Vista da 17ª edição da SP-Arte, no galpão ARCA. Foto: Divulgação

Por Giulia Garcia e Marcos Grinspum Ferraz

Foto horizontal, colorida. Vista da 17ª edição da SP-Arte, no galpão ARCA. Pessoas circulam pelos estandes e corredores. Mercado de arte 2021.
Vista da 17ª edição da SP-Arte, no galpão ARCA. Foto: Divulgação

Em 2020, após quase um ano do início da pandemia de Covid-19, a arte!brasileiros conversou com uma série de galeristas, leiloeiros e especialistas em mercado para fazer um balanço de como havia sido o período para o setor, notadamente no Brasil. A constatação, surpreendente à época, era de que após um baque inicial com a decretação da quarentena, o reaquecimento dos negócios foi rápido e consistente, em contraste até mesmo com outras regiões do globo como Europa e América do Norte. Neste fim de 2021, após mais um ano de pandemia, entrevistamos novamente uma série de profissionais da área para saber dos resultados de um período que, apesar das restrições, envolveu também uma série de flexibilizações. A conclusão, praticamente unânime entre os cerca de 15 entrevistados, é de que o ano foi ainda melhor do que o anterior, mesmo em meio a um cenário – sanitário, político, econômico e social – tão conturbado no país.  

“O ano de 2021 foi muito melhor do que 2020 e melhor também se comparado com o ano anterior à pandemia”, conta Luisa Strina, uma das mais importantes galeristas do país. O leiloeiro Aloísio Cravo, que teve uma atuação mais oscilante no início da quarentena, segue a mesma linha: “Os leilões de 2021 tiveram faturamentos comparáveis aos de 2014 ou 2015, antes de entrarmos numa sequência muito ruim com todas as instabilidades políticas e econômicas no país”. Com as particularidades que envolvem cada casa, as afirmações dos galeristas seguem sempre em sentido parecido. Vilma Eid, da Galeria Estação, conta que duas das mostras realizadas na casa tiveram todas as obras vendidas ainda nos primeiros dias de exibição. André Millan (Galeria Millan), por sua vez, resume: “Por incrível que pareça, pelo menos aqui no Brasil, esses tempos de pandemia surpreenderam a todos e, em linhas gerais, as vendas foram muito boas, o mercado de arte reagiu surpreendentemente bem”.

Alguns dos motivos desse resultado, constatados já no primeiro ano da pandemia, soaram mesmo inesperados: o maior tempo passado dentro de casa e a diminuição com outros tipos de gastos, como viagens e restaurantes, incentivaram as pessoas a comprar mais obras de arte para seus ambientes privados; a migração dos negócios para o ambiente virtual aproximou uma parcela de compradores mais jovens, menos acostumados aos ambientes de galerias e feiras e bastante inseridos no mundo online; além disso, a criação de projetos de parcerias entre galerias, antes raros, e uma experimentação com novos formatos de venda trouxeram resultados. Isso tudo considerando, é claro, que “a elite é quem compra arte e é quem menos sofreu com a pandemia”, como destacou a avaliadora e consultora de mercado de arte Tamara Perlman ao fim de 2020.  

O que se viu, portanto, foi até mesmo a abertura de novas galerias – HOA, Projeto Vênus e Index no ano passado; Marli Matsumoto, Arte 132 e Bailune Biancheri neste ano, entre outras – e de filiais de casas já estabelecidas como Jaqueline Martins, DAN Galeria e A Gentil Carioca. Mas, se foram dois anos positivos, há também diferenças notáveis entre a atuação das casas e o comportamento dos compradores nos dois períodos.

O papel do online e a (des)aceleração do presencial

Se em 2020 o online se tornava o centro das negociações, dobrando o número de vendas nele executadas – como apresenta o relatório anual da Art Basel e UBS -, com o início da vacinação e a redução no número de novos casos de Covid-19 no Brasil e no mundo, 2021 teve parte desse cenário alterado. As atividades presenciais foram retomadas gradativamente ao longo do ano, galerias e museus reabriram suas exposições e feiras de arte nacionais e internacionais adotaram um formato híbrido. 

No caso dos leilões, “o online se consagra como uma alternativa sólida de operação”, como garante Aloísio Cravo. O leiloeiro destaca que seus dois eventos deste ano ocorreram virtualmente e tiveram bons resultados, chegando a dobrar os valores das peças. Há também uma profusão de pequenos leilões por canais virtuais, com patamares de preços mais baixos, como afirma Tamara Perlman. 

Estande da Galeria Nara Roesler na The Armory Show 2021. Foto Charles Roussel

Porém, esse não parece ser o cenário geral para as artes. O modelo híbrido se firma como um caminho sem volta, o online não parece disposto a recuar, mas talvez não persista do modo que se esperava. “Acho que, neste ano, o virtual foi mais um processo de aproximação, menos de venda. Ele não perdeu a importância, mas a venda voltou a ser mais presencial”, afirma Murilo Castro, de Belo Horizonte. Vilma Eid e Alexandre Roesler, sócio da Galeria Nara Roesler, fazem coro e destacam os viewing rooms como um complemento, mais do que uma frente de negócios. A diretora da ArtRio, Brenda Valansi, pôde verificar isso na edição deste ano da feira carioca: “A plataforma virtual acaba sendo muito usada como pesquisa, para quem depois quer ver no presencial, ou às vezes a pessoa vê fisicamente e finaliza a compra no online”. Para o fundador da Gomide & Co. (antiga Bergamin & Gomide), Thiago Gomide, a comparação entre os resultados dos eventos presenciais e virtuais é desleal: “Acho que os viewing rooms vieram para ficar, mas é ridícula a comparação. As vendas que foram resultado de alguma coisa online foram irrisórias no meu faturamento”. 

Apesar da programação digital não ter a mesma potência da física, como aponta Roesler, ela é muito mais barata. Esse parece ser um dos fatores chave para o sucesso de 2020. Se por um lado as vendas foram menores, foi a capacidade de reduzir custos operacionais que permitiu a alguns galeristas manter a lucratividade. A volta do presencial traz um impacto nesse sentido, em especial com o aumento da cotação do dólar e do euro. “Participar de feira física, por exemplo, é caríssimo. Atualmente está mais caro ainda, porque os custos de logística mais do que duplicaram”, destaca Roesler. 

Nos anos anteriores à pandemia, as feiras eram responsáveis por quase 50% das vendas de galeristas ao redor mundo, segundo o relatório da Art Basel e UBS. Em 2020, esse número caiu para 13% em decorrência dos eventos cancelados. Diversos galeristas no Brasil e no mundo apontam que essa diminuição na dependência das feiras pode ter vindo para ficar. Segundo reportagem do The Art Newspaper, só em 2019 aconteceram 178 feiras de arte paralelamente a bienais ou trienais e às exposições de museus e galerias. “É um sistema predatório. Não há casa que consiga bancar financeiramente todo esse investimento”, compartilha André Millan. “Quando você para um pouco, percebe que não fez nenhuma feira [em 2020] e continuou vendendo bem, aí você se pergunta: será que realmente preciso fazer tudo isso?”, indaga Roesler.

Para Thiago Gomide e Thais Darzé (Paulo Darzé Galeria), a pausa decorrente da pandemia permitiu que os galeristas – geralmente imersos em rotinas intensas de eventos – pudessem pensar sobre o quanto o custo operacional e o processo de estresse, cansaço e expectativa revertem financeira e institucionalmente. O resultado brasileiro parece conversar com as previsões estrangeiras, que apontam uma diminuição das viagens e participação em feiras por parte das galerias. Márcio Botner, sócio d’A Gentil Carioca, por outro lado, acredita que a tendência seja uma retomada muito próxima ao que existia antes. “Claro que dá uma sensação de que talvez não dê para ser tão veloz assim, que talvez fosse melhor de alguma outra maneira, mas continuo achando o contato presencial fundamental”, afirma o carioca. Apesar das discordâncias, a opinião não destoa totalmente da postura dos demais galeristas, que defendem que mesmo com a diminuição da dependência das feiras, não é possível se desprender completamente, seja pelas possibilidades de vínculo e socialização criadas, pelos resultados em vendas a longo prazo ou pela expansão para outros mercados. 

Estande da Cassia Bomeny Galeria na ArtRio. Foto: Divulgação

Os resultados dos dois maiores eventos nacionais em 2021 demonstram, de fato, que o interesse nas feiras segue elevado. Ao longo dos cinco dias de evento, a SP-Arte – que esse ano trocou o Pavilhão da Bienal (25 mil m2) pelo galpão ARCA (9 mil m2) – recebeu cerca de 18.500 pessoas, esgotando praticamente todos os ingressos disponibilizados, e contou com 40 mil acessos em sua versão virtual. Para a Gomide & Co., a feira apresentou um dos melhores resultados do ano. A Verve Galeria vendeu 95% do primeiro acervo exposto e a Portas Vilaseca vendeu a totalidade de obras selecionadas antes mesmo do fim do evento. A ArtRio, por sua vez, contou com 14.500 pessoas na versão física e, pouco após a edição, anunciou sua expansão em uma nova empreitada: a ArtSampa, uma feira em território paulistano com data já marcada para março de 2022.

Cabe, porém, destacar que ambas as feiras – assim como as internacionais – aconteceram de forma mais local, com menos expositores e visitantes estrangeiros, em decorrência das dificuldades de trânsito entre países provocadas pela pandemia. Outras alterações de público também foram notadas, não só nas feiras, mas na cena artística como um todo.

Entre ativismo e financeirização

Mesmo sendo um movimento já perceptível ao longo dos últimos anos, o período pandêmico viu se intensificar a entrada de novos compradores no mercado de arte, especialmente jovens, alguns dispostos a ter uma postura mais “ativista”, outros interessados em fazer negócios. Este movimento, verificado globalmente, inclui especialmente os chamados millenials – geração que tem hoje entre 20 e 40 anos -, como mostra a pesquisa da Art Basel e UBS: “A mudança para o digital trouxe melhorias na transparência de preços, acesso a informações e aos artistas. A redução das barreiras de entrada no mercado permite o desenvolvimento de uma base mais ampla de novos colecionadores em diferentes níveis de preços”, diz o relatório.

Ao menos parte dos galeristas brasileiros percebeu este movimento em seu dia a dia. “Houve um crescimento de compradores de 35 a 45 anos. Não foram apenas os colecionadores tradicionais que alimentaram o mercado de arte neste período, mas sim novos. Ou talvez pessoas que nem sejam ainda colecionadores, mas novos compradores com potencial de se tornar colecionadores”, afirma o galerista Murilo Castro. Gomide e Strina, que trabalham com obras em faixas de preços mais elevadas, também perceberam a mudança, por mais que ressaltem que a manutenção dos velhos compradores seja essencial.

“É um público consistente e que já chega com muita informação”, relata Cravo, atuante há 40 anos no mercado. “Até os anos 1990 sinto que a gente precisava informar muito mais o novo cliente, que vinha com vontade, mas muito cru. Hoje você observa o jovem que já pesquisou, que sabe o que gosta, que já vem com material para iniciar o diálogo. Acho que isso também tem muito a ver com a internet, com esse enorme acesso à informação”. Tem a ver também, segundo Perlman, com a expansão de uma rede de profissionais qualificados voltados a apoiar este mercado, desde os chamados art advisors e avaliadores até os catalogadores e restauradores, entre outros. “Ou seja, toda uma infraestrutura de serviços que facilita o crescimento do mercado”, explica. 

Segundo Brenda Valansi, o impacto desta geração mais jovem foi sentida na ArtRio de 2021, e se relaciona também a uma produção mais engajada no país: “O que eu percebo que acontece no mercado, em decorrência do contexto político e social, é uma mudança na escolha dos artistas e dos assuntos tratados, que acompanham as discussões que estão acontecendo na sociedade. Junto a isso, há um fortalecimento de um colecionismo ativista, uma preocupação do colecionador em ser mais socialmente atuante, e isso se dá muito fortemente com as novas gerações. Então o mercado precisa também estar atento e oferecer outros caminhos”. Em uma escala global, o foco internacional na arte latino-americana e produzida por grupos minorizados – negros, indígenas, mulheres ou população LGBTQIA+ – também favorece o mercado brasileiro. Servem como exemplo – em uma faixa mais elevada de preços – a venda realizada pela Gomide & Co. para o Guggenheim de Abu Dhabi, em 2020, de uma obra de Lygia Clark por cerca de R$ 10 milhões; ou a transação recente, em leilão da Sotheby’s Nova York, de um autorretrato da mexicana Frida Kahlo por quase R$ 200 milhões – valor recorde para uma obra de artista latino-americano.

Autorretrato “Diego y yo”, de Frida Kahlo, leiloado pela Sotheby’s, em novembro de 2021, por quase R$ 200 milhões – valor recorde para uma obra de artista latino-americano. Foto: Angela Weiss / AFP via Getty Images

Mas há ainda uma parcela cada vez mais significativa de compradores, como revelam pesquisas nacionais e internacionais, que está pouco – ou nada – preocupada com o conteúdo dos trabalhos, mas apenas com a arte enquanto investimento financeiro. Perlman, ao analisar dados divulgados este ano pela consultoria Deloitte, explica que há um grupo crescente de compradores mais jovens, “ligado a tudo que é digital, inclusive arte digital”, que entra no mercado para fazer negócios, ou seja, comprar e vender obras com relativa velocidade, não colecioná-las. Surgem cada vez mais, neste sentido, tipos de operações em que o comprador nem mesmo se torna dono da obra, mas apenas de uma fração do trabalho, como quem compra ações na Bolsa de Valores.

A desigualdade que não afeta o mercado

Para Thais Darzé, essa relação da arte como investimento talvez seja um dos motivos que leve os anos de pandemia a resultados bons de venda. “Obra de arte é um investimento material, muita gente em momento de crise opta por fazer esse tipo de transação”, diz. Com um acervo diverso, a Paulo Darzé Galeria apresenta obras de artistas jovens emergentes, bem como nomes consagrados, como Amilcar de Castro, Frans Krajcberg, Leda Catunda e Tunga. Os dois lados do negócio tiveram resultados muito distintos em 2021. “Temos um mercado de arte aquecido para obras mais caras, porque a crise impacta menos as grandes fortunas do país. No ponto de vista dos jovens artistas, o negócio fica bastante precário. São obras mais em conta, de artistas emergentes e o impacto de vendas é muito significativo.” 

A crise que se impõe sobre o país, inclusive na área cultural – com a paralisia na Lei de Incentivo a Cultura, a falta de investimentos nas instituições públicas e até mesmo o cerceamento à criação artística – não chega a afetar significativamente o mercado. “Acho que temos um desmonte acontecendo, um momento muito complexo em relação aos recursos públicos da cultura, mas de fato o mercado no Brasil é muito dependente dos colecionadores privados, e esses colecionadores continuam capitalizados, continuam fazendo o dinheiro circular de alguma forma, então não tem um impacto direto no mercado”, diz Bruna Bailune, das jovens Galeria Aura e Bailune Biancheri. As constatações vão de encontro ao contexto atual. Como aponta o relatório sobre riqueza global feito pelo banco Credit Suisse, a concentração de renda aumentou em todo o mundo no período da pandemia. No Brasil, vivemos o pior nível de concentração de renda desde 2000, com 49,6% da riqueza do país na mão de 1% da população. “Acho que tem muita grana no mercado de arte. Cada dia entram novos colecionadores e novos patronos. Sinto que estamos no início de um grande boom, que a próxima década vai ser a melhor que o mercado de arte já teve na história”, diz Thiago Gomide. 

A previsão do galerista não parece distante do que mostram as pesquisas. “O relatório da Deloitte mostra que o número de super ricos no mundo cresceu muito nos últimos anos, e que isso ainda não resultou num aumento proporcional nos números de venda de arte, o que significa que esse mercado ainda tem muito para crescer”, aponta Perlman. Segundo a pesquisa, até 2025 deve-se ver um grande crescimento no investimento em artes não só no Brasil, como em todo o mundo.


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