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2016 | O universo em três tons de cinza

Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006).
Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006). Foto: Luiza Sigulem

Duas pinturas em lona de 1985, ambas produzidas para uma disciplina de Nelson Leirner na Faap, foram as primeiras obras de Iran do Espírito Santo adquiridas por uma instituição. Foi Aracy Amaral, quando de sua gestão à frente do Museu de Arte Contemporânea da USP, entre 1982 e 1985, a responsável pela compra, e os dois trabalhos, os desenhos de um sofá e uma vitrola, encontram-se agora em cartaz na mostra A Casa, no próprio MAC, até 31 de julho.

Nos trabalhos de 30 anos atrás, ao representar objetos cotidianos, o artista já apontava para uma poética que segue até hoje. “Vejo meus desenhos de adolescente e percebo que sempre trabalhei com esse tema, assim como com referência à arquitetura”, afirma Espírito Santo, em seu amplo ateliê, recentemente inaugurado, e que mais parece uma galeria de arte. “De repente eu inverto meu papel e passo a vender arte”, brinca, sem de fato parecer sequer estar pensando nessa possibilidade.

Apesar da pintura em lona das obras no MAC, a técnica da moda em sua geração nos anos 1980 – Leonilson e Leda Catunda, por exemplo, contemporâneos da Faap, também usavam esse material –, esses primeiros trabalhos do artista estão mais próximos da geração de seus professores, como Leirner e Regina Silveira, do que de seus colegas. “Eu realmente nunca me identifiquei com a celebração da pintura daquela época”, afirma. A simplicidade nas linhas, que busca quase o desenho ideal dos objetos retratados – o que será uma constante em sua carreira – , tem a ver com a identificação com a arte conceitual a partir de um dado de personalidade: “Tenho uma cabeça mais analítica”, define-se. Essa simplicidade tem ainda muito a ver também com o desenho, uma prática constante, que no ano passado ganhou uma publicação exclusiva dedicada a ele, Desenhos, editada pela Cobogó.

“Extension/Fade Horizontal” (2007). Crédito: Giorgio Benni
“Extension/Fade Horizontal” (2007). Crédito: Giorgio Benni

Seu desenho alcançou uma dimensão muralista, em 1997, quando ele ocupou nada menos que 110 metros quadrados de uma área de passagem do Museu de Arte Contemporânea de São Francisco, nos EUA, simulando paredes de tijolos, em três tons de cinza. “As pessoas passavam por lá e perguntavam onde estava o trabalho”, relembra. Duas versões dele foram vistas em 2007: uma na principal sessão da Bienal de Veneza, outra na retrospectiva do artista na Estação Pinacoteca, em São Paulo.

A “invisibilidade” desses trabalhos murais pode ocorrer por conta da proximidade de seu trabalho com o design, área que serviu como forma de subsistência em agências de propaganda até os anos 80 e, ainda como freelancer, nos anos 1990, fazendo ilustrações e projetos gráficos. “Eu lembro quando trabalhei, entre 1986 e 1988, em um escritório em Londres e tinha que ficar desenhando garrafas rosinhas, o que me irritava profundamente, e acho que isso me motivou a fazer uma série de desenhos onde as garrafas eram apenas pretas”, conta. Contudo, enquanto a propaganda sempre visa idealizar o objeto de consumo, para assim convencer o consumidor de sua necessidade, Espírito Santo realiza uma operação contrária, que é buscar a forma ideal, como se chegasse ao mundo das essências, das formas puras, portanto inalcançável, como defendia Platão.

“Abat-Jour” (1996)
“Abat-Jour” (1996). Crédito: Everton Ballardin

Foi buscando, por exemplo, o “abajur essencial”, que ele criou sua primeira obra tridimensional, Abat-jour, a partir de um modelo simples do designer francês Philip Stark, convertendo todo seu volume em aço inoxidável, mantendo o formato do objeto. “Foi aí que eu cheguei a algo que buscava há muito tempo, que é quando a imagem forma uma dimensão arquitetônica e se relaciona com o corpo”, explica.

Desde então, copos, latas ou lâmpadas, entre outros objetos, ganham na obra do artista uma dignidade inédita, através do uso de materiais típicos da história da escultura clássica, especialmente o mármore. A série de caixas de sapato é um bom exemplo desse procedimento: realizada em paralelepípedos de mármore, uma saliência de apenas três milímetros transforma o elemento nobre na representação da embalagem. “É mágico”, admira-se Espírito Santo.

“Base fixa” (2016).
“Base fixa” (2016). Crédito: Gui Gomes

Essa valorização de objetos banais, muitos deles sempre em processo de descarte, ganhou o ápice em sua mostra mais recente na Fortes Vilaça, Fuso, na qual a maior sala da galeria foi ocupada por apenas quatro conjuntos de porcas e parafusos, só que 18 vezes maior que o modelo original e pesando mais de uma tonelada. Com o título Base Fixa, a obra cria “uma espécie de praça/chão de fábrica”, segundo o texto escrito pelo artista na primeira vez que ele torna pública a análise de sua própria obra.

Se sobre seu trabalho ele costuma ser discreto, sobre a situação do País, Iran do Espírito Santo é bastante eloquente. Ao contrário de muitos artistas que usam as redes para propagandear suas obras, para ele, esse é um espaço de militância política. Sua vida pessoal tampouco é exposta no Facebook. “Não é todo artista que sabe fazer arte política, eu faço o trabalho que tenho que fazer, mas é a opinião política que acho importante, assim como a maneira de se relacionar com o mundo da arte”, defende.

Por isso, ele conta que entrou no Facebook, em 2014, para se manifestar a favor de Dilma no segundo turno das eleições, o que acabou lhe rendendo o convite para participar do último ato da campanha, em São Paulo, no palco do Tuca, sentando-se ao lado do escritor Raduan Nassar. “Só não fiz foto ao lado dela porque sou tímido, mas senti uma profundidade em seu olhar que admiro”, conta.

Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006).
Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006). Crédito: Luiza Sigulem

Depois da reeleição, o artista deixou as redes sociais, mas voltou novamente agora em 2016 por conta do impeachment e para protestar contra o golpe. Em meados de junho, seus posts, mais de uma dezena por dia, compartilhavam críticas às posturas reacionárias do governo interino, como a promessa de fechamento da TV Brasil. “Por conta de tudo isso, me dá vontade de fazer uma arte política, mas eu não sei como. A postura que admiro é a de artistas como Jenny Holzer e Barbara Kruger”, explica.

Apesar de realmente não estar próximo da contundência de Kruger, é difícil não perceber que expor porcas e parafusos em uma galeria de arte seja um ato político. Afinal, enquanto se engendrava o golpe, de caráter claramente elitista, que visa brecar os avanços sociais da última década, criar um monumento a partir de objetos manipulados por trabalhadores braçais é dar visibilidade aos instrumentos de uma classe que não costuma estar aparente no circuito da arte.

2016 | Guto Lacaz, um maior abandonado

O artista em seu ateliê.
O artista em seu ateliê. Foto: Luiza Sigulem

Aos 68 anos e com mais de 40 de carreira, Guto Lacaz vendeu apenas agora, em 2016, uma obra a uma instituição de arte. Criada há quase 30 anos, Eletro Esfero Espaço, em cartaz na exposição Situações: a Instalação no Acervo da Pinacoteca do Estado até 20 de fevereiro de 2017, integra desde o início do ano o acervo da instituição.

“Em janeiro já ganhei meu ano, com a carta do José Augusto Ribeiro, pela Pinacoteca, confirmando a compra dessa obra”, conta Lacaz em sua residência e ateliê nas imediações do Parque Ibirapuera.

Foi exatamente no parque, aliás, no Pavilhão da Bienal, que Eletro Esfero Espaço foi vista pela primeira vez, na exposição A Trama do Gosto, em 1987, organizada pela Fundação Bienal, entre a 18ª e a 19ª bienais de São Paulo. “Eu participei da 18a edição, em 1985, a convite da Sheila Leirner para realizar a Eletroperformance”, recorda Lacaz, que então pediu à curadora um espaço para apresentar um novo trabalho. Contudo, reação nada anormal diante da grande responsabilidade e visibilidade que a Bienal propicia, “me deu um branco e acabei fazendo uma sala careta”, admite agora.

Foi na próxima ocupação no prédio projetado por Oscar Niemeyer que Lacaz conseguiu compensar a participação morna no evento.  A Trama do Gosto – Um Outro Olhar sobre o Cotidiano, com mais de cem artistas, entre eles Regina Silveira, Nelson Leirner, Bené Fonteles e Leon Ferrari (1920-2013), organizava-se como uma cidade, com módulos como Diversões Eletrônicas, Arranha Céu e Livraria, entre outros.

Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz
Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz

“O Antenor Lago, um dos curadores, pediu que eu fizesse uma loja de eletrodomésticos”, lembra Lacaz. O tema não era estranho a ele. Sua já conhecida Eletroperformance era realizada com eletrodomésticos, uma paixão que teve início quando estudou eletrônica no segundo grau, mas que de fato ganhou proporção nas lojas de departamento da cidade. “A Sears era minha biblioteca, era como o MoMA para mim. Lá tinha de tudo, de brinquedos bárbaros a tecnologia de ponta”, relembra com admiração.

Foi da Sears, justamente, que ele copiou a ideia para a obra de A Trama do Gosto. “Eu me recordo de ver na vitrine um aspirador de pó que sustentava uma bola plástica no ar; então eu simplesmente criei um corredor por onde o visitante passava, como se fosse saudado por várias espadas, mas eram 26 aparelhos”, explica.

Por sorte, naquela época, alguém na Fundação Bienal tinha um parente que trabalhava na Black & Decker, fabricante do eletrodoméstico, e conseguiu o empréstimo dos aparelhos. “Eu mesmo me surpreendi com a facilidade”, conta. Para disfarçar o som ensurdecedor do conjunto, ele cedia ao público um Walkman com um trecho de Thannhäuser, de Richard Wagner (1813-1883), o que dava um ar solene à visita.

Eletro Esfero Espaço foi um sucesso de crítica e público: a instalação tinha filas permanentes na mostra no pavilhão da Bienal e a curadora Aracy Amaral a selecionou para a mostra Modernidade – Arte Brasileira no Século 20, em Paris, em 1988, apresentada também no Museu de Arte Moderna de São Paulo no mesmo ano. “Cheguei na França achando que ia conquistar o mundo, mas não saiu uma linha sobre minha obra”, lembra-se da frustração. Depois de Modernidade, a instalação nunca mais foi vista pelo público, o que revela uma notável pesquisa da curadoria da Pinacoteca, já que nem galeria que o represente Lacaz possui. “Eu sou um maior abandonado”, ironiza.

Por trás da afirmação sarcástica, ele aponta, contudo, que não é através de lobby que sua obra é conhecida. Tem sido assim, de fato, desde o princípio. Ele estudou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos, em 1974, e conseguiu se graduar na única turma que a instituição experimental formou, por conta da dificuldade em sobreviver durante a ditadura. Trabalhou com arquitetura até 1978, quando foi demitido em meio a uma das crises que o País atravessou.

Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz
Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz

Guto Lacaz não tinha formação em arte, mas criava pequenas traquitanas. Um dia ele mostrou à sua prima Raquel Arnaud, que lhe explicou: “Você está fazendo objetos”, recorda. Foi então que decidiu enviar 14 deles para a Primeira Mostra do Móvel e do Objeto Inusitado, organizada em 1978, no Paço das Artes, quando a instituição funcionava no MIS – o que voltou a ocorrer este ano –, entre eles Crushfixo, uma garrafa do refrigerante presa em uma caixa.

“Além de ganhar um prêmio, meus trabalhos ilustravam a matéria de várias páginas da revista Veja”, conta Lacaz, sobre a época em que a publicação merecia respeito.

Assim, aos 27 anos, ele foi comparado a Duchamp, sem “ter ideia de quem ele era” e decidiu que era hora de estudar arte, mesmo sem “nunca ter pensado em ser artista”. O começo foi no ateliê de Dudi Maia Rosa, com quem ele tinha aulas na companhia de Carlos Fajardo e Luiz Paulo Baravelli, entre outros.

A performance teve início em 1982, quando Ivaldo Granato convidou Lacaz junto a outros 59 artistas para, no Centro Cultural São Paulo, cada um realizar uma ação de um minuto. “Usei um toca-discos, meu primeiro aparelho doméstico. Para mim foi incrível estar no palco, com frio na barriga e adrenalina bombando.” Desde então, não parou mais. A mais recente ação, denominada Ludo-voo, é uma performance composta por 20 cenas com objetos voadores, uma das obsessões do artista.

Na prática, contudo, apesar de já ter exposto em muitas galerias importantes da cidade – Subdistrito, São Paulo, Luisa Strina e Marília Razuk – e ter participado de muitas mostras, além de ter ganho a Bolsa Guggenheim, em 1989, foi com o trabalho gráfico que ele sobreviveu de fato.

“Nunca vendi uma exposição inteira, sempre volto para casa com quase tudo. O retorno em artes plásticas é muito lento. Imagina, vendi minha primeira instalação agora, quase 30 anos depois dela montada”, resigna-se, sem perder o foco no trabalho. “Tenho três exposições prontas aqui no andar de cima de casa, mas vou esperar o vento soprar e a hora que chegar, chegou.”

2016 | Instabilidade sob controle

Nuno Ramos.
Nuno Ramos. Foto: Manoel Marques

Cerca de 20 mil tijolos caindo de uma carroceria de caminhão recebem os visitantes da mostra de longa duração Migrar: Experiências, Memórias e Identidades, no segundo andar do Museu da Imigração, na zona leste de São Paulo.

Os tijolos e a carroceria são parte da instalação É Isto um Homem?, de Nuno Ramos, artista acostumado a provocar o espectador como na histórica Bandeira Branca, a obra que mobilizou a opinião pública em torno da presença de urubus durante a 29ª Bienal de São Paulo, há seis anos.

A única obra de arte contemporânea no Museu da Imigração foi escolhida a partir de uma concorrência com duas artistas – Rosângela Rennó e Carmela Gross – e criada por inspiração do livro É Isto um Homem?, de Primo Levi (1919-1987), judeu e italiano sobrevivente de um campo de concentração. “Sou muito fã desse livro porque ele apresenta um debate ético sobre os limites da vida em uma situação hedionda”, conta Ramos à ARTE!Brasileiros durante a montagem de uma grande mostra no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte, intitulada O Direito à Preguiça.

Reinaugurado há dois anos, o Museu da Imigração aborda os diversos fluxos migratórios que São Paulo recebeu desde o século XIX e, com a obra de Nuno Ramos, evita logo na entrada uma narrativa que mitifique a temática. “É sobre a carga que destrói”, resume Ramos. Compõe ainda a instalação uma vitrine de vidro contendo uma cadeira com um tijolo sobre seu assento de frente para uma caixa de som. Dela se ouve um trecho do livro de Levi em sete idiomas na voz do próprio artista – o som tem sido elemento recorrente nas obras de Ramos.

Para a execução da obra, o edifício histórico onde ele se encontra, construído a partir de 1886 para servir de hospedaria a imigrantes europeus, precisou passar por reforços estruturais. Não é incomum que obras do artista se tornem desafios de produção, já que faz parte de seu conceito trabalhar nos limites da matéria. Tem sido assim, aliás, desde os anos 1980, quando Ramos começou a pintar, acumulando tinta de forma tão exagerada nas telas que muitas dessas obras precisam de manutenção constante.

Seria essa poética uma forma de deixar o acaso agir na obra? “Acho que não. Basicamente eu tento liberar o material, mas sempre com certo controle”, explica Ramos. No caso de É Isto um Homem?, os tijolos caíram do caminhão por conta de uma torção provocada por macacos hidráulicos, operação que o artista já havia testado em outro lugar antes.

Ramos é desses artistas que reinventam seus procedimentos de forma constante. Aliás, poucos artistas visuais são tão multifacetados como ele. Escritor de vários livros – o premiado ÓJunco e O Pão do Corvo, entre eles; compositor – Mariana Aydar lançou no ano passado um disco só de composições suas; e ensaísta, Nuno Ramos se destaca por sua versatilidade.

“É isto um homem?”
“É isto um homem?”, vista da exposição no Museu da Imigração, São Paulo, 2014

A passagem de telas abstratas da década de 80 para obras com temática política é outro dos diferenciais de Ramos entre os artistas de sua geração, especialmente aqueles com quem dividia o ateliê da Casa 7  – Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade, Carlito Carvalhosa e Fabio Miguez –, que, em 1983, passou a sediar a pintura paulista inspirada no neoexpressionismo alemão.

Nesse sentido, 111, instalação de 1992, criada logo após o massacre no Carandiru, representa a entrada de Ramos na arte que aborda questões da realidade sociopolítica do País.  Nela, cada vítima era representada por um paralelepípedo coberto por asfalto e breu e, em cada, uma impressão em clichê de chumbo informava o nome do morto, além de uma cópia de notícia de jornal sobre o episódio e cinzas de páginas queimadas da Bíblia. “Eu me impressionei muito com a fisicalidade da violência e busquei criar um memorial dela que não fosse literal”, explica.

Já Bandeira Branca, aquela feita para a 29ª Bienal, em 2010, foi criada em um período de euforia econômica brasileira, muito distinto do momento atual. A imensa instalação, selecionada pelo curador Moacir dos Anjos, colocava no centro do pavilhão da Bienal um cenário pós-apocalíptico, com volumes escuros e sombrios e os urubus ao redor, como se estivessem em meio a ruínas. Seria uma imagem perfeita para representar a tristeza dos dias de hoje. “Eu me orgulho de ter feito aquilo em um momento de otimismo histérico. Pena que o debate com os urubus tenha levado o trabalho para um discurso ecológico”, comenta.

Em abril, Ramos inaugurou no CCBB mineiro a mostra O Direito à Preguiça, tendo como peça central uma imensa instalação no pátio do edifício centenário  com andaimes metálicos que são usados como instrumentos de sopro. “O trabalho é a música”, diz ele.

Como em vários de seus trabalhos, Nuno Ramos parte do pensamento de outros intelectuais, e no caso agora é do genro de Karl Marx, Paul Lafargue (1842 – 1911), que escreveu o panfleto “O Direito à Preguiça”, em 1880, quando as jornadas de trabalho na França ultrapassavam 12 horas diárias. Hoje, por conta da internet e da constante troca de e-mails, novamente os horários de trabalho se estendem de forma abusiva, comentário inerente e irônico na nova instalação do artista.

Assim, os andaimes, típicos do ambiente de trabalho de construção civil, se tornam um objeto lúdico: um instrumento musical  – graças a um compressor que assopra ar nos tubos e toca de forma lenta O Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Aqui, novamente, Ramos parte de elementos cotidianos, como os tijolos e a carreta, para transformar seu significado. “O meu lugar é onde a matéria vira sentido e o sentido vira matéria”, define.

Sem correr o risco da ilustração, O Direito à Preguiça se revela como um bom exemplo da estratégia poética de Nuno Ramos: “Não quero chegar no real como um valor, quero buscar aquilo que está escondido, onde nasce o que é essencial.”

2016 | Quando a lógica é não ter lógica

Antonio Malta Campos.
Antonio Malta Campos. Crédito: Luiza Sigulem

O ano de 2016 será o 1985 de Antonio Malta Campos. Trinta e um anos atrás, o artista não participou da Bienal de São Paulo por um desses desvios que podem ocorrer em qualquer carreira e que representam um caminho mais longo para se chegar ao mesmo lugar, só que muito tempo depois.

Em seu caso, o que atrasou sua entrada no Olimpo da arte brasileira foi o fato de ele ter abandonado o ateliê Casa 7, em 1983, um ano após ter fundado o espaço com Carlito Carvalhosa, Paulo Monteiro, Fábio Miguez e Rodrigo Andrade. Depois de sua saída, os quatro se destacaram em meia à onda do retorno à pintura da década de 1980 e todos acabaram selecionados para a 18ª Bienal de São Paulo, em 1985. Menos ele.

“Capacete”, Antonio Malta Campos e Antonia Baudouin.
“Capacete”, Antonio Malta Campos e Antonia Baudouin. Crédito: Luiza Sigulem

“Eu me apaixonei e fui dividir ateliê com minha namorada, Maina Junqueira, com quem tive minha filha. Acabei não sendo escolhido para a Bienal, deixei de pintar por cinco anos e retornar depois disso é mais difícil”, contou Malta Campos, em seu ateliê no bairro de Santa Cecília, na véspera da retirada das obras que vai apresentar na 32ª Bienal de São Paulo. Entre 1990 e 1995, ele trabalhou em um grande escritório de arquitetura, sua área de formação. “Foi aí que percebi que não tinha futuro como arquiteto e voltei a pintar no fundo da casa de meus pais”, recorda-se.

Em Incerteza Viva, ele comparece com duas séries: quatro dípticos de grande dimensão e cerca de 200 Misturinhas, que tiveram início em 2000. Essa série tem apenas um princípio: é sempre feita no mesmo formato, em papel Holler, uma espécie de papel-cartão de pequeno tamanho, com apenas 20 x 25 cm. “A lógica é não ter lógica. A proposta é não racionalizar muito, o que tem a ver com as colagens cubistas que admiro muito”, resume. Nelas, pode-se usar qualquer tipo de tinta, desenhar e mesmo fazer colagens, técnica que foi adicionada em 2003.

“Dimensão”, Antonio Malta Campos
“Dimensão”, Antonio Malta Campos

“Comecei a fazer essa série por sugestão do Marcelo Cipis, esse trabalho foi uma ideia dele. Cada um fazia um e mostrava para o outro”, explicou, ao lado de duas caixas repletas de Misturinhas.

Elas são caracterizadas por ele como “um exercício experimental”, em geral realizadas após o almoço, e sempre produzidas em quantidade. Enquanto para terminar uma pintura convencional Malta Campos leva cerca de um mês, em poucas horas ele realiza cinco ou seis Misturinhas. “Na minha cabeça, elas não eram um trabalho importante, e só mostrei em uma exposição na galeria Virgílio, em 2004, e depois no Centro Cultural São Paulo, em 2012, por insistência da minha filha e da minha mulher”, conta.

O artista em frente aos dois trabalhos.
O artista em frente aos dois trabalhos. Crédito: Luiza Sigulem

A mostra em 2012, realizada com Erika Verzutti, também selecionada para a 32ª Bienal, com curadoria de José Augusto Ribeiro, é considerada por ele sua volta ao circuito de fato. “Foi esta exposição que me recolocou. Após ver a mostra, a Philly Adams, diretora da Saatchi Gallery, comprou quatro trabalhos e os expôs em Londres na sequência”, diz Malta Campos.

A Saatchi Gallery, do publicitário inglês Charles Saatchi, que nos últimos tempos frequentou as páginas policiais dos jornais por ter sido pego apertando, em público, a garganta da ex-mulher Nigela Lawson, é uma incubadora de novas promessas, graças ao estilo do colecionador. Menos um amante da arte, Saatchi é conhecido por investir em novos talentos, como fez nos anos 1990 com a chamada Nova Geração Britânica (Young British Artists), tendo Damien Hirst à frente. “Ele chegou determinando o preço, que era abaixo do comum, mas era aceitar ou não”, conta Malta Campos, que vendeu quatro telas a ele.

Foi ainda no Centro Cultural São Paulo que o curador da 32ª Bienal, Jochen Volz, viu, em 2012, a obra do artista. “Eu mesmo nem me lembrava, mas ele me recordou, quando esteve aqui no ateliê, que a Erika nos apresentou na mostra”, diz.

Nessa visita ao ateliê, junto com a curadora-adjunta Júlia Rebouças, Volz selecionou os trabalhos de grandes dimensões e também o grande conjunto de Misturinhas. Para uma bienal que trata de questões um tanto concretas, mesmo que parte delas passe por um sentido meio exotérico, a seleção de Malta Campos pode ser vista com certa surpresa. “Eu sou um estranho no ninho, mas acredito que meu trabalho tenha sido escolhido por ter uma entrada mais visual”, especula.

“Mapa Mundi” (2015), Antonio Malta e Antonia Baudouin
“Mapa Mundi” (2015), Antonio Malta e Antonia Baudouin

De fato, tanto as pinturas quanto as Misturinhas são obras de um forte apelo visual, construídas com formas bastante estranhas, longe da pintura certinha, bem acabada e de efeito que hoje é valorizada, com Beatriz Milhazes à frente dessa tendência.

Para o artista, contudo, sua obra está em diálogo direto com modernistas como Picasso ou mesmo Burle Marx. Em muitas de suas telas, seria possível ver algo das vistas aéreas dos jardins projetados pelo alemão radicado no Rio de Janeiro, mas para Malta Campos isso é apenas coincidência. “Bebemos todos na mesma fonte, que é a manipulação das formas”, defende. Como típico membro da chamada Geração 80, ele lembra que a pintura daquela época era uma reação à arte conceitual da geração anterior e que as maiores referências eram justamente os modernistas. “O curioso, no meu caso, é que agora estou sendo incluído em meio a uma turma que volta à arte conceitual”, espanta-se.

Desde que iniciou as Misturinhas, Malta Campos produziu cerca de 550 peças e algumas viraram esboços para as pinturas de grande formato. Na 32ª Bienal, as pinturas que ele vai expor foram realizadas com assistência de Antonia Baudouin, estudante de cinema, e que ganha crédito no trabalho por ir além de apenas pintar conforme sua orientação. “Em um dos trabalhos, há um verdadeiro diálogo; eu pintava uma imagem e ela respondia com outra”, conta. Outro aporte da assistente é que, pela primeira vez em sua carreira, as telas ganham título.

Com esse método colaborativo na pintura e experimental nas Misturinhas, Malta Campos, afinal, parece fazer todo sentido em Incerteza Viva. Há 30 anos, ele seria apenas mais um pintor em meio a dezenas de tantos outros. Agora, é um pintor com procedimentos contemporâneos. Nem sempre os caminhos mais curtos são os melhores.

Muitos usos para o JA.CA

Kombi de JA.CA
A Kombi utilizada para o projeto Dispositivo Móvel para Ações Compartilhadas no JA.CA (2015). Foto: Divulgação

Procurar uma definição única que explique o que é o JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia é uma tarefa ingrata. Espaço independente de arte; coletivo artístico; organização sem fins lucrativos; espaço de residências; centro de educação e pesquisa; associação voltada à gestão cultural; e várias outras definições poderiam ser usadas. E nenhuma estaria errada. Oficialmente, é possível afirmar que o JA.CA – com nome derivado de Jardim Canadá, bairro de Nova Lima (MG) onde nasceu – surgiu como uma proposta de projeto de pós-graduação sobre práticas coletivas e é hoje uma Organização da Sociedade Civil. Mas isso diz muito pouco sobre a sua atuação, que será expandida com a inauguração de um espaço em Belo Horizonte, o Arrudas, em parceria com a galeria Periscópio.

“As pessoas ficaram muito tempo para entender  o que era o JA.CA. A gente queria que fosse um laboratório, lugar de pesquisa, mas no começo acabava funcionando mais como galeria. Demoramos para nos colocar exatamente como queríamos”

Francisca Caporali

“De modo amplo, entendemos o JA.CA como um espaço de formação. Mas a beleza de participar de um projeto como esse é que podemos ter poucas certezas e trabalhar com mais duvidas. Ou seja, hoje nos entendemos e praticamos um modo que pode ser drasticamente alterado em outro momento”, afirma Caporali. De fato, o JA.CA já mudou de endereço, diminuiu ou cresceu seu tamanho diversas vezes e desenvolveu variadas estratégias de sobrevivência ao longo dos anos, por vezes de modo mais experimental, por outras em diálogo mais próximo a um universo de prestação de serviços.    

Para entender tamanha pluralidade e elasticidade, é preciso percorrer brevemente a história do espaço. Concebido por Francisca Caporali quando cursava o mestrado em Nova York, o JA.CA foi inaugurado em 2010, quando a artista voltou à Belo Horizonte e se juntou aos amigos Pedro Mendes e Xandro Gontijo. Com verbas captadas pela Lei Rouanet, o trio abriu o espaço no Jardim Canadá, bairro de história bastante peculiar na cidade de Nova Lima, parte da Região Metropolitana de Belo Horizonte, e iniciou suas atividades que incluíam principalmente residências e exposições. “As pessoas ficaram muito tempo para entender o que era o JA.CA. A gente queria que fosse um laboratório, um lugar de pesquisa, mas no começo acabava funcionando mais como uma galeria. Até porque os artistas quando entram em um espaço assim logo pensam em montar uma exposição. E demoramos para nos colocar exatamente do modo que queríamos”, explica Caporali.

A equipe do JA.CA em sua sede no Jardim Canadá, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
A equipe do JA.CA em sua sede no Jardim Canadá, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Foto: Divulgação

A escolha do Jardim Canadá se deu por conta das relações de origem familiar que os três fundadores possuíam com o local. A história do bairro remonta aos anos 1950, quando foi lançado o loteamento, mas por falta de infraestrutura a região só passou a ter uma ocupação intensa nos anos 1980. Mais próximo da zona sul de Belo Horizonte do que do centro de Nova Lima, o Jardim Canadá encontra-se incrustrado entre as margens de um parque natural, uma área de mineração, condomínios de luxo e uma rodovia federal. A ocupação inicial, com moradias de empregados dos condomínios, galpões industriais e serviços ligados à rodovia se diversificou com o tempo. “É um lugar estranho, que viveu um processo de especulação intenso, mas que nunca acontece totalmente. Hoje é muito mais urbanizado do que há dez anos, sendo um bairro que encontrou também uma vocação da cerveja artesanal e da gastronomia. Mas é um local com muita desigualdade interna e cheio de paradoxos”, conta Caporali.

Novos caminhos

A partir de uma compreensão melhor do entorno, o JA.CA percebeu que a enorme quantidade de resíduos gerados pelas empresas, mineradoras e condomínios poderiam se tornar material de trabalho, tanto para os artistas residentes quanto para os projetos próprios do espaço. Nesse cenário, a criação da marcenaria, em 2012, e a entrada de Mateus Mesquita – Pedro e Xandro acabaram se afastando, o primeiro para tocar a galeria Mendes Wood –, além de parcerias com estudantes de arquitetura da UFMG, abriram novos caminhos de experimentação para o JA.CA. São dessa época projetos como o Ponto de Ônibus Expandido, realizado com madeira descartada no bairro, e o DESEJA.CA, que utilizou materiais para projetos de marcenaria, tecelagem, estamparia e design.

A mudança do JA.CA para a sede atual, após aumento exorbitante no aluguel do antigo espaço com o asfaltamento da rua na qual se localizava, ocorreu em 2014, a partir da construção em novo terreno do mesmo bairro de um espaço dividido em seis containers. Pensada de maneira transportável ou desmontável, a sede se torna menos vulnerável à especulação imobiliária que já fez o JA.CA mudar de lugar duas vezes. Marcenaria, biblioteca, área de convivência, cozinha e todos os espaços poderão ser transportados com relativa facilidade caso haja necessidade.

Kombi de JA.CA
A Kombi utilizada para o projeto Dispositivo Móvel para Ações Compartilhadas (2015). Foto: Divulgação

A aproximação de Caporali com Samantha Moreira – fundadora do Ateliê Aberto (1997) em Campinas, um dos mais longevos espaços autônomos do país – se deu mais intensamente a partir do Indie. Gestão, criado em conjunto pelos dois espaços e realizado em 2014. O projeto, financiado através de uma premiação da Funarte, se propôs a mapear espaços de gestão independente – em uma época em que existiam muitos deles, antes da crise e do desmonte cultural no país – em diferentes cidades e colocá-los em diálogo em uma “residência artística”. Ou seja, ao invés de fazer uma residência de artistas, foi organizada uma residência com representantes destes “espaços intencionais”, como foram chamados à época.

“Uma coisa muito forte nos espaços independentes são as festas, a cozinha, esse lugar afetivo que toda casa tem. É nesse fazer junto, no cozinhar, nas conversas informais, que acontecem muitas aproximações, muitas parcerias”, explica Moreira. Desse modo, toda a residência foi pensada a partir da comida, “da digestão e da indigestão”, para, na verdade, discutir a gestão de espaços independentes – suas potências, estrutura, formação de equipes, projetos, sustentabilidade etc. “E como ter um espaço destes é ter que fazer de tudo, se desdobrar, o subtítulo do projeto era ‘como assobiar e chupar cana ao mesmo tempo’.”

Peças de marcenaria produzidas para o projeto DESEJA.CA, em 2011.
Peças de marcenaria produzidas para o projeto DESEJA.CA, em 2011. Foto: Divulgação

Outros projetos marcantes do JA.CA ao longo dos anos seguintes foram o Dispositivo Móvel para Ações Compartilhadas (2015) e o Praça Viva (2016). No primeiro, a partir da compra de uma Kombi e da aprovação no edital Rumos Itaú Cultural, seis artistas (ligados também à gastronomia, arquitetura e outras áreas) foram selecionados para uma residência de 60 dias para desenvolver ações itinerantes com a Kombi. “Fizemos projeções de filmes, performances, uma escola portátil, cozinha. Isso permitia sair da sede e amplificar as ações: não a comunidade indo até o JA.CA, mas nós e os artistas indo até a comunidade”, diz Moreira.

Já em Praça Viva (2016), o JA.CA se associou a professores e alunos da Escola Municipal Benvinda Pinto Rocha para ocupar uma área pública que deveria ser uma praça – segundo o planejamento urbano do bairro – mas que era utilizada como estacionamento de caminhões. Após negociar com empresas, o JA.CA se utilizou de materiais descartados no bairro para, ao lado das crianças,  finalmente transformar o espaço em uma praça pública.

Grandes passos

Ao longo dos anos, além dos projetos no bairro, o JA.CA expandiu suas atividades para fora do Jardim Canadá, seja em Belo Horizonte ou em parcerias com instituições de outras cidades. Houve, por exemplo, a criação de um espaço para ateliês de artistas no centro da capital mineira, além da organização de debates, palestras ou mostras de audiovisual em diferentes locais. Todo o processo e o aprendizado de anos culminou, no final de 2017, na aprovação de um projeto do JA.CA para realizar o projeto educativo dos quatro espaços do CCBB, em Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. “Passamos de menos de 10 pessoas para cerca de 100”, conta Caporali, reafirmando mais uma vez a necessidade do JA.CA de se adaptar a novas circunstancias.

“Nós duas temos essa formação artística e já tivemos nossos trabalhos autorais. Nesse momento queremos estar mais em projetos coletivos do que individuais, mas não deixamos de pensar isso tudo como nossos trabalhos de arte”

Samantha Moreira

Para o trabalho com o CCBB, o JA.CA aprofundou sua atuação na área pedagógica e, por mais que vinculado a uma grande instituição com regras e diretrizes próprias, não deixou de carregar sua bagagem como um espaço independente e experimental de arte – inclusive levando artistas e curadores para os processos no CCBB. “Temos que entender como atuar em cada lugar, mas sempre mantendo uma coerência e uma autonomia de trabalho. E acreditamos muito nesse lugar do encontro, da convivência, que rege todos os nosso projetos”, diz Moreira.

Ainda em 2018, outra novidade foi a escolha do JA.CA, a partir de um edital da prefeitura de Belo Horizonte, para coordenar a 7a edição da Bolsa Pampulha, vinculado ao Museu de Arte da Pampulha. Com a seleção de dez artistas participantes, o JA.CA coordenou os seis meses de atuação dos artistas ao lado dos curadoras Julia Rebouças, Beatriz Lemos e Monica Hoff.

Visita de crianças com o Educativo do CCBB
Visita de crianças com o Educativo do CCBB. Foto: Divulgação

Em todos esses projetos, seja em um trabalho com a comunidade, em uma residência no Jardim Canadá, no CCBB ou na Bolsa Pampulha, Moreira e Caporali ressaltam o desejo de acompanhar de perto e participar de modo criativo de todos os processo. “Pois entendemos tudo isso também como nossos trabalhos artísticos. Nós duas temos essa formação artística e já tivemos nossos trabalhos autorais. Nesse momento queremos estar mais em projetos coletivos do que individuais, mas não deixamos de pensar isso tudo como nossos trabalhos de arte. São nossas experimentações, necessidades, desejos”, diz Moreira.

Caporali afirma, também, que apesar deste foco atual em trabalhos de administração e gestão, o JA.CA nunca teve um funcionamento tão forte no sentido de ser uma espécie de coletivo artístico. Ela e Moreira ressaltam, neste ponto, a necessidade de citar nesta matéria o nome dos outros integrantes do grupo, para além delas duas e de Mateus: Marcio Gabrich, Artur Souza, Sarah Matos, Daniel Toledo, além dos diversos parceiros que se juntaram ao longo dos anos. “Por vivermos nesses tempos de gangorra política e econômica, entendemos que é esse lugar afetivo que nos segura nesses momentos de esvaziamento de grana, por exemplo”, diz Caporali. “E se existe hoje um momento sombrio, é hora de reforçar os encontros, pensar nos projetos possíveis. Fica claro que nesse contexto passa a ser ainda mais importante resistir.” E é neste sentido que o JA.CA inaugura o Arrudas, seu novo espaço para ateliês, debates, exposições e encontros no centro de Belo Horizonte. 

Manual da Arquitetura Kamayurá resgata sabedoria milenar

A aldeia Ipawu em foto de Gabriela Rudge.

O Xingu se transforma rapidamente. Lideranças indígenas do território estão preocupadas com o destino do saber acumulado por eles em centenas de anos. O Parque Indígena do Xingu, situado ao norte do estado de Mato Grosso, entre o Cerrado e a Amazônia, abriga cerca de 14 etnias diferentes, entre elas os Kamayurá. No ano passado eles decidiram criar uma publicação com as técnicas de edificação de ocas. Desse desejo nasceu o Manual da Arquitetura Kamayurá, uma síntese de sua construção tradicional.

A ideia partiu de Kanawayuri L. Marcello Kamayurá, liderança local, ao conhecer no Xingu a arquiteta Clarissa Morgenroth, ótima desenhista que viajava pela região por nove meses. Ele a convidou para o projeto e ela envolveu a Escola da Cidade, através da plataforma Habita-Cidade com a oficina Modos de Habitar: Arquiteturas Tradicionais. Formou-se um grupo de estudantes e professores que viajou para a Aldeia Ypawu, em território Kamayurá no Alto Xingu, para dar apoio a essa empreitada especialmente na elaboração e armazenamento dos desenhos no computador.

Outra vista da Aldeia Ipawu, em foto de Sabrina Carvalho Dias.

“Quando chegamos ao Xingu constatamos que alguns indígenas já tinham conhecimentos preliminares de desenhos técnicos. Lançamos então a questão: como é o território Kamayurá? Ajoelhados sobre um grande papel branco eles desenharam a aldeia com suas ocas, rio, pássaros, árvores… A oca era uma representação tradicional deles e serviu de base para o início de trabalho”, diz Luis Octavio de Faria e Silva, arquiteto, professor e coordenador da plataforma. “Embora haja diferenças entre algumas etnias, os sistemas construtivos do Xingu têm muito em comum. A unidade arquitetônica é a oca, cuja quantidade na aldeia pode variar de acordo com a população residente”. Com formas ovaladas elas são distribuídas em círculo e é ali que fazem algumas atividades domésticas, menos acender o fogo para cozinhar.

No interior das ocas, em suas extremidades eles penduram as redes e a parte central é reservada para o comércio e rituais. “O chefe da família se ocupa da construção de sua casa junto com os parentes, onde cada membro tem saberes diferentes e múltiplos que funcionam em conjunto”. As construções são feitas com materiais retirados da floresta e executadas com as técnicas tradicionais, com tetos de palha que se estendem até o chão. Esses elementos combinam economia de materiais e a elegância formal. “Caso fique um pouco irregular eles não se importam, o que vale é a coesão do conjunto”, garante Luis Octavio. Segundo ele, os Kamayurá mantêm uma relação de olhar curioso sobre o que está fora de sua cultura. Hoje eles também fazem casas de quatro águas cobertas com palha. As ocas medem em torno de 30 por 10 metros e podem chegar a 10 metros de altura, com aberturas baixas, por onde se dá o acesso.

Como entrar no Xingu com a ideia de colaborar com os indígenas em um projeto de compreensão e representação da habitação tradicional deles sem encontrar a resistência de etnólogos, antropólogos, sertanistas? Luis Octavio comenta que um antropólogo fez parte do projeto e com ele tiveram reuniões preliminares nas quais ele apresentou as exigências formais de convivência no Parque Indígena e as etiquetas no modo de tratar os Kamayurá. Tiveram que seguir um protocolo inicialmente rígido e que depois ficou mais relaxado, segundo o arquiteto.

 

 

Durante a oficina foram feitos levantamentos de medidas e materiais utilizados nas construções Kamayurá. A partir desses levantamentos foram realizados desenhos de representação (plantas, elevações) e tabelas. Segundo o arquiteto, esses indígenas têm orgulho de construir suas casas. “O objetivo deles, por meio do Manual, é o recenseamento do saber construir e a equalização do saber entre eles. A ideia é a de envolver os jovens na construção das moradias e as lideranças acreditam que este manual com as técnicas tradicionais vai ajudá-los.”

Os primeiros elementos a serem colocados na construção de uma casa Kamayurá são os pilares centrais, seguidos dos mourões que formam o perímetro. A oca é composta por duas estruturas leves conectadas como se fossem duas cestas sobrepostas. Estas cestas são presas por amarrações verticais e horizontais. A palha é colocada por último de baixo para cima. Construir uma casa, para os Kamayurá, é também diversão.

 

Crianças Kamayurá brincando em oca em construção. FOTO: Sabrina Carvalho Dias

As ocas constituem um espaço de meia escuridão e de privacidade, mas ao mesmo tempo são um lugar aberto. Em cada uma delas vivem cerca de 20 pessoas, de famílias aparentadas. Essas casas, em geral duram de oito a 10 anos. “Eles costumam fazer manutenção se a construção estiver muita velha, mas os Kamayurá preferem construir uma oca nova. E, quando isso ocorre, todo o material da construção antiga é reutilizado ou queimado, eles não acumulam resíduos na aldeia. De uma maneira geral, eles têm compreensão da cultura deles, percebem a interação harmônica com o bioma, mas não são deslumbrados.”

No momento, o que existe em circulação pela internet é uma versão do Manual impresso na aldeia, que já foi revisado pela Escola da Cidade e enviado ao Xingu. Os arquitetos aguardam as observações ou possíveis correções dos Kamayurá. A intenção é fazer, depois de tudo revisado, uma versão em inglês para que possa circular em vários países.

Projeções luminosas se espalham pelo país como armas de luta e conscientização

Projeção feita por membros do coletivo Projetemos. Foto: Divulgação

“É preciso estar atento, forte e em casa”; “Sem um povo saudável não existe economia”; “Paguem a renda básica”; “Na Itália não faltou comida, mas faltou caixão. Fique em casa”; “Lavar as mãos salva vidas”; “Defenda o SUS”; “Resistir!”; “Ditadura nunca mais”; “Fora Bolsonaro”; “1o de abril: dia do Bolsonaro”; “Foi uma ditadura, houve tortura, não é uma gripezinha, a terra é redonda”; “Criem redes de afeto e vejam como se ajudar”; “Chega de fakenews!”; “Estar perto não é físico. Saudades”; “Vai dar tudo certo”; “A gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte”; “Tempo livre! Cante, estude, ame, conserve, ajude, leia, dance”; “Se cuidar isolado agora para nos abraçarmos mais fortes depois”; e até mesmo o pedido: “Quer casar comigo, Sarah? Assinado: Will”.

Sejam acolhedoras ou de protesto; informativas ou encorajadoras; motivacionais ou indignadas; poéticas ou ríspidas; estas e outras centenas de frases, em forma de projeções luminosas, se espalham nas últimas semanas pelos muros das cidades do país. Com a recomendação de isolamento social por parte de profissionais da saúde e a – no mínimo – controversa atuação do presidente da República frente à pandemia do novo coronavírus, as projeções se somam aos panelaços como meio de manifestação política e, mais do que isso, se tornam armas de conscientização e apoio à população. Uma espécie de “vídeo guerrilha”.

Quem está por traz destas ações, que ganham destaque crescente nas redes sociais e na imprensa, são os VJs (vídeo jockeys) – criadores e operadores de performances visuais – e, mais especificamente, o coletivo Projetemos, criado após o início da pandemia. Ao perceberem que muita gente ainda estava nas ruas, “tivemos a ideia de fazer projeções pra conscientizar a galera da situação. E aí ao mesmo tempo que a gente leva informação e consciência, a gente leva também esperança. Não vamos desesperar as pessoas”, explica o VJ Mozart, recifense e cocriador do grupo ao lado do VJ Spencer e da cientista política Bruna Rosa. “Mas é tudo coletivo, como se fosse uma colmeia onde todas as abelhas são importantes”, segue ele.

Em poucas semanas o Projetemos, que reúne cerca de 200 pessoas em um grupo de WhatsApp, se expandiu rapidamente para muito além do universo dos VJs profissionais, incluindo designers, produtores, jornalistas, ativistas de diversas causas e tantas outras pessoas dispostas a ligar os projetores em suas janelas. No perfil de Instagram @projetemos são postadas diariamente dezenas de imagens feitas ao redor do país – sempre após o anoitecer – com as mais variadas mensagens, que em geral seguem as linhas de atuação definidas pelo grupo. Para incentivar as pessoas a projetarem, o Projetemos criou até mesmo um site com uma ferramenta básica que ajuda os menos experientes.

“Tem gente que me diz que nenhum vizinho vai ver. O que eu digo é que se a pessoa fotografar e filmar, a mensagem não vai se apagar quando você desligar o projetor. Porque nós vamos fazer essa foto rodar. O nosso Instagram é como uma passeata online”, afirma Mozart. Outro membro do grupo, o brasiliense VJ Boca, com longa trajetória na área, ainda alerta: “É o que eu digo, quando você vira o projetor para o lado de fora e projeta no prédio da frente pela primeira vez, um abraço, você nunca mais vai querer fazer outra coisa”.

A arte!brasileiros conversou por telefone com Mozart e Boca, separadamente, e reúne aqui as repostas das entrevistas. Leia abaixo:

ARTE!✱ Antes de falar do Projetemos, gostaria que explicassem um pouco qual é o trabalho dos VJs e como vocês têm atuado nos últimos tempos?

Mozart – O VJ existe desde 1800, antes de existir a energia elétrica. Quer dizer, um dos brinquedos do pré-cinema era a lanterna mágica. É um objeto que tem uma vela dentro e um tubo que sai para a frente com uma lente, onde entram umas plaquinhas de vidro com desenhos. E existia o lanternista viajante, que chegava nas cidades e acendia uma velinha de gás, botava dentro do equipamento e projetava na parede. E dançava, cantava e tocava pandeiro. E desde então a história do VJ foi só se aprimorando, junto também com a história do cinema, com os projetores e tal. E hoje em dia a gente trabalha de diversas formas.

ARTE!✱ – Não só com o projetor…

Mozart – Isso, com leds e outras coisas também. O grande mercado consumidor são os shows. Por trás dos leds e painéis de shows sempre tem um VJ fazendo a operação. É sempre algo feito ao vivo, mas tem todo um background, uma preparação que pode durar dias ou meses. Por exemplo, a abertura das Olimpíadas foi feita por VJs.

Boca – A questão da projeção e da imagem em eventos surgiu por volta da década de 1990, no Brasil com alguns VJs iniciais como o Alexis, o Spetto e eu, entre outros. A gente já se organizava nacionalmente pra fazer essa brincadeira com as imagens para os eventos. E isso foi abrindo vários leques, até chegar no vídeo mapping (projeção mapeada), por exemplo, e até chegar hoje na parte politizada. Muitos VJs sempre tiveram posições, tinham um lado, mas ainda não se incluíam dentro da ideia de transmitir imagens políticas. Mas claro que existem etapas nesse trabalho do VJ, desde o uso de imagens que chocam, imagens engraçadas, imagens ritmadas, imagens poluídas, tem de tudo. Começou em eventos, ou na videoarte, nas experimentações de vídeo. Mas abriu-se o leque para cenários de TV, para instalações em museus, entre outros…

ARTE!✱ O trabalho do VJ exige habilidades e conhecimentos em diferentes áreas, desde uma parte mais artística e criativa, que envolve também o trabalho com palavras, outra parte mais técnica, de softwares e equipamentos, um certo conhecimento de arquitetura… Como se dá esse trabalho? 

Mozart – Tem várias técnicas por trás. Porque é uma arte, e a gente usa questões da história da arte, de composição, de cores. A gente tem que entender muita coisa pra poder colocar ali. E aí tem quem se especialize em áreas diferentes: em ser criador de conteúdos; ou em fazer vídeo mapping, que são os mapeamentos nas arquiteturas, e assim por diante.

Boca – O VJ tem que saber dar manutenção no próprio equipamento, tem que saber instalar todos os softwares no computador, tem que saber uma gama infinita de softwares para produzir o conteúdo. É um negócio complexo, o conhecimento que a gente tem que ter é grande. Sem contar a parte da criação, pensar qual mensagem quero passar, como quero passar, com que fontes, com que ideia.

ARTE!✱ Bom, passamos então ao contexto atual e à criação do Projetemos. Como surgiu e a que se propõe?  

Mozart – Eu, o Spencer e a Bruna criamos a história, mas tudo desde o início é coletivo e todo mundo participa de tudo. Como se fosse uma colmeia onde todas as abelhas são importantes. Todas as discussões e debates são uma conversa aberta sobre as ações, frases, o que vai ser projetado, as ações sociopolíticas. Que são políticas, mas apartidárias. Enfim, eu sou de Recife, Spencer é da Paraíba, mas mora em São Paulo, e a gente conversa muito. E toda a categoria é muito unida. Sempre tem fóruns, encontros, conferências, concursos, onde a galera vai de verdade. E aí conversando com o Spencer eu falei que o centro do Recife realmente estava livre, desocupado, não tinha ninguém nas ruas, mas que aqui no subúrbio, onde eu moro, a galera tá andando, indo no mercado, na lotérica, na calçada. Aí a gente teve a ideia de fazer projeções pra conscientizar a galera da situação. E ao mesmo tempo que a gente leva informação e consciência, a gente leva também esperança. Não vamos desesperar a galera.

ARTE!✱  E como se formou a rede?

Mozart – Foi fácil, porque é uma galera que já estava meio junta. Já existiam grupos para trocar ideias, mandar sugestões. Então esse grupo já pré-existia e a gente só foi fazendo a convocação. E a ideia foi juntar todo mundo para fazer um trabalho coordenado a favor da informação e conscientização contra a pandemia e contra alguns des serviços governamentais.

Boca – Eu, por exemplo, sou um participante, não sou criador. Mas sou um representante de Brasília. O Projetemos tem pessoas de vários perfis, vários locais, várias classes sociais. Pessoas que vivem mais disso, VJs propriamente ditos, mas também pessoas de outras áreas. As pessoas sugerem coisas, e aí saímos para a produção. Mas isso envolve a concepção de cada um. A gente tenta direcionar pautas, mas dentro das possibilidades de cada um. E cada um pode escrever da sua forma. Vi um cara da quebrada que projetou “pega o beco, Bolsonaro”. E esse é o grande lance, cada um usar a linguagem que tem a ver com seu universo.

ARTE!✱ Hoje são quantas pessoas envolvidas?

Mozart – O grupo está com mais de 200 pessoas, nem todos VJs, mas também designers, jornalistas, editores de vídeo, entre outros. Durante o dia a gente fica conversando, criando estratégias e tal, pensando no conteúdo. Temos uma pasta de todo mundo, mas cada um pode ir também pelo seu caminho. Tem até algumas pessoas fora, em Lisboa, Berlim, Dubai e Barcelona. E fazemos um debate para que tenha um pensamento lógico em comum, para que todos tenham um discurso, entendam o conceito.

ARTE!✱  Existe um discurso muito forte de crítica à atuação do governo federal…

Mozart – O viés político termina aparecendo porque tem um personagem político (Bolsonaro) muito importante que está com um protagonismo, ou um antagonismo, importantíssimo. Ele é o principal antagonista dessa situação da pandemia. Então ele acaba sendo alvo do trabalho que a gente faz. Tem muita gente com ódio desse cara que chega querendo xingar e tal, mas nós conversamos para tentar fazer de um jeito inteligente, pra não afastar as pessoas. Queremos agregar, e isso não vai acontecer se ficarmos só xingando o cara. Queremos levar informação para proteger todo mundo da pandemia. E mostrar o que ele está fazendo de errado em relação a isso, claro.

ARTE!✱ – Existem outras pautas também. Vi projeções a favor da luta dos Guarani no Jaraguá, por exemplo.

Mozart – A gente tem que olhar também para as minorias nesse momento. Essa é a hora em que as minorias se dão mal. Vamos elogiar os motoboys, que estão trabalhando pra caramba, os profissionais da saúde. Estamos de olho no que vamos falar sobre os moradores de rua também. Se as igrejas tivessem a competência de acolher essas pessoas para dormirem em seus espaços, seria incrível. Tirar eles da rua. A CUFA (Central Única das Favelas) está em dialogo com a gente também, para que pessoas das favelas nos digam as mensagens que querem passar. Porque eu não posso falar por eles. Então vamos chamá-los para termos um discurso real.

ARTE!✱  Este contexto em que não se pode sair de casa, em que a luta política não pode ser feita nas ruas, fortalece muito o poder de atuação dos VJs. E há também as redes sociais. Como é isso?

Mozart – Se você olhar no Instagram, tem muita gente postando e repostando projeções. Nem todo mundo ali é VJ, nem todo mundo eu conheço. Muito mais da metade eu não conheço. E em torno de 20 a 30 pessoas por dia entram em contato comigo para saber qual o projetor que devem comprar para começar a fazer projeções. Porque são pessoas que se sentem representados por nós, se sentem protegidos dentro dessa colmeia. E sabem que além de poder falar, podem ser vistos, compartilhados, multiplicados, dentro do grupo, do coletivo. Tem gente que me diz que mora longe e que nenhum vizinho vai ver. O que eu digo é que se a pessoa fotografar e filmar a mensagem não vai se apagar quando você desligar o projetor. Porque nós vamos fazer essa foto rodar… No nosso Instagram a gente posta muita coisa, aquilo é uma passeata online.

ARTE!✱  Inclusive o site do Projetemos incentiva mais pessoas a fazerem projeções. A ideia é democratizar o acesso à essa técnica, essa linguagem?

Boca – Sim, por isso estamos brigando pra que cada um vá para sua janela falar o que quer falar. A praticidade e a viabilidade de você conseguir fazer isso, de replicar isso, isso é muito importante. Agora, é o que eu digo, quando você vira o projetor para o lado de fora e projeta no prédio da frente pela primeira vez, um abraço, você nunca mais vai querer fazer outra coisa…

Mozart – O site é exclusivamente uma ferramenta. Você entra lá e tem uma ferramenta de escrita de texto, com alguns poucos movimentos e possibilidades. E ali você escreve o que quiser, pluga o projetor no computador e projeta. Fizemos também lives, mas aí focadas na utilização da ferramenta do software profissional de VJ.

ARTE!✱  E isso acaba tirando, nesse momento, o foco na autoria, na assinatura. Importa mais a mensagem que está sendo passada do que o nome de cada um?

Mozart – Sim, como conceito a gente sugere não colocar assinaturas pessoais. A assinatura é Projetemos. Porque isso aqui é um grande projeto. É um grande trabalho coletivo. E quando dilui a coisa fica mais forte. Inclusive, isso é uma vídeo guerrilha, digamos assim, nós não pedimos autorização. Por isso também é preferível que não tenha o nome de ninguém.

Vaivém: olhar histórico e lúdico sobre a identidade brasileira

OPAVIVARÁ!, "Rede Social". Foto: Edson Kumasaka/ Divulgação

A mostra Vaivém, como delimitação de um espaço de representação, expõe um dos símbolos recorrentes da cultura indígena, a rede de dormir, ponto enigmático da identidade brasileira. A mostra aponta para o passado de raízes primordiais e apresenta as redes nas artes e na cultura visual no Brasil associada ao ócio, preguiça, lugar de descanso e mortalha. Os olhares histórico e político se cruzam neste momento de difíceis reflexões sobre o universo indígena e explodem de energias reprimidas. Os discursos e as preocupações que envolvem as grandes exposições sobre as raízes brasileiras costumam passar ao largo de objetos simples e prosaicos como este. Vaivém torna obsoleta as convenções de tempo, espaço, forma e cor, regidas pelo cânone artístico e pressupõe o corpo como fluxo de energias e percepção das formas. A coletiva se abre para experimentações, performances, pinturas, esculturas, instalações, fotografias, vídeos, documentos, HQs, divididos em núcleos temáticos e históricos. O conjunto materializa-se como forma de enunciação e reflexão sobre a arte a partir de um foco que vai do onírico ao cruel, com escravos transportando seu senhor em redes. 

Os espaços expositivos têm o poder de desmanchar o pensamento clássico sobre objetos primitivos levando o espectador a movimentos de entrega, desde as relações com as cores à metamorfose com o ambiente. As redes de dormir são obras sintéticas de linhas que regem a anatomia, a forma, com a participação do homem. As cerca de 350 peças de 141 artistas de todo o Brasil se espalham pelo CCBB de São Paulo. A rigor, elas não estão no espaço, são os espaços conformados pelo volume, peso e movimento. A mostra é um convite ao voyeurismo, com cada peça embalando uma história de acordo com sua época, valor local, regional ou universal. Algumas composições materiais parecem livrar-se dos limites prefixados de circulação e valor.

 A antropologia, muito mais do que a arte e a literatura, discute, em campos diferentes, a nova visão da identidade. As obras aqui reunidas criam um locus de reflexão em torno da complexa relação da arte com os problemas éticos da sociedade. O elenco reúne desde artistas indígenas a nomes estrelados da história da arte como Tarsila do Amaral, Tunga, Claudia Andujar, Djanira, Bispo do Rosário, Ernesto Neto, Luiz Braga, Bené Fonteles, Frida Baranek, entre outros. No conjunto, de uma forma ou de outra, fazem uma “ópera” fragmentada sobre o Brasil colonial, com desejos contraditórios e pertencimentos identitários diferentes. Adquirem um simbolismo territorial, desde as tribos indígenas às populações ribeirinhas, aos barcos fluviais apinhados de gente em redes, às metrópoles de todo o País. Redes de dormir são imagens do cotidiano, ícones que povoavam o imaginário do europeu  invasor que demarcava o território brasileiro nos mapas territoriais antigos com essa imagem. Raphael Fonseca, estudioso do tema e curador da mostra diz que a exposição é resultado da pesquisa de quatro anos que ele desenvolveu no doutorado em história da arte na Uerj sobre redes de dormir. “De 2012 a 2016, reuni cerca de 900 peças que têm tecnologia ameríndia e passaram a fazer parte do cotidiano brasileiro depois da chegada dos descobridores”. Raphael escreveu a tese, analisando como essas iconografias se transformaram no processo. Ele cita a carta de Pero Vaz de Caminha que fala das redes dos Tupinambás.

 

O sertanista Orlando Villas Boas, a maior autoridade em povos indígenas que esse País já conheceu, me revelou, em entrevista, que “as qualidades mais imediatas e surpreendentes das redes de dormir do índio brasileiro é a geometria estrita da concepção”. Vaivém traz no elenco cerca de 30 artistas contemporâneos indígenas, como Arissana Pataxó, Denilson Baniwá, Duhigó Tukano, Gustavo Caboco, Jaider Esbell que se juntam a nome expressivos da história brasileira de arte. A analogia de linguagem se estabelece como fio condutor lógico que leva o visitante às obras de Bené Fonteles, Cláudia Andujar, Bispo do Rosário, Ernesto Neto. Ao percorrer Vaivém temos a ilusão de viver em um mundo de comunicações e de outros fenômenos naturais ou não interligados como Neyrótika, fotos de Hélio Oiticica; as redes sugeridas de 1980 de Ernesto Neto e os crânios sobre redes de Tunga que nos levam a um discurso de vida e morte. Trabalho, instalação de Paulo Nazareth, agora retrabalhada, traz a “performance” sobre uma vaga de emprego anunciada em jornal, para um funcionário permanecer deitado em uma rede instalada no meio da exposição, oito horas por dia, até o fim da mostra. Aqui o que importa, apesar das aparências, não é uma relação com o real e sim com o desejo que provoca a experiência crítico social.Trabalhos de Hans Staden, Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas são pontos de reflexão do olhar europeu sobre os “selvagens”. Os trabalhos mais ocultam do que revelam sobre o mundo de escravidão e subjugo do índio e do escravo.

A literatura tem lugar com o clássico da tropicalidade, Macunaíma,1929, de Mário de Andrade, e  Batizado de Macunaíma, um desenho pouco exposto de Tarsila do Amaral. Do mobiliário de Paulo Mendes da Rocha e Sergio Rodrigues emergem o caráter limpo, elegante e econômico das matrizes indígenas. As fotografias de Maureen Bisilliat pelo sertão nordestino são testemunhas da força e riqueza da cultura dessa região desrespeitada pelo governo brasileiro. Tunga, um dos nomes fundamentais da arte contemporânea, está presente com nova versão de Bells Fall, com registros fotográficos da performance 100 Rede. Ele foi o artista convidado para inaugurar o CCBB São Paulo, em 2001.

Vaivém resgata a rede de dormir como ponto de inflexão sobre o percurso do Brasil colonial e se expande para além de uma narrativa final.


Vaivém

Centro Cultural Banco do Brasil SP: Rua Álvares Penteado, 112 – Centro
Até 29 de julho de 2019 – Entrada gratuita
Todos os dias, das 9h às 21h, exceto as terças
(11) 3113-3651

Denilson Baniwa vence Prêmio PIPA online

Denilson Baniwa. Foto: Divulgação

Uma das mais importantes e destacadas premiações no campo das artes visuais no Brasil, o Prêmio PIPA divulgou o vencedor de sua categoria online – Denilson Baniwa – e os quatro finalistas de sua categoria principal – Berna Reale, Cabelo, Guerreiro do Divino Amor e Jaime Lauriano.

Baniwa tem 35 anos e nasceu na aldeia Darí, no Rio Negro, Amazonas. Segundo texto do PIPA, “é um artista antropófago, pois apropria-se de linguagens ocidentais para descolonizá-las em sua obra. O artista em sua trajetória contemporânea consolida-se como referência, rompendo paradigmas e abrindo caminhos ao protagonismo dos indígenas no território nacional”.

O Prêmio PIPA Online, com participação aberta, recebeu um total de 24.441, distribuídos entre os 56 participantes da categoria. Baniwa será premiado com uma doação de R$ 15 mil e deverá doar uma obra para o Instituto PIPA, a ser definida em comum acordo entre o artista e a coordenação.

Para a categoria principal do prêmio, quatro finalistas foram escolhidos por um conselho, a partir de 67 nomes participantes. Berna Reale, Cabelo, Guerreiro do Divino Amor e Jaime Lauriano já garantiram uma doação de R$ 30 mil cada, e participarão da Exposição dos Finalistas Prêmio PIPA 2019, de 10 de agosto a 28 de setembro de 2019 na Vila Aymoré, no Rio de Janeiro.

Um dos quatro será escolhido pelo júri como o vencedor da edição, e receberá mais R$ 30 mil para o desenvolvimento de um projeto artístico. O anúncio acontece no dia 20 de setembro.

Dora Longo Bahia: de frente pro crime

Dora Longo bAHIA, detalhe de Paraíso-Consolação, projeto para calendário, 2019. Foto: divulgação
Dora Longo Bahia, detalhe de Paraíso-Consolação, projeto para calendário, 2019. Foto: divulgação

Faz algum tempo, quando manifestei meu interesse por um trabalho do artista chinês Ai Wei Wei – um prato de porcelana em que ele imprimiu a imagem do cadáver de Aylan Kurdi (o garotinho sírio encontrado morto numa praia turca em 2015) –, alguém me perguntou: “por que você gosta dessa exploração da dor alheia? Você conseguiria comer naquele prato?” Não respondi à provocação por ter mais o que fazer, mas a resposta ficou parada na garganta até hoje: “É claro que não, rapaz, aquilo não é  um prato, é uma obra de arte!”

O episódio me voltou à mente ao visitar a exposição de Dora Longo Bahia na Galeria Vermelho (São Paulo, em cartaz até 24 de agosto). Dora é uma artista que também costuma ir direto ao ponto e a mostra, que poderia ser intitulada, por exemplo, “No calor da hora” (ou ainda “De frente pro crime”, entre tantos outros títulos), se apropria de uma interjeição que, igualmente, expressa a urgência do momento atual, a raiva e a perplexidade que nos assoma quando cotidianamente somos atropelados por descalabros os mais perversos ocorridos no mundo todo (e no Brasil atual). Produzida “no calor da hora”, “de frente para o crime”, a exposição chama-se Ka’rãi – uma palavra tupi[1]. Porém, em termos fonéticos, soa como uma interjeição muito atual no Brasil significando, ao mesmo tempo, raiva e indignação perante imagens que denunciam injustiças, dores e revoltas.

Dora, como tantos artistas hoje em dia, coleciona imagens fotográficas que a ela chegam através dos mais diversos meios: jornais, revistas, internet etc. A partir do uso que faz de algumas delas, a artista apresenta trabalhos muitas vezes de uma crueza desconcertante.

Em A Girl A Gun – American Shot, de 2015, Dora apresenta uma série de 195 desenhos produzidos a partir de stills de filmes em que aparecem atrizes empunhando armas em plano americano. Em Paraiso – Consolação, 2019, uma coleção de desenhos de retratos de indígenas brasileiros, imagens que fixam o espectador, concebida originalmente para serem transformados em banners a serem colocados no canteiro central da Avenida Paulista, em São Paulo. Em Revoluções (projeto para calendário), 2016, a artista apresenta 12 desenhos produzidos a partir de fotografias que marcaram revoluções ocorridas em diversas partes do planeta, obedecendo a sequência mensal em que ocorreram.

O que parece unir esses três trabalhos – coleções que pertencem ao acervo de imagens coletadas por Dora –, além dos estados de tensão que deles emergem, é o fato de que são o resultado de um trabalho de tradução produzido pela artista. Todas as imagens que os constituem são produções gráficas, autógrafas, de imagens fotográficas.

Dora Longo Bahia, detalhe de A Girl A Gun – American Shot, 2015. Foto: Divulgação

Penso que a principal questão na prática de Dora Longo Bahia reside na sua recusa em deixar-se iludir pela rapidez com que a imagem fotográfica (notadamente aquela de cunho jornalístico) é tratada pelas mídias. Qualquer imagem, independente da potência de seu sentido, tende a ser substituída rapidamente por outra e mais outra, impedindo a todos de perceberem seu significado e, no limite, transformando a realidade que a foto registara em mero índice de si mesma. Outro foco de interesse da artista é reagir sobre outra característica manifesta na maioria dessas imagens: sua configuração a partir de estruturas visuais elevadas ao clichê que, ao se repetirem indefinidamente, reforçam essa capacidade da fotografia em se transformar em puro significante.

É contra essas características da fotografia que registra desastres, rebeliões, violência, que Dora se posiciona, concedendo estrategicamente ao vestígio fotográfico de origem a densidade do desenho como resultado de uma ação humana, do corpo humano. O traço, ora incisivo, ora frágil, sobre o papel transforma a imagem fotográfica em obra, em resultado de uma operação demasiadamente humana que tenta buscar/recuperar um sentido, alguma profundidade naquilo que, na origem, parece pura superfície.

Mas isso é arte? Não, a arte é que é isso (para usar uma expressão de Ronaldo Brito). Uma das possibilidades da arte hoje, depois do fim da arte. E não é de hoje, ou não é a partir da prática de Dora que a arte vem mostrando que é isso. Andy Warhol, quando conseguia ressignificar a Mona Lisa transformando-a numa alegoria da morte, demonstrava que a arte é que era aquilo. Geraldo de Barros, ao repintar imagens fotográficas de outdoors também; assim como Wei Wei, ao migrar a imagem fotográfica do pequeno Aylan Kurdi para o prato de porcelana.

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Mas Ka’rãi não se restringe a esses três trabalhos. Fogo, 2019, que reproduz em mantas térmicas de alumínio 10 fotografias das fachadas de instituições culturais brasileiras consumidas recentemente por incêndios, embora não se valha da estratégia do desenho para reconfigurar o sentido das imagens, também está comprometido com a recusa da artista em se deixar alienar pela sucessão de imagens desse tipo de desastre, já tornado “natural” pela mídia. Ao reproduzir as fotos pretensamente inócuas sobre um material igual ao utilizado pelos bombeiros em resgates de vítimas de catástrofes, Dora concede a elas a dimensão dramática que passaram a carregar após os resultados dos descalabros das quais foram vítimas.

Dora Longo Bahia, detalhe de Lava Jato, 2015. Foto: Divulgação

Lava Jato, 2018, por sua vez, é a obra mais polêmica da exposição: uma série de 98 intervenções feitas sobre as páginas repleta de fotografias coloridas retiradas de uma revista pornográfica. Sobre as páginas, a artista pinta outras imagens de origem fotográfica, simulando fotos p&b retiradas de jornais e revistas. Abaixo das mesmas, palavras ou expressões que não necessariamente mantém relação direta com as imagens pintadas ou impressas, mas que fazem referência às diversas fases pelas quais passou a operação.

Observando o conjunto, parece impossível não estabelecer relações entre as fotos que retratam cenas mecânicas e burocráticas de sexo, as pinturas sobre elas – estranhos paradoxos entre “expressividade” e “anonimato” – e a operação que dá nome ao trabalho (ainda mais agora, depois dos episódios envolvendo os protagonistas daquela investigação, que vêm sendo revelados pelo site Intercept Brasil).

Mera obra panfletária? Não me parece. Polêmica? Sem dúvida, mas, talvez, tanto pelo teor político que revela, quanto pela complexidade de registros usados por Dora (fotografia; pintura; palavras; expressões) para configurar a obra – o que não deixa, é claro, de embasar a dimensão política da mesma e o compromisso da artista com o aqui e o agora.

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Gostaria de mencionar ainda mais duas obras da artista presentes em Ka’rãi: Fuga (Terceira voz) e Fuga (Sujeito), ambas de 2019 e tendo como um dos pontos de contato entre elas o fato de que, para apreendê-las em sua totalidade, o interessado deve se valer de um aplicativo de Realidade Aumentada.

Muito interessante, em si mesmo, o fato de Dora, conhecida pela pintura e desenho, valer-se de um procedimento tão atual, de uma tecnologia tão nova que nem todo mundo ainda sabe como usá-la (eu mesmo sou um que não sabe, ou não sabia). Essa disponibilidade para as novas tecnologias, a meu ver, é mais um ponto positivo da exposição, pois demonstra que, para a artista, não existe preconceitos quanto às tecnologias recentes e, muito mais do que isso, que elas são usadas porque Dora soube inseri-las à sua poética e não ao contrário (como fazem tantos artistas por aí).

K'arãi Dora Longo Bahia
Vista da exposição Ka’rãi. FOTO: Divulgação

Se Fuga (Terceira voz) ressente-se de um certo sentimentalismo pouco visível na produção da artista, para mim não resta dúvida de que Fuga (Sujeito) é uma das melhores obras expostas: na fachada da galeria pintada de preto, uma grande pincelada vermelha dá lugar ao rosto de uma mulher gritando, se o visitante usa o aplicativo. Uma obra que diz bem a que veio, que sintetiza o horror da artista quando de frente para o crime, os crimes perpetrados cotidianamente e dos quais somos às vezes vítimas e quase sempre cúmplices.

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[1]Ka’rãi significa arranhar e está na origem da palavra carancho (por sua vez, sinônimo de carcará o que, para a artista teria a ver com condor, referência a uma das obras da mostra, O condor e o carcará, 2019),