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Gozo e pensamento

Rosana Paulino, As filhas de Eva, 2014. Trabalho exibido na Bienal Mercosul
Rosana Paulino,
As filhas de Eva, 2014. Foto: Divulgação

Apesar de focar em questões femininas, a 12ª Bienal do Mercosul usa no masculino o gênero do título: feminino(s), visualidades, ações e afetos. Segundo a curadora e acadêmica Andrea Graciela Giunta, “feminino não é assunto apenas de mulheres” e “femininas reforçaria o binarismo”.

Ela tem sido responsável por mostras de grande repercussão, como León Ferrari-Retrospectiva, em 2004, no Centro Cultural Recoleta de Buenos Aires, que irritou o então arcebispo da cidade, Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco. A mostra foi vista na Pinacoteca do Estado de SP, em 2006, museu que acolheu outra exposição importante da curadora, Mulheres Radicais, em 2018, organizada com Cecilia Fajardo-Hill e Valéria Piccoli.

Para a bienal sediada em Porto Alegre, que está prevista para ser aberta ao público neste ano, ela trabalha com mais três curadores: a polonesa Dorota Maria Biczel e os brasileiros Fabiana Lopes e Igor Simões.  Segundo Giunta, a mostra irá tratar de questões emergentes da sociedade, como o feminismo negro: “gostaríamos que essa fosse a contribuição mais forte da bienal”. A politização, contudo, não irá abandonar a fruição estética: “Nos interessa pensar uma proposta de problemas e nos aproximarmos também a uma experiência de beleza”.

Ao longo de sua história, a Bienal do Mercosul já fez vários ensaios em como ser fiel ao nome, baseado um tratado comercial, ao mesmo tempo em que repensa tais fronteiras a partir da arte. Nessa edição, Giunta promete uma participação ampla, de vários continentes, que parte de artistas que trabalhem com “as representações dos feminino(s)” além dos “legados coloniais, que se traduzem em termos de estereótipos ou de racismos”. A lista de artistas só será divulgada na abertura da mostra, mas a seguir a curadora detalha alguns dos principais eixos do projeto.

ARTE!✱ – Bienais têm buscado dar atenção e voz às comunidades locais, como forma de ganhar relevância no contexto onde se insere. De que forma isso ocorre na 12ª edição do Mercosul?

Andrea Giunta – A bienal não foi pensada em função de uma estratégia geopolítica para Porto Alegre, mas em relação com a riqueza desta cidade excepcional pela trama cultural que envolve sua história. Desde 2018, quando estabelecemos dois dos eixos da bienal, o feminismo e a cultura afro-brasileira, inauguramos na Feira do Livro de Porto Alegre o seminário “Arte, feminismos e emancipação”, com artistas, curadores e agentes culturais de diversos campos. As apresentações ali realizadas foram a plataforma crítica inicial da bienal.

Porto Alegre não é uma cidade airbnb, 70% da bienal ocorre ao redor de uma praça repleta de gente que vive e trabalha na cidade. Ao redor dessa praça se sucedem infinitos tempos. Não interessa tanto o lugar de Porto Alegre no mapa geopolítico mundial, mas o lugar que vai ter arte, durante quatro meses, no coração de uma cidade de um milhão e meio de habitantes. Durante 2019, o programa educativo, que tem uma extraordinária tradição nesta bienal, pôs em funcionamento um tornado de perguntas que permitiram tornar visível o que vemos, o que pensamos, o que sentimos.

O termo Mercosul já foi problematizado em algumas edições da Bienal. Você pretende fazer um recorte de artistas que abarca essa região ou também será flexível para ira além das fronteiras geográficas limitadas pelo acordo comercial?

AG –  O Mercosul está amplamente representado na bienal por artistas brasileiros, argentinos e, em menor medida, uruguaios. Mas nos interessou mais trabalhar a ideia de região cultural do que região estabelecida por um acordo econômico. Neste sentido, é importante a participação do Chile, e também de Peru, Equador, Bolívia. Consideramos também artistas do Caribe. Além de interrogar as representações dos feminino(s), nos interessou a aproximação aos legados coloniais, que se traduzem em termos de estereótipos ou de racismos, e que tragam geografias culturais que envolvam a América em sua totalidade. Uma perspectiva decolonial, uma perspectiva hemisférica e uma perspectiva transatlântica e transpacífica, em meio a tantos estereótipos que servem de fundamento ao racismo e à discriminação, não são exclusivos da América e menos do Mercosul. Neste sentido, há uma presença estratégica de artistas da Europa, Ásia, África considerados mais em função do conceito de diáspora que de geografias continentais.

Mostras como Mulheres Radicais ou mesmo a reorganização do acervo do Malba (Verboamérica), que tiveram sua participação, tinham um caráter bastante histórico. O que devemos esperar da 12ª Bienal?

AG – Mulheres Radicais, sim, tinha uma perspectiva histórica. Um de seus propósitos era desenterrar artistas mulheres que tinham sido erradicadas das histórias oficiais. Não foi assim em Verboamérica, onde desordenamos a história. A bienal é distinta. Posso antecipar que há obras históricas e obras de artistas muito jovens. Mas o que nos interessou não foi cobrir uma grade de países ou de idades. Nos interessa pensar uma proposta de problemas e nos aproximarmos também a uma experiência de beleza. Gozo e pensamento. É isso que queremos oferecer ao público de Porto Alegre e a quem vier visitar a bienal.

A curadora Andrea Giunta. Foto: Divulgação

O feminismo, e mais especificamente o feminismo negro vem se tornando um movimento de crítica às teorias pós-coloniais e provocando um importante empoderamento de mulheres artistas até então apagadas na história da arte. Você vem realizando importantes mostras que repensam as narrativas oficiais da história da arte. Como o feminismo negro se insere nesta Bienal?

AG – Gostaríamos que essa fosse a contribuição mais forte da bienal. Negro, não exclusivamente feminista. Uma arte realizada por femininos negros, completamente expulsos da história patriarcal, racista e classista que domina o conceito de arte moderna e contemporânea: uma geografia do poder que universalizou, impondo-se como parâmetro frente ao qual todas as outras formas de pensamento e de afeto que envolvem a arte ficam marcadas como “casos”, “curiosidades”, “exceções”, “particularidades”. Não vamos falar de nosso projeto em porcentagens, apesar de ser muitas vezes que se espera de uma bienal, mas queremos apresentar ao público um conjunto de obras completamente envolvidas com aqueles que representam mais da metade da população latino-americana. A cultura e a linguagem sofisticada das artistas afro-brasileiras terão uma ampla presença na bienal.

A Bienal ocupa espaços tradicionais da arte em Porto Alegre, como o Museu Iberê Camargo, o Margs, o Memorial do RGS e mesmo o CHC Santa Casa. A exceção é a praça da Alfândega. Como se pode “friccionar limites e condicionamentos” e “inventar novas formas de fazer, dizer, pensar e criar” em espaços tão convencionais?

AG – É possível intervir no poder a partir das margens, mas também se pode fazer isso nos próprios espaços que concentram o poder. Por que renunciar aos museus? Com Ferrari no Centro Cultural Recoleta, com Mulheres Radicais no Hammer, Brooklyn e Pinacoteca de SP, conseguimos friccionar o poder da Igreja, do patriarcado e dos discursos misóginos encarnados no poder político. Nunca desvalorizo que as obras atuem frente a cem mil espectadores para privilegiar um círculo de 25 agentes culturais que sustentam uma pequena conversação. Workshops, seminários, residências são laboratórios extraordinários, que utilizamos na preparação da bienal, e o programa educativo foi uma plataforma constante em 2019, mas não tememos nem descartamos os espaços irradiantes dos museus.

Geometria brasileira paraíso tropical
Geometria brasileira paraíso tropical

Entre os cinco femininos elencados no site da bienal, — aliás, por que não femininas? —, o #2 fala de “todas as sensibilidades não binárias, fluidas, não normativas”.  Galerias de arte estão começando de forma muita lenta e discreta um processo de inclusão de artistas não binárias. Como foi realizar esse mapeamento fora do circuito comercial?

AG – Atribuímos à palavra do título muitos sentidos. Os femininos porque o feminino não é assunto apenas de mulheres.  Femininas reforçaria o binarismo.  Creio que é falso que as galerias estão incorporando artistas não binarias. O mundo da arte tem marginalizado sujeitos que transitam por identidades fluidas. Menos na arte contemporânea. O que a arte e o mercado estão fazendo é incorporar sujeitos que se empoderam a partir de identidades não binarias, fluidas, não normativas. Então eles as tematizam, investigam desde matrizes filosóficas, e o fazem em primeira pessoa. Cabe voltar a nos perguntar se o mercado domestica. Ao mesmo tempo, também me interessa a lenta inclusão no mercado de artistas negros, de artistas afro latino-americanos. É um processo tão incipiente que o poder do mercado não pode ainda suavizar seu criticismo, sua intensa revolta. Estamos ante uma situação nova por completo. Estou cheia de expectativas frente a este cenário, que considero o mais estimulante da arte brasileira.

Já no #4 dos femininos, você fala de “materiais e técnicas tradicionalmente atribuídos às artes do feminino”. Você pode dar exemplos de artistas ou obras com essa premissa?

AG – Sim, apenas uma, já que não quero diminuir o anúncio dxs artistas: Rosana Paulino, que mais que bordar, sutura. Ela usa a agulha e a costura como uma poderosa marca simbólica da opressão, o racismo e a violência contra as mulheres negras no Brasil. Ela nos revolta em relação a serenidade do doméstico. Faz suas costuras com os arquivos do racismo das fotografias de Auguste Stahl [1824–1877] compiladas por Louis Agassiz [no livro Viagem do Brasil, 1865/6], na pretensão da ciência europeia do século 19, que se articulou como instrumento do racismo.

Ela cruza esta crítica fundamental para entender o Brasil (a violência da raça, não a harmônica coexistência) com as agendas do feminismo, a violência contra os corpos das mulheres negras. E também é fundamental seu foco no cânon da história da arte brasileira, uma arte que se coleciona e hierarquiza como exemplo da união entre abstração e progresso. Conceitos de limpeza e assepsia que ocultam a tragédia da escravidão cujas matrizes seguem vigentes.

Lucy Lippard, em um lindo texto para a Bienal Sesc_Videobrasil, defende a necessidade de reduzir escalas como forma de se contrapor ao atual sistema econômico-social. Bienais costumam ser eventos em grade escala. É possível ou mesmo necessário repensar esse formato de Bienal?

AG – Compartilho plenamente com a ideia de Lucy Lippard. Iniciativas opostas ao espetáculo contribuem para implodir as bases simbólicas do sistema econômico-social dominante. Sempre me interessei pelo poder do precário, em até que ponto uma obra que se afasta da abundância que se pode ver nos parques temáticos das instalações possui um poder de fricção que não se baseia em seu tamanho, mas em seus afetos. Com afetos, poderosas revoltas foram criadas.

Ao mesmo tempo, as bienais são espaços de intervenção pública, que não parece estratégico abandonar. Não creio que articular uma bienal como crítica às bienais agregue ao poder crítico da arte na sociedade. Se trata de uma crítica institucional que por comunicar-se com um círculo muito reduzido e privilegiado pode terminar engolida em sua lógica estratégica. Temos visto bienais com poucas obras, frias, distantes. Não vejo interessantes os exercícios curatoriais retóricos ou se fechar em uma bienal para debater com um círculo seleto de especialistas. Esses temas, prefiro discutir em um café.

Caso americano levanta questões sobre os custos da sobrevivência na cultura

A foto mostra protestantes performance um "Die in". A manifestação é contra a família Sackler, ligado à Purdue Pharma, produtora do Oxy Contin. Em meio aos protestantes está a fotógrafa Nan Goldin, rodeada por papéis que dizem "Sackler Lie People Die" e frascos de remédio
"No saguão do Guggenheim, Nan Goldin liderou um protesto contra os Sacklers, os principais doadores de museus que são donos do fabricante OxyContin, Purdue Pharma" Foto: Elizabeth Bick para The New Yorker

Em janeiro de 2020, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque – MoMA recebeu uma carta de 45 veteranos de guerra estadunidenses que demandava a interrupção do recebimento, por parte do museu, de financiamentos vindos de fontes “tóxicas”. Os signatários compõem o chamado Veteran Art Movement, um coletivo que se descreve como uma “rede descentralizada de veteranos e membros do serviço militar” que usa a arte para confrontar “uma sociedade que enfrenta uma guerra sem fim, militarismo e desumanização”. 

O envio da carta não se dá ao acaso, já que o MoMA PS1 apresenta, no momento, a exposição coletiva de grande escala Theater of Operations: The Gulf Wars 1991–2011 (Teatro de Operações: As Guerras no Golfo 1991-2011), cuja proposta é examinar os legados do envolvimento militar liderado pelos EUA no Iraque nos últimos 30 anos e seu “impacto indelével na cultura contemporânea e no trabalho de artistas de todo o mundo”. A elaboração da mensagem dos veteranos, no entanto, vai além da aproximação temática com a exposição. Ela foi enviada em solidariedade a outro manifesto trazido a público por cerca de trinta expositores da mostra no PS1, com apelo para que o museu corte laços com membros controversos do conselho. 

Em sua carta, os veteranos de guerra – cujos nomes aparecem ao lado do seu tempo e local de serviço – explicam que assumem a responsabilidade por suas ações passadas e, como tal, optam por serem “solidários com artistas iraquianos e todos os ativistas que pedem ao MoMA PS1 que ‘assuma uma posição verdadeiramente radical, desinvestindo-se de quaisquer curadores e fontes de financiamento que lucram com o sofrimento de outros’”. Como um caminho de legitimação do seu protesto, os signatários apresentam também uma espécie de mea culpa: “Reconhecemos nosso próprio papel na criação das condições para mortes e turbulências contínuas no Iraque e continuamos a lidar com essa realidade por meio de nossa arte, ativismo e vida”.

Os protestos de ambos se direcionam principalmente a Larry Fink, membro do conselho administrativo do museu, e a Leon Black, do grupo de conselheiros do MoMA. Eles são, respectivamente, ligados à companhia BlackRock, cujos investimentos em complexos prisionais privados “representam uma guerra doméstica contra pessoas de cor e pobres”, segundo os signatários; e à Constellis Holdings, uma empresa de segurança privada e empreiteira de defesa anteriormente conhecida como Blackwater, que teve um papel importante na guerra liderada pelos EUA no Iraque, “lucrando muito com a exploração coercitiva dos iraquianos, enquanto operavam sob a égide das forças armadas dos EUA, usando os membros do serviço como material de trabalho e marketing descartáveis”.

As reivindicações chegam em um momento de crescente escrutínio da fonte do dinheiro das instituições culturais, sendo que as controvérsias de tais instituições estão lançando-as nas discussões políticas que assolam os Estados Unidos. Os protestos – bem sucedidos ou não – acabam encorajando outros movimentos que também exigem a partição entre as instituições e determinados doadores ou curadores. Por exemplo, ao final de julho de 2019, Warren B. Kanders, vice-presidente do Whitney Museum, renunciou seu cargo depois de meses de protestos em razão da sua posição na Safariland – uma fabricante de material militar e de aplicação da lei, incluindo coletes à prova de balas, coldres de armas, robôs que desarmam bombas, e gás lacrimogêneo. Os protestos se intensificaram após relatos de que essas granadas de gás lacrimogêneo haviam sido usadas contra imigrantes na fronteira entre Estados Unidos e México e outros lugares durante manifestações. Um dos movimentos de maior impacto na onda de protestos foi a retirada de suas obras por oito artistas que participariam da prestigiada exposição da Bienal do Whitney Museum.

Não aos produtores de opiáceos!

Antes do caso Whitney, no entanto, os museus Guggenheim e Metropolitan (MET), ambos de Nova Iorque, anunciaram que não mais aceitariam doações de membros da família Sackler, associados à Purdue Pharma, fabricante do analgésico OxyContin, após alegações de que a empresa ocultou deliberadamente seu potencial de dependência. Nos últimos anos, os EUA têm vivido uma crise de saúde pública graças ao uso indiscriminado dos opiáceos (família de medicamentos derivados da papoula, dos quais o OxyContin faz parte). No país, o vício em opiáceos chegou a custar 400 mil vidas entre 1999 e 2017

Podemos ressaltar a atuação da fotógrafa Nan Goldin e seu grupo PAIN (Prescription Addiction Intervention Now) como precursores dos protestos à Purdue Pharma e família Sackler: há dois anos eles lideram uma campanha para expor o papel da empresa, tendo Goldin se envolvido com a causa depois de ter sido viciada em um medicamento do tipo durante o processo de recuperação de uma lesão na sua mão em 2014. O PAIN em si é ainda um grupo diminuto, seu núcleo conta com apenas 12 pessoas, embora o alcance de suas ações tenha sido consideravelmente amplo. 

Uma das suas primeiras manifestações foi no MET – cuja ala que contém o Templo de Dendur recebe o nome de Sackler -, em 10 de março de 2018, quando Goldin e os outros integrantes do PAIN realizaram um “die-in” e encheram a fonte do templo com vidros de remédios. Depois do MET vieram os protestos no Guggenheim de Nova Iorque e na National Portrait Gallery de Londres, onde era negociada com a própria fotógrafa uma retrospectiva de sua obra, que seria aceita apenas se a galeria rejeitasse uma doação de um milhão de libras do Sackler Trust. Em 19 de março daquele ano, um comunicado conjunto da National Portrait Gallery e do Sackler Trust informava o acordo comum de não prosseguir com a doação naquele momento. Tal vitória ecoou dias depois com a decisão do grupo Tate e do Guggenheim em tomarem a mesma atitude. 

O dilema 

Em outra ocasião a fotógrafa argumentou que as instituições devem “parar de dar legitimidade cultural e estatura social” aos patronos como a família Sackler. O grande dilema é como mexer nesse vespeiro sem que a situação toda se transforme em um “Ardil 22” (um problema em que a própria resolução gera novos problemas). Se a arte sempre dependeu de patronos endinheirados, vide Medicis, Frick e Morgan, a situação é agravada nos EUA, onde os museus recebem fundos estatais irrisórios, ao contrário da Europa (mesmo que em queda). Em sua carta de resignação, Warren B. Kanders escreve que “o ambiente politizado e muitas vezes tóxico no qual nos encontramos em todas as esferas do discurso público, incluindo a comunidade artística, coloca o trabalho deste conselho em grande risco”; por outro lado, seria melhor, então, nos tornamos surdos-mudos num campo de centeio?

Novo Paço das Artes: “Foi um misto de luta e resistência”

Priscila Arantes é diretora artística e curadora do Paço das Artes, além disso leciona na PUC-SP.

Desde o início de 2016, quando o Paço das Artes foi despejado do espaço que ocupava na Universidade de São Paulo (USP), houve uma sensação de incerteza de qual seria o futuro da instituição. Um ano depois, passou a ocupar uma sala na entrada do MIS-SP (Museu da Imagem e do Som), enquanto internamente se articulava na procura de uma nova sede.

Só no ano passado, essa questão teve um desenrolar substancial, quando foi anunciado que o casarão Nhonhô Magalhães, em Higienópolis, seria a nova sede. Desde então, a equipe da instituição vem trabalhando na transferência de suas atividades para lá. A inauguração já tem data e programação: uma individual de Regina Silveira que será aberta no dia 25 de janeiro de 2020.

O processo ao longo dos quatro anos de procura por um local novo para chamar de casa não foi, no entanto, fácil. É o que conta a diretora artística e curadora Priscila Arantes, à frente do Paço das Artes. “As pessoas dizem: ‘Ah, que bom que você esperou’. Não, eu não esperei. Foi um trabalho que conquistamos como equipe”, ela diz em entrevista à ARTE!Brasileiros, reproduzida na íntegra abaixo.

Na conversa, Priscila conta como foi o período entre 2016 e este final de 2019, mas também comenta sobre o planejamento futuro, com o fortalecimento da Temporada de Projetos, uma residência artística internacional e o processo de musealização do Paço das Artes. Além disso, ela discute as possibilidades de gestão cultural sob a perspectiva expandida do entendimento do museu e a luta das mulheres à frente de instituições culturais.

ARTE!Brasileiros: Queria começar pedindo para que conte um pouco mais sobre o despejo na USP em 2016.
Priscila Arantes: Aquilo foi bastante traumático. Na verdade, é um processo que só agora, passados quatro anos, estamos conseguindo reverter. Lógico que na época sempre existiu um certo fantasma da possibilidade do Paço sair de lá. Em função de, historicamente, o Paço não ter uma sede definitiva. Mesmo assim, pegou a gente de surpresa. Estávamos há quase 20 anos lá, com um trabalho muito sério, um trabalho potente. Estávamos em um momento muito ascendente do Paço das Artes em termos de público, porque exatamente ali era um lugar muito interessante por estar dentro da USP, da Cidade Universitária, o que nos permitia muitas parcerias. Um espaço maravilhoso, que era um prédio do Jorge Wilheim, então era um espaço grande. Por outro lado, era um espaço complicado, porque era longe. De qualquer maneira, pegou a gente de surpresa. Foi tudo muito rápido. A solicitação para que saíssemos de lá foi feita muito em cima da hora. Ainda conseguimos negociar de ficar mais um tempo expandido, mesmo porque já tínhamos um compromisso de desenvolver uma exposição, que foi a nossa última lá, do Harun Farocki. Mas outra exposição que já estava marcada, que era a da Lenora de Barros, tivemos que fazer na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Então foi muito traumático aquele momento para a equipe no geral. Tivemos manifestações, abaixo-assinados para que ficássemos.

Foi muito duro. Foi uma demanda da Secretaria do Estado da Cultura na época. Estávamos em um momento de ampliação de público, com a programação anual já toda fechada. Então, por mais que soubéssemos que existia o contrato, que era uma troca com a Secretaria do Estado da Saúde, sempre é uma surpresa. Sairíamos de lá e aí? Não tinha lugar. Naquele momento, não havia qualquer coisa em termos concretos de uma nova possibilidade de sede. O que foi falado é que tínhamos que sair porque tínhamos que devolver o espaço para a Secretaria da Saúde, porque possivelmente iam usar o espaço para uma fábrica de vacinas, algo que nunca se efetivou. Quando nós saímos, o espaço ficou muito vazio. Só mais recentemente foi ocupado por questões mais administrativas. Enfim, não havia naquele momento um discurso no sentido de nos colocarmos em um novo lugar, ou mesmo que em breve nos dariam um novo espaço. Era sair sem saber exatamente o que seria o futuro próximo. Havia apenas uma fala de que possivelmente, junto à Secretaria da Saúde, verificariam um espaço para o Paço. Isso também nunca se efetivou. Nós tivemos, posteriormente, reuniões, que a possibilidade era de que fôssemos para um espaço que era um antigo estacionamento de ambulâncias no Bom Retiro. Chegamos a ir em uma reunião lá, mas nunca aconteceu. Aí começamos um trabalho de luta para, de fato, conseguir um novo espaço.

A sensação que eu tenho é que é como se fosse uma puxada de tapete. A questão nunca foi de qualidade de trabalho. Sempre tivemos uma dotação orçamentária para a nossa programação muito pequena, e mesmo assim conseguíamos trabalhar. O Paço sempre esteve em uma situação muito complexa, mas mesmo com esse pouco orçamento, fizemos um trabalho em equipe para ampliar essa programação. Então fazíamos muitas parcerias.

Agora o Paço ganha uma sede em Higienópolis. Como foi isso e quais foram as tentativas durante esse período?
Começamos quatro anos de luta. Porque esses quatro anos entre 2016 e 2020, que é quando está prevista a abertura do novo espaço, foram fruto de muita luta. Foi um período, por um lado, de aprender a sobreviver nas adversidades, porque tem sido muito complexo. Por outro, foi uma conquista. As pessoas dizem “Ah, que bom que você esperou”. Não, eu não esperei. Foi um trabalho que conquistamos como equipe.

Quando percebemos que não havia, de fato, uma uma sinalização de que seria efetivado um novo lugar para nós após o despejo, ficamos dois anos no limbo. Foram dois anos em que tiveram movimentos feitos internamente. Eu fui atrás de um espaço ali na Praça Victor Civita, um movimento feito internamente da gente na Organização Social. Mas não era algo da Secretaria. Vimos algumas possibilidades de alugar galpões, mas não tínhamos orçamento, porque quando saímos da USP também tivemos um corte de orçamento que praticamente só dava para pagar funcionários. Então você não pode ir porque não tem orçamento, mas ao mesmo tempo você precisa arrumar um lugar. É uma equação que não fecha. Também fomos ver um espaço na Vila Mariana, mas também não funcionava por causa do orçamento. De dois anos para cá que começou a haver um movimento por parte da Secretaria de Estado da Cultura, havendo essa sinalização de que iríamos para esse espaço para onde estamos indo agora. Uma pessoa que foi muito importante dentro da secretaria foi a Regina Ponte, fundamental nesse processo. Então, há um ano, efetivamos realmente esse contrato.

Foi um misto de luta, de resistência e ao mesmo tempo ter que continuar a desenvolver o nosso trabalho durante esse período. O Paço poderia simplesmente ter sido fechado. Só que teve um movimento do público próximo ao Paço, e também a resistência do nosso trabalho, da qualidade do trabalho que fazemos.

Vista da fachada do Casarão Nhonhô Magalhães, que após restauro será a nova sede do Paço da Artes.
FOTO: Joca Duarte.

E as parcerias nesse período?
Estabelecer redes de relações, conexões, foi nossa forma de resistir. Essas redes foram muito importantes, porque ficava muito confuso para as pessoas saberem se o Paço tinha fechado ou não. Até as pessoas entenderem que o Paço estava dentro do MIS… Enfim, foi um momento de reinvenção. Foi ressurgir. O MIS nos acolhe. Fazemos parte da mesma Organização Social (OS), estamos dentro do mesmo guarda-chuva.

Eminentemente, o que foi mais importante nesses quatro anos era fazer com que a Temporada de Projetos permanecesse, que é o nosso carro chefe e a grande diferença que o Paço tem em relação às outras instituições. É um projeto pioneiro que fomenta a produção de jovens artistas, jovens críticos e jovens curadores. Por isso, estrategicamente, foi fundamental que fosse mantido. Por isso, ele ficou aqui no MIS e conseguimos, junto ao diretor do MIS da época, que fosse na entrada. Apesar de ser uma sala de 80 metros quadrados, não estaria escondida em outro andar. Também fortalecemos o MaPA (Memória Paço das Artes), que foi um projeto criado em 2014 e que saiu do entendimento da importância da temporada de projetos, como um projeto de política cultural para a importância de criar memória não só institucional, mas dessa produção de jovens artistas que muitas vezes não está nos eixos hegemônicos. Os outros projetos, como a residência, tivemos que parar.

“O Paço nunca teve acervo no sentido tradicional da palavra, mas eu vim construindo também essa ideia do museu sem acervo, um entendimento expandido de museu, como se nosso acervo fosse nossa história, os artistas que passaram pelo Paço”.

Para os outros projetos, as outras curadorias, fomos fazendo parcerias. Era importante criarmos redes e trabalharmos o Paço de maneira nômade em articulação com outros espaços culturais. Foram espaços culturais que se abriram para esse tipo de parceria e que tinham afinidades com as nossas propostas. Fomos muito bem recebidos, por exemplo, pela Oficina Cultural Oswald de Andrade. Fizemos lá três exposições: Lenora de Barros, Charly Nijensohn e a coletiva Estado(s) de Emergência. Também houve uma parceria com o MAC-USP, muito importante. Foi algo em torno das questões dos diálogos em torno dos acervos do Paço das Artes e do MAC. Era importante para nós porque ficamos um bom tempo na USP, então era interessante termos nessa despedida de lá uma articulação de vivência. A artista da qual partíamos do trabalho era a Regina Silveira. O Paço nunca teve acervo no sentido tradicional da palavra, mas eu vim construindo também essa ideia do museu sem acervo, um entendimento expandido de museu, como se nosso acervo fosse nossa história, os artistas que passaram pelo Paço. Foi um período de muita luta para não deixar o Paço morrer. Outra parceria muito importante nesse período foi o VideoBrasil, quando fizemos o seminário de Urgências na Arte. Tivemos parceiros muito importantes nesses quatro anos.

Como surge esse “entendimento expandido de museu”?
Eu comecei a trabalhar muito com essa história também porque vinha trabalhando com essa questão do MaPA, a memória do Paço, que é um projeto importante enquanto política institucional, dessa história que não é contada, dessa produção jovem.

Como você sente esse momento de agora, prestes a inaugurar essa sede?
Agora temos essa sede nova, que é uma coisa quase que definitiva porque vamos ter um contrato de 40 anos. Isso é quase a existência do Paço. Eu sinto isso como uma vitória, num momento em que a cultura no país está sendo desmantelada. E um país sem cultura, sem arte, sem produção de pensamento, sem reflexão não é país. Se entendemos que a política cultural de um estado tem que ser uma política democrática, da diversidade, aberta para a pluralidade da população que a gente tem, só podemos entender a importância de abrir espaço para um jovem artista que chega cheio de indagações e de experimentações. E também de fomentar isso. Esse é um trabalho de formação fundamental, também de educação. Então, realmente estamos vivendo esse momento em que a cultura está sendo atacada, também a educação e as universidades públicas, e que há censura. Isso é extremamente prejudicial para todo mundo. E o Paço ter conseguido chegar a esse momento de ter uma sede é uma conquista.

Como está a relação com a Secretaria do Estado da Cultura hoje?
Por um lado, existe uma sensação de “que bom que deu certo”. Afinal, isso também foi fruto de uma relação com a secretaria na gestão antiga. Mas a gente ainda não tem, por exemplo, uma ideia definitiva em torno da dotação orçamentária. Entendo que é muito importante discutir isso, já que o Paço vai ocupar esse novo lugar, porque nossa dotação orçamentária até agora é a mesma de 2016, de quando saímos da USP, que é um orçamento praticamente voltado para pagar funcionário. Não temos orçamento de programação. Eu acho que temos uma relação positiva, porque é uma concretização de algo que viemos costurando há dois anos, mas por outro lado há uma certa indeterminação de como poderemos atuar financeiramente, porque até agora não foi firmado nenhum contexto e isso para nós é muito importante.

Quais iniciativas vocês tomaram para tentar driblar isso?
O que fomos trabalhando durante esse tempo foi com a Lei Rouanet. É um trabalho que o Paço faz junto com a OS, mas é pontualmente. E é ainda no nosso caso um orçamento apertado. Também temos um ou outro patrocínio.

Tem algum outro projeto a longo prazo para essa nova sede?
Existem algumas coisas, sim. A gente vem pensando e estudando esse novo lugar, nesses dois anos. Acho que é um momento também do Paço de reposicionar enquanto um equipamento cultural, fortalecendo a espinha dorsal da instituição, que é o trabalho com a produção jovem. Não por acaso em 2020 fazemos 50 anos. E de 2020 para 2021 teremos 25 anos de Temporada de Projetos. Nesse reposicionamento, estamos articulando uma parceria internacional para que, em março possivelmente, possamos lançar uma nova residência. Já tínhamos uma residência, mas agora passa a ser internacional. Assim, fortalecemos também um trabalho com a Temporada, no qual o artista passa por aqui e depois, em um outro momento, ele tenha a possibilidade de fazer uma residência internacional. Então, é um entendimento de um fomento continuado. Serão editais diferentes, mas de fortalecimento desse laço que o Paço tem da formação e do fomento para o jovem artista, para o jovem curador e para o jovem crítico.

“Agora, passamos a ser um museu com acervo imaterial. E, exatamente, um dos grandes dispositivos de aquisição é a Temporada de Projetos.”

Vamos iniciar também o processo de musealização do Paço das Artes, que é fundamental. Já estamos trabalhando de forma que nos preocupamos tanto com a memória institucional quanto, também, com dispositivos de sobrevivência institucional. Então é uma questão de você deixar claro historicamente a força que a instituição tem. Esse projeto pensamos desde 2010, quando o Paço fez 40 anos. Fizemos um projeto lá atrás que é o livro-acervo, ali era uma questão de arquivo, memória e história cultural. Agora, passamos a ser um museu com acervo imaterial. E, exatamente, um dos grandes dispositivos de aquisição é a Temporada de Projetos. Se você for ler o novo edital da Temporada de Projetos, existe lá a possibilidade, em comum acordo entre nós e os artistas, de que a gente possa ficar com uma obra no acervo. Está sendo construído o banco de dados, no entendimento também de que o espaço digital será nosso espaço de reserva técnica, já que não temos uma reserva física, e trabalhando com linguagens “não matéricas”. Então não é um acervo para pintura ou para escultura, mas é um acervo para arte digital, para videoarte, para performance. Estamos, portanto, no momento da nossa criação de política de acervo museológico para que possamos, com esse fortalecimento da Temporada, inclusive, ter esse acervo de jovens artistas e de projetos de curadoria. Afinal, são pessoas que depois entram na cena não só brasileira, mas também internacional, de maneira contundente.

Priscila acredita em uma perspectiva de museu expandido. FOTO: Cinthia Bueno.

E a escolha da Regina Silveira para estrear esse novo espaço?
A escolha da Regina vem por ela ser uma artista singular no cenário brasileiro e internacional. É uma artista que transita por várias linguagens. E é mulher. Eu queria abrir com uma mulher, uma mulher brasileira. Tinha também um histórico da Regina ser essa artista que teve importância nessa exposição de acervos que fizemos no MAC-USP. E, ainda, por ela ser uma artista que trabalha muito com a questão do site-specific, da perspectiva, da percepção e da arquitetura. Para mim, esse momento de abertura foi entendido como algo que era importante resgatar de alguma maneira a memória dessa nova casa, porque para o Paço ela é uma casa, onde vai ser nossa sede por pelo menos 40 anos. Ela desenvolve dois site-specifics inéditos, um para a parte interna e outro para o jardim na entrada. Junto com esses trabalhos tem vídeos que a Regina está doando para o nosso acervo. Serão as cinco primeiras aquisições nossas. O nome que escolhemos não é à toa. A exposição se chama Limiares, “o começo”, em função de uma obra dela que se chama Limiar, que é uma obra sobre a projeção da luz, a palavra luz que pulsa. Então uma ideia do começo, dessa nova luz que pulsa no novo Paço das Artes.

Como você avalia esses quase 13 anos de Priscila no Paço das Artes?
É uma vida. Foi fantástico. É um trabalho que eu faço com paixão. Eu acho que quem trabalha com cultura trabalha com paixão, porque é um trabalho onde você está lidando com produção de conhecimento, com arte e cultura, com vida o tempo todo. Então é um trabalho apaixonante. Eu aprendi muito. Sempre aprendo muito com o Paço, porque ele está dentro de uma das maiores cidades do país e é um equipamento da Secretaria do Estado da Cultura. Eu cheguei aqui no Paço e nunca tinha trabalhado numa instituição pública. Eu sempre fui professora universitária [da PUC-SP], sou até hoje, é a minha profissão mais antiga. Por isso, esse momento agora é uma conquista. Eu aprendi muito nesses 13 anos, como pessoa, curadora, gestora, equipe, política pública e também aprendi muito com relações com a secretaria. Eu entrei aqui a convite da então diretora e curadora na época, que era a Daniela Bousso. Foi uma pessoa muito importante naquela época para mim. Eu cheguei aqui como professora, numa época que era para fazer uma curadoria do Fred Forest, em função da minha tese de doutorado, sobre perspectivas da estética digital, que foi publicada e foi finalista do prêmio Jabuti. Eu vinha da área acadêmica, trabalhando com disciplinas que trabalhavam áreas da arte contemporânea, da estética. Eu recebi aquele convite e pensei em colocar minha pesquisa em prática. E agora tenho a percepção de que você trabalhar como diretora em uma área cultural é muito mais complexo que isso, é um desafio, é apaixonante, mas é sempre de muita luta, porque trabalhar na área da cultura no Brasil é algo de altos e baixos. Então eu também fui me entendendo nesse lugar de o que é ser diretora de um espaço cultural, por isso entendo isso como um grande aprendizado.

E como é ser uma das únicas mulheres à frente de uma instituição cultural no estado de São Paulo?
Acho que é um desafio muito grande, existem muitos espaços para as mulheres ocupar ainda. São pouquíssimos os postos ocupados por mulheres nessa área e é muito importante, afinal a maioria da população é feminina e tem mulheres extremamente qualificadas. Existe, sim, um processo de discriminação com a figura da mulher dentro não só de espaços públicos, em outros espaços de instituições culturais. Então acho que é muito importante, ainda mais quando falamos de política pública que atua na diversidade, pensar isso. Não só na figura da mulher, mas também especificamente da mulher negra.

Conte um momento que você sentiu que havia uma discriminação por você ser mulher…
Eu acho que o ponto maior é a dificuldade do trabalho. Eu sinto que a mulher tem que trabalhar muito mais, somente por ser mulher. E isso é a discriminação, que se dá de várias maneiras. Ela tem que estar o tempo todo provando e colocando o seu trabalho. Sinto também que tem existido mais espaço, mas ainda falta bastante. E não é só em uma questão de ocupação de espaços, mas também de equiparação salarial. Muitas vezes a mulher ocupa um cargo que não tem valor semelhante ao mesmo cargo ocupado por um homem. Não é à toa a movimentação que tem acontecido em vários campos sobre a importância de ouvir essas falas, essas vozes diversas. E isso reflete também em curadorias, temos visto muitas exposições que trazem esse debate. Nós, por exemplo, fizemos a mostra itinerante Mulheres em Cena. Entendo essa discriminação não só como gestora pública, mas também nas produções feitas por mulheres que são invisibilizadas por narrativas sempre eurocêntricas e masculinas. Não é só uma questão da diretora, da gestora, mas uma questão que contamina todo esse espaço.

Resgate na hora certa

Rubem Ludolf, Estudo para pintura, 1970, Giz pastel sobre papel.
Rubem Ludolf, Estudo para pintura, 1970, Giz pastel sobre papel. Foto: Coleção particular

Duas importantes instituições ganharam uma sede física no início de 2020 em São Paulo. O Paço das Artes e o Instituto de Arte Contemporânea (IAC) têm histórias um pouco parecidas no que diz respeito à busca por um espaço que pudessem chamar de “casa”. Ambas as instituições possuem em comum o fato de terem à frente duas mulheres que não descansaram por um só momento ao trabalhar por um lugar fixo.

Com atividades desde 1997, o Instituto de Arte Contemporânea (IAC) nasceu da vontade da galerista Raquel Arnaud de cuidar de acervos documentais de artistas. Foi por “acidente”, ela conta, que tudo começou a se desenrolar. “Um dia, houve uma enchente na casa do Willys de Castro e ele veio me trazendo alguns documentos para que eu guardasse e salvasse da enchente”. A partir daí, ela passou a pensar de forma mais intensa sobre como faria para guardar aqueles materiais de forma a preservá-los. Anos mais tarde, quando o escultor Sérgio Camargo faleceu, em 1990, ela recebeu da família o seu espólio, e junto a ele vieram muitos documentos. “De repente, me vi com documentos desses dois artistas e pensei em fundar o Instituto de Arte Contemporânea”. O bom relacionamento de Raquel com outros artistas foi fazendo com que, com o passar dos anos, eles fossem aderindo ao IAC, que hoje cuida de mais de 42 mil documentos higienizados, organizados, catalogados e digitalizados. Raquel enfatiza o apoio do arquiteto Jorge Wilheim no incentivo à criação da instituição.

Sérvulo Esmeraldo, Projeto para Lentes, 1968, caneta hidrocor sobre papel
Sérvulo Esmeraldo, Projeto para Lentes, 1968, caneta hidrocor sobre papel Foto: Acervo Instituto de Arte Contemporânea

Quando foi fundado, apoiadores conseguiram que o IAC fosse alocado em um prédio na Universidade de São Paulo (USP), em um prédio que tinha pertencido à Faculdade de Filosofia. “No primeiro comodato que ficamos lá, mais reformamos do que qualquer outra coisa”, ela conta. Com a troca de reitoria da universidade no ano de 2011, o prédio foi requisitado de volta. Saindo de lá, o IAC foi acolhido pelo Centro Universitário Belas Artes. À época, acervos de mais de 8 artistas já eram cuidados pelo instituto. “Já tínhamos um volume de documentos muito grande, que só crescia. Então, o espaço lá foi se tornando pequeno. Precisávamos crescer, mas a faculdade também precisava de mais salas, por exemplo”. Ela frisa a gentileza do Belas Artes em todo o tempo de acolhida: “O tempo lá foi importante porque nos deu fôlego para pensar em soluções”.

A única forma encontrada de não ter mais dúvidas sobre a permanência nos espaços foi arrumar uma sede própria. Então, Raquel decidiu junto à família que venderia algumas obras de sua coleção para a compra de um imóvel que servisse como sede fixa. A partir deste ano, o IAC tem, portanto, uma sede própria, localizada no começo da Avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo, pouco depois do entroncamento com Avenida Paulista. Somam-se, ao todo, 900 metros quadrados em um projeto assinado pelo arquiteto Felippe Crescenti, com salas de exposição, área administrativa, café, sala de higienização e os espaços específicos para arquivamento, que contam com aparelhagem especial para armazenamento e preservação, além de segurança. O instituto é responsável por cuidar, hoje, de documentos de Amilcar de Castro, Hermelindo Fiaminghi, Iole de Freitas, Lothar Charoux, Luiz Sacilotto, Sergio Camargo, Sérvulo Esmeraldo e Willys de Castro. Até o próximo ano, arquivos documentais de Antonio Dias, Carmela Gross, Ivan Serpa, Jorge Wilheim e Rubem Ludolf serão tratados e também disponibilizados.

Regina Silveira, CASCATA, 2020 instalação. Impressão digital sobre vinil adesivo.
Regina Silveira, CASCATA, 2020. Instalação. Impressão digital sobre vinil adesivo. Foto: Divulgação

Um caso similar

Desde o início de 2016, quando o Paço das Artes foi despejado do espaço que ocupava na USP, houve uma sensação de incerteza de qual seria seu futuro. O edifício, projetado pelo mesmo Jorge Wilheim que ajudou a impulsionar o IAC, possuía um grande espaço para a realização das atividades e era habitado pelo Paço há quase 20 anos. Por pertencer à Secretaria do Estado da Saúde, sempre houve uma tensão em relação à permanência da instituição naquele local. “De qualquer maneira, pegou a gente de surpresa. Foi tudo muito rápido. A solicitação para que saíssemos de lá foi feita muito em cima da hora”, conta a diretora do Paço, Priscila Arantes.

Ainda houve negociação para que pudessem ficar ali em um período expandido, pelo menos até realizarem a exposição de Harun Farocki, que já estava programada há algum tempo, o que foi acatado. Após o despejo, apenas um ano depois, o Paço foi orientado a ocupar uma sala na entrada do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), enquanto internamente se articulava na procura de uma nova sede. Essa alocação se deu pelas duas instituições serem geridas pela mesma Organização Social (OS). A sala cedida para a realização de exposições foi utilizada para manter a Temporada de Projetos, o carro chefe do Paço. Exposições maiores precisaram de parcerias para serem montadas, como com a Oficina Oswald de Andrade e o MAC-USP. “Estabelecer redes de relações, conexões, foi nossa forma de resistir. Essas redes foram muito importantes porque ficava muito confuso para as pessoas saberem se o Paço tinha fechado ou não”. Em momento algum, a equipe deixou de se engajar na busca por um local que pudesse chamar de lar.

Regina Silveira, LUNAR, 2002/2003. Vídeo digital. Em colaboração com Ronaldo Kiel
Produção e realização: Olhar Periférico
Trilha sonora: Rogério Rochlitz.
Foto: Divulgação

Foi apenas ao final de 2018 que um desenrolar substancial aconteceu, quando foi anunciado que o casarão Nhonhô Magalhães, em Higienópolis, teria um espaço designado para ser a nova sede do Paço. Desde então, a equipe da instituição trabalhou na transferência de suas atividades para lá. A inauguração foi realizada no dia 25 de janeiro, com a individual Limiares, de Regina Silveira.

O Paço ocupa o subsolo do Casarão, tendo três salas de exposições que somam mais de 300 metros quadrados. Enquanto isso, sua parte administrativa fica na parte superior do edifício, que é de propriedade do Shopping Pátio Higienópolis desde 2005, quando foi vendido pelo governo de São Paulo. O edital de licitação, porém, tinha como cláusula que uma parte deveria ser cedida por vinte anos à Secretaria de Cultura, tempo que pode ser renovado. “As pessoas dizem: ‘Ah, que bom que você esperou’. Não, eu não esperei. Foi um trabalho que conquistamos como equipe”, comentou Priscila em entrevista para a ARTE!Brasileiros em dezembro. Ela comenta todo o processo que encarou até, finalmente, ter um espaço para o Paço. Ela também fala sobre os projetos que serão realizados ainda este ano, sobre a residência artística internacional que será oferecida e sobre o machismo no mundo da gestão cultural. Confira a entrevista na íntegra em nosso site.

Olhares indígenas apontam para outro futuro possível

O coletivo Mahku, do povo Huni Kuin (Acre), que expõe na mostra Encontros Ameríndios
O coletivo Mahku, do povo Huni Kuin (Acre), que expõe na mostra "Encontros Ameríndios". Foto: Mauricio Azzolini

Em uma fala contundente na Flip de 2014, Eduardo Viveiros de Castro afirmou que “nós temos que aprender a ser índios antes que seja tarde”. O antropólogo se referia a “nós”, civilização branca ocidental, e ressaltava que era preciso aprender com os povos indígenas “como viver em um país sem destruí-lo, como viver em um mundo sem arrasá-lo e como ser feliz sem precisar de cartão de crédito”.

Cerca de seis anos depois, é difícil afirmar que as coisas caminharam neste sentido. A destruição do meio ambiente e a crise climática se agravam globalmente e, no Brasil, a situação dos povos indígenas se torna cada dia mais dramática. Enquanto país, elegemos um presidente que afirma ser abusivo o tamanho das terras indígenas, tenta liberar a mineração nestes territórios e coloca na chefia da Funai um delegado apoiado por ruralistas. Em consonância com a política governamental, a grilagem e o desmatamento na Amazônia – onde habitam diversos povos – batem recordes, assim como as invasões de terras demarcadas no país. Entre essas e outras, destaque-se ainda que o número de assassinatos de lideranças indígenas em 2019 foi o mais alto da última década.

Pilón de Arroz, mola feita por Gilda Tejada, do povo Guna (Panamá), na mostra Encontros Ameríndios
Pilón de Arroz, mola feita por Gilda Tejada, do povo Guna (Panamá), na mostra Encontros Ameríndios. Foto: Everton Ballardin

Frente a este panorama, é em sentido oposto que o universo das artes visuais tem se voltado para os povos indígenas, suas produções, seus modos de pensar e viver. Esse movimento parece nítido quando se observa a pauta recente de várias das principais instituições culturais do país. O Sesc, na sequência de outros projetos marcantes nesta área, apresenta em 2020 a mostra Coração na Aldeia, Pés no Mundo, em Piracicaba, e a conclusão do projeto Sawé, no Ipiranga, ambos ligados à luta de mulheres indígenas. Encontros Ameríndios, por sua vez, na unidade do Vila Mariana, reunirá trabalhos contemporâneos de diferentes etnias das Américas.

O Museu Afro, após mostras sobre as origens africanas e portuguesas, encerra sua trilogia sobre os povos que formaram o país com a exposição Heranças de um Brasil Profundo. A Pinacoteca prepara uma grande mostra de arte contemporânea indígena, Véxoa, e o MASP definiu Histórias Indígenas como seu eixo curatorial para 2021. Ainda se poderia citar obras apresentadas nas últimas bienais de SP, exposições realizadas recentemente no Instituto Moreira Salles – como A Luta Yanomami, de Claudia Andujar, artista que também ganhou uma galeria permanente em Inhotim –, no Museu de Arte do Rio, no Centro Cultural Banco do Brasil e no Instituto Tomie Ohtake, entre outros.

“Uma característica desses povos ameríndios é a de não diferenciar coisas que nós consideramos como esferas separadas: ética, estética e moral. Então aquilo que é esteticamente belo é porque é eticamente correto e moralmente é o certo”

Sylvia Caiuby

Afirmar quais são as motivações para tamanho movimento seria arriscado, até por serem elas variadas e imprecisas. A própria percepção da ameaça crescente aos povos indígenas e as consequências da crise climática certamente estão entre elas. Mas há também quem perceba outras nuances. “Acho que talvez o mundo das artes tenha despertado mais agora porque as coisas começaram a atingir uma ‘branquitude’ que estava tranquila, protegida, presa num romantismo. Mas tem gente que já estava acostumada com a perseguição, que tem sabedoria do que é estar em guerra. Quando há necessidade, tudo se aprende mais rápido”, afirmou o artista Guerreiro do Divino Amor em entrevista recente à ARTE!BRASILEIROS. A fala dialoga com a declaração dada recentemente pelo líder indígena Ailton Krenak: “Já passamos por tanta ofensa que mais essa agora não vai nos tirar do sério. Fico preocupado é se os brancos vão resistir. Nós estamos resistindo há 500 anos”.

O enfoque dado pelas instituições não vem dissociado do crescente destaque recebido por artistas indígenas contemporâneas, membros de variadas etnias e com trabalhos diversos em suas linguagens e temáticas. “Os artistas indígenas são cada vez mais importantes hoje no Brasil. Já há muito tempo os cineastas indígenas têm uma presença conhecida, mas nas artes isso é algo recente, diferente do que se vê em países como Canadá e Austrália”, explica a antropóloga Sylvia Caiuby Novaes, coordenadora-geral de Encontros Ameríndios. A exposição, com curadoria de Aristóteles Barcelos Neto, coloca em diálogo obras contemporâneas de membros dos povos Haida (Columbia Britânica), Guna (Panamá), Huni Kuin (Acre) e Shipibo Conibo (Peru).   

De onde se fala

Neste contexto de aproximação das instituições com o universo indígena não se trata, como em outros momentos da história da arte, de apresentar trabalhos de artistas ocidentais influenciados pela produção de outros povos (por mais que isso também possa ocorrer), nem de trabalhar na linha das mostras de etnologia, com viés mais científico, acadêmico ou histórico. É característica marcante no atual movimento o diálogo estreito com os próprios indígenas, participantes ativos na construção das mostras, e um cuidado para não folclorizar ou exotizar as produções. Neste sentido, o MASP contratou para seu time a antropóloga Sandra Benites, de origem Guarani Nhandewa, que se tornou a primeira curadora indígena em uma grande instituição de arte do país, e a Pinacoteca convidou a artista e pesquisadora Naine Terena, de origem Terena, para curar uma mostra.

O trabalho com o universo contemporâneo procura, portanto, romper o arraigado estereótipo de que os índios “fazem parte do nosso passado”. Na contramão de fala recente do presidente Jair Bolsonaro, que afirmou que “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”, percebe-se que o mundo indígena não só é parte do presente como pode nos ensinar sobre outros futuros possíveis, como pediu Viveiros de Castro na Flip. “No século 16 os jesuítas pensavam os índios como bestas-feras, ou seja, seres em passagem do estatuto animal para o humano. E essa mentalidade típica daquela época é a mesma do presidente hoje em dia”, diz Caiuby.

Indígenas Marc Ferrez
Foto da série Indiens de Mato Grosso, de Marc Ferrez, 1890, na mostra no Museu Afro. Foto: Divulgação/ Coleção Ruy Souza e Silva

A antropóloga ressalta também que as áreas mais preservadas da Amazônia são as terras indígenas. “Muitos não percebem que a riqueza está na floresta em pé, não nela derrubada. E os índios, mais que ninguém, não se colocam separados da natureza. Acho importante essa visão de muitos deles de que os rios, as montanhas, a terra, elas agem e reagem. A terra sangra”, explica. “Veja os rios de São Paulo se manifestando. Construímos cidades sobre eles, aterramos, deixamos sem porosidade, e eles se revoltam.” Como escreveu recentemente o líder indígena Marivelton Baré, em artigo na Folha de S.Paulo, “o que nossos ancestrais já sabiam instintivamente há milhares de anos, hoje é comprovado pela ciência do homem branco. A mesma ciência que essas pessoas negam. Somos nós os atrasados?”

Diretor do Museu Afro Brasil e curador da mostra Heranças de um Brasil Profundo, Emanoel Araujo segue a mesma linha. “Existe essa ânsia desgraçada de pegar toda a floresta e transformar em soja e gado. Por isso essas exposições vêm em um momento crucial. E é preciso que as pessoas se conscientizem, porque como isso parece estar longe de nós, que vivemos na cidade, muita gente não tem a menor ideia do que está acontecendo.” A mostra no Museu Afro reúne uma grande diversidade de produção material de povos como os Karajá, Marubo, Kayapó, Panará e Juruna – entre máscaras, adornos, cestarias e um rico acervo de arte plumária – colocada em diálogo com fotografias de nomes ocidentais como Albert Frisch, Marc Ferrez, Maureen Bisiliat e Nair Benedicto e quadros de José Roberto Aguilar, Claudio Tozzi e Rubens Ianelli. Há ainda uma grande construção em sapé feita por membros da etnia Mehinako, nomeada Casa dos Homens, e trabalhos contemporâneos de Denilson Baniwa.

Museu Afro
Mulher na cerimônia do Yamaricumã, de Maureen Bisiliat, 1975, na mostra no Museu Afro. Foto: Divulgação/Acervo Instituto Moreira Salles

“Essa exposição celebra a vida desses povos das florestas que através de séculos vivem e sobrevivem sendo achacados pelos homens brancos. (…) Esse povo que aqui estava e que aqui continua em terras onde sempre foi o dono, para sempre”, escreve o curador em texto sobre a exposição. Araujo destaca ainda que a mostra não possui exatamente um caráter antropológico ou acadêmico, mas propõe uma reunião de peças que passam uma “ideia de deslumbramento” e que mostram a sabedoria dos povos indígenas. Ele se refere também a algo que Darcy Ribeiro chamou certa vez de “vontade de beleza”, ou seja, um cuidado estético presente em toda a produção dos povos indígenas que vai das coisas mais efêmeras às mais duradouras.

“Existe essa beleza notável nas coisas”, concorda Caiuby, se referindo à produção ameríndia. “Porque aquilo que é certo, que é bem feito, tem que ser bonito. E isso se relaciona com outra característica desses povos que é a de não diferenciar coisas que nós consideramos como esferas separadas: ética, estética e moral. Então aquilo que é esteticamente belo é porque é eticamente correto e moralmente é o certo.” E ela exemplifica: “A gente pode admirar um pôr do sol com poluição, porque dizemos que fica mais vermelho, mas isso para eles é inadmissível”.

Diversidade e o conceito de arte

Quando destacam as características comuns aos povos indígenas, os curadores e artistas das mostras atentam também para o perigo de homogeneizar a produção e o pensamento das diferentes etnias, reduzindo a enorme pluralidade ameríndia como se fosse uma coisa só. Na exposição Encontros Ameríndios, por exemplo, uma diversidade de linguagens e temas ficam explícitos nas obras dos povos dos diferentes continentes. Seres mitológicos, seres da floresta, temáticas relativas ao contato – além de vídeos que remetem à própria produção das obras – são algumas das questões que surgem nos trabalhos em variados suportes, seja nas caixas de madeiras feitas pelos Haida, no painel pintado pelos Shipibo Conibo ou nas molas (arte têxtil) dos Guna. Trabalhos feitos a partir dos grafismos tradicionais, temas xamânicos, espiritualidade, a questão do exílio e obras de forte cunho político também se apresentam na produção contemporânea de diversos artistas indígenas.

Museu Afro
Cestarias e outras peças reunidas na exposição Heranças de um Brasil Profundo, no Museu Afro. Foto: Marcos Grinspum Ferraz

“São povos que têm inúmeras semelhanças e diferenças entre si. E acho que esse encontro entre eles é uma oportunidade de ver isso”, diz Caiuby. “Inclusive, são povos que valorizam muito a diferença e não a transformam, ao contrário de nós, em desigualdade.” Entre as semelhanças, a antropóloga ressalta a importância da troca e da reciprocidade como princípios da vida social, assim como o processo histórico de dominação a que foram submetidos. Há, ainda, uma percepção clara de que o conceito de “arte” como usado no mundo ocidental não se adequa ao pensamento ameríndio. “Para nós, não há essa diferença entre arte e vida ou arte e resistência como há no Ocidente, onde a arte é um instrumento de poder em relação a outros seres humanos”, afirma Denilson Baniwa (leia mais em entrevista concedida à ARTE!Brasileiros).

Assim, a confusa e problemática distinção entre o que seria arte ou artesanato na produção indígena passa a ter maior espaço no debate contemporâneo de instituições, curadores, galeristas e artistas. Segundo Barcelos Neto, em entrevista recente ao jornal Nexo, a produção indígena exposta nos museus de arte moderna e contemporânea normalmente está restrita àquela feita com técnicas e suportes semelhantes aos canonizados pela arte ocidental. De modo geral, aplica-se à produção indígena uma classificação própria à arte ocidental, a partir de parâmetros estéticos, plásticos e utilitários alheios aos próprios indígenas.

Encontros Ameríndios
O pombo cantador que vem de longe, lá do céu, já virou jiboia, do coletivo Mahku (Huni Kuin), na mostra Encontros Ameríndios. Foto: Everton Ballardin

“Posso te dizer que alguns dos artistas e coletivos indígenas com quem converso não estão preocupados com os conceitos de arte ocidental. Nem o que esse termo possa significar nas escolas de arte ocidentais, se for pautado pelo olhar do intelectual não indígena”, afirma Naine Terena, que no momento trabalha na montagem da mostra na Pinacoteca. Ao mesmo tempo, a produção de diversos artistas indígenas contemporâneos a partir do que Naine chama de um “ajuntamento” de técnicas – indígenas e ocidentais – têm contribuído para o desenvolvimento de um fértil campo de criação, além de ser um dos motivos da crescente visibilidade deste trabalho.

Segundo Baniwa, quando esses artistas se propõem a utilizar linguagens não indígenas, trata-se também de uma estratégia de conversar com quem não faz parte dessas culturas. Ele afirma ainda que ao trabalhar, através da arte, com temas que já tratava em sua luta no movimento indígena, consegue tocar as pessoas por um viés mais ligado à emoção e afetividade. Essa aproximação com instituições ou com o mercado de arte, diferentemente do que diria a visão “evolucionista” do atual governo, não faz destes índios menos índios, como fica claro em seus trabalhos e discursos de afirmação de identidades. “As culturas não são estanques, paradas. Todos nós vivemos a partir da absorção das coisas que vem de fora”, afirma Caiuby. E se os índios se transformam no contato com os brancos, talvez seja hora de, antes que seja tarde, nos transformarmos mais profundamente em nosso contato com os índios.

Projeto reúne artistas e propõe modelo alternativo de vendas durante quarentena

Toda vez que uma obra é vendida, o Instagram do projeto Quarentine compartilha esse envelope aberto, como comemoração.

Acostumados a comercializar seus trabalhos por conta própria ou por meio de galerias, uma série de artistas brasileiros decidiram participar de uma iniciativa distinta – talvez inédita – em tempos de pandemia do novo coronavírus. Na tentativa de enfrentar as enormes dificuldades impostas pelo novo contexto, cerca de 45 artistas de diversas regiões do país se reuniram no projeto Quarentine, “uma iniciativa de incentivo à produção e venda de trabalhos durante a quarentena”, nas palavras dos organizadores.

Concebido pelas artistas Lais Myrrha e Marilá Dardot, pela curadora Cristiana Tejo e pela fundadora da plataforma 55SP Julia Morelli, o Quarentine propõe uma ação coletiva na qual os trabalhos de todos os artistas são vendidos por um mesmo preço (R$ 5 mil) e o valor total reunido é repartido igualmente entre todos os colaboradores.

Os artistas participantes são: Ana Dias Batista, Ana Lira, Arissana Pataxó, Armando Queiroz, Bruno Faria, Caetano Costa, Cinthia Marcelle e Diran Castro, Clara Ianni, Clarice Cunha, Daniel Lie, Debora Bolsoni, Denilson Baniwa, Fabiana Faleiros, Fabio Morais, Fabio Tremonte, Fernando Cardoso, Guto Lacaz, Jaime Lauriano, Janaina Wagner, João Loureiro, Laercio Redondo, Lais Myrrha, Lenora de Barros, Lia Chaia, Lucas Bambozzi, Manauara Clandestina, Marcellvs L., Marcia Xavier, Marco Paulo Rolla, Mariana de Matos, Marilá Dardot, Marta Neves, Maurício Ianês, Nicolás Robbio, Patrícia Francisco, Paulo Bruscky, Rafael RG, Ricardo Basbaum, Romy Poc, Rosângela Rennó, Sara Não Tem Nome, Sara Ramo, Traplev, Yana Tamayo e Yuri Firmeza.

“O coronavírus tem reforçado a importância da cooperação entre todos e da redistribuição mínima de condições materiais como as únicas possibilidades de sua superação. Sem a ação coletiva não há solução”, diz o texto de divulgação da iniciativa. “Esta situação sem precedentes na história recente mundial tem convidado-nos a repensar estilos de vida, alianças, formas de contribuição e maneiras de atuação profissional. Diante deste contexto de incertezas e de interrupção do cotidiano, o grupo propõe um experimento coletivo de re-imaginação de modelo econômico para as artes”, conclui.

Além disso, uma cota extra foi criada para ser doada para o fundo emergencial de apoio às pessoas trans afetadas pelo covid-19 e assistidas pela Casa Chama, uma organização civil de ações socioculturais com foco em artistas Transvestigêneres.

Artistas das mais variadas regiões, em momentos distintos da trajetória, de diferentes gêneros e grupos raciais foram convidados a propor trabalhos de acordo com as condições de quarentena – em casa, com os materiais e instrumentos disponíveis. As obras resultantes são desenhos, gravuras digitais, arte sonora, vídeos, fotos e textos, entre outros, pensadas para serem enviadas digitalmente e realizados (baixados, impressos e/ou executados) pelos compradores também em condições de quarentena. Os trabalhos só serão visualizados pelas pessoas que os comprem. Segundo os organizadores do Quarentine, há a intenção de, ao final do processo, realizar uma exposição online com as proposições desenvolvidas. Os trabalhos podem ser adquiridos na Plataforma 55SP (www.55sp.art/quarantine)

Sem tempo para ficar sem arte!

Visita virtual ao Hermitage, em São Petesburgo, é uma das mais completas. Foto: Divulgação

Algumas das instituições culturais mais aclamadas do mundo possuem um sistema de visita virtual em 360 graus. Outros colocam todo o seu acervo digitalizado na web para que o público possa acessá-lo. Em um momento em que todos precisam evitar aglomerações e lugares por onde passam muitas pessoas, não há necessidade de deixar de ver e apreciar a arte.

A ARTE!Brasileiros recomenda uma série de museus para visitar de forma gratuita e sem sair de casa. Confira:

Europa

Vitória Alada de Samotrácia, no Louvre
Vitória Alada de Samotrácia, no Louvre. Foto: Divulgação

Musée du Louvre: O emblemático museu francês foi construído originalmente como uma fortaleza pelo Rei Filipe Augusto; hoje, o Louvre disponibiliza três guias virtuais em seu site: pelas antiguidades egípcias, pelo fosso da antiga fortaleza e pela Galerie d’Apollon. Além disso, é possível conhecer outras obras da instituição através de visitas temáticas também disponibilizadas online.

Uffizi: Chamado também de Galleria degli Uffizi, o museu situado em um palácio foi inaugurado em 1769 em Florença, na Itália, com projeto arquitetônico original de Giorgio Vasari. O museu abriga trabalhos de Raffaello a Michelangelo e Cimabue. O Uffizi disponibiliza – em parceria com o Google – um tour virtual por todo o museu.

British Museum: A coleção do The British Museum, fundado em junho de 1753, abrange mais de 2 milhões de anos da história. Sua coleção inclui objetos conhecidos mundialmente como a Pedre de Rosetta, os frisos do Partenon de Atenas e as múmias egípcias. Também em conjunto com o Google Arts & Culture, a exploração do museu pode ser feita de casa, em segurança.

Museo Nacional del Prado: Um dos mais prestigiados museus da Espanha, localizado em Madrid, o Museo del Prado foi planejado no reinado de Carlos III. Seu acervo – disponível no site do Museu – guarda obras importantes, principalmente na coleção de pinturas espanholas, que inclui a famosa obra “As Meninas” de Diego Velázquez.

Hermitage: O Hermitage está localizado às margens do rio Neva, em São Petersburgo, na Rússia. Dentro das construções que o compõem está o Palácio de Inverno, que foi a residência oficial dos Czares quase ininterruptamente desde sua construção até a queda da monarquia russa. Talvez este seja o museu com uma versão virtual mais ampla: é possível visitá-lo por inteiro no site da instituição e em 2020, em parceria com a Apple, o museu fez um tour virtual de 5 horas gravado em um take só, no estilo de a “Arca Russa”.

Estados Unidos

Washerwomen, de Paul Gauguin, no MoMA
Washerwomen, de Paul Gauguin, no MoMA. Foto: Divulgação

Solomon R. Guggenheim Museum: O museu de Nova Iorque coloca online algumas coleções e exposições para que as pessoas possam apreciar obras de nomes como Mondrian e Picasso. Em 2005, o museu foi designado um edifício do Registro Nacional de Lugares Históricos bem como um Marco Histórico Nacional, em 2008. Recentemente, a instituição passou por expansões surgindo assim o Guggenheim Bilbao, o Guggenheim Hermitage Museum, em Las Vegas, o Deutsche Guggenheim, em Berlim e a Coleção Peggy Guggenheim, em Veneza.

National Gallery of Art: A instituição, que tem sede em Washington, oferece passeios virtuais por suas exposições e por sua coleção. Grande parte da sua coleção inicial veio do colecionador Andrew W. Mellon, que começou a reunir as obras para montar a galeria em meados dos anos 1920. Quando o museu foi criado em 1941, era a maior estrutura em mármore do mundo.

The Metropolitan Museum of Art: Localizado em Nova Iorque, o MET é um dos museus mais queridos do mundo. Seus serviços virtuais incluem visita ao acervo e tours virtuais, podendo ser vistas obras de Pollock e Van Gogh.

The Museum of Modern Art: O MoMA tem uma parceria com o Google Arts & Culture para disponibilizar visitas virtuais de suas exposições e vistas de peças de sua coleção. Foi idealizado na década de 1920 por Miss Lillie P. Bliss,  Cornelius J. Sullivan e John D. Rockefeller, Jr. Em 1971, o museu recebeu um irmão mais novo, o MoMA PS1, dedicado inteiramente à arte contemporânea, apresentando uma coleção com tom mais provocador.

The J. Paul Getty Museum: Com sede em Los Angeles, a instituição tem em seu acervo peças estimadas de Paul Gauguin e Van Gogh. Visitas virtuais e acervo também podem ser conferidos no Google Arts & Culture. O museu também tem um podcast em seu site.

América Latina

Rosa e azul - As meninas Cahen d'Anvers, de Renoir, no MASP
Rosa e azul – As meninas Cahen d’Anvers, de Renoir, no MASP. Foto: Divulgação

MASP: Fundado em 1947 e sediado no arrojado edifício feito por Lina Bo Bardi desde 1968, o MASP veio a ser o primeiro museu moderno no país. Do seu acervo, um total de 1.000 itens dos 8.000 contidos na sua coleção permanente está disponível na plataforma do Google Arts & Culture, assim como seis mostras

MAM-Rio: O Museu de Arte Moderna do Rio tem um dos acervos mais importantes de arte moderna e contemporânea da América Latina, e abrigou parte considerável dos movimentos artísticos brasileiros. Quem cuidou do paisagismo do museu foi Roberto Burle Marx. Uma visitação virtual está disponível no próprio site do museu.

Pinacoteca: Com a colaboração da Pina com o Google, o visitante passa a explorar o museu não só pelas fotos das obras dispostas pela instituição. Além disso, outro projeto torna possível ver de cima as salas expositivas através de um modelo virtual do terceiro pavimento da Pina. Entre os artistas em seu acervo permanente estão nomes importantes da arte brasileira como Lygia Clark e Tarsila do Amaral.

Museo Nacional de Bellas Artes de Argentina: Inaugurado em dezembro de 1896, o museu abriga o maior acervo de arte do país; sua exposição permanente de arte argentina oferece uma sequência que varia desde os pintores estrangeiros que visitaram a Argentina no início do século XIX até as últimas tendências artísticas do século XX. Já sua coleção internacional lista nomes como Goya, Tintoretto e El Greco.

Munal: O Museu Nacional de Arte (MUNAL), localizado no centro histórico da Cidade do México, abriga a coleção mais importante de arte mexicana do país. Sua coleção consiste em mais de 3.500 obras apresentando trabalhos de Orozco, Rivera e Siqueiros.

Amor em tempos de pandemia

Fotografia de Gohar Dashti, da série "Home" de 2017. Enviado pelo Museum of Fine Arts de Boston

Sobre este momento na pandemia do novo Coronavírus, o historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari escreveu que, enquanto a quarentena a curto prazo for fundamental, o verdadeiro antídoto para a epidemia seria a cooperação e não a segregação. Em um exemplo mais palpável da fala de Harari, no dia 24 de março instituições culturais no mundo começaram a “enviar flores“ virtuais umas para as outras: pinturas, fotografias e outras formas de arte começaram a ser compartilhadas online junto com mensagens de agradecimento, empatia e até mesmo poemas. 

A ação começou com a Sociedade Histórica de Nova Iorque enviando um quadro com flores de uma macieira, do pintor estadunidense Martin Johnson Heade, para o Museu Smithsonian. O museu foi ágil em passar o presente para o próximo, destinando um bouquet de flores coloridas por H. Lyman Saÿen para o Akron Art Museum. Assim, as entidades que receberam os bouquets começaram a retribuí-los incluindo na brincadeira cada vez mais instituições artísticas.

Não demorou muito para que isso se transformasse em uma verdadeira corrente, com centenas de museus – mais de 300 instituições – participando com a hashtag #MuseumBouquet, preenchendo seus espaços virtuais com imagens de flora. 

A National Portrait Gallery, o MET e o Guggenheim estão entre os colaboradores dessa ação de fortalecimento de espírito comunitário, principalmente no mundo da arte, que foi atingido pela crise – com os fechamentos das exposições e eventuais danos financeiros – e teve que repensar ações destinadas ao ambiente virtual como forma de se manter na ativa e entregar arte para seu público.

Coroa de Espinhos

Tentação de São Antônio (1650), Joos Van Craesbeeck

Em agosto de 2019 o céu de São Paulo tornou-se subitamente escuro, em função das queimadas da região Norte. Anos antes não pudemos sair de casa porque o PCC assumiu um ataque massivo contra a polícia. Vez ou outra as chuvas interditam ruas e estradas do país destruindo casas e barragens.

Estes momentos de exceção trazem transtorno, medo e desordem pois neles nossa vida prática se vê obstruída. Temos que parar e pensar. A lei do dia a dia é revogada e surge uma brecha na ordem das coisas. Tais momentos nos lembram que por mais que tenhamos sonhos de controle sobre a natureza, sobre os outros e sobre nós mesmos, há ainda uma força maior que nos submete.

Não estamos mais acostumados a enfrentar o poder da natureza, sem que ele esteja combinado com a imprudência, imperícia ou negligência humana.

Quando algo dá errado nos dirigimos inevitavelmente à busca de culpados e responsáveis, como se estes, uma vez localizados, nos autorizassem a voltar a dormir o sono dos justos. A pandemia de covid-19, que alastra-se pelo Brasil, faz lembrar as lições trazidas, desde sempre, pela peste como estado de exceção. A primeira delas é que a peste é democrática, atingindo ricos e pobres, mulheres e homens, brancos e negros, crianças e idosos, ainda que sobre estes últimos ela seja mais impiedosa e letal. Como dizia Hegel, diante da doença temos que nos lembrar que só há um mestre absoluto: a morte. Ela é a razão e medida de todas as vidas e diante dela somos todos iguais. Por isso ela pode ao mesmo tempo nos colocar tão juntos e solidários quanto separados e concorrentes.

A peste materializa e sintetiza nossa relação com os outros, porque mobiliza a ideia de contágio e transmissão pelo contato. Coisas que passam de um para outro se prestam a simbolizar que a essência do convívio humano é a troca. Por isso a peste encarna nosso imaginário sobre a origem do mal. O mal não está e nem vem de nós mesmos, mas vem do outro, ele vem de longe, vem do Oriente, vem da China, que como os bárbaros da antiguidade, não fala nossa língua. A peste nos ameaça porque não ataca apenas nossos corpos, mas nossas identidades, nossos sentimentos de pertença e de filiação a uma determinada ordem. Toda doença séria e potencialmente letal levanta esta pergunta moral: o que fiz para não ser tão amado e protegido pelo Outro que me envia isto. Nossa irresistível tendência a ler a doença como uma mensagem tem a ver com a resistência a aceitar que existem coisas que não conhecemos e, portanto, não dominamos. Quando isso acontece nós criamos ficções e hipóteses para ler e atribuir significado ao que, em princípio, não tem sentido.

É como a metáfora da desordem que, durante a idade Média, a lepra punia com a degradação do corpo aqueles que se deixavam levar pela luxúria. É como a deshumanização, animalização e imputação de irracionalidade que tornamos a loucura o grande mal da modernidade, esta época definida pela razão. Durante os anos 1990, lemos na aparição do HIV-AIDS uma espécie de castigo divino contra homossexuais e todos que exerciam “demasiadamente” sua liberdade sexual. Ou seja, desde sempre transformamos o medo de um objeto que vem de fora na angústia indefinida de um pavor que vem de dentro. Tendemos a moralizar eventos naturais que escapam ao nosso controle, depositando sobre eles um sentido que eles não possuem. É assim que a experiência de adoecer e entrar nesta espécie de intervalo ou parênteses da vida, pode tornar-se uma experiência de culpa e desamparo.

Na grande peste de 1666 erguiam-se fogueiras imensas nas encruzilhadas que davam caminho para as grandes cidades, como forma de evitar a peste bubônica. A teoria por trás da prática era de que o medo predispunha a pessoa a contrair a peste. A prova de coragem, enfrentando o fogo, ao mesmo tempo purificava e autorizava a chegada do estrangeiro puro e afastava o estrangeiro impuro. A peste transmitia-se pelo olhar invejoso que o doente lançava sobre o sadio. Nossa tendência diante do que não compreendemos é ficar junto, criar grupos e dar as mãos. Ora, a crueldade adicional imposta pelo coronavírus é que justamente isso é o que não devemos fazer.

A peste convoca em nós esta dupla tarefa de enfrentar o medo e de fazer frente à angústia. O medo nos faz agir, avaliar riscos e calcular estratégias. Diante do medo podemos atacar ou fugir. Ele nos incita a tomar medidas protetivas, obedecer restrições de contato social, ou métodos de higiene e limpeza. Só um tolo desfaz do medo apegando-se à ideia de que não há motivo para o temor, que a fé nos protegerá ou que a doença é apenas uma invenção imaginativa.

O problema começa quando o medo do que vem de fora se contamina com a angústia que vem de dentro. Percebe-se assim como a ideia de contaminação é uma ideia objetiva e subjetiva

Ela fala da transmissão real de um vírus de corpo para corpo, da passagem simbólica da cultura entre nativos e estrangeiros, mas também da mistura imaginária entre o bem e o mal dentro de nós. Por isso a doença é o pretexto ideal para ativar preconceitos, invocar fantasmas e revitalizar complexos infantis. É como se diante da possibilidade da morte nos víssemos diante da inadmissível falta de sentido da vida e contra isso respondêssemos com nossas crenças inconscientes.

Podemos distinguir três reações básicas diante da peste: o tolo, o confuso e o desesperado. O tolo desconhece a importância do medo. Desprevenido e desinformado ele irá em busca de culpados. Ele não é corajoso porque não reconhece os riscos e resolve atravessá-los mesmo assim. Ele simplesmente não quer saber do perigo, por isso também não toma providências.  O confuso é aquele que lida com a angústia tentando transformá-la inteiramente em medo real. Ele estocará quilos de papel higiênico porque ouviu algo sobre a Coréia, andará com tonéis de álcool em gel no bolso e saberá tudo que todos os governantes falam, mas também acompanhará todos os boatos e disseminará todas as hipóteses conspiratórias. Finalmente, a reação dos desesperados transformará todo o medo, gerado pela indeterminação, em motivo para incremento de angústia. No fundo ele já estava inquieto antes disso tudo, a doença só veio dar corpo e carne aos seus piores fantasmas. Acalmar-se é algo que ninguém pode fazer por você. Se você espera que apenas mais notícias, informações e comentários venham a te pacificar, ou se você acha que aumentar o estoque de máscaras vai sanear sua angústia, você está se enganando.

O verbo chama-se “acalmar-se”,  e não ser acalmado pelos outros e seus objetos. O medo se combate com precaução e medidas objetivas, a angústia com cuidado de si e trabalho subjetivo.

Neste sentido a peste tem muito a nos ensinar, especialmente quanto a nossas ilusões de controle e dominação sobre o mundo e sobre nosso destino. A cultura do ódio e da emulação, a crença digital de que somos muitos importantes e tantas outras promessas nos fazem acreditar que somos soberanos sobre nossas vidas. Daí aparece um pequeno micro-organismo, bastante limitado do ponto de vista de sua capacidade reprodutiva e de estrutura biológica de RNA e nos derruba. Ou seja, do ponto de vista de nossa angústia o coronavírus não poderia ter um nome melhor: ele nos tira do trono de nós mesmos e coloca a coroa de nossas vidas em sua justa dimensão.

É a coroa de espinhos que convoca uma experiência escassa em nossa época: a humildade. Diante desta pequena e destrutiva força da natureza nosso grandiloquente narcisismo se dobra como um vassalo encurralado.

Apesar de dolorosa como um espinho na alma esta pode ser uma experiência profundamente transformativa. Descobrir que podemos muito menos do que pensamos, aceitar o imponderável que nos governa e acolher com humildade o que ainda não dominamos, pode ser muito benéfico. Pode ser uma verdadeira terapia, para aqueles que precisam descansar a cabeça do peso de sua coroa de espinhos narcísicos.

 

 

Colaboradores da edição #50


Alles Blau é o nome dado à parceria entre Elisa von Randow e Julia Masagão. A dupla de designers gráficas, desde 2015, desenvolve ilustrações, identidades visuais, projetos editoriais e expográficos. Elas são as criadoras do novo projeto gráfico da plataforma ARTE!BRASILEIROS, concebido para comemorar os nossos 10 anos de existência e a nossa edição de número 50


Miguel Groisman é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Cinema pela FAAP. Já escreveu sobre cinema e fotografia para a Revista Esquinas e foi pesquisador discente sob orientação da Profa. Dra. Simonetta Persichetti, desenvolvendo uma pesquisa sobre a representação das pessoas que vivem com HIV/AIDS no fotojornalismo. Produz conteúdo para nossas plataformas digitais desde fevereiro.


Benjamin Seroussi é curador, editor e gestor cultural, com mestrado em antropologia e sociologia pela Ecole Normale Supérieure e em gestão cultural pela Sciences-Po (França). Foi curador associado da 31ª Bienal de São Paulo. Atualmente, é diretor da Casa do Povo. Escreve para esta edição sobre o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto, onde atuou como curador.


Jamyle Rkain é jornalista, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É pesquisadora nas áreas de Mídia, Literatura, Arte e Gênero. Em 2016 e 2017, se dedicou à revista CULTURA!Brasileiros e desde o início de 2018 atua como repórter na ARTE!BRASILEIROS. Também trabalha como produtora editorial. Para esta edição, entrevistou o artista Denilson Baniwa.


Tadeu Chiarelli é curador e crítico de arte. É professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Também já atuou como curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). É colunista no site da ARTE!BRASILEIROS.