Vista da exposição “Vênus Ancestral”. Foto: Ana Pigosso/Cortesia Galeria Superfície.

Pela primeira vez em São Paulo, um conjunto robusto de trabalhos de Celeida Tostes (1929-1995) é exposto ao público, na individual “Vênus Ancestral”, na Galeria Superfície, que a representa desde 2021.  A artista participou de importantes exposições coletivas nos últimos anos, como Mulheres Radicais (2018), na Pinacoteca de São Paulo, e o 37º Panorama da Arte Brasileira (2022), no MAM de São Paulo. Na mesma galeria, em 2021, obras de Celeida integraram a mostra O Ventre da Terra, título emprestado de um verso do poema que acompanha sua obra Passagem.

O barro, substância eleita por Celeida como matéria-prima principal em sua trajetória, tem sua importância ainda mais evidenciada em Vênus Ancestral ao fazer parte da expografia, revestindo algumas paredes, bases de vitrines e também uma espécie de jardim onde estão dispostas esculturas. De acordo com o galerista e pesquisador Gustavo Nóbrega, à frente da Superfície, toda a exposição foi executada em sintonia com a forma que a própria artista gostava de montar suas obras, sobre a terra. 

Por séculos, o barro tem sido tratado por muitas culturas como elemento que se relaciona à fertilidade e à criação, uma crença com bastante força espiritual que passou pela Grécia Antiga, pelos iorubás e pelos cristãos. Mais do que isso, o barro foi matéria-prima central para sociedades antigas, sendo utilizado para a fabricação de cerâmicas para uso doméstico ou para erguer grandes estruturas, como aponta a curadora Pollyana Quintella, que assina o texto da exposição: “Há vestígios da técnica que remontam há quase trinta mil anos atrás, quando as sociedades sedentárias mal se implementavam. Quem molda e queima uma matéria tão primitiva como a argila está acionando um tempo ancestral, que nos alimenta com a fantasia de um princípio de humanidade”. 

Para Celeida, o barro estava em todo o ciclo da vida. E é isso o que a exposição revela, sendo organizada em um percurso que se desloca por obras que aludem à fecundação, ao nascimento e à morte. Logo na entrada da galeria, o público vê à esquerda a famosa obra Passagem, na qual Celeida se fecha em um grande pote de barro que representa um útero, rompendo-o minutos depois. Em paralelo a essa parede, uma vitrine destaca peças da série Ovos e de João de Barro, que seguem a mesma toada. Além disso, na mesma vitrine, chama bastante a atenção pela riqueza de detalhes uma obra sem título da série Fendas, que remonta a uma vagina prestes a dar a luz, como portais da vida que evocam o mistério do nascimento. 

Em paredes dos dois andares da galeria, peças de Vênus e Guardiões são dispostas representando respectivamente o feminino e o masculino. Versões em pequena escala das Vênus são vistas também em uma vitrine no segundo andar, acompanhadas de pequenas versões das séries Ferramentas, Bastões e Rodas, esta última com representantes em grandes proporções fixadas na parede oposta. Uma outra vitrine ao lado agrupa uma grande quantidade de Selos feitos pela artista, cada um com uma marca distinta.

No piso superior, provoca bastante a curiosidade também a forma com que foram montados os Amassadinhos. Colocados em linha nas paredes, remontam à forma como foram dispostos em uma exposição que a artista realizou no Parque Lage, onde foi professora durante mais de duas décadas na Oficina de Artes do Fogo e transformação de materiais, criada por ela. Os Amassadinhos são peças feitas a partir de “gestos arcaicos”, termo cunhado por Celeida para “o ato reflexo de fechar a mão sobre qualquer matéria”, como explica Quintella. 

A história dos Amassadinhos merece destaque, pois demonstra que a transformação do barro em Celeida também pode ser metáfora de transformação social, como elemento do que ela chamava de “pedagogia emancipatória”, cultivada de maneira coletiva. Em 1983, Celeida Tostes foi convidada para participar da Bienal de São Paulo e levou como proposta a construção de um muro de barro cru. Não seria um muro qualquer: seria um muro erguido por detentos dentro de um presídio, com mensagens em bilhetes, mas também mensagens riscadas no barro com suas próprias mãos. Este muro seria levado para exposição na Bienal, enquanto os detentos permaneceriam encarcerados. “A ideia de os presos construírem um muro que ao mesmo tempo é um desmuro, porque é o muro que foi liberto. Ninguém entendeu nada. Parece tão simples, mas os cartolas e os burocratas das artes não aceitaram”,  conta o artista Luiz Aquila no livro “Celeida Tostes”, organizado por Marcus de Lontra Costa e Raquel Silva. 

Alguns anos depois, em 1991, detentos do complexo Frei Caneca chegariam com Celeida à Bienal por meio de seus gestos arcaicos. Estavam junto a eles outros grupos marginalizados, como pessoas em situação de rua e prostitutas de São João do Meriti, mas também alunos das instituições onde a artista lecionava e do Morro Chapéu da Mangueira, além de frequentadores do MAM Rio e outros grupos. Os gestos de cada uma dessas pessoas deram origem a 20 mil Amassadinhos que integraram a obra Gesto arcaico. Montadas em três grandes painéis no Pavilhão da Bienal, as peças eram vindas de “um mutirão sem referência de classe”, como dito pela artista. A veia social de Celeida se mostra também muito forte quando se trata da iniciativa exitosa que comandava com mulheres do Morro do Chapéu da Mangueira. Sua proposta desempenhou papel fundamental na construção de redes de apoio por ali, fortalecendo os laços comunitários.

A exposição na Galeria Superfície resgata, ainda, um emocionante texto escrito por Henri Stahl, fotógrafo que registrou a obra Passagem e que acompanhou a trajetória da artista, apelidando-a carinhosamente de “Celeida do barro”. Uma reunião de escritos jornalísticos sobre ela e seu trabalho também estão em exibição na mostra, que termina com urnas funerárias ao final de um jardim de esculturas, anunciando o fim do ciclo da vida narrado por Celeida Tostes.

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