jeca, na medida em que traz para o âmbito da literatura paulista de meados dos anos 1910, a figura do mestiço entre o negro e branco e não aquela do mestiço entre indígenas e brancos.

Juca Mulato não será o único texto de Del Picchia dedicado ao homem do interior. Se nele, o personagem é pensado como um herói que reprime seus sentimentos, por saber-se inferior, em outros textos o autor será irônico e muitas vezes sarcástico com seus personagens. Menotti percebe-os – como aos indígenas – como símbolos do atraso, figuras que deveriam ser varridas da realidade brasileira, assim como da literatura e da arte.

Em 1920, Del Picchia publica o artigo Porque sou Jeca Tatu, uma referência bem-humorada e cínica ao livro de Monteiro Lobato, recém-lançado, Ideias de Jeca Tatu. No texto, Menotti também encarna o caipira e o compara com os homens que trabalham “como escravos”:

O meu corso é um passeio a pé pela estrada até a venda do Belarmino. O meu clube chic é a roda dos meus companheiros, onde ouço e conto mentiras de caça… Por que, então, hei de estragar a vida, matando-me sobre a enxada, se a mandioca tiro-a com as unhas e se não preciso pagar o gás do meu fogão, que é alimentado com gravetos?

Um dia virá em que a necessidade dos outros, dos bandeirantes novos, disputará a fartura das minhas terras. Nessa ocasião, entrarei em luta.

Por enquanto, faço as três cousas que me ensinou Raimundo Correa: pito, durmo e toco viola. O resto fica para depois…

Estas são, também, umas “ideias de Jeca Tatu”. Como as acho razoáveis, subscrevo-as.[20]

Aí está a ironia: se Lobato buscava fundir-se com o Jeca Tatu, por compreendê-lo símbolo do Brasil tradicional, Del Picchia subscrevia as palavras do Jeca, por – como o personagem –, não gostar de trabalhar.

Mais circunspecto, no artigo seguinte, Menotti chamará a atenção para o fato de que o Brasil vivia então um período de entrelaçamento de raças, “criando o tipo humano novo, temperado pelo clima e pela nossa ambiência física”[21]. Nesse cosmopolitismo que caracterizaria o país, os imigrantes que chegavam de todas as partes encontrariam formas de abrasileirar-se integralmente, tornando-se “extratos vivos da nossa nacionalidade”[22]. Assim:

Hoje em dia é uma ilusão irrisória crer na lenda do caboclo… O caboclo, fundo racial puro, passa a constituir uma vaga ficção literária, que se presta à risota dos chalaceiros ou aos berros dos nacionalistas românticos.

O caboclo de hoje é uma colcha de retalhos de nacionalidades. Há caiçaras, morfológica e psiquicamente caiçaras, oriundos de alemães, de italianos, de espanhóis e até de turcos! Conservam, pela força da hereditariedade ambiente, as tradições, as superstições e o modo de vida caipiras. Essas heranças – contágio psíquico de uma índole – alcançam a língua e a dicção. Há caboclos-italianos que, quer pela tez, quer pela fala, podem ser tomados pelos curiosos como expoentes mais expressivos do nosso tipo nacional […]

[…] Essa mescla heteróclita e tumultuária é, pois, o que devemos chamar atualmente de nossa raça.

[…] Nem por isso o Brasil deixará de ser cada vez mais brasileiro; talvez nunca o fosse tanto como agora que começa a criar sua independência industrial e econômica. Nos últimos ranchos que esboroam agonizam os últimos Jecas[23]

***

Em 1923, Del Picchia lança um livro de contos e crônicas, intitulado O nariz de Cleópatra[24]. Se em Juca Mulato, ele concedeu ao Jeca um mínimo de dignidade, nesses textos, o caipira surge como uma figura tosca. Tendo explicitado sua aversão em relação ao personagem – que jamais deveria contar para as bases da nacionalidade – restava agora espezinhá-lo crítica e ironicamente.

O primeiro texto de O nariz de Cleópatra, Nhô Nito-Mintira, por exemplo, conta a história de Nito, um mentiroso contumaz. Esse dissimulado finalizava todos os seus casos propondo que o ouvinte perguntasse “ao defunto fulano” se o que ele dizia era verdade ou não. O texto, divertido em alguns momentos, apresenta a mentira como um desvio de caráter, uma prova da essência pouco confiável do caipira que, além de não gostar de trabalhar, também não gostava de falar a verdade.

***

Em Uai!, o personagem principal conta que, durante uma viagem ao interior, ao lado de um homem da região que lhe servia de guia, ficou pasmo com a quantidade de terras deixadas sem ocupação. Ele, então, estabelece o seguinte diálogo com Nhô Nico, o “caipira” que o guiava:

Como isto é triste, nhô Nico… Tudo sem plantação.

E ele, como um eco:

É. Tudo sem plantação…

Seguimos. E eu:

– Que terras esquisitas. Isto não dá nada, nhô Nico?

– É como o senhor vê. Não dá nada…

[…]

De repente, como um oásis verde miraculoso, vi no coruto de um morro, um cafezal virente, basto, [ilegível], lindas laranjeiras, afestoadas de frutos, uma roça de milho já colhida, sinais de arrozais vastos, recém-ceifados.

[…]

E perguntei nhô Nico, atrigado:

– Que diabo é isso, nhô Nico. Como é que ali a terra é tão fértil e o cafezal dá que é uma beleza, e atrás tudo é raso, como um campo de maldição?

O homem fez um muxoxo, muito admirado e respondeu, como se dissesse a coisa mais banal do mundo:

– Isso é porque eles prantaro, uai![25]

Um dado interessante é que fica nítido nesse texto como o caipira – que nada planta porque nada faz – começa a ser substituído por um outro tipo de camponês: o imigrante europeu. Esse último transforma a terra em um território de riqueza enquanto o caipira se conforma com a falsa infertilidade do solo. Consciente ou inconscientemente, Del Picchia usa essa estratégia para retirar de cena o caipira, para que novos personagens pudessem protagonizar.

***

Esse mesmo posicionamento fica evidente em outros textos do autor em que ele, passo a passo, segue tentando retirar também a importância do indígena para a formação da população brasileira. No ano anterior ao lançamento de O nariz de Cleópatra, Del Picchia publica um texto em que discute as questões estéticas e etnológicas que afetariam a população e a cultura brasileiras:

A nossa debatida questão etnológica cifra-se num fenômeno único, cada dia mais apreciável: na agonia dos antigos fundos raciais diluídos pela mestiçagem e pela fusão dos elementos em jogo no xadrez étnico da nossa nacionalidade.

O elemento autóctone é hoje apenas uma quase memória; caminha para tornar-se uma vaga e literária mitologia, em que ficarão, como o livro do Edda e o Nibelungen, a Confederação dos Tamoios, de Durão; o lírico Guarani, de Alencar, e o heroico e homérico Y-Yuca-Pirama, de Gonçalves Dias.[26]

Ficam evidentes de novo os ecos do que escrevera Monteiro Lobato em 1914 sobre a questão do indígena e do indianismo. E a “presença” de Lobato na base de seu texto é denunciada pelo autor:

Monteiro Lobato, no seu estilo raseante [sic] e cáustico, constatou a morte dos “Peris” e “Moemas” recortados pelos moldes românticos dos “Abencerrages” chateaubrianescos… Ironizou, com sápida verdade, o indianismo inóxio e postiço de um país de costumes e cultura ocidental, que só conhece índios, caciques, pajés pelas gravuras e notícias dos tratados de antropologia e por umas tangas e potes expostos no Museu do Ipiranga.

Del Picchia, que já havia publicado Matemos Peri! no ano anterior, entende o Brasil como “um país de costumes e cultura ocidental”, ou seja, herdeiro da tradição europeia, o que explicaria porque o brasileiro branco percebia o indígena como um ser exótico. Ele continua:

O caboclo molengo e nostálgico substituiu o índio selvagem e épico. Jeca Tatu desbancou Peri e seus demais irmãos de cocar e tacape. O “grito do nambu”, arrancado ao pio de taquara, substituiu a inúbia guerreira: numa pica-pau trochada transformou-se a lança do aimoré. O caiçara aparvalhado, tintilante [sic] de amuletos e bentinhos, de ventre timpanizado pela anquilostomose [sic], herdou do índio a suserania da terra, como expoente etnológico do nosso fundo racial lídimo[27].

Se o indígena agonizava, o Jeca ia pelo mesmo caminho, cedendo lugar a um novo tipo de brasileiro:

Sob as últimas taperas que desmoronam, pulverizam-se os últimos resquícios dos emboabas e dos mamelucos. A infiltração cosmopolita, tangida pelo moderno espírito industrialista e prático, afugenta e esmaga esses restos de sedimentos raciais numa vitória rápida e definitiva. Não entra mais – como ingrediente químico necessário à fixação do tipo étnico nosso – o sangue aborígene no sangue do novel brasileiro, complexo fruto de uma amálgama de raças. São o clima e o ambiente, o milagre de idioma e o contágio das tradições nacionais, de que se impregnam as levas estrangeiras que aqui aportam, que abrasileiram a nova raça, a qual dá um cunho de profundo espírito nacionalista, quase jacobino, à sua descendência.

É esse entrecruzar de tipos humanos – que são geralmente singenéticos […] – que plasma o expoente novo, isto é, o brasileiro atual, nada parecido com o índio prognata e arisco, nem com o caboclo bronzeado e vadio. Ativo, inteligente, belo o brasileiro atual é, etnicamente, um dos mais expressivos e completos representantes de hodierna raça vitoriosa[28].

Menotti Del Picchia nega ao brasileiro autóctone não apenas o protagonismo étnico, mas também aquele de cunho estético. Para ele, deveremos buscar nas novas levas imigrantes as tradições artísticas que nos faltam, pois:

A atuação estética do aborígene é nula, por um simples fato: porque nunca existiu.

Quando Menés, no Egito, fundou Mênfis, ergueu um grande templo a [ilegível]. Os caldeus, os assírios, os babilônicos, os israelitas, todos os povos, na germinação nebulosa da sua cultura, manifestaram sempre suas instintivas preocupações estéticas. O índio, errante e guerreiro, jamais se preocupou com motivos ornamentais e decorativos; a língua, vivendo pela tradição oral, não deixou gravado num [ilegível], numa escorça de árvore, um rudimento de poema. Nem a tentativa iconográfica da antropomorfização de seus Manitôs, Tupãs, Anhangas tentou ele com a lasca de pedra ou com o buril do osso da rês carneada. Não há, pois, resquícios apreciáveis de arte nos ancestrais do mameluco. E Jeca Tatu, inútil e sem fantasia, não pintou, como os etruscos, os seus potes primitivos, nem entalhou a cabo de faca as trípodes rústicas das suas banquetas[29].

Para Del Picchia, nem o indígena, nem o mestiço – o negro está fora desta discussão – conseguiram produzir arte no país, assim: “A nossa arte é, pois, logicamente, uma representação secular da cultura ocidental mais aprimorada, trazida integralmente nos navios que zarpam do continente europeu, representando as finuras e os requintes do seu pensamento”. E prossegue:

É um erro vulgar o acreditar-se que somos tributários servis da arte francesa, alemã ou italiana, porquanto mesmo essas manifestações culturais, que acusam o sabor dessas origens, são frutos espontâneos da nossa raça, feita de um promíscuo xadrez de raças emigradas.

É possível, entretanto, a elaboração lenta de uma estética nacional, feita do que há de mais cristalino nessa cultura, modificada e remoçada pela atuação dos motivos ambientes. A alma europeia, transplantada para os trópicos, sentirá e realizará com a força poderosa da sua sensibilidade atávica, mas há de fatalmente coar essas emoções através dos influxos do clima e da paisagem. Essa, enfim, será a “verdadeira arte nacional”. Ressentir-se-á da tragédia babélica da diversidade das raças sincretizadas no organismo complexo de cada artista. Terá, pois, um sabor novo, diferente, por ser a irradiação polimórfica de vários temperamentos amalgamados numa sensibilidade e imaginação únicas[30].

***

Dias depois, também no Correio paulistano, Del Picchia aprofunda seu pensamento sobre a “raça” brasileira, enaltecendo os portugueses no processo de colonização. Para ele, nós brasileiros somos o que somos devido aos portugueses que, ‘povo vigoroso e prodigioso que em pouco mais de quatro séculos [ilegível] ao mundo um dos mais pujantes países do universo'”. Citando José Pires do Rio (1880-1950), afirma ainda: “Outras regiões tropicais, com clima inclemente como o nosso, conquistadas por anglo-saxões, germânicos etc., não passam de simples colônias, onde o elemento autóctone e raças consideradas inferiores constituem a parte mecânica do trabalho”.

Não podemos negar que, desde o Brasil colônia – remontando mesmo aos primeiros albores da fixação geográfica das nossas fronteiras – a ação do elemento lusitano foi absorver o aborígene e, pela mestiçagem, pela lenta plasmação da nova raça, destruir mesmo aqueles elementos etnológicos trazidos da África. Essa providencial ação não criou, dentro do nosso organismo étnico, aquelas vincadas barreiras de raças diversas, que facilmente se observam em certos países de colonização ou conquista recentes. E essas raças antagônicas são hoje entraves quase instransponíveis para a formação de um único neótipo humano, motivando verdadeiras perturbações intestinas no plasma étnico dessas nacionalidades.[31]

Após ressaltar que no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos da América – país que admira – não temos o regime de apartheid da população afro-americana, ele afirma:

O Brasil […] é uma obra-prima de colonização e um milagre de progresso. Com tão curto passado, com uma extensão territorial gigantesca, com um clima hostil, com uma ambiência geológica difícil de ser dominada, representava um baluarte quase inacessível.

É mister, pois, que se faça aos portugueses a justiça que merecem. Só uma raça do vigor da lusitana […] era capaz de gerar a [ilegível] titânica dos bandeirantes, ciclópicos semideuses da aurora da nacionalidade, que renovaram as façanhas dos olímpicos companheiros de Jasão e de Hércules {…}

[…] Povo de guerreiros, aventureiros e traficantes, não se limitou à exploração das jazidas de ouro e diamantes, no comércio aventuroso e andejo de mina em mina: estabilizou-se, formou as lavouras iniciais dos engenhos, organizam-se numa sólida contextura político-social, até criar, com uma rapidez pasmosa, uma consciência nacional autônoma da qual resultou a nossa independência política[32].

E não deixa de comparar os portugueses aos antigos romanos que, no passado, dominaram a Europa:

Qual a miraculosa virtude que fez com que se realizassem tais prodígios? A virtude da estirpe. Foi aquela mesma tenacidade construtiva que levou os romanos a desbordarem do Lácio para irem da Bretanha à Bética, da Mauritânia à Mamitânia, por tudo implantando sua língua, suas leis, seus processos agrícolas e sua organização militar e política[33].

Após novamente cotejar o Brasil com os Estados Unidos, o autor termina o artigo:

O Brasil, porém, representa, incontestavelmente, o mais belo padrão das formidáveis e vitoriosas virtudes construtivas da raça latina. Meditadas estas ligeiras notas sobre o milagre brasileiro, poucos, certamente, renovarão a injustiça de se esquecer da magnitude da obra dos portugueses, reeditando um absurdo pessimismo sobre as nossas qualidades raciais, virtudes tão prodigiosas que, sem elas hoje seríamos apenas uma informa colônia tributária de uma decorativa metrópole.[34]

***

Resumindo: Del Picchia parte das considerações de Monteiro Lobato sobre os indígenas brasileiros e sobre o mestiço do indígena com o branco para começar a estabelecer seus próprios parâmetros para pensar a “raça” brasileira e sua produção artística e cultural. Ele aceita a crítica feita por Lobato sobre o indígena, produzida em 1914, mas – apesar do respeito que mantinha pelas ideias do intelectual mais velho –, não se deixa levar por ele, quando Lobato, a partir do final dos anos 1910, concede ao caipira o papel de baluarte da tradição brasileira.

Como lembrou a estudiosa Annateresa Fabris, Del Picchia precisava conectar sua ascendência europeia, latina e italiana, à realidade brasileira. Tal ação seria impossível se, como Lobato, reconhecesse o descendente de indígenas e portugueses como base do homem brasileiro. É por isso que ele supera os mitos do indígena e do caipira para instituir como “novo bandeirante” ao imigrante idealmente atado à origem do Brasil pela latinidade que compartilhava com o português.

Colocando o imigrante e seu filho como os protagonistas do Brasil novo, moderno e cosmopolita, Del Picchia também resolvia outra questão fundamental naquele momento: a especificidade de uma arte brasileira. Para ele era impossível pensar em características específicas da arte produzida no Brasil, uma vez que os fluxos imigratórios rumo ao país ainda continuavam. Assim, e ainda por um bom tempo, a arte que os imigrantes traziam para o Brasil se tornava arte brasileira.

[1] – Este texto serviu de base para a palestra “O BRASILEIRO E OS MODERNISTAS: QUESTÕES SOBRE IDENTIDADE NACIONAL EM MONTEIRO LOBATO E MENOTTI DEL PICCHIA ou DO JECA TATU A NHÔ NITO-MENTIRA: A DESTRUIÇÃO DA IDEIA DO CAIPIRA COMO BASE DA NACIONALIDADE”, ministrada durante o encerramento do III Encontro Nacional de Literatura Brasileira e Sociedade, organizada pela UFPE, UFRPE, UFPB e UFRN (evento online) no dia 10 de novembro de 2023.

[2] – FABRIS, Annateresa. O futurismo paulista. São Paulo: Ed Perspectiva Edusp, 1994.

[3] – Menotti Del Picchia. “Cartas a Chrispim II – Monteiro Lobato”. Correio Paulistano 11 de outubro de 1920. P. 3 IN BARREIRINHAS, Yoshie Sakyama. Menotti Del Picchia, o gedeão do modernismo. São Paulo. Civilização Brasileira, 1983. pág. 159.

[4] – Menotti Del Picchia. “Monteiro Lobato acadêmico”. Correio Paulistano. São Paulo. 14 de julho de 1921 p. 3.

[5] – Menotti Del Picchia. “Ainda Brecheret…”. Correio Paulistano. São Paulo. 21 de abril de 1921, p. 3. IN BARREIRINHAS, … op. cit.p.207,

[6] – Menotti Del Picchia. “Palestra das segundas”. Correio paulistano. São Paulo, 14 de novembro de 1921, p.3 IN BARREIRINHAS, op. cit. p295.

[7] – Menotti Del Picchia. “Matemos Peri!”. Jornal do Comércio, n 83, 23 de janeiro, 1921. P.3. Republicado em Barreirinhas, Yoshie Sakyama, op. cit. p. 194.Mário de Andrade responderá a esse artigo, em “Curemos Peri”, publicado em A Gazeta, em 31.01.1921. (Transcrito em: ALVIM, Fernando J. da Silva e. Mário de Andrade e o romantismo brasileiro.: tradição, imaginário e consciência histórica nacional. São Paulo. Dissertação: FFLCH, 2012 – agradeço à colega Tâmera Abreu pela indicação.) Não é minha intenção aprofundar aqui as ressonâncias do artigo, tanto em relação ao texto que Mário de Andrade publicou contestando-o, quanto em relação a outros tetos em que Del Picchia volta a tratar do assunto. Minha intenção será buscar os “antecedentes” desse artigo em textos de Lobato.

[8] – Idem.

[9] Idem, p. 195.

[10] – LOBATO, Monteiro. Urupês. 15ª. São Paulo: Companha Editora Nacional, 1935

[11] – Idem, p. 13.

[12] – Idem, p.21

[13] – Idem, p,22

[14] – Idem p.23

[15] – Idem p. 24

[16] – Idem, p.24.

[17] – Vale sublinhar que nessa discussão sobre o caipira e – no limite –, sobre o homem brasileiro, o preto é apenas citado em relação à Lei Áurea, sem nenhum protagonismo na formação “racial” do país.

[18] – Idem p.36/37.

[19] – LOBATO, Monteiro. “A propósito da Exposição Malfatti”: São Paulo. O Estado de São Paulo. Republicado como “Paranoia ou mistificação” em LOBATO, Monteiro. Ideias de Jeca Tatu. São Paulo: Edição da Revista do Brasil, 1919. In Ideias de Jeca Tatu. 9ª. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956.

[20] – DEL PICCHIA, Menotti (Helios). “Por que sou Jeca Tatu”. Correio Paulistano. São Paulo. 10 de março de 1920, p. 3. IN BARREIRINHAS p.95

[21] – DEL PICCHIA, Menotti (Helios). “A nossa raça…”. Correio Paulistano. São Paulo.12 de março de 1920, p. 3 IN BARREIRINHAS,

[22] – Idem.

[23] – Idem.

[24]– DEL PICCHIA, Menotti (Helios). O Nariz de Cleópatra. Fantasias e crônicas. São Paulo. Monteiro Lobato & C. Editores, 1923.

[25] – Idem, p. 24.

[26] – Menotti Del Picchia. “O problema estético em face do fenômeno étnico paulista”. Correio Paulistano. São Paulo. 7 de setembro de 1922.p.2.

[27] – Idem.

[28] – Idem.

[29] – Idem.

[30] – Idem.

[31] – Menotti Del Picchia. “Coisas brasileiras”. Correio Paulistano. São Paulo. 24 de outubro de 1923 p,3,

[32] – Idem.

[33] – Idem.

[34] – Idem.

50 anos de conquistas

Raquel Arnaud, no vão do MASP, em 1983. Crédito: Arquivo pessoal
Raquel Arnaud, no vão do MASP, em 1983. Crédito: Arquivo pessoal

Talento, perseverança e atitude marcam a história de Raquel Arnaud, uma mulher determinada, que na década de 1970 rompe a arrogância do mundo masculino do mercado de arte para tornar-se uma das galeristas brasileiras mais bem-sucedidas dos últimos 50 anos.

Raquel nasce em Guaratinguetá, onde faz o primário, e aos 10 anos muda-se com a família para São Paulo, cidade promissora que já naquela época mantinha a Bienal de São Paulo, a segunda manifestação de arte do gênero mais importante do planeta.

Nesse novo cenário, ao mesmo tempo em que cursa o colegial, frequenta o Museu de Arte de São Paulo. “Esse contato com o MASP foi determinante para mim. Lá frequentei as aulas de história da arte com o professor [Wolfgang] Pfeiffer, que me abriu os olhos para o tema”. Em 1954 Raquel ingressa na Escola Livre de Sociologia e Política, experiência que ela rejeita depois de concluído o curso porque preferia a arquitetura, que sempre considerou algo maravilhoso. Com certeza esse aprendizado no campo sociológico amplia sua narrativa e a ajuda forjar o forte caráter que tem como galerista.

Pouco depois ela entra para a família Segall, ao se casar com Oscar, filho do pintor modernista, vai morar com ele na casa projetada pelo arquiteto Gregori Warchavchik, onde hoje funciona o Museu Lasar Segall. “Apesar de breve, o período que convivi com o casal, Lasar e Jenny, foi fundamental para mim, especialmente pelo relacionamento com dona Jenny. Um dia ela me pediu para ajudá-la a organizar os quadros de Lasar Segall (1891-1957) que iriam para uma exposição itinerante no exterior, logo depois da morte dele”.

Em 1968 Raquel se separa de Oscar, trabalha com Alcântara Machado, conhecido organizador de feiras têxteis com desfiles de moda. “Trabalhamos juntos algum tempo e, quando o professor Pietro Maria Bardi, diretor do MASP, soube que eu estava envolvida num setor comercial, não gostou. Ele me disse: “Não quero você trabalhando com pessoas de negócios. O meu museu precisa de alguém que conheça Van Gogh”. Com isso Raquel entra para a equipe do MASP e o professor Bardi foi muito receptivo com ela. “Aos poucos fui assumindo alguns papéis dentro do museu, inclusive nas exposições”.

A Lina Bo Bardi tinha chegado da Bahia e Raquel trabalhou com ela. “Foi um ótimo aprendizado, a gente foi fazendo lentamente um trabalho muito bonito, porque a Lina pertencia à vanguarda da época. Era uma pessoa que já pensava diferente do Bardi, uma arquiteta criativa em todos os sentidos”. Basta lembrar que Unidade Tripartida, obra de Max Bill premiada na 1ª Bienal de São Paulo em 1951, já fora exposta no MASP em 1947, quatro anos antes da Bienal, quando a Lina dava aula sobre Bauhaus, movimento ao qual o artista suíço estava engajado.

Raquel tinha planos pessoais fora dos limites do museu e em 1973 deixa o MASP e se une a Mônica Filgueiras, uma jovem de energia contagiante, que ela conheceu em sua passagem pela casa de leilões Collectio. Juntas abrem o Gabinete de Artes Gráficas, na Haddock Lobo, trabalhando com papeis, gravuras e desenhos. Em paralelo, Raquel também atuava na Arte Global, galeria que pertencia à Rede Globo.

Essa experiência foi expressiva naquele momento, mas ela perseguia uma carreira solo, então em 1980 anuncia sua nova galeria, o Gabinete de Arte Raquel Arnaud, na Av. 9 de julho. “Foi um momento muito bom para mim quando passei a expor artistas contemporâneos importantes”. O dinamismo estético dos geométricos a contamina e o impulso teórico convincente de Willys de Castro a convence e abraçar o movimento artística e comercialmente. Afinal, toda vontade de vencer tem que identificar-se com algo forte. Assim, ela se acerca da obra de Sérgio Camargo, Franz Weissmann, Tomie Ohtake, Willys de Castro, Hércules Barsotti, Arthur Luiz Piza, Anna Maria Maiolino, Leon Ferrari, Carmela Gross, entre tantos outros.

Em 1977, lança um dos marcos de seu trabalho intelectual, a obra Caixa Preta, com desenhos de Julio Plaza, artista espanhol radicado em São Paulo e poemas do escritor Augusto de Campos, recitados em disco por Caetano Veloso. Seu caminho construído com elenco de proa, se consolidara. Os anos seguintes são de sucesso com muitas exposições e debates. Em 1980 incorpora, como dimensão de suas referências, uma safra de jovens artistas já conhecidos no mercado. “Foi quando passei a trabalhar com José Resende, Waltercio Caldas, Tunga, entre outros talentos”.

Todo profissional tem sempre como referência um personagem que admira, com Raquel não foi diferente. Como muitos galeristas internacionais ela se encanta com o trabalho da lendária Denise René, alter ego das artes em Paris nos anos de 1950/1960. A grande dama foi uma das apoiadoras da arte cinética, fato que influenciou Raquel. Sob o carisma da amiga exibe obras de dois expoentes da arte cinética, os artistas venezuelanos Cruz-Diez e Jesus Soto.

Um dos projetos que Raquel tem muito orgulho é a criação do Instituto de Arte Contemporânea (IAC). Com ele, ela define um espaço social ampliado. “A ideia é a disponibilizar para a pesquisa uma documentação sobre a obra de artistas brasileiros, além de promover seminários, curso e exposições”.

Hoje, com sua galeria instalada em um agradável espaço na Vila Madalena, ela mantém seu modelo conceitual de lidar com a arte. Continua a construir pontes com o rigor formal nas escolhas de obras e artistas, especialmente aqueles ligados ao geométrico, sem deixar de lado algumas fantasias reparadoras trazidas por outras vertentes menos ortodoxas.

EXPOSIÇÃO ILUSTRA UM PROCESSO

Um longo caminho marca a história da Galeria Raquel Arnaud que, por 50 anos, vem contribuindo para a arte contemporânea de forma singular, como atestam as mais de 500 exposições realizadas entre 1974 e 2023. A recém-aberta coletiva Galeria Raquel Arnaud – 50 anos, com a curadoria de Jacopo Crivelli Visconti e da curadora adjunta Marina Schiesari, traz um caráter documental ao registrar todas as mostras e os artistas exibidos pela galerista ao longo dos anos.

Embora o circuito de arte enfrente hoje um público emancipado, que entende muito mais de arte do que há 50 anos, Jacopo Crivelli Visconti optou por uma exposição quase pedagógica em que o espectador pode acompanhar, sem susto, o percurso de uma produção voltada praticamente ao abstracionismo geométrico.

O que parece desacordo é um ganho. A mostra não foi pensada apenas para experts, mas desenhada especialmente para o visitante ativo e participativo, disposto a conhecer artistas que hoje em dia seria difícil associar a sua passagem pela galeria. Fica latente na montagem que a preocupação principal da galerista, em todo seu percurso, foi manter a preservação e a catalogação das obras, principalmente nos últimos 20 anos. A exposição constitui-se como documento vivo sobre um projeto coerente que demostra como Raquel defendeu a classe artística. Um dos exemplos é a criação do IAC – Instituto de Arte Contemporânea criado para manter as obras dos artistas protegidas.

A ideia da exposição nasce para celebrar a Raquel galerista o que Jacopo garante ter seguido estritamente. A coletiva tenta ser objetiva, imersiva e funcional ao mergulhar no arquivo que se converte em material documental, com o qual se criou um discurso expositivo com diversas linguagens experimentadas por grande parte dos artistas brasileiros de renome. Por trás de cada registro das obras há um número considerável de fotografias, cartas, catálogos, convites de exposições.

A escolha da linha do tempo como processo expositivo deu um caráter singular à mostra. Nela estão todos os títulos de todas as exposições realizadas ao longo da trajetória de Raquel Arnaud, além de todos os artistas que expuseram nesses 50 anos. Raquel lamenta que, de alguns deles ela não conseguiu a documentação completa. “No início de meu trabalho como galerista praticamente não existia a prática de catalogação, assim parte do que foi exposto naquela época estava na minha cabeça”.

A coletiva reúne documentos importantes como os textos de críticos, artistas e curadores que passaram pela galeria. Jacopo ressalta que justamente tudo isso compõe a segunda parte do projeto, que é a publicação de um livro, uma compilação de textos que deve sair no final da mostra, em maio próximo, quando se comemoram de fato os 50 anos da galeria. “Também queremos ilustrar a edição com imagens da exposição. A publicação será um contraponto à mostra e vai ser feita a partir de uma grande seleção porque Raquel trabalhou, com a maior parte dos artistas, críticos e curadores brasileiros, de vários períodos”. Ele considera essa compilação até mais importante do que a exposição.

A coletiva utiliza a linha do tempo, com opção de seriação cronológica, que no início do percurso funciona no sentido anti-horário. Os documentos mais antigos, a partir de 1974, estão perfilados sobre a parede e dão a volta no piso térreo. Seguem pela escada que leva o visitante ao piso superior e, neste ponto, é adotado o sentido horário que se desenvolve até chegar ao ano de 2023. Na verdade, esses dois sentidos se encontram diante das obras de Arthur Piza (1974) e de João Trevisan (2023), numa trama densa de continuidade, com um trabalho na frente do outro. Como fita de Möbius, que se refere ao símbolo do infinito, as obras estão assentadas em um traçado sem começo nem fim.

No processo da dinâmica expositiva, “é praticamente impossível fazer uma exposição com todas as obras, então a tentativa também foi manter um certo equilíbrio”, como observa Jacopo. O que une grande parte desses trabalhos é o olho da imaginação, a matriz de uma paixão geométrica que Raquel abraçou por influência de Willys de Castro, no início de tudo. No elenco estelar, há artistas que foram fundamentais para ela no plano pessoal como Hercules Barsotti e Sérgio Camargo, dois amigos que ela considera quase irmãos. Num exercício dentro do processo conceitual, aparecem artistas que foram simbólicos nessa trajetória e agregados por analogias de conceitos. Raquel cita Regina Silveira que se abriu para várias discussões. Há ainda tantos outros como Nuno Ramos, Carlito Carvalhosa, e Frida Baraneck.

A flecha atravessa décadas, aponta para a tendência internacional do mercado sempre tensionada pelo novo, como atesta a obra do Tunga que dialoga simultaneamente com diversas linguagens. “Há obras que foram inscritas na galeria, depois foram embora, agora voltaram e, na medida do possível, a gente conseguiu incorporá-las”, comenta Jacopo. Com montagem atípica, os trabalhos instalados esparsamente pela galeria estão contextualizados com os documentos expostos na parede. Para o curador, o mais importante da mostra está justamente na parede.

Há destaques históricos da década de 1970 quando tudo fluía com rapidez. Jacopo lembra que a média das exposições desse período era de três semanas, e ainda com catálogos caprichados, como os de Antônio Manoel e Regina Vater. “O clima do mercado de arte paulistano daquela época era mais lúdico e menos competitivo”, acrescenta Raquel.

Com o lançamento do livro, novas releituras sobre a arte geométrica e seus desdobramentos devem colocar na pauta personagens emergentes, confrontações, conquistas e reflexões sobre as origens desse movimento, que tem alguns protagonistas brasileiros e hispano-americanos reconhecidos internacionalmente.

Sem açúcar, com arte
Sem açúcar, com cultura
Sem açúcar, com afeto

Bruna e Ricardo Pessôa de Queiroz
Bruna e Ricardo Pessôa de Queiroz

Em Pernambuco, a apenas uma hora e meia de Recife, por uma estrada surpreendentemente bem asfaltada, o visitante tem acesso à Usina de Arte. Projeto concebido em 2015, por Bruna e Ricardo Pessôa de Queiroz, ela se encontra num espaço de 130 hectares de terreno, dentro de uma área total de quase 7000 hectares, na Zona da Mata Sul, em Água Preta. 

O projeto traduz o desejo do casal e de sua família de revisitar a história da Usina Santa Terezinha, cuja operação começou em 1929, sob a condução do bisavô de Ricardo, José Pessôa de Queiroz, e que chegou a ser uma das maiores produtoras de álcool e açúcar no Brasil nos anos 1950. Em 1998, a usina encerrou suas atividades de moagem. 

Após quase 100 anos, ressignificar e reconstruir esse espaço teve e tem como objetivo, não uma nova iniciativa de produção rural, mas sim uma intervenção no território, transformando-o num lugar dedicado à natureza, à produção de arte contemporânea nacional e internacional, à cultura, à educação e à oferta de novas possibilidades de trabalho, educação e inclusão da comunidade de quase 6000 pessoas, que residem no seu entorno. 

Parte do antigo campo de pouso e das linhas férreas se transformaram num jardim de quase 40 hectares, que circunda três lagos artificiais, projetado pelo paisagista Eduardo Gomes Gonçalves, em meio ao reflorestamento com cerca de 10 mil plantas de aproximadamente 600 espécies. Antigos escritórios se transformaram em uma ampla biblioteca onde também funciona a recém-inaugurada Fab Lab Mata Sul – Usina de Arte, a Escola de Música e o Centro de Conhecimento Público com mais de 5 mil títulos,  terminais de computadores conectados à internet, impressoras em 3D e cortadora a laser para projetos da comunidade.

A ideia de museus abertos de arte contemporânea ao ar livre e a reocupação de territórios começou, no caso do Brasil, em 2006, com um enorme investimento do empresário e colecionador Eduardo Paz em Inhotim, Minas Gerais, onde foram criados um exemplar Jardim Botânico e diferentes Pavilhões para exposições de artistas renomados, junto a sua coleção. Após muitos anos é uma referência internacional.

No caso da Usina de Arte, o empreendimento visa ocupar o espaço desenvolvendo ou adquirindo obras que conversem com a história e a natureza do lugar. Hoje são mais de 45 obras já implantadas, outras foram desenvolvidas como sites específics em residência artística, e outras, adquiridas especialmente para o lugar. 

Uma das primeiras iniciativas, em 2015, foi a intervenção do artista (e curador à época) José Rufino. Num dos hangares abandonados Rufino criou várias obras utilizando sucatas, correntes, funis, peças mecânicas, utensílios ou mobiliário de época buscando lembrar a histó20ria da usina, criando uma espécie de arte-útil-memória.

Matheus Rocha Pitta inaugurou em 2022 Um Campo da fome, uma imensa intervenção na paisagem. A instalação ocupa uma área de 700 metros quadrados com uma horta focada em vegetais típicos do Nordeste, como o caju, pinha, abacaxi, milho, mandioca, confeccionados com barro. A obra remete à destruição do meio ambiente, à fome e ao desperdiço. Rocha Pitta também traz à tona a descrição de um campo da fome localizado ao leste da Acrópole, na Grécia Antiga. 

Segundo a lenda, ninguém poderia adentrar aquele terreno onde a fome estava confinada. Se alguém adentrasse, a fome se espalharia pelo mundo. “Minha ideia foi desenvolver um trabalho como contenção da fome, um lugar quase sagrado, para deixar que a falta de comida permanecesse ali, congelada”. A horta é composta por 30 canteiros onde estão dispostos legumes, frutas ou raízes da região. “Ao todo, a instalação reúne cerca de nove mil peças produzidas por Domingos, artesão de Tracunhaém, cidade conhecida pelo trabalho com cerâmica”.

Átrio, uma grande réplica do pátio interno da casa principal, projetado pelo artista Marcelo Silveira numa residência artística realizada através de um convênio com o Museu de Arte Aloísio Magalhães (Mamam), deixa  apenas tijolos em volta e mantém todas as características da passagem do tempo nas paredes, nas suas colunas e pisos, Como se tivesse sido arrancado do privado e transformado em público. Com esta ideia, o átrio é um lugar de encontros, saraus e leituras. 

Em 2021, com a entrada de mais um colaborador na equipe, o curador Marc Pottier, a Usina de arte adquire a paradigmática obra de Alfredo Jaar, Claro-Escuro, 2021, NEO, instalada num dos prédios construídos no século passado. Jaar, artista, arquiteto e cineasta chileno que mora em Nova York, disse, durante a apresentação da obra para o público: “Este lugar não está vazio, está cheio de fantasmas da história, do Brasil e do mundo”. Sua obra – um enorme neón com a frase, do pensador e político italiano Antonio Gramsci, “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros” – renova a ideia do que se repete na história, e de que a cada diferente momento nos surge um novo desafio. 

Em janeiro de 2024, Bruna e Ricardo inauguram duas obras importantíssimas para o parque. Fall of the Giants, do casal de artistas e escultores franceses Anne e Patrick Poirier, pesquisadores da história europeia mediterrânea e das civilizações anteriores. Eles nasceram durante a Segunda Guerra Mundial e acompanharam a destruição de cidades durante os bombardeios assim como suas consequências. Morando no sul da França, tiveram sempre muita proximidade com ruínas e restos de construções romanas que lá permanecem, já que a Provença chegou a ser uma colônia romana. 

“Nosso trabalho preocupa-se com a ideia de fragilidade. Seja ela da memória, das culturas, da natureza ou da humanidade. Para expressar esse sentimento, usamos todos os tipos de materiais, imagens e metáforas. E entre as nossas metáforas favoritas estão a das ruínas. Arquiteturas ou esculturas quebradas são as imagens mais evidentes dessa fragilidade”, explicam Anne e Patrick Poirier. Outra marca do trabalho do casal é a presença de analogias com mitologias greco-latinas. Fall of the Giants ”remete ao mito grego de uma guerra entre deuses e gigantes, onde um grande olho de mármore e esculturas são atingidas por poderosas flechas de aço, numa alegoria universal da luta entre o homem, seus deuses e suas crenças, o tempo e as dificuldades”.

Ainda nesta primeira semana de fevereiro, a artista sérvia Marina Abramović inaugura no parque sua primeira obra aberta ao público no Brasil. A obra, Generator alude a ideia de um enorme gerador de energia. Nasceu da experiência vivida pela artista em uma performance na Muralha da China, em 1988, e traz um muro com 25 metros de comprimento, 3 de altura e 2,5m de largura, no qual estão aplicados 12 conjuntos com três almofadas de quartzo rosa -vindas de Minas Gerais- conhecidas por transmitirem calma e clareza,  onde o público pode encostar a cabeça, o coração e o estômago.

Para a artista, convivemos paradoxalmente, num mundo onde os indivíduos, ao mesmo tempo que estão ligados por infinitas conexões digitais, carecem de uma ligação genuína consigo mesmos, com seus pares e a natureza.

“Como em outras oportunidades, o trabalho de Marina Abramovic foi um processo de costura com a história da Usina de Arte, da comunidade que está ao lado, e de Pernambuco. Independentemente de ser uma artista internacional, Marina dedicou seu tempo e sua energia para entender quem somos, quem é a Usina de Arte e como contribuir com a trajetória do parque. Ela apresentou quatro projetos e, no final, a obra em questão foi definida. Uma obra que conversa com a memória do lugar, com a história e com o Nordeste do Brasil”, avalia o curador da Usina de Arte, Marc Pottier.

Abramovic, que se revelou internacionalmente com sua participação individual em performances, como a que apresentou no MoMa, The Artist is Present (2010),  trabalha com o conceito que chama de “objetos transitórios”. Por meio deles, estimula o público a dar um passo além e se tornar parte ativa do trabalho, se transformando em “experimentador” dos objetos e criando o fazer artístico em conjunto com ela.

Desde outra perspectiva, para Bruna Pessôa de Queiroz, houve neste convite a intenção – assim como na oportunidade da inauguração da obra Diva (2020), da artista Juliana Notari – de trazer para o parque uma forte visão do lugar que a mulher vem adquirindo na cultura contemporânea, e a importância da força que ela imprime a seus sonhos.

A Usina de Arte tem tudo para se transformar em outro dos destinos nacionais e internacionais preferidos pelo público. O próximo objetivo é criar uma série de equipamentos capazes de receber os visitantes e tornar a experiência tão agradável quanto o lugar. 

Bienal de Veneza anuncia artistas participantes de sua 60ª edição

Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Veneza. Foto: Mauricio Jorge
Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Veneza. Foto: Mauricio Jorge

Curador da 60ª Bienal de Veneza, Adriano Pedrosa revelou nesta terça-feira (31) seus planos para a exposição, que terá início em abril. Com um total de 332 artistas – contra 213, em 2022 –, a principal mostra internacional, intitulada Stranieri Ovunque – Estrangeiros em todo lugar, acontece em um mundo “repleto de crises relacionadas com a circulação de pessoas através das fronteiras”, segundo Pedrosa.

Para o curador, o título também expressa as “diferenças e disparidades condicionadas por [questões como] raça, sexualidade e riqueza”. Ele acrescentou que suas próprias experiências estão refletidas no tema, por ter vivido no exterior e se identificar como “o primeiro curador abertamente queer [da Bienal]”.

A lista de artistas selecionados revela uma presença significativa de brasileiros, entre indígenas, estrangeiros naturalizados, como Claudia Andujar, e grandes nomes do modernismo, a exemplo de Tarsila do Amaral. A participação de artistas indígenas, ressaltou Pedrosa, será “emblemática”. O coletivo Mahku, oriundo da fronteira entre Brasil e Peru, pintará um mural monumental na fachada do Pavilhão Central do Giardini. No Arsenale, o coletivo Mataaho, da Nova Zelândia, mostrará uma grande instalação.

Cartaz da 60ª Bienal de Veneza
Cartaz da 60ª Bienal de Veneza

De modo geral, o elenco de selecionados mescla artistas emergentes, em meio de carreira ou já estabelecidos – entre eles Beatriz Cortez, Simone Forti e Teresa Margolles – com um grande número de nomes históricos conhecidos, assim como artistas recentemente falecidos – a exemplo de María Izquierdo, Frida Kahlo, Wifredo Lam, Judith Lauand, Tomie Ohtake, Diego Rivera, Joaquin Torres-García e Rubem Valentim.

De modo similar à edição de 2022, a mostra será dividida em duas partes: um Nucleo Contemporaneo, em que se destaca a participação de artistas queer – como Érica Rutherford, Isaac Chong Wai, Violeta Quispe, Louis Fratino e Dean Sameshima, além de uma sala dedicada à “abstração queer”, com obras da chinesa Evelyn Taocheng Wang – e um Nucleo Storico, para obra contemporânea e histórica, respetivamente – uma seção com trabalhos de artistas do século XX da América Latina, África, do mundo árabe e da Ásia, datadas de 1905 a 1990.

O atual presidente da Bienal, Roberto Cicutto – que será substituído por Pietrangelo Buttafuoco, jornalista e autor de direita, indicado pelo ministro da Cultura da Itália, e cujos livros incluem uma biografia de Silvio Berlusconi – ressaltou a dimensão política da mostra. Segundo ele, a última edição teria sido “profética, tendo em vista os trágicos acontecimentos dos últimos quatro anos”, como a invasão russa na Ucrânia, o ataque terrorista do Hamas e a guerra imposta por Israel à Faixa de Gaza. A Bienal é um “ponto de vista privilegiado [a partir do qual se] pode fazer a curadoria do mundo”.

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Um artista lapidado por migrações, memórias afetivas e autoconhecimento

Sem título (2023), Rafael Pereira. Foto: João Liberato
Sem título (2023), Rafael Pereira. Foto: João Liberato

Os portraits de olhos expressivos são uma marca da produção de Rafael Pereira, que até o dia 20 (sábado) apresenta sua primeira individual na Galeria Estação, em São Paulo. Com curadoria de Tiago Sant’Ana, Lapidar imagens reúne 20 óleos sobre tela do pintor paulista, cujas obras dialogam com a estética modernista. “Se você olha os fundos dos trabalhos dele, você vê Tarsila, Segall, Guignard, Portinari, Di. E sei que isso é espontâneo na prática dele. Eu não gostaria se não o fosse”, afirma a galerista Vilma Eid, em entrevista à arte!brasileiros. “Vejo que ele pesquisa muito em livros de arte. Mas o resultado não é uma reprodução de sua pesquisa, ele remete ao programa da galeria, em que apresentamos os não eruditos”.

A trajetória sinuosa de Rafael Pereira é uma chave importante para compreender a sua produção, que inclui ainda paisagens e naturezas mortas. Nascido em 1986, na capital paulista, trabalhou na adolescência, em Teófilo Otoni (MG), com a lapidação de joias preciosas, ofício que serviu de inspiração para o título de sua exposição. Na infância, conta ele, mesmo não tendo contato com obras de arte em sua casa, já esboçava interesse pela pintura e por desenhos. “Minha mãe e os meus familiares sempre falavam que eu gostava de ter contato com materiais artísticos”, diz.

O primeiro empurrão teria vindo em 2001, quando ganhou tintas e papeis do colecionador Torquato Sabóia Pessoa e de sua mulher, a ceramista Claudete Guitar. Sua mãe, Maria do Carmo Alves Jardim, trabalhava como funcionária doméstica para o casal. E, curiosamente, Pessoa havia sido sócio de Vilma na primeira galeria que a marchand teve, ao lado ainda de Paulo Vasconcellos. “Torquato sempre falava em apresentar o Rafael a mim, mas o tempo passou, e isso nunca aconteceu”, lembra Vilma. Não seria a única coincidência.

Em 2008, Pereira deixou a lapidação e passou a se dedicar à sua produção como artista, que vendeu por 13 anos na Rua Augusta, na Avenida Paulista e na Praça da República, entre outras via da cidade. Na Rua Teodoro Sampaio, perto da Praça Benedito Calixto, vendera há cerca de dez anos uma obra para o colecionador Edmar Pinto Costa. Foi por meio dele e da artista plástica Germana Monte-Mór que Vilma Eid foi finalmente apresentada ao artista, há cerca de dois anos.

Em 2013, Pereira começou uma série de viagens pelo Brasil, sempre vendendo suas obras nas ruas. Esteve em Novo Airão (AM), em Ouro Preto (MG), no Rio de Janeiro (RJ) e em Pontal do Paraná (PR), até voltar a se estabelecer em São Paulo, em 2018, em Caraguatatuba, no litoral norte do estado, onde mora atualmente. Com o confinamento durante a pandemia, em 2020, teriam surgido as primeiras naturezas mortas e paisagens. “Foi a partir desse momento que eu comecei a resgatar minhas memórias afetivas e soltei meu imaginário dentro da pintura”, conta Pereira.

A exposição traz uma dessas memórias afetivas do pintor: uma paisagem verde, uma colina salpicada por moradas e outras construções, que ele via desde sempre da janela de sua casa, na infância, e que ele pintara a partir de uma fotografia guardada por sua mãe. Seus retratos, no entanto, são geralmente pintados de memória. E mais recentemente o pintor procurou retratar mais corpos negros, consciente da invisibilidade a que são sujeitos, e também o resultado de um processo de autorreconhecimento.

Em sua prática, Pereira costuma mesclar e acrescentar novas técnicas. Começou com a tinta acrílica sobre papel, incorporou o giz pastel oleoso e a nanquim, até chegar aos óleos sobre tela presentes na individual. “Minha pintura está sempre em transformação, e eu não tenho medo de usar materiais diferentes”, diz.

Há cerca de dois anos, Pereira foi finalmente apresentado a Vilma Eid. “Combinamos que faríamos a exposição, mas antes daríamos um tempo de amadurecimento, tanto na  relação com a galeria, quanto com esse sistema de arte com que ele nunca trabalhou. Porque às vezes é algo assusta e bloqueia o artista”, diz a galerista. “Eu tinha medo de que o interesse por parte da galeria provocasse uma corrida por produção. Mas isso não aconteceu. Nunca o vi trazer um número grande ou pequeno de trabalhos. Era sempre a mesma quantidade de telas, o que mostra que ele tem uma rotina de trabalho constante.”

O amadurecimento envolveu também um curso online – a pandemia ainda empunha restrições – com o pintor Paulo Pasta. Segundo Pereira, nas aulas com Pasta vieram dicas sobre luz e composição que foram incorporadas a seu trabalho. “Foi uma orientação que ele me deu que eu levo até hoje”, afirma o pintor.

Ao longo desses dois anos, a Galeria Estação não guardou os trabalhos de Pereira. “Fomos mostrando, e não houve uma pessoa sequer que visse e não tivesse gostado. Todo mundo gosta muito. Eu brinco inclusive que ele é vendedor. Foram mais de 20 trabalhos vendidos”, conta a galerista.

A galerista destaca ainda que os trabalhos de Pereira trazem uma “poética singular”, que “reside na alma dele”. “Em suas obras isso é algo mais perceptível nos retratos, principalmente nos rostos. E na maneira como ele contextualiza seus personagens, estejam sentados, olhando na janela, pescando. Ele sempre tem uma narrativa”, diz Vilma. “Esse é o trabalho de que gosto de fazer: conhecer estes jovens, que são talentosos, mas ainda não tiveram oportunidade e dar a eles uma chance. E assim foi com o Rafael.”

Pretos & prósperos: na Secult de Salvador, Pedro Tourinho quer ir além da visibilidade da cultura afro

Integrante do Bloco Afro A Mulherada. Foto: Luan Teles.
Integrante do Bloco Afro A Mulherada. Foto: Luan Teles.

Prestes a completar um ano de mandato à frente da Secretaria de Cultura e Turismo (SECULT) de Salvador, Pedro Tourinho já começa a vislumbrar os resultados dos desejos ou impulsos que o levaram assumir o cargo, ainda no auge de uma carreira de ímpar capilaridade: nascido na capital baiana, formado em comunicação social, é um especialista em entretenimento e mídia. Já foi empresário de, entre outros, a cantora Anitta. É investidor e advisor de startups. Em 2019, lançou o livro Eu, eu mesmo e minha selfie, obra que fala sobre imagem pública.

Nada disso, porém, ergueu-se sobre os desafios – e os desejos – que ele colocara para si ao aceitar o cargo: finalmente inaugurar o Museu da Cultura Afro-Brasileira (Muncab); investir na sustentabilidade dos Blocos Afro de Salvador, e criar um programa municipal de audiovisual. Todas as ações, obviamente, refletem um objetivo de reparação, que vai bem além da folclorização da Cidade da Bahia e de suas gentes. Para Tourinho, a gente (preta) de Salvador não quer apenas a diversão e arte de que é, ressalta-se, protagonista nesta cidade, em que mais de 80% da população é afro-descendente. Quer renda, quer a devida prosperidade.

“Em Salvador, o maior vetor econômico da cidade é o turismo, que está diretamente ligado à cultura. Quem vem aqui, vem para viver a cultura da cidade”, assevera o secretário. “E a identidade dessa cultura é negra. Por que, então, os negros não se beneficiam economica e politicamente disso como deveriam?”, indaga Tourinho, em entrevista à arte!brasileiros.

Pedro Tourinho, secretário de Cultura e Turismo de Salvador. Foto: Luan Telles
Pedro Tourinho, secretário de Cultura e Turismo de Salvador. Foto: Luan Teles

Ao assumir a secretaria, Tourinho partiu de uma obviedade – seria um contrassenso competir com a sazonalidade da programação cultural de Salvador. Fossem as festas juninas, hoje inseridas em grandes shows que ultrapassam a tradição do forró para incorporar manifestações musicais de grande parte do país, em especial do universo da música sertaneja. Ou as comemorações dezembrinas, como o Festival da Virada pré-Réveillon, que, por sua vez, antecede, as Festas de Largo, cujos ápices são a Lavagem do Bonfim (janeiro) e a Festa de Iemanjá (fevereiro). Todas realizadas em antecipação ao Carnaval, diga-se de passagem.

A solução foi criar uma “nova sazonalidade”, com o Novembro Salvador Capital Afro. Suas vivências como soteropolitano e suas experiências no mundo do entretenimento e da cultura, no Brasil e fora dele, deram um tempero singular à programação. Com mais de 23 projetos, o calendário inédito incluiu, entre outros, desfiles de moda (Afro Fashion Day), festivais de empreendedorismo e inovação negra (Salvador Capital Afro) e o Liberatum, um evento internacional humanitário, que já passou por 13 países, incluindo Reino Unido, Índia, México, EUA, Filipinas, Turquia.

Em Salvador, o Liberatum reuniu lideranças negras do mundo das artes, tecnologias e dos negócios. Entre as personalidades presentes estavam as atrizes Viola Davis, Angela Bassett e Taís Araújo; o intelectual nigeriano, e vencedor do prêmio Nobel de literatura, Wole Soyinka; e a ministra da Cultura, Margareth Menezes, entre outros.

O Novembro Afro apresentou também o Festival Internacional do Audiovisual Negro do Brasil, com convidados internacionais que debateram a cadeia produtiva do audiovisual com produtores da capital baiana. O mês festivo marcou também a tão esperada reabertura do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), uma das prioridades de Tourinho a assumir o cargo na SECULT.

“Eu tinha três objetivos iniciais: um deles era não ia perder a viagem. Eu iria entrar para, ações mais urgentes abrir o Muncab. Inicialmente, a gente pensava em fazer uma instituição nova, do zero, procurar um espaço. Até separamos investimento para isso. O Munca vinha num imbróglio há muito tempo, quase 20 anos”, conta o secretário.

Ao mesmo tempo, conta Tourinho, ele soube que a gestão da associação por trás da instituição havia mudado, e duas diretoras teriam saneado todas as pendências jurídicas e financeiras. “Então, o prefeito e eu entendemos que não era o caso fazer de se fazer um museu novo. A gente tinha de fortalecer o que havia. Isso foi em abril e reabrimos o museu em novembro com a exposição Um Defeito de cor“, conta.

O segundo objetivo, diz Tourinho, foi investir na sustentabilidade dos Blocos Afro de Salvador, “colocá-los também num lugar de protagonismo no cenário cultural”. Tourinho fortaleceu o apoio às agremiações e, atualmente, em todos os dias da semana há um Bloco Afro se apresentando no Centro Histórico, para os turistas e a população da cidade.

“A gente também aumentou nossos investimentos durante o Carnaval, reformamos a sede do Malê Debalê, em Itapuã, e vamos fazer o mesmo com o Ilê Aiyê, um prédio no Curuzu que está há quase uma década sem obras”, conta. “Vamos climatizar, fazer com que a escola volte a funcionar, que tenha espaço para a capacitação da comunidade. E em 2024 vamos ter um Carnaval em homenagem aos 50 anos dos Blocos Afro”.

A segunda coisa foi investir na sustentabilidade dos Blocos Afros de Salvador, colocá-los também num lugar de protagonismo no cenário cultural. Conseguimos aumentar o apoio, então hojem todos os dias da semana há um Bloco Afro se apresentando no Centro Histórico para os turistas e a população da cidade. A gente também aumentou nosso apoio durante o Carnaval, reformamos a sede do Malê Debalê, em Itapuã, e vamos fazer o mesmo com o Ilê Aiyê, um prédio no Curuzu que está há quase uma década sem obras. Vamos climatizar, fazer com que a escola volte a funcionar, que tenha espaço para a capacitação da comunidade. E em 2024 vamos ter um Carnaval em homenagem aos 50 anos dos Blocos Afros.

O terceiro item, prossegue o secretário, era ter um Programa Municipal de Audiovisual para Salvador. “Nós lançamos em março a SalCine, um projeto completo que vai desde capacitação e formação de profissionais para trabalhar no audiovisual visual. São mais de 5 mil vagas em cursos profissionalizantes, que vão das áreas técnicas até aulas de roteiro e de produção executiva, entre outros”, explica.

“Também tivemos um edital bem robusto na Lei Paulo Gustavo para o audiovisual, com uma previsão de quase R$ 40 milhões, e também anunciamos a Salvador Film Comission [órgão municipal que incentiva, facilita e apoia a produção cinematográfica, televisiva ou publicitária em locais públicos da cidade]. A secretaria também está em tratativas com o setor empresarial, com vistas a uma PPP [parceria público-privada] para a construção de estúdios na cidade”.

Em janeiro, Tourinho promove outro evento ligado à cultura afro-diaspórica em Salvador: os Rolês Afro. Ao longo do mês, 30 pontos e dez roteiros estão sendo montados para turistas e a população local, claro. Serão locais e programações cultural e historicamente relevantes para promover e discutir questões relacionadas à diáspora.

Para além das iniciativas diretamente ligadas à cultura, Pedro Tourinho também abraçou, junto à prefeitura, um projeto de urbanismo voltado ao Centro Histórico de Salvador, de desenvolvimento socioeconômico por meio do turismo e, claro, da cultura.

“São três pilares”, explica. “Um de zeladoria, em que a gente aumentou a atuação da prefeitura na área de coleta de lixo, segurança e iluminação e no ordenamento público. Então os incidentes de criminalidade caíram 70% de março para cá. Outro, um programa de habitação, em parceria com o Banco Internacional de Habitação, o Ministério da Cultura e o Iphan. Por fim, uma programação cultural diária, que envolve desde os Blocos Afro, até as comemorações de São João e de Natal, por exemplo”.

Nas artes visuais, Pedro Tourinho destaca não somente a reabertura do Muncab, mas também o apoio ao Acervo da Laje e à exposição Memórias para Dona Antônia. “Estamos também conversando para construir um espaço próprio deles em Plataforma [bairro no subúrbio ferroviário da capital baiana]”, conta.

O secretário lamenta a grande dificuldade que tem com a captação de recursos junto ao setor privado. “Não houve nenhum apoio substancial de qualquer marca a esses projetos. Enquanto você vê marcas investindo milhões para fazer uma ativação ou mesmo estandes em festivais como o Rock in Rio ou o The Town, o Afropunk, que é um evento internacional, não teve qualquer patrocinador grande, tampouco o Liberatum”, pondera. “Existe um direcionamento do eixo Rio-São Paulo de não investir no restante do Brasil, como se isso não fosse importante. E a contradição é esta: a Bahia está presente em todos esses eventos com seus artistas. A cultura baiana é muito forte”.

Tourinho lastima ainda que o Muncab não tem “qualquer doador, patrocinador ou mecenas privado”. “A cultura dos artes visuais Salvador, a cultura negra é tão importante para as artes visuais brasileiras, como é que essas pessoas pretendem alimentar isso?”, questiona. “Querem apenas criar uma ideia de raridade e assim valorizar, gerar aquela velha especulação? Não pode ser assim. É preciso entender que a criatividade vem da dor, vem da dificuldade, mas também vem com a prosperidade. Ela não precisa estar ligada somente às questões sistêmicas. É possível, e é muito bom, criar na prosperidade”.

Sobre as obras e seus títulos

"Redenção de Cã", 1895, óleo sobre tela, 199 x 166 cm, assinada M. Brocos Rio de janeiro. 1895. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: Rômulo Fialdini
"Redenção de Cã", 1895, óleo sobre tela, 199 x 166 cm, assinada M. Brocos Rio de janeiro. 1895. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: Rômulo Fialdini

Um dia alguém deveria escrever um livro, ou mesmo um artigo, sobre os títulos das obras de arte. Saber se aqueles, pelos quais hoje as reconhecemos, sempre foram, ou não, sua denominação original pode trazer dados interessantes sobre a própria obra, sobre seu autor e sobre o momento de sua primeira recepção.

Eu mesmo já me interessei sobre o assunto publicando um texto sobre Tropical (1917), pintura produzida por Anita Malfatti e hoje pertencente ao acervo da Pinacoteca de São Paulo. Ali chamava a atenção para o fato de que, de início, a obra era denominada Negra baiana e que apenas posteriormente passou a ser reconhecida como Tropical[1].

Tempos depois da publicação do artigo, e na continuidade dos meus estudos sobre o modernismo paulistano, encontrei dados que apontavam para o fato de que, desde o início, o título Tropical foi usado em concomitância ao de Negra baiana. Esse último dado, no entanto, não retirou a validade do que desejava chamar a atenção no artigo: durante algum tempo, a pintura de Malfatti – junto à artista e a seus admiradores –, oscilou entre uma proposição naturalista/nacionalista (o retrato de uma mulher de pele negra, nascida na Bahia) e uma alegoria (a pintura como síntese figurativa das regiões tórridas, entre os trópicos de Capricórnio e Câncer).

A meu ver, tal oscilação diz muito sobre a construção da própria imagem do modernismo de São Paulo que tentava responder à demanda naturalista/nacionalista do debate artístico da cidade e, ao mesmo tempo, buscava criar obras que, pelo próprio título – Tropical – reivindicavam para si a responsabilidade pela criação de um corpo de pinturas e esculturas concebido dentro da grande tradição da arte, porém uma tradição “renovada”, moderadamente “moderna”.

***

Essas questões me voltaram à mente enquanto relia um importante estudo sobre as relações do teatrólogo e jornalista brasileiro Arthur Azevedo com as artes visuais[2]. Ali, acompanhando a série de crônicas/críticas, em que o intelectual refletia sobre a produção e o ambiente artístico carioca do final do século XIX, deparei-me com um artigo, publicado em agosto de 1894, em que Azevedo dizia ter encontrado, no ateliê dos irmãos Rodolpho e  Henrique Bernardelli (então na Europa), “três dos nossos mestres da pintura”: João Zeferino da Costa, Pedro Weingärtner e Modesto Brocos, que ali reuniam seus trabalhos e produziam novas obras.

Ao comentar as pinturas do artista espanhol, radicado no Rio, Modesto Brocos, o teatrólogo após referir-se às paisagens que o artista havia produzido em sua mais recente viagem a Minas Gerais, afirma que, no jardim do ateliê dos Bernardelli, Brocos estava terminando a pintura A redenção de Cã, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Azevedo descreve a obra:

[…] No jardim do ateliê ao ar livre, Brocos está concluindo um grande quadro, A evolução, em que trabalha há já bastante tempo. Não se assustem com aquele título: a evolução de que se trata [é] da evolução das raças no Brasil. O quadro mostra-nos uma família inteira: a mãe africana, preta – a filha, brasileira, mulata – o marido desta, europeu, branco, e o fruto desse casal, um pequenino louro rosado.

O trabalho que esse quadro tem dado ao artista! Como se sabe, é Brocos um dos nossos pintores mais conscienciosos, e tem um respeito absoluto pela sua arte. A falta de modelos de profissão, que se prestem com docilidade a posar durante longas sessões, põe-no em verdadeiros trances [sic]. Entretanto, a obra há de lhe sair completa, e os leitores terão ensejo de admirá-la na próxima exposição de belas artes.[3]

De fato, A redenção de Cã foi apresentada na Exposição Geral de Belas Artes, da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, de 1895, conquistando a Medalha de Ouro daquele certame. Assim, a obra seria reconhecida como um dos principais trabalhos ali exibidos e, muito rapidamente, torna-se uma das pinturas mais significativas produzidas no Brasil, no final daquele século. Tal significação, no entanto, não se deu (e ainda não se dá) pelas suas supostas qualidades técnicas, mas por ter praticamente inaugurado, no campo da arte erudita do país, um nicho de obras cujos temas aderiam à questão racial no Brasil.

***

Antes de continuar nessa questão, no entanto, atento para um fato que os leitores e leitoras já devem ter percebido: Arthur Azevedo, quando descreve a tão afamada pintura, a ela não se refere pelo título que a acompanharia pelo resto de sua trajetória. Ele a denomina A evolução.

Pode ser que o intelectual tenha usado esse título porque, na época em que publicou o artigo, Brocos ainda a pintava e, apesar de bem adiantada, talvez não tivesse ainda recebido o título solene de A redenção de Cã. Tal hipótese é provável. Porém, sete anos depois, em 1901, quando Azevedo comenta uma gravura produzida por Brocos, em que retratava o poeta Gonçalves Dias, ele afirma:

É uma água-forte digna de ser apreciada em Londres, embora passe, como é natural, despercebida no Rio de Janeiro, onde a curiosidade pública só é despertada pelo escândalo. O aplaudido pinto d’A evolução e de A debulhada deu ao grande poeta um olhar penetrante, de uma expressão profunda que reflete, pode-se dizer, a obra do pensador e do artista. Não creio que o instrumento do gravador produzisse ainda, no Rio de Janeiro, uma estampa de tanto merecimento como esse retrato.[4]

"Engenho de mandioca" (1892), óleo sobre tela, 59 x 75,5 cm, assinada M. Brocos, 1892. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: César Barreto
“Engenho de mandioca” (1892),
óleo sobre tela, 59 x 75,5 cm, assinada M. Brocos, 1892. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram
Foto: César Barreto

 

Mesmo passados alguns anos, Azevedo continuava se referindo à A redenção de Cã como A evolução.

De fato, pode ser que ele tenha absorvido o primeiro título concedido à pintura, talvez pelo próprio Brocos, para ser referida informalmente enquanto ainda era produzida. Pode ser que, mesmo tendo passado um determinado período, Azevedo não tenha assimilado sua nova denominação.

Independentemente de quanto tempo a obra foi conhecida – entre o pintor e seus amigos – como A evolução, e independentemente também do fato de que, ao que tudo indica, somente Arthur Azevedo tenha continuado a denominá-la como tal, o que interessaria sublinhar é que ocorreu, com a pintura de Brocos, o mesmo que, poucos anos mais tarde, ocorreria com Tropical, de Malfatti.

O título A evolução, tão explícito, escancarava o que uma parcela da intelectualidade pensava sobre a solução para a questão racial no país: a miscigenação – caminho “natural” para o embranquecimento da população, a meta a ser buscada para a “evolução” da sociedade brasileira.

Concebida a partir de valores estéticos que enfatizavam, tanto a descrição étnica dos personagens, quanto seu entorno[5], a pintura de Brocos, pela composição e pelo título inicial, autoexplicativo, sintetizava uma resposta direta , produzida no campo da arte, ao debate que então era travado sobre os destinos da “raça” brasileira.

No entanto, na época, a boa recepção das obras de arte no ambiente carioca, necessitava do aval da Escola Nacional de Belas Artes – núcleo do poder legitimador do campo das artes no Brasil, também por ser a organizadora das Exposições Gerais. Brocos não podia usar aquele título tão direto para submeter sua pintura ao escrutínio rigoroso da Escola.

Afinal, apesar de algumas “modernidades” absorvidas, seja no âmbito da técnica, seja na temática, a instituição ainda era a guardiã de princípios sobre o papel das belas artes em uma sociedade, princípios considerados nobres e acima de qualquer circunstância. Ou seja: por mais efetiva que fosse a pintura em seu escopo – inclusive devido ao seu título original – era necessário que ela adquirisse uma dimensão moralizante, exemplar, como toda obra de arte deveria ser, ou tentar ser, para que fosse aceita naquele ambiente fundamentalmente tradicional da Escola.

É por esse motivo que, ao que tudo indica, Brocos buscou, primeiro na tradição bíblica, depois no senso comum, um título que se adequasse à grande tradição de exemplaridade da arte, mesmo que sua pintura, pela técnica e pela temática, tentasse quebrar aquelas amarras.

***

Como é sabido, Cã, filho mais novo de Noé, tem sua descendência amaldiçoada pelo pai por tê-lo flagrado nu e embriagado. Noé vaticinou que o filho de Cã, Canaã, assim como seus descendentes, iriam servir para sempre aos seus outros dois filhos, Jafé e Sem. A tradição afirma que Jafé e herdeiros povoariam a Europa, os de Sem, os países do Oriente Médio, e os de Cã e Canaã, o continente africano.

Esta lenda, por muitos anos, justificou, para muitos, que os africanos fossem vistos como amaldiçoados e nascidos para servirem os descendentes de Jafé e Sem, ou seja, os povos europeus e do Oriente Médio.

É disso, então, que passa a se tratar a pintura de Modesto Brocos. Do laico e “científico” A evolução, ela almeja, agora, uma transcendência absoluta e exemplar, a partir da apropriação do texto bíblico.

A história da senhora negra, descendente de Cã e Canaã, à esquerda na tela, é salva, é redimida, pela miscigenação de sua prole. Sua descendência deixa de ser escravizada, mas também deixa de ser negra.

Ao mudar o título da pintura, de A evolução para A redenção de Cã, Modesto Brocos encobre com um verniz de moralidade bíblica o desejo “científico” de apagamento da presença dos negros na história do país.

***

É claro que a importância de A redenção de Cã não reside apenas na existência dessa sua outra denominação. Porém, creio que, levado em conta nas reflexões sobre essa que foi, como mencionado, foi uma das pinturas mais importantes do século XIX, aquele pequeno “lapso” laico – logo corrigido –, pode contribuir para ampliar ainda mais as discussões sobre A redenção de Cã e seu papel como elemento catalisador da questão racial no país, durante o início da República.

[1] – CHIARELLI, Tadeu. Tropical, de Anita Malfatti. Novos Estudos CEBRAP, vol. 80, 2008, pág. 13 e segs.

[2] – SILVA, Frederico Fernando Souza. Arthur Azevedo: o crítico de arte como colecionador/o colecionador como crítico de arte. São Paulo: Tese de doutoramento. PPGAV ECA USP, 2016.

[3] – AZEVEDO, Arthur de. Coluna Palestra, Rio de Janeiro: Jornal O Paíz, 12 de agosto de 1894. Apud SILVA, Frederico Fernando Souza. Arthur Azevedo: o crítico de arte como colecionador/o colecionador como crítico de arte. Op. cit. Pág, 236.

[4] – Idem, pág. 291. A obra referida pelo crítico como A debulhada, seria reconhecida como Engenho de mandioca, 1892, hoje no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro.

[5] – Descrição esta, próxima daquela empregada pelo pintor Almeida Jr., embora não com a qualidade das pinturas “caipiras” desse último.

Clamor feminino

Ti’Iwan Couchili, Guiana Francesa, Otsenene, Ma’ekom | Bienal das Amazônias
Ti’Iwan Couchili, Guiana Francesa, Otsenene, Ma’ekom, 2016, fazendo referência aos suicídeos do povo indígena. Fotos: Nailana Thiely/acervo Bienal das Amazônias

Idealizada por Lívia Condurú, em parceria com as curadoras Sandra Benites, Keyna Eleison e Vânia Leal – e com a assistência curatorial dos “múltiplos pensatórios”, de Ana Clara Simões Lopes e Débora Oliveira – a primeira Bienal das Amazônias aconteceu entre o meses de agosto e novembro de 2023, na cidade de Belém, no Pará, às margens do Rio Guamá.

Um verdadeiro encontro de mulheres fortes, com diferentes identidades e saberes, deu à luz um projeto que levou o nome derivado da língua tupi, Sapukai, que em português podemos traduzir como clamor, grito, trabalhar por adição e não por extração, ampliação e abraço.

Um diálogo entre a direção, as curadoras, os artistas e os produtores, operou uma força coletiva e fez associações respeitando a voz de uma enorme quantidade de gestos peculiares vindos de vários lugares, às vezes nunca revelados do Brasil. Basicamente, a mostra desperta a vontade de mergulhar nesse mundo, povoado de ancestrais e árvores milenares. Belém é banhada pelos rios, e o vento, permanente, alivia o calor da região.
Um dos conceitos que sustentou a Bienal é o fato de a Amazônia ser conhecida pelas suas grandes áreas florestais e por suas fauna e flora diversas, mas é a presença da água – vinda das chuvas e de sua extensa rede fluvial – que contorna o imaginário da região. Daí o título da primeira edição, Bubuia: águas como fonte de imaginações e desejos, que celebra a relação ética e cultural entre as águas e os corpos que nela se movem.

A Bubuia é diretamente inspirada no dibubuísmo criado e defendido pelo filósofo e professor João de Jesus Paes Loureiro, nascido em Abaetetuba, cidade paraense [Leia, nesta edição, a íntegra da entrevista exclusiva com Paes Loureiro]. Flutuar sobre as águas, diz o texto curatorial da mostra, simboliza “uma conjugação de movimento e inércia em favor do prazer, da reflexão e da integração com o meio ambiente, e diz muito sobre a perseverança e resistência de quem habita a região. É certa predisposição calculada para o devir e para o deixar vir, que se estabelece como conhecimento de herança constituinte de saberes caboclos ribeirinhos, transmitidos pela oralidade em caráter de resistência, imbuídos por um conhecimento oriundos da relação com a natureza e relacionados entre os seus iguais.”

E prossegue o texto curatorial: […] “Em meio a drástica crise climática planetária e os crescentes antagonismos ideológicos que se espalham pelo Brasil e pelo mundo, anunciar a multiplicidade de desejos como o campo de forças que circunda corpos em território amazônico é, antes de tudo, uma proposta de instauração de espaços relacionais que levam em conta a experiência humana nela acumulada, seu humanismo, seu imaginário social. espaços de auto reconhecimento, de celebração e, principalmente, espaços de luta, resistência e reexistência pelo prazer de ser plural. Dessa forma, o cerne curatorial da Bienal busca instaurar aproximações possíveis não só entre os nove países que delimitam o bioma e o território aquático do Rio Amazonas e os nove estados brasileiros compreendidos como Amazônia Legal, como também ambiciona a inclusão das muitas Amazônias multifacetadas e invisíveis que populam o imaginário contemporâneo, para além de seus limites físicos, sociais e geográficos.”

Alguns dos eixos curatoriais que organizam a mostra foram inspirados em lendas e vocábulos da região, como Fontes Vitais Cambiantes, que partiu da pesquisa sobre o princípio e os princípios do Rio Amazonas e da sua movimentação. Diz o texto curatorial: “Desde a nascente à desembocadura. assim chegou-se em Apurimac, região peruana onde existe uma das nascentes. e, a partir da pesquisa deste lugar, a ampliação de Apurimac; seu conceito e narrativas. O vocábulo designa uma região do Peru onde está localizado sayhuite, um sítio arqueológico considerado um centro de culto religioso para o povo inca, notado por sua particular atenção e dedicação à água. Em quechua, apu refere-se aos deuses, sábios e também às montanhas. Apurimac, por sua vez, designa o “deus falador”, algo que se pode entender como uma espécie de oráculo observado e ouvido pelos povos andinos que habitam a região. Apurímac é ainda o nome de um rio, uma das nascentes do Rio Amazonas. Na cosmovisão andina, este rio que nasce em meio às montanhas corre até a planície amazônica (correrá até o Marajó, no litoral norte brasileiro do Pará. Deságua no Oceano Atlântico entre os estados do Pará e do Amapá) e retorna aos Andes por baixo da terra. Acreditava-se que, à noite, o sol se punha sob a terra, viajando em canais subterrâneos e bebendo o excesso de água para que Apurimac não transbordasse durante sua viagem de retorno.”

Outro eixo relevante é o de Cisão como contrato, que nasce da tomada de consciência da curadoria dos pactos e das estruturas (sociais, econômicas, raciais) que regem nossa existência e como, partindo disso, podem-se encontrar formas de ruptura ou resistência. Ou ainda Clima(x) T(r)emor, que “surge da afirmação e desejo da impossibilidade da totalidade. É um eixo que acata a ideia de que é impossível dar conta de um “todo”, até porque a ideia de todo, quando aplicada à Amazônia, não cabe, devido a incontáveis narrativas de povos diversos que habitam os campos, as estradas vicinais, florestas, águas e outros territórios de um ambiente complexo e dinâmico, que faz parte do território brasileiro.

Novamente, segundo o texto curatorial, “são vidas e realidades que necessitam de constantes reflexões acerca das etnias, fauna, riquezas minerais, entre tantas dinâmicas de saberes e práticas das plantas medicinais da floresta e, significativamente, o equilíbrio ambiental do planeta. Ritmos advindos de influências fronteiriças que se misturam à criatividade de cada lugar, dança, vozes, pajelanças e pensamentos que não nos deixam estar no mesmo lugar. Escutando as variantes intelectuais afroindígenas, caiçaras, ribeirinhos, assentados, indígenas, quilombolas, de escuta e de silêncios. E, nessa dinâmica, reconhecemos que a tentativa de dar conta da totalidade é engessante e violenta, além de totalmente exaustiva e desnecessária.”
Já o eixo Vidas Linguagens reconhece as distintas verdades, vidas e linguagens propostas por diferentes cosmovisões. Por último, há o eixo Encontros de Desejos.
O manifesto da Bienal defende: “Amazônia […] é também uma commodity global no tempo do antropoceno e da crise climática. A Amazônia que já foi paraíso edênico ainda é tida por muitos que acreditam ser o pulmão do mundo. Esse imaginário surge em sua maior parte do cenário externo, muitas das vezes distorcidas e exotizadas, afinal tudo que se refere à Amazônia ganha dimensões mundializadas e ampliadas. Mas algo é real, a Amazônia é sim a chave fundamental para a sobrevivência da humanidade no mundo contemporâneo.”

Conversa com Lívia Condurú
Idealizadora e diretora executiva da Bienal das Amazônias, Lívia Condurú é mestre em Artes, pela Universidade Federal do Pará, onde desenvolveu pesquisa sobre políticas públicas para a cultura no norte do Brasil, e atua há duas décadas como produtora cultural na Amazônia.

arte!✱ – A ideia de se fazer uma Bienal das Amazônias é recente? Sustentada em alguma medida pelo debate nacional e internacional?

A Bienal é um desejo meu de produtora, desde o começo da minha vida profissional, no início dos anos 2000. Com o passar dos anos foi ganhando forma e se voltando mais para a minha área de atuação principal enquanto produtora executiva, nas artes visuais, e em 2011 ganhou o nome e o formato que tem hoje. Desde então ele foi sendo aprimorado até ser colocado na Lei Rouanet ,em 2019.

O objetivo principal sempre foi o de criar uma plataforma de debate, construção e fortalecimento do território amazônico, a partir da nossa produção contemporânea de arte. Uma bienal que se pretende plataforma para que muitas vozes, locais sobretudo, expressem seus pontos de vista sobre o que é ser amazônida. O nome Bienal das Amazônias já surgiu enquanto provocação, pois existe um bioma, mais infinitas culturas e formas de se compreender o território embaixo da alcunha Amazônia.

Para além disso é crucial que não necessitemos ir sempre ao que entendemos por eixo, para sermos validados enquanto artistas, pensadores, criadores. Se faz urgente mudar o movimento da roda. A Amazônia não precisa ser salva por ninguém, ela precisa ter a devida atenção e o investimento para que todos aqueles que a constituem se sintam fortalecidos em suas inventividades e metodologias e possam manter a floresta em pé, a partir da possibilidade de se permitir que seus habitantes vivam dignamente.

arte!✱ – Quando o projeto foi aprovado? O orçamento inicial deu conta dos gastos?

A Bienal das Amazônias, enquanto projeto incentivado, foi aprovada no início de 2020, e suas primeiras captações se deram no final deste mesmo ano fiscal. Em razão da pandemia e de todas as dificuldades impostas pelo então Governo Federal acabamos por desenhar a sua realização para o ano de 2022. Até aquele momento realizaríamos a Bienal em diversos aparelhos culturais do Estado e do município, e construíriamos 20 obras públicas que, para além de debater os usos que fazemos da cidade de Belém, faria a liga entre estes diversos prédios. No entanto, por questões administrativas, acabamos por jogar nossa realização para o ano de 2023 e, com isso, o Governo do Estado do Pará nos informou que não mais teríamos as pautas dos espaços museais que tínhamos acordado. Então, acabamos jogados, por assim dizer, para a necessidade de criar um novo aparelho cultural que desse conta do que estávamos propondo institucionalmente.

Se politicamente nosso cerne institucional se pauta no fortalecimento do território a partir das gentes que o compõem, por que se distanciar das pessoas? Para além disso, somos instituição porque eis o modus operandis de existir/resitir no (e ao) mercado, mas até que ponto precisamos de mais uma instituição de arte? Com o problema de não ter mais os espaços delimitados anteriormente, e com todos estes questionamentos, comecei a buscar um lugar não institucional que veio a abrigar a 1ª edição da Bienal das Amazônias.
O prédio escolhido finalmente, de quase oito mil metros quadrados, já foi a casa da mais antiga loja de departamentos da cidade de Belém, a Y.Yamada, há muito tempo fechado, no centro comercial da cidade, e veio coroar nossas crenças enquanto Bienal das Amazônias. Mas nem toda coroação é simples. O prédio precisou de diversas reformas, tivemos de refazer sua estrutura elétrica, hidráulica, criar sistema de incêndio, construir salas, banheiros, sistema de acessibilidade, sistema de refrigeração, tudo isso somada a montagem do projeto expográfico, em exatos 43 dias. Isso tudo com o orçamento desenhado em 2019, captado nos anos subsequentes e sem qualquer ajuda financeira dos entes municipais e estaduais que tanto ganharam com a Bienal. Então claro que tivemos problemas financeiros e somente agora vamos conseguir sanear todos os custos.

É muito importante para a Bienal das Amazônias, para mim enquanto sua idealizadora, e para todos os profissionais que abraçaram esse projeto, que ele se realize num lugar popular. Arte é sobretuto um ato político. Precisamos instrumentalizar a nossa população, e que meio mais forte se não a arte para fazê-lo? Precisamos requalificar o nosso centro comercial, mas para isso é urgente que não o gentrifiquemos, que todos que fazem dele realidade hoje, permaneçam nele. Muitas questões.

arte!✱ – A Bienal foi um sucesso de público

Em razão do hercúleo trabalho possível graças ao coletivo, a Bienal foi um sucesso e com isso conseguiremos manter o prédio como a sede da instituição, logo a próxima edição da Bienal das Amazônias em 2025 acontecerá nele, também, bem como diversas programações no ano de 2024.

Em 2024, para além das atividades que realizaremos no nosso prédio sede, vamos itinerar com recortes desta primeira edição para as cidades de Manaus (AM), Macapá (AP), São Luis (MA), Canaã dos Carajás (PA) e Marabá (PA). Assim como faremos itinerância por meio de um barco-obra por até 30 cidades que não possuem aparelhos culturais e que estão às margens de rios amazônicos. A itinerância começa a circular no mês de abril, e o barco-obra será inaugurado em maio e começa a navegar em junho.

Ti’Iwan Couchili, Guiana Francesa, Otsenene, Ma’ekom, 2016
Ti’Iwan Couchili, Guiana Francesa, Otsenene, Ma’ekom, 2016, fazendo referência aos suicídeos do povo indígena

arte!✱ – Como você montou essa equipe guerreira? Já conhecia seus integrantes ou surgiram após pesquisas?

A Bienal das Amazônias é um projeto de mulheres, sobretudo. Eu e Yasmina Reggad começamos esse desenho lá em 2011, muita gente da minha equipe de produtores da época ajudaram nesse desenho. O tempo foi passando e fui reencontrando profissionais, parceiros. As únicas pessoas que pesquisamos, avaliamos, foram as curadoras. Eu e Yasmina passamos muito tempo pensando que queríamos que fosse coletivo, que fossem mulheres e que cada uma carregasse em si um mundo, e conseguimos. No percurso pessoas foram chegando, acreditando e só consegui realizar a Bienal das Amazônias porque estas pessoas que hoje são a Bienal, acreditaram no meu sonho e passaram a sonhar os seus próprios sonhos a partir do meu sonho. A Bienal das Amazônias é um desejo de construção de uma nova possibilidade de coletividade, ou pelo menos um resgate de ser coletivo, de ser aldeia. Por sorte, e eu tive muita, apesar de todos os pesares, dos entraves, das diversas descrenças em nós, o afeto fez a liga para que resistíssemos e fizéssemos acontecer. Sobrevivemos, foi lindo, mas igualmente difícil.

arte!✱ – Foi um sucesso, mas não tiveram claramente apoio de mídia regional e nacional … por quê?

Assumo que não sei dizer se claramente não tivemos apoio da mídia. Fomos poucos, sem orçamento e o que conseguimos acredito que tenha sido o suficiente. O Brasil tende a não dar atenção para o que não está posto, para os que não fazem parte do mainstream, para além do que o Brasil do eixo, não nos leva muito a sério, então acho que o que aconteceu é o que acontece normalmente com todos os que produzem nas margens, nas bordas que, diga-se de passagem, é a grande maioria do território brasileiro. ✱

Hora da imaginação radical

Livro Decolonizar o museu – Programa de desordem absoluta
Livro Decolonizar o museu – Programa de desordem absoluta, da autora Françoise Vergès, publicado pela Ubu Editora em 2023

Com Decolonizar o Museu – programa de desordem absoluta (Ubu, 2023), a ativista e pensadora francesa Françoise Vergès faz uma precisa análise da atual situação dos museus que, se por um lado buscam novas práticas contrárias ao colonialismo que está no próprio gene de seu surgimento, seguem usando o mesmo sistema hierárquico e patriarcal de sempre. “É preciso ir além”, defende ela em entrevista exclusiva em São Paulo, no início de outubro passado, quando veio para o lançamento da publicação e diversas conversas em vários estados do país.

Sob o impacto de Coreografias do Impossível, a primeira Bienal de São Paulo com uma curadoria majoritariamente negra, além de diversas mostras na cidade que buscam o sentido da reparação, Vergès sentencia: “Não é suficiente.”

Como ela defende no próprio livro, “não basta expor obras ‘decoloniais’ (…), diversificar o que é pendurado nas paredes, falar de preservação e conservação em um estando de guerra permanente contra subalternos e indígenas”. Parece aqui que ela se refere às polêmicas do Masp em torno da mostra Histórias Brasileiras, no ano passado, mas ela diz que não conhecia o caso. De fato, contudo, não há muitas diferenças entre a arrogância dos museus franceses com os quais ela está acostumada e sobre os quais reflete na publicação e aquele da avenida Paulista.

O livro ainda adianta outro assuntos urgentes agora, como as más condições de trabalho denunciadas por funcionários da Bienal de São Paulo: “É preciso criar um lugar onde as condições de trabalho daqueles/as que limpam, vigiam, cozinham, pesquisam, administram ou produzem sejam plenamente respeitadas; onde as hierarquias de gênero, classe, raça e religião sejam questionadas.”

Foto: Anthony Francin

Leia, a seguir, algumas reflexões de Vergès após ter visitado a Bienal de São Paulo e a Ocupação 9 de Julho, que recebe a mostra Refundação:

ARTE! – Você escreveu que, em 2011, ainda acreditava que era possível fazer uma exposição que não disciplinasse fisicamente os quilombolas. Penso hoje na Bienal de São Paulo porque é um tema importante para eles e sei que você esteve lá. Você pode dizer algo sobre essa afirmação e Coreografias do Impossível? 

Françoise Vergès: Quando eu disse isso, pensei que era possível realmente fazer do jeito que queríamos, não apenas para mostrar algo sobre os quilombolas e a escravidão, mas fazer de forma diferente, muito densamente, para que realmente houvesse mudança. Não é necessário que se conte a história que não foi contada, porque isso está sendo feito, é realmente para mudar totalmente. E percebi que não era possível porque não somos livres. Então, o museu não é um espaço de liberdade, precisa ser fora dele, em um lugar que teríamos criado como um lugar de liberdade, pelo menos por um tempo, talvez por muito tempo. Ainda é o que penso hoje. 

Na Bienal há coisas que são absolutamente fantásticas e há um desejo real e um impulso para algo além. E o fato de você ter o Movimento dos Sem-teto é realmente algo próximo de uma proposta que vá além do campo da arte. Mas ainda é uma Bienal. Não estou dizendo que não deveríamos fazê-la ou que isso seria ruim. Não tenho um vírus para julgar, mas o que quero dizer é que sabemos o suficiente hoje que deveríamos fazer outra coisa. Sabemos o suficiente, pois temos trabalhado em estratégias pós-coloniais e decoloniais, sobre representação, analisando imagens, produzindo textos. Mas estamos em um momento decisivo em que realmente é preciso dar um salto de imaginação, fugir da norma ocidental. 

Muita gente esperava, já que é a primeira vez que a curadoria da Bienal é majoritariamente negra, que haveria uma revolução. Mas quando ela abriu, as pessoas perceberam que ainda é uma bienal, afinal essa é a regra….

Isto é o que eu digo: a impossibilidade dentro do sistema em permitir que você vá além dos limites. Você pode transformar o espaço, não colocar a mesa e a cadeira no mesmo lugar da casa do senhor patriarcal. E isto já provoca desafios à perspectiva da forma como circulamos no espaço, mas a parede ainda está lá. Ainda não desafiamos o sistema. Permanecemos dentro do sistema. Fazemos as coisas de maneira diferente e elas são incríveis, mas como eu digo, é hora de ir além, porque senão o espaço impõe uma certa forma de ser.

Às vezes sim, mas, digamos que a documenta quinze, em 2022, foi muito surpreendente ao repensar o uso dos espaços, porque as pessoas dormiam e cozinhavam no museu, havia um lugar para crianças. A meu ver, eles mudaram completamente a estrutura.

Sim, eles ocuparam o espaço que foi dado de forma diferente, e com esta ocupação de uma maneira diferente, eles estavam efetivamente contestando, desafiando o sistema. Quando você não consegue alterar as paredes, você muda o conteúdo e a documenta no ano passado tentou fazer isso. Então, o que você pode fazer se estiver dentro de um espaço dado é transformar ele em um quilombo ou repensar aquele espaço a partir daquela cidade, mas dentro daquele ambiente que foi construído por forças sociais que são racistas, patriarcais, usando o espaço da forma possível.

Estive na Ocupação 9 de Julho, e existe lá um espaço de liberdade, onde a vida está sendo inventada, a vida no sentido de que o que temos fora de lá não é vida. Então para mim os espaços de liberdade não ocorrem necessariamente em um museu ou em uma bienal.

Mas ao menos a documenta apontou que há possibilidades…

Sim, há possibilidades. Mas, na verdade, o que eu quero dizer é que é preciso dar às pessoas o poder de efetivamente agarrar e fazer o que elas quiserem. Sugeri a um amigo em Paris que fizéssemos uma bienal do bairro com as pessoas daquele bairro. É preciso começarmos com as pessoas, os vizinhos serão a equipe de curadoria e trabalharemos com elas. Pode ser que saibamos também a melhor maneira de fazer isso ou aquilo, mas podemos trabalhar juntos. Esse seria o tipo de bienal, tudo a partir dos moradores de um bairro.

Ao mesmo tempo, há uma espécie de paradoxo no trabalho com arte, já que na Ocupação 9 de Julho o que eles colocam dentro da galeria Reocupa é, de alguma forma, uma arte convencional, com molduras…

Na verdade, é para esse debate que eu vou. Nunca fomos representados, nossas vozes não foram ouvidas, então vamos participar, mas aí o modelo é tão hegemônico que acabamos fazendo o que foi feito antes, apenas mostrando coisas diferentes na parede. No final não sabemos fazer nada diferente.

Então é aqui que quero que estejamos agora: o que faremos. Queremos mostrar algumas lembranças e como vamos fazer? Se estamos caindo novamente no modo ocidental, isso é compreensível, afinal temos feito este trabalho por um tempo, haverá alguma ideia da tradição ocidental que tomaremos emprestada. Mas precisamos libertar nossa mente disso. Tenho trabalhado muito com artistas e faço workshops coletivos. Sempre percebemos o quão rápido voltamos ao normal. Então, é esse movimento de imaginação radical que temos que encarar agora.

Temos que desaprender…

Sim! É tão difícil, sabe? A certa altura, fiz um exercício sobre o que seria um museu decolonial há quatro anos. A resposta foi: vamos mudar o texto. Eu disse não, porque é claro que podemos trazer mais diversidade e textos diferentes, mas ainda será a mesma arquitetura. A casa principal tem que ser demolida. Para mim a questão da arquitetura é muito importante porque vejo que todo espaço público está sendo projetado de forma que quando você entra você sabe onde está entrando e se comporta como se espera que se comporte naquele espaço. É a ditadura da arquitetura.

Em seu livro você cita a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, como uma ferramenta para se desaprender… 

Sim, acho que a pedagogia é importante porque temos que retreinar nossos sentidos sobre o que vemos, como ouvimos, como cheiramos, como mudamos nossos sentidos, porque todos nós temos uma educação estratégica para servir ao capital.  Precisamos dizer de forma diferente, olhar de forma diferente e ouvir de forma. Então é necessária uma pedagogia no sentido de que reaprender, desaprender e aprender novamente é necessário. Precisamos ouvir uns aos outros. No workshop eu digo que não há ideias estúpidas. Se uma ideia é muito simples, talvez possamos fazer de uma maneira diferente, ou depois de uma longa discussão concluímos que não funciona e abandonamos essa ideia, mas então se abandonarmos sabemos por quê. Significa que não é a ideia que será mais importante, mas a forma como decidimos é que precisa ser a chave do processo. ✱