Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos. Editora Cobogó, 2019, 364 p. R$ 150,00
Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos. Foto: divulgação Editora Cobogó

O rio Mapocho, que atravessa a cidade de Santiago, no Chile, foi o local escolhido pela artista Cecília Vicuña para representar seu ateliê no livro Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos, lançado agora no início de 2020, sob coordenação editorial de Fernando Ticoulat e João Paulo Siqueira Lopes.

“Domesticado e transformado em esgoto e depósito de lixo químico”, segundo a artista chilena, ela conta, na publicação, que “trabalho no rio para recuperar o sentido de que esse é um lugar majestoso”. Em sete páginas, média dedicada a cada artista, o rio é visto em uma situação de fato catastrófica, quase desaparecendo, o que se transforma em uma espécie de manifesto, de obra em si.

Dos 27 selecionados para a publicação, Vicuña, que há 38 anos vive em Nova York, mas sempre retorna à sua terra natal, foi a mais ousada para apresentar seu espaço de criação. Todos os demais abriram seus ateliês convencionais, mesmo que tais locais, como indica Pablo Leon de la Barra no ensaio que abre o livro, sejam “o lugar que permite ao artista sonhar novas obras, novos mundos”. O fotógrafo Fran Parente é o responsável por todas as imagens do livro.

 

Vicuña, na faixa dos 70 anos, é de uma geração de pioneiras na produção artística latino-americano, que só recentemente conquistou espaço no circuito internacional, caso também da colombiana Beatriz Gonzalez, das argentinas Liliana Porter e Marta Minujín, e da mexicana Graciela Iturbide, todas participantes do livro, um mérito na seleção. Representatividade, aliás, foi uma questão seriamente observada na publicação: há artistas negros, casos dos brasileiros Lucia Laguna e Arjan Martins, e indígenas, como se declara a própria Vicuña. É um sinal positivo de que, ao menos no campo da arte, a preocupação em evitar as narrativas masculina e branca já é uma busca inevitável. Para um livro bancado pela Lei de Incentivo à Cultura, ou seja, verba pública, deveria ser padrão obrigatório.

O ensaio de La Barra, poético na forma e no conteúdo, é uma boa introdução ao tema, afinal o ateliê do artista é um lugar altamente estereotipado e o curador mexicano radicado no Rio de Janeiro aborda muitas das possibilidades que ele hoje representa, sendo tanto “um lugar de revolução e ativismo”, como também responsável por “gentrificar a área”.

Outra definição significativa de La Barra é que “entrar no ateliê é como estar do outro lado do espelho”, parafraseando a Alice de Lewis Carroll. Mas é um pouco isso que o livro consegue, já que além das imagens dos “espaços de criação”, entrevistas concisas, mas aprofundadas, conduzidas pela jornalista Beta Germano, dão conta do que representa o ateliê para cada artista, assim como algumas linhas poéticas de sua obra, revelando assim esse outro lado do que em geral se vê da produção artística.

Mais uma metáfora do ateliê é lembrada no texto de introdução de Germano, retomando uma ideia de Ronaldo Brito: “O artista no ateliê é como o leão na selva e o artista no museu é como o leão no zoológico”.

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Artistas brasileiros seriam suficientes para uma publicação deste porte. Nomes não faltam, como Claudia Andujar, Regina Silveira, Anna Maria Maiolino, Rosângela Rennó ou Nelson Leirner, entre tantos outros. Mas o recorte latino-americano revela-se altamente necessário,  ao construir um caráter de identidade que nem sempre nós brasileiros estamos acostumados. E é nos depoimentos dos hermanos e hermanas, como Cecilia Vicuña e Alfredo Jaar, ambos do Chile, ou Beatriz Gonzalez e Miguel Ángel Rojas, da Colômbia, que a publicação reforça atualidade no debate político que o continente atravessa.

Ultimamente, curadores tem apontado Cildo Meireles, também presente no livro, como o melhor artista brasileiro, em uma denominação mais adequada ao campo do esporte, que afinal possui fórmulas claras para tal definição, do que a arte. O que o livro apresenta, aliás, é justamente o lugar do erro, da tentativa, do risco do artista e não de sua obra mais conhecida. E o ateliê de Meireles, nesse caso, é dos mais simples, que sequer se parece com um espaço de criação. Mas como defende La Barra, é um espaço que “pode resistir à lógica capitalista de produção/consumo”.

Mesmo tendo o formato “coffee table book”, Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos é uma publicação que fala do lugar de criação em tempos difíceis, ao mesmo tempo que apresenta uma geração que atravessa contratempos há mais de 50 anos, muito antes do boom, já passageiro, da arte latino-americana. E, mais importante, o livro traz contribuições de fato sobre o que significa criar na América Latina, um debate mais que necessário.

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