O artista baiano J. Cunha. Foto: Márcio Lima
O artista baiano J. Cunha. Foto: Márcio Lima

Logo no início do texto de apresentação da exposição J. Cunha: Corpo tropical, Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca de São Paulo, diz que só no ano passado a instituição passou a ter uma peça de José Antônio Cunha em seu acervo. E ressalva: “Essa inserção tardia diz mais sobre as lacunas da coleção do museu do que sobre a relevância da obra do artista e os potentes diálogos que ela promove.” De fato, é inimaginável que só agora o status quo do sistema das artes visuais do país, dominado pelos sudestinos, esteja tirando o véu que cercava a atuação de 60 anos desse artista, designer gráfico, cenógrafo e figurinista baiano.

A exposição ocupa todo o 4º andar da Pina Estação, em São Paulo, e traz cerca de 300 itens, entre os quais pinturas, desenhos, cartazes, estampas, objetos e documentos. A curadoria é de Renato Menezes, da equipe interna da Pinacoteca, que sintetiza a obra de Cunha como “produto da associação homogênea e coerente entre beleza, alegria e compromisso político”.

A abrangência da mostra surpreende mesmo aqueles que vem acompanhando mais de perto a sua trajetória, entre os quais me incluo, pois minhas visitas a Salvador sempre passam por uma ida a seu ateliê no bairro da Boca do Rio. Meu olhar tem o ponto de vista do design, área em que ele se distingue por ter sido pioneiro na criação de uma linguagem visual para os movimentos afirmativos da cultura negra no Brasil. Aliou uma grande liberdade criativa a um conhecimento profundo da herança cultural e espiritual africana e da cultura popular e erudita brasileira para desenvolver uma linguagem própria, com muita originalidade.

J. Cunha nasceu na Cidade Baixa, em Salvador, em 1948, e desde cedo conviveu com a religiosidade afro-indígena, pelo lado materno, e com a cultura cigana, pelo paterno. Adolescente sem recursos, foi cursar tornearia mecânica no Senai, onde adquiriu conhecimentos técnicos de vários ofícios. Aos 18 anos, ingressou no curso livre da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, conectando-se com o conhecimento dos cânones das artes visuais ao devorar os livros da biblioteca.

No fervilhante ambiente cultural baiano nos anos 1960, tornou-se bailarino, cenógrafo e figurinista do grupo folclórico Viva Bahia, criado pela etnomusicóloga Emilia Biancardi, e colaborou com o Balé do Teatro Castro Alves e do Balé Brasileiro da Bahia. Na pintura, vinculou-se ao grupo Etsedron (a palavra Nordeste ao contrário), que questionava os efeitos do avanço do capitalismo nas identidades culturais locais. O boi, o cangaço, o sertão e a religiosidade popular são elementos frequentes nos trabalhos de Cunha já desde esse período inicial, abordado na primeira sala da exposição da Pina, sob o título Made in Brasil.

A fase seguinte, dos anos 1980 a 2005, é tratada no módulo Passar por aqui. Em 1980 J. Cunha criou a marca e o sistema de identidade do bloco de carnaval Ilê Ayê, em Salvador e durante 25 anos desenvolveu as temáticas específicas de cada carnaval, forjando uma nova linguagem plástica afro-brasileira. O alcance desse trabalho foi enorme, atingindo milhares de pessoas, pois os tecidos tinham impressões de mais de 10 mil metros, com as quais se confeccionaram cerca de 3.000 trajes, que depois eram reutilizados pelas pessoas. Os temas tratados a cada ano se desdobravam em várias mídias, entre elas os Cadernos de Educação, dirigidos para escolas.

A sala traz também um expressivo conjunto de cartazes, capas de disco, capas de livro, design urbano para o carnaval e outras festas populares, cenários para shows e para televisão, alfabetos, vitrines, superfícies de louças, cardápios e projetos de identidade visual.

O último núcleo expositivo, Neobarroco afro-pop, aborda a fase a partir os anos 2000. É ali que está o monumental Códice, de três por sete metros, com 21 telas subdivididas em 25 áreas quadradas, totalizando um conjunto com 525 campos, pintado ao longo de 2011 a 2014. Comprado recentemente pelo Instituto Inhotim, o painel resulta do conhecimento profundo que J. Cunha vem acumulando a vida toda sobre a esfera do sagrado. É uma obra que se pode admirar por horas, pela riqueza dos símbolos representando um panteão de divindades afro-brasileiras.

No mesmo ano de finalização do Códice, J. Cunha projeta o gradil de ferro e aço do Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, em que homenageia Ogum, o orixá da metalurgia, das ferramentas e da invenção, intercalando no metal – entre soldagens, texturas e vazados – arquétipos, signos, sinais e acontecimentos da diáspora negra.

No memorial do projeto do gradil, ele se compraz com a oportunidade de “realizar uma obra de arte com utilidade pública”. A afirmação serve para dar o tom de todo um percurso balizado por uma postura política e ideológica. A rotina diária é de dedicação compulsiva, seja na pintura sobre suportes diversos, isolado em seu ateliê, seja na interação com outras equipes, criando coletivamente e “expondo” coletivamente, na escala da cidade e imbricado no cotidiano das pessoas. Os temas traduzem “a dor e a delícia” de ser quem é. Denunciam as atrocidades do processo colonizador ocorrido no país e ao mesmo tempo celebram a vitalidade da cultura afro-brasileira. Nas palavras do curador Renato Menezes no alentado catálogo que acompanha a mostra, a obra se torna “um meio de celebração da energia vital, de renovação do axé e de imaginação de um futuro afro-indígena”. Acrescento que não só a obra – também a figura do artista é celebrativa e inspiradora, firme em suas posições e simultaneamente sem perder ocasiões para a galhofa e o deboche. Os nomes de suas obras dizem um pouco sobre isso, como Paulicéia diva-irada (comprada pela Pina); Maquinaíma; Jesus-Cícero Super Star; e O bode que enganou a mãe de santo, para não ser despachado, e ainda derrubou a antena de TV.

Para Menezes, a exposição J. Cunha: Corpo tropical “estimula um ajuste de contas com a história, reconhecendo em Cunha sua energia criativa singular, animando uma das carreiras mais prolíficas da arte brasileira atual.” Vale lembrar outras iniciativas que se debruçaram em sua trajetória: o livro de Danillo Barata, professor da Universidade Federal do Recôncavo, pela Editora Corrupio, em 2016; a exposição Uanga, no Museu de Arte Moderna da Bahia, em 2023, com curadoria de Daniel Rangel; e o documentário de 25 minutos que a Pacto Filmes fez sobre ele para o canal Curta também no ano passado, com minha curadoria e direção de DJ Dolores, disponível no Prime Vídeo. Certamente há muito mais a se explorar numa produção tão versátil e fértil, com novos olhares descobrindo novas conexões e trazendo à luz a sua importância na diáspora africana mundial.

SERVIÇO

J. Cunha: Corpo tropical
Até 29 de setembro
Pina Estação – Largo General Osório, 66 – Santa Ifigênia, São Paulo – SP
Horários: de quarta a segunda, das 10h às 18h (entrada até 17h)
Gratuitos aos sábados – R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada)
Catálogo de 176 páginas, com textos de Renato Menezes, Roberto Conduru e Carol Barreto

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