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“Terzo Paradiso”, obsessão por um mundo novo

A land art do italiano Michelangelo Pistoletto, agora finalizada, com 20 toneladas de pedras, encontra lugar permanente no Festival Arte Serrinha, em Bragança Paulista.
A land art do italiano Michelangelo Pistoletto, agora finalizada, com 20 toneladas de pedras, encontra lugar permanente no Festival Arte Serrinha, em Bragança Paulista.

A arte pode redirecionar o mundo e propor novas maneiras de viver? Michelangelo Pistoletto há quase dez anos se dedica ao ambicioso projeto Terzo Paradiso (Terceiro Paraíso), apoiado em um repertório crítico de terminologias matemáticas para desenvolver uma ação de respeito à natureza, aos espaços urbanos e ao homem, colocando a arte no centro de uma transformação social responsável.

Seria um engano imaginar que a proposta gira em torno dela mesma. Ao contrário, contamina outros circuitos, abre o campo das reflexões e narrativas por meio de atividades artísticas e educacionais envolvendo a população do local onde ela é instalada, provocando consequências sociais.

O conceito do projeto começa com o gesto de Pìstoletto de tomar o signo matemático do infinito como ponto de partida. O Terzo Paradiso é a fusão do primeiro círculo do símbolo, que ele diz ser integrado à natureza, com o segundo, imerso nas necessidades artificiais, para ambos formarem o terceiro que representa a nova humanidade.

De fácil identificação visual e teoricamente complexo, como ele mesmo define, Terzo Paradiso já foi desenhado, dançado, tocado, plantado, em diversas topografias: mares, rios, praças, projetado e até impresso em uma nave espacial italiana. Agora, em grande dimensão, chega à paisagem bucólica e montanhosa do 19º Festival Arte Serrinha, idealizado por Fabio Delduque em Bragança Paulista, que ocorre virtualmente até novembro, com o tema Arte e Ciência. A instalação reforça a ideia de Pistoletto de que a terra é a paisagem para um novo nível de civilização. A curadoria é de Marcello Dantas e Catarina Duncan, e a instalação foi feita sob a orientação do Pistoletto. “Não pudemos envolver a população nem os estudantes por conta da Covid-19. Mas agora o público poderá conhecer a obra feita com rochas da região durante todo o ano, porque já integra o acervo permanente do festival.”

Conversa em Havana

Há projetos que enfeitiçam e agem como substâncias alucinógenas nos seus autores. Converso com Pistoletto no hotel Raquel, em Havana, em 2015, acompanhado de sua mulher, Maria, um farol de sua vida. Tranquilo, animado, ele dá sinais de que faria o Terzo Paradiso no interior de São Paulo, então guardo a entrevista para esta ocasião. Na capital cubana seu trabalho ganha outros contornos por trazer à tona um mecanismo de controle. Ele acabava de fazer a performance sem a autorização do governo, envolvendo dezenas de barcos de pesca, sob a coordenação do artista Kcho, da curadora Laura Salas, ambos cubanos, e de Lorenzo Fiaschi, da galeria italiana Continua, com filial em Havana.

Terzo Paradiso montada na Baía de Havana, em 2015, como uma grande performance realizada ao lado de pescadores locais. Foto: Divulgação

Sem consultar a burocracia cubana, ele convence os pescadores a fazerem o signo do Terzo Paradiso flutuar na Baía de Havana. Sabendo da complexidade da situação, pergunto como conseguiu intervir dentro de uma área da chamada “água costeira”, território soberano do Estado, lei vigente em qualquer país. “Os pescadores devem ter o direito, como qualquer cidadão, de se manifestar. Terzo Paradiso é uma obra de processo aberto, comunitário, de ação planetária em que todos são autores e protagonistas independente de seu país, raça, política ou religião”. De qualquer forma Pistoletto executou a obra e testou um modelo de como exibir eventos performáticos em zona proibida. Havana é uma das embaixadas do Terzo Paradiso, assim como San Gimignano, Pequim e Quebec.

O novo milênio alerta que o planeta está sob risco. Terzo Paradiso pratica duas questões recorrentes, a reciclagem e a sustentabilidade ambiental. A função reprodutora do projeto está nos subprodutos gerados em seminários, debates, workshops, residências, festivais, na defesa de um futuro no qual natureza e sociedade coexistam de forma sustentável e garantam vida à terra. Terzo Paradiso significa a passagem de um novo nível de civilidade planetária.

“O termo ‘Paraíso’ foi apropriado pela religião como doutrina, mas pertence à língua persa que significa jardim protegido. Naquela cultura, Paradiso se refere à agricultura, ao modo de produzir vegetais no deserto, construindo dois muros paralelos de pedras, com espaço suficiente entre eles para deter a umidade e permitir que floresça a plantação. Do ponto de vista da religião, se configura como o jardim que se pode alcançar depois da morte”, explica. Mas os homens querem um jardim em sua vida terrestre, daí o artista criou um símbolo a partir da trinâmica, elemento tomado do sinal matemático do infinito. “Quero falar de nossa vida finita na sociedade, fazer nascer um terceiro espaço que representa o início e o fim de nossa existência. Afinal, tudo o que existe tem uma duração e depois acaba”.

Nessa perspectiva Terzo Paradiso é participativo, espacial e, sobretudo, político. “A arte não pode ser separada da política. Arte é política e a política tem que ser arte. A arte tem a liberdade de ser livre e responsável”. A Cittadellarte, seu centro de arte em Biella, onde nasceu, é a sede do Terzo Paradiso. Lá ele fez a exposição A Crítica não é Suficiente, uma espécie de resposta aos artistas que criticam o status quo sem propor nada de novo em troca. “Crítica é utopia e se for simplesmente bloqueada em uma situação não provoca o novo. Não basta um artista criticar o sistema, é preciso que ele tenha uma proposta de mudança”.

Considerado um dos artistas fundamentais da arte contemporânea, Pistoletto, aos 86 anos, testou positivo para Covid-19, passou um mês no hospital, se recuperou, segue trabalhando e assumiu uma nova identidade, como ele diz, passando de sujeito individual ao sujeito coletivo da criação artística. “A arte deve ser colocada no centro de uma transformação, introduzindo uma atenção à ecologia e à pesquisa prática, acompanhada de um processo mental que permita que as pessoas comecem a conviver com novas motivações. Arte é enzima de fermentação social, equilíbrio da efetiva realidade do mundo”, finaliza.

VI Seminário Internacional Virtual ARTE!Brasileiros: Em defesa da natureza e da cultura – a arte do possível

Palestrantes do VI Seminário Internacional Virtual: em defesa da natureza e da cultura - a arte do possível
Palestrantes do VI Seminário Internacional Virtual: em defesa da natureza e da cultura - a arte do possível

Realizados em diferentes cidades e instituições, os seminários internacionais e debates organizados pela arte!brasileiros tornaram-se importantes espaços de reflexão, discussão e difusão do pensamento crítico contemporâneo, relativo não só ao mundo da arte, mas à sociedade como um todo. Desde “O Colecionismo no Brasil no séc. XXI”, em 2012, até “Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos”, em 2019, uma grande quantidade de pensadores de diversos países e áreas puderam dialogar entre si e com o público sobre uma ampla variedade de temas.

Dando sequência a esta caminhada, nos dias 8 e 9 de outubro de 2020 a arte!brasileiros realizou, em parceria com o Goethe-Institut, o “VI Seminário Internacional Virtual ARTE!Brasileiros: Em defesa da natureza e da cultura – a arte do possível”. Dessa vez, não no Auditório Ibirapuera, no Itaú Cultural, no MAM-SP ou no CCBB Rio – locais que já abrigaram estes eventos -, mas sim na web, na plataforma do YouTube.    

A impossibilidade do encontro presencial, decorrente da pandemia de Covid-19 e da necessidade de isolamento social, trouxe vários novos desafios e algumas dificuldades, mas resultou também em uma grande “vantagem colateral” – por assim dizer -, um alcance de público bastante superior ao visto nos eventos anteriores. Foram cerca de 5 mil acessos durante os dois dias de seminário, com números que seguem subindo nas plataformas, já que o evento está disponível em nosso canal.

O tema da pandemia, que não surge desconectado da destruição da natureza e dos ataques à cultura vividos no mundo – e destacadamente no Brasil -, permeou as falas dos ambientalistas, filósofos, cientistas, artistas e curadores que participaram do seminário. Nas próximas páginas, em cinco textos, o leitor terá a cobertura completa das apresentações que reuniram, no dia 8, a artista e militante indígena Naiara Tukano, o líder indígena e ambientalista Ailton Krenak, o cientista Antônio Donato Nobre, a curadora Andrea Giunta (12ª Bienal do Mercosul), os artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca e o filósofo Franco “Bifo” Berardi; e, no dia 9, os curadores Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza (3ª edição da Frestas – Trienal de Artes), os artistas Edgar Calel e Aline Baiana e os curadores Agustín Pérez Rubio e Lisette Lagnado (11ª Bienal de Berlim).

Poucos dias após a realização do evento recebemos, com grande alegria, a notícia de que a nossa editora Patricia Rousseaux e a arte!brasileiros foram vencedores do Prêmio ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte – 2019, na categoria Prêmio Antônio Bento (difusão das artes visuais na mídia). Este reconhecimento valida o nosso trabalho e nos dá forças para continuar.

Dia 8

Dia 9

34ª Bienal de São Paulo abre mostra coletiva

"Parade", Yuko Mohri, obra que está na exposição "Vento". Foto: Divulgação

Em 14 de novembro, a Bienal de São Paulo volta a abrir as portas para o público, acompanhando o movimento de reabertura iniciado pelo circuito cultural, com a exposição Vento, um recorte sugestivo do que será a 34ª edição do evento, adiada para setembro do ano que vem por causa da pandemia. A instituição também apresentou à imprensa nos últimos dias os detalhes de um novo conjunto de iniciativas planejadas para o mundo virtual, confirmando que ainda vamos conviver por muito tempo com estratégias de comunicação e troca que nos permitam limitar os encontros presenciais. 

A mostra coletiva, que reúne trabalhos de 21 artistas (dentre os cerca de 100 que participarão da mostra final), vem de encontro a alguns elementos fundamentais do projeto original da 34ª Bienal – intitulada Faz escuro mas eu canto. É uma espécie de atualização de um de seus pilares básicos: a proposta de estender o evento no tempo, apresentando em mostras individuais sucessivas parte das obras selecionadas, dando ao espectador a possibilidade de interagir com elas em diferentes contextos, ampliando assim a possibilidade de leituras. “Queríamos um índice do que virá ano que vem”, sintetiza Jacoppo Crivelli Visconti, curador da Bienal. Trata-se de uma seleção propositalmente diversa, que reverbera os efeitos da pandemia e do isolamento. “Procuramos fazer uma reflexão sobre o próprio processo de construir a exposição, não fingimos que nada disso nos afetou”, afirma o curador-adjunto Paulo Miyada, destacando a importância de não aferrar-se a um projeto fechado, incapaz de “sentir o tremor dos tempos”.

Além da heterogeneidade de poéticas, uma representação propositalmente ampla de gerações e culturas, a mostra traz como grande índice inovador uma ocupação completamente experimental do espaço. As obras ocuparão os três andares do Pavilhão do Ibirapuera numa configuração no mínimo provocativa. Foram abolidos qualquer tipo de suporte expográfico, com os trabalhos convivendo apenas com as paredes, janelas e colunas existentes no projeto original. “São 30 mil metros quadrados e cerca de 20 artistas, o que cria uma escala muito rara, que reorganiza os planos originais do pavilhão e remete ao contexto específico da pandemia”, descreve Miyada, sublinhando a importância das noções de aproximação e afastamento nessa montagem.

Vento funciona como uma espécie de ensaio aberto. Coloca em fricção obras mais clássicas, como as pinturas evocativas de Eleonore Koch, e experiências que extrapolam o campo da visualidade, como as esculturas musicais de Yuko Mohri. A escolha do título, que segundo Crivelli evoca “aquela sensação de sentir na pele o que não consegue ver”, também ecoa em determinados trabalhos, como o vídeo Wind, de Joan Jonas, que alude ao desejo de reconectar diferentes elementos da natureza.

No campo das atividades virtuais, a 34ª Bienal de São Paulo também traz novidades. Atividades como “Visitas aos ateliês” e “Encontros com os Artistas” vem se somar à outras iniciativas reforçadas durante a quarentena, como as correspondências curatoriais (programação completa pode ser vista em aqui). A série de encontros entre os artistas, por exemplo, terá ao todo seis encontros. O segundo deles está programado para o dia 26 de novembro e deve colocar em sintonia artistas indígenas (Jaider Esbell, Jaune Quick-to-see, Sebastián Calfuqueo Aliste e Sung Tieu), tendo os cantos tikmũ’ũn por tema.

As visitas aos ateliês mantém um ritmo mais intenso. Serão divulgados um encontro por mês até a abertura da grande exposição geral, no segundo semestre de 2021. Por meio deles, é possível entender melhor a conexão entre as poéticas selecionadas e a estrutura geral da mostra. Eles também funcionam como uma espécie de alerta em relação aos impasses éticos, políticos e estéticos que se tornaram ainda mais agudos neste momento. Na primeira dessas conversas, divulgada na última quarta-feira, o artista baiano Juraci Dorea deixa claro a importância de traçar caminhos originais, que fogem do circuito da arte tradicional, mas ao mesmo tempo sua fala soa como um alarme de defesa e resistência: “A Bienal de São Paulo acontece, apesar de tudo”, conclui.

“Entre Bordas – Sons que Escapam”, nova exposição presencial do Sesc Santo André

No primeiro plano, divisões de madeira na parede tem o escrito "Entre Bordas", na vertical. Ao fundo, uma mulher olha quadros da exposição "Entre bordas - sons que escapam" na parede
Exposição "Entre Bordas - Sons que Escapam" do Sesc Santo André. Foto: Letícia Gouveia.

Quais são os sons que escapam das bordas? É dessa pergunta que parte Entre Bordas – Sons que Escapam, a nova exposição presencial do Sesc Santo André. Com curadoria de Paula Braga, a mostra traz o conceito do som em potencial em homenagem ao músico e performer John Cage.

É a partir de obras de Bruno Kurru, Marília Coelho, Paulo Nenflídio, Renan Marcondes, Sandra Cinto e Thomaz Rosa que a exposição trata da sutileza sonora, da quietude e do poder enunciativo do que é esse som em potencial. A mostra coletiva é parte da série Entre Bordas, organizada pelo Sesc SP. A sequência de exposições convida artistas e curadores que se relacionam de alguma forma com o ABC paulista, essa região “que fica na borda do campo”, como explica Paula Braga.

Assista ao vídeo e saiba mais sobre Entre Bordas – Sons que Escapam:

 

A exposição fica em cartaz até março de 2021. Para a segurança de todos frente à pandemia de coronavírus, as visitas acontecem em grupos de 10 pessoas com intervalos a cada 30 minutos. A temperatura corporal de todos é aferida na entrada e o uso de máscaras é obrigatório.

Reserve seu ingresso no site do Sesc Santo André clicando aqui.

Entre Bordas – Sons que escapam teria início em março, mas foi adiada presencialmente em função da pandemia do novo coronavírus. “Se a exposição propunha o silêncio, nós ficamos vivendo em casa esse tipo de silêncio que foi causado pela pausa no cotidiano.  Nós tivemos que entrar em contato com nossos ruídos interiores, que muitas vezes não deixamos escapar de uma certa borda do cotidiano. Tudo isso fez a exposição adquirir um outro significado”, conta Paula. Nesse período, o Sesc produziu vídeos e conteúdos que permitissem o contato virtual com a exposição (assista clicando aqui).  

Afastar-se do sujeito autocentrado; produzir arte no atrito e na diferença

O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação
O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação

Após uma primeira mesa focada em olhares para as questões ambientais, os conhecimentos indígenas, a possibilidade de uma ciência “menos fria”, além do questionamento da falsa dicotomia entre natureza e cultura, a segunda apresentação do VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros aproximou o debate de questões mais diretamente vinculadas à produção artística. Nas apresentações de Andrea Giunta, curadora da Bienal do Mercosul 12, e da dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (que participam da MANIFESTA 13), questões sobre a responsabilidade da arte no mundo contemporâneo, a busca de um fazer coletivo, a visibilidade de saberes marginalizados e a necessidade de fugir da lógica do “corpo autocentrado” nas artes reforçaram uma linha condutiva entre as diferentes falas.

Primeira a apresentar, Giunta traçou um panorama da edição deste ano da Bienal do Mercosul (Bienal 12 Online), que aconteceria presencialmente em Porto Alegre e acabou migrando para o ambiente virtual por conta da pandemia. Destacando a pluralidade envolvida nas temáticas e no próprio título da mostra, Feminino(s). Visualidade, ações e afetos, a argentina ressaltou a importância desta diversidade estar presente na própria constituição da equipe curatorial da bienal. Nesse sentido, frisou o papel fundamental de Fabiana Lopez, Dorota Biczel e Igor Simões, que trouxeram olhares atentos à produção artística especialmente latino-americana, mas também de outros países do globo. Foram ao todo 25 países representados por mais de 70 artistas e coletivos.     

O termo “feminino(s)” – e não “femininas”, nem “feminismos” – representou para Giunta essa escolha por uma pluralidade de pontos de vista, nem sempre só de mulheres, acreditando na “ideia da diferença como multiplicidade e não como separação”. Nesse sentido, a palavra “afeto” também ganhou espaço, ainda mais em um momento de tamanha fragilidade com a pandemia. “E quando ficamos todos isolados, foi muito importante perguntar: como estão os artistas que estavam prestes a viajar para Porto Alegre e não puderam ir? Então pedimos que eles gravassem pequenos vídeos com o celular para o nosso site, o que foi muito importante. Isso criou um arquivo de afetos, um tipo de presença dos artistas na bienal que não tínhamos planejado anteriormente. São algumas coisas boas que aconteceram.”

Sobre La Familia en el alegre verdor, obra de Chiachia & Giannone exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

O afeto, como afirmou Giunta em entrevista recente à arte!brasileiros, não está desconectado das lutas, protestos e de uma arte que clama por mudança social. “Com afetos, poderosas revoltas foram criadas”, disse. Neste sentido, Giunta apresentou no seminário uma série de trabalhos que considera representativos das temáticas tratadas na bienal, a começar por uma tapeçaria de Chiachio & Giannone que apresenta uma cena de integração entre o homem e a natureza, onde pessoas e animais fazem parte de uma mesma família – “não o homem como dono, controlando a natureza, mas o homem em natureza”. Em seguida, a curadora apresentou uma fotografia do coletivo feminista argentino Nosotras Proponemos: “Levamos em conta os ativismos, os direitos das mulheres, mas também os femininos e os feminismos como a necessidade de pensarmos novamente todas as relações entre o humano e o mundo”, disse

Ressaltando que “a luta do feminismo é uma luta pelos direitos sobre o próprio corpo”, ela apresentou ainda trabalhos que tratam do feminicídio, como o de Fatima Pecci Carou, e das variadas formas de experimentar o corpo, como nas obras de Jota Mombaça, Liuska Astete, Janaina Barros, Lorraine O’Grady ou Priscila Resende. A possibilidade de uma reestruturação da linguagem no campo da discussão de gênero surgiu na produção das Mujeres Públicas, enquanto questões cruciais sobre a memória – e especificamente a memória colonial e afrobrasileira – foram tratadas na obra de Aline Motta. Neste ponto de sua fala, Giunta relembrou uma frase de Rosana Paulino, “que me disse uma coisa muito importante relacionada com o tema deste seminário: nas tradições cristãs e católicas, baseadas na bíblia, Deus deu a natureza para os homens; nas religiões afrobrasileiras, o homem e a natureza estão juntos”.

Psicanálise do cafuné catinga de mulata, de Janaína Barros, obra exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

Irlanda, França e norte da África em diálogo

Dando sequência à uma série profícua e diversa de produções audiovisuais filmadas em diferentes cantos do globo, a dupla Bárbara Wagner (Brasil) e Benjamin de Burca (Irlanda/Alemanha) acaba de estrear, na MANIFESTA 13, em Marselha, a obra One Hundred Steps. O filme, de 30 minutos, foi o tema da apresentação da dupla no seminário, que contou ainda com a exibição em primeira mão de trecho do trabalho. No seminário virtual, enquanto Benjamin apareceu com seu celular na Escola de Música de Marselha, expondo o término da montagem da obra, Bárbara falou de sua casa sobre o processo de produção do filme, iniciado ainda no final de 2019. Alguns dias depois do seminário a arte!brasileiros conversou por telefone também com Benjamin. 

Após trabalhos sobre o frevo ou o brega em Recife, sobre os gêneros maloya na Ilha de Reunião (departamento francês próximo à África), schlager em Munster (Alemanha) e rap em Toronto (Canadá), a dupla adentra os universos da música popular irlandesa (com suas gaitas, cantos e sapateados) e da música norte-africana de raiz árabe em Marselha, no sul da França. Se de um lado o filme aprofunda a pesquisa da dupla em universos musicais marginalizados, num diálogo constante entre documentário e ficção, entre o que é cultura pop ou manifestação tradicional, de outro o filme parece trazer elementos inéditos ao trabalho de Bárbara e Benjamin. One Hundred Steps é, por exemplo, o primeiro filme que se passa em dois países distintos e que adentra de modo contundente a história colonial europeia e africana.   

Segundo Bárbara, a pesquisa teve início com a aprovação de um projeto de financiamento público do Irish Arts Council. Surgiu, deste modo, a primeira oportunidade para a dupla desenvolver um trabalho no país natal de Benjamin. Foi na pesquisa pela região irlandesa de Connemara que eles se depararam com o trabalho do documentarista irlandês Bob Quinn. “Nos anos 1980 ele desenvolveu um quarteto de documentários que falava da origem da cultura irlandesa de um jeito muito sofisticado, questionando a hegemonia europeia na formação da cultura de lá e sugerindo que o contato com países do norte da Africa foi fundamental”, contou a artista. Na série, intitulada Atlantean, “ele pergunta: e se a nossa cultura irlandesa estiver muito mais próxima da África do que da Europa?”.

Cena de One Hundred Steps filmada em Marselha; trabalho de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca integra a MAMIFESTA 13. Foto: Divulgação

Partindo dessa hipótese e do convívio com Quinn, hoje com 87 anos, Bárbara e Benjamin tinham um projeto inicial em mente até o momento em que o convite da MANIFESTA veio para “dar uma amarrada formal no trabalho”, segundo Bárbara. Ao fim, o filme se tornou “uma espécie de experimento visual e de montagem entre a Irlanda e o sul da França, em diálogo com o norte africano”. A dupla convidou, para isso, artistas populares para performarem em dois espaços emblemáticos para a história colonial nestes locais – palácios que se tornaram museus -, criando ambiguidades, atritos e momentos de beleza com várias camadas de sentido.

Na Irlanda, músicos e dançarinos foram filmados em espaços da Bantry House, palácio do fim do século 17 diretamente relacionado ao imperialismo britânico no país e que, além de um jardim suntuoso, possui uma escadaria de 100 degraus – os “hundred steps” do título – construída entre 1840 e 1850, a década da grande fome irlandesa. “Em cada canto da Irlanda tem uma mansão enorme construída pelo povo que estava morrendo. E se formos pensar, essa grande fome, que criou uma diáspora de quase 2 milhões de pessoas, ainda é muito recente na história do país”, diz Benjamin. Os artistas que entram na casa, portanto, – e Bob Quinn aparece ali com sua câmera – “se transformam nessa outra voz, que é a voz da cultura irlandesa”, segundo Bárbara.

Em Marselha, por sua vez, uma casa museu em uma antiga residência burguesa, “com uma história similar, apesar do contexto bastante diferente”, serviu de palco para a performance de músicos norte-africanos radicados na cidade. “Então a gente criou uma forma de aproximar, sem necessariamente estar comparando. É uma especulação, novamente, mas sobretudo rítmica e musical”, explica Bárbara. Se a cultura árabe do norte da África surge explicitamente na casa em Marselha, ela também pode estar difusa na música irlandesa que, segundo Quinn, bebeu dessas raízes. “E de repente a gente olha para esses artistas, como se fossem visitantes, os irlandeses e os árabes, e o filme cria esse dispositivo fantástico em que a gente consegue perceber a ocupação desses espaços com outra história”, conclui a artista. Porque, segundo Benjamin, “o colonialismo continua existindo de outra forma, mais mental, mais imaterial”.

Nas falas ao final da mesa, Andrea Giunta ressaltou, em consonância com a apresentação de Bárbara e Benjamin, que “a arte tem a capacidade de ser um arquivo, um arquivo de experiências que foram criadas em diferentes momentos. E com este arquivo podemos fazer as perguntas do presente”. Além disso, para ela é preciso repensar a relação do corpo com o mundo, no sentido de se afastar da ideia do sujeito autocentrado tão comum na arte – “para compreender, experimentar e sentir que nós estamos no mundo”. Ao que Bárbara concordou: “No sentido do corpo que experimenta uma outra forma de conhecimento, que é partilhado. Nosso trabalho é um trabalho audiovisual que se sustenta na colaboração. Não dá pra fazer trabalho sozinho, não dá para fazer sem atrito, sem diferença”.

Aby Warburg em diálogo com o contemporâneo

Detalhe de um retrato de Aby Warburg por Rudolf Dührkoop, em 1925.
Detalhe de um retrato de Aby Warburg por Rudolf Dührkoop, em 1925. Foto: Bundespressekonferenz.

*Por Rafael Cardoso

No exato momento em que a Bienal de Berlim vem dar sua contribuição ao esforço para tornar a cena artística mais inclusiva e atual, dois importantes espaços expositivos da capital alemã voltam a atenção para a obra de um historiador da arte, falecido há mais de noventa anos, especialista em Renascimento Italiano. As exposições Aby Warburg, atlas de imagens Mnemosine: o original e Aby Warburg, entre cosmos e páthos: obras berlinenses do atlas de imagens Mnemosine, ocupam respectivamente a cultuada Haus der Kulturen der Welt (HKW) e o museu Gemäldegalerie. O que torna a obra de Warburg tão relevante para o presente que mereça esse duplo destaque e, mesmo em tempos de pandemia, atraia um público cada vez maior?

Aby Warburg. Sala de leitura da biblioteca de estudos culturais Warburg, Heilwigstr, em Hamburgo, fevereiro de 1927. Foto: cortesia HKW.
Sala de leitura da biblioteca de estudos culturais Warburg, Heilwigstr, em Hamburgo, fevereiro de 1927. Foto: cortesia HKW.

Aby Warburg (1866-1929) não é nenhum desconhecido na história da arte, mas antes um dos grandes nomes da geração que teorizou uma “ciência das imagens” (Bildwissenschaft, em alemão), no início do século 20. Com o ressurgimento desse tipo de abordagem, no rastro de seguidores como Georges Didi-Huberman e Horst Bredekamp, sua reputação intelectual se avultou ao ponto de ele virar modismo entre estudiosos da arte. O problema é que Warburg é daqueles autores mais referidos do que lidos. Muitos dos que invocam seu nome o fazem apenas para justificar aproximações entre obras de contextos distintos. Dizer-se warburguiano virou, no meio curatorial, uma licença para misturar alhos com bagulhos. O chamado pseudomorfismo (isso parece com aquilo, portanto deve existir uma relação) é efeito colateral comum de quem toma pílulas de Warburg fora da dosagem indicada.

Boa parte da desorientação em torno de Warburg advém do fato de que sua última obra, possivelmente a maior delas, permaneceu inacabada. Ao falecer em 1929, o autor trabalhava sobre um atlas de imagens intitulado Mnemosine – em homenagem à deusa grega da memória, mãe das nove musas. Seguindo uma lógica própria, Warburg montava imagens sobre painéis, organizando-as por grupos temáticos e palavras-chave, apontando persistências e coincidências, buscando ecos e repetições entre obras não necessariamente oriundas de contextos culturais vizinhos. Isso permitia comparações, às vezes geniais, às vezes tortuosas, entre antiguidade e modernidade; Oriente e Ocidente; cartas celestes e cartas de tarô; desenhos renascentistas e cartazes publicitários. Fundamentado em sua vasta erudição e conhecimento histórico, ele foi desenvolvendo um método original de pensar não somente o significado das imagens, mas também o modo como elas significam.

Aby Warburg. Montagem do "Atlas Mnemosine". em exposição na Haus der Kulturen der Welt. Foto: cortesia do museu.
Montagem do “Atlas Mnemosine”. em exposição na Haus der Kulturen der Welt. Foto: cortesia do museu.

Quando da morte de Warburg, o conjunto do atlas consistia de quase mil pranchas distribuídas por 63 painéis. A ascensão do nazismo colocou em dúvida o destino de sua biblioteca em Hamburgo, e seus discípulos organizaram a transferência dos livros e materiais iconográficos para Londres, onde serviram de base para a criação do Warburg Institute em 1934. Desde então, houve várias tentativas de publicar versões do atlas, na íntegra ou em parte, o que só fez aumentar as disputas em torno do sentido da obra. A exposição atual na HKW tem por propósito reconstituir a versão “original”, garimpada em extensa pesquisa nos arquivos do Warburg Institute, onde as pranchas se encontravam dispersas entre milhares de outras. Em paralelo, a exposição na Gemäldegalerie agrupa meia centena de obras estudadas por Warburg e incluídas nos painéis de Mnemosine por meio de reproduções. Juntas, as duas mostras oferecem uma oportunidade ímpar de vislumbrar os processos por trás do pensamento dele.

Qual a relevância desse legado intelectual para os dias de hoje? Não resta dúvida que Warburg foi um pioneiro em conceber as imagens de modo disseminado e universal, sem divisões hierárquicas entre culturas e mídias. Para ele, uma fotografia interessava tanto quanto uma pintura, povos não europeus tanto quanto a Europa. Foi precursor não somente em seu olhar para a linguagem das formas – a chamada iconologia – como também por seu interesse em estudos etnográficos como instrumento para compreender a arte. Era um pensador que entendia a cultura humana como um todo e buscava seguir o devir das imagens como pista para desvendar o que temos em comum. Antecipou, em vários sentidos, as ideias de cultura visual e arte global que hoje desafiam não somente historiadores como também artistas. Podemos aprender muito com sua obra – sobretudo que o melhor pensamento visual requer aprofundamento no repertório. Mnemosine, afinal, é memória. Do seu ventre, brotaram as artes e a história.


* Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte, PhD pelo Courtauld Institute of Art. É membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da UerJ e atua como pesquisador associado junto ao Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin. É autor de diversos livros sobre história da arte e do design, além de quatro obras de ficção.

Pivô abre inscrições para o programa de residências artísticas

Ateliê Aberto no Pivô Pesquisa 2020
Ateliê Aberto Pivô Pesquisa 2019 - Ciclo III. Foto: Julia Thompson

Há sete anos o Pivô desenvolve um programa de residências artísticas: o Pivô Pesquisa. Em atividade permanente desde 2013, o programa busca tanto um desenvolvimento de pesquisas individuais quanto a criação de um ambiente de interlocução entre os participantes, equipe curatorial e profissionais convidados. O programa é oferecido de forma gratuita. 

Até o dia 6 de novembro, às 16h, o programa recebe inscrições para sua edição de 2021. Excepcionalmente, a convocatória está aberta apenas para artistas residentes no Brasil, devido às incertezas provocadas pela pandemia de Covid-19. Podem se inscrever pessoas maiores de vinte e cinco anos que tenham ao menos três anos de atividade profissional artística comprovada. Serão selecionados 24 nomes, divididos em três ciclos ao longo do ano. O projeto acontecerá presencialmente na sede da associação cultural no Edifício Copan, no centro de São Paulo. 

A pesquisa no Pivô

Pensando no intercâmbio artístico e cultural entre artistas e curadores, o Pivô Pesquisa propõe atividades coletivas, levando em consideração os interesses conceituais, formais e as necessidades técnicas do grupo em residência. Ao mesmo tempo que desenvolve o intercâmbio coletivo, cada artista tem acesso a um espaço individual de trabalho (de 24 ou 32 metros quadrados), garantindo seu tempo de criação e o desenvolvimento de pesquisa própria.

Ciclo III de residências Pivô Pesquisa 2020
Ateliê Aberto Pivô Pesquisa 2019 – Ciclo III. Foto: Julia Thompson

Os novos ciclos

O programa de residências de 2021 conta com três ciclos, de doze semanas cada, sendo:

  • Ciclo I: 08 de março a 01 de junho 2021;
  • Ciclo II: 14 de junho a 09 de setembro 2021;
  • Ciclo III: 20 setembro a 14 dezembro 2021.

Cada ciclo terá um profissional convidado, responsável pelo acompanhamento curatorial do grupo de oito artistas. Beatriz Lemos – curadora da Frestas Trienal de Artes do Sesc Sorocaba (assista à fala da curadora no VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros) e idealizadora da plataforma de pesquisa Lastro – Intercâmbios Livres é guia o primeiro ciclo. Ela é seguida da programadora cultural e curadora do Solar dos Abacaxis Catarina Duncan. O último grupo receberá Helio Menezes, antropólogo e curador de arte contemporânea do Centro Cultural São Paulo.

Os candidatos podem se inscrever para todos os ciclos, mas apenas poderão participar de um deles. A seleção contará com um júri composto pela equipe do Pivô e pelos
curadores convidados, e levará em consideração as especificidades de cada grupo de artistas no ciclo, a coerência do trabalho artístico desenvolvido e a proposta específica para a residência.

Para saber mais e se inscrever, acesse o edital clicando aqui.

arte!brasileiros ganha prêmio ABCA por difusão das artes visuais na mídia

Capas de algumas edições da revista.

Há dez anos, a arte!brasileiros busca retratar a pujança e a diversidade da arte contemporânea. Para isso, “investimos numa plataforma de cultura e arte contemporânea digital, capaz de falar tanto com a academia como com o mercado”, explica a editora Patrícia Rousseaux (leia o editorial da arte!brasileiros #50).

A revista, que hoje existe no impresso e no digital, defende a ideia de que a arte exprime as ideias e as angústias de seu tempo, sintetizando narrativas transversais. Por isso, nestes dez anos, retratamos a inovação no movimento, a busca por novos suportes, a experimentação, a pesquisa de materiais e de histórias na arte e na mídia, mas também tocamos nos temas que se tornaram essenciais para esse tempo e essa arte: a defesa da liberdade e as questões de gênero; a luta contra a discriminação racial, a segregação da mulher, a opressão econômica, social e política; os movimentos migratórios, as liberdades, a denúncia das agressões ao meio ambiente e ao planeta.

Ao lado dos conteúdos, a arte!brasileiros desenvolveu seu Seminário Internacional, que permitiu a interlocução com vários países. Desde 2012, os eventos colocam em pauta reflexões da atualidade e observa como a arte se posiciona no mundo contemporâneo. A iniciativa se expandiu ao lado de outras instituições, fomentando debate em novos seminários, promovidos ao longo dos anos (assista à gravação do seminário deste ano, feito em parceria com o Goethe-Institut).

Foi por essa ação em diversas plataformas que, no último dia 16 de outubro, a arte!brasileiros e sua editora Patrícia Rousseaux receberam o prêmio Antônio Bento da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), pela difusão de artes visuais na mídia em 2019.

O prêmio

A premiação anual da ABCA contempla categorias que apontam os destaques do cenário das artes visuais que mais contribuíram para a cultura nacional. A categoria que diz respeito à difusão de artes visuais na mídia, pela qual a arte!brasileiros foi contemplada, leva o nome de Antônio Bento de Araújo Lima, uma das figuras mais relevantes da crítica de arte brasileira. O jornalista, crítico, poeta, cronista musical e contista teve um papel relevante na difusão das artes na mídia. Durante sua vida escreveu colunas sobre artes visuais – no Diário Carioca e no jornal Última Hora -, participou da criação da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), tornando-se, posteriormente, presidente da seção brasileira da associação. Antônio Bento também teve papel importante nos museus do país, ao ser diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e participar da fundação do Museu de Arte Moderna da capital carioca, o MAM Rio. Sendo um dos críticos de artes mais conceituados do país, participou de três bienais realizadas em Paris e integrou o corpo de jurados das Bienais Internacionais de São Paulo e Veneza, do Salão Nacional de Arte Moderna e da Comissão Nacional de Artes Plásticas (1978-1980).

Com a premiação, gostaríamos de agradecer a quem nos acompanha por todos esses anos, à equipe responsável pelos conteúdos e eventos da arte!brasileiros, aos entrevistados, aos palestrantes que passaram por nossos palcos (presenciais e virtuais) e à Associação Brasileira de Críticos de Arte.

A ABCA também premia os artistas, críticos, curadores, exposições e instituições que mais contribuíram para a cultura nacional em 2019. Saiba quem foram os demais vencedores:

Prêmio Gonzaga Duque (crítico associado pela atuação durante o ano)
José Roberto Teixeira Leite

Prêmio Mario Pedrosa (artista de linguagem contemporânea)
Iran do Espírito Santo

Prêmio Ciccillo Matarazzo (personalidade atuante no meio artístico)
Luiz Ernesto Meyer Pereira

Prêmio Mário de Andrade (crítico de arte pela trajetória – filiado ou não)
Annateresa Fabris

Prêmio Clarival do Prado Valladares (artista pela trajetória)
Emanoel Araujo (leia nossa entrevista com o artista)

Prêmio Maria Eugênia Franco (curadoria pela exposição)
Cauê Alves; pela curadoria da exposição Burle Marx: Arte, Paisagem e Botânica, apresentada no MuBE (Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia) – São Paulo (leia nossa entrevista com o curador)

Prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade (instituição pela programação e atividade no campo das artes visuais)
Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) – Recife – PE

Prêmio Paulo Mendes de Almeida (melhor exposição)
Tarsila Popular, no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand)

Prêmio Antônio Bento (difusão das artes visuais na mídia)
arte!brasileiros – editora Patrícia Rousseaux

DESTAQUES
Casa da Cultura da América Latina da Universidade de Brasília – DF
Usina de Arte – Água Preta PE
Centro Cultural SESI/FIESP Ruth Cardoso

HOMENAGENS
Carlos Pasquetti
João Evangelista
Fábio Magalhães

Fotografia e modernidade no espelho turvo da literatura. Brasil, séc. XIX

Adolfo Caminha, Domingos Olímpio, José de Alencar, Aluisio Azevedo e Machado de Assis. Foto: Reprodução

Ainda precisam ser descritas e analisadas as relações entre a literatura brasileira do século XIX e a fotografia. Trazida para o Brasil em 1840 – um ano após sua descoberta “oficial” em Paris –, a fotografia logo foi disseminada por aqui, tanto em sua materialidade enquanto fotografia “mesmo” (cartões de visita e seus álbuns, cartões postais etc.), quanto pela imagem fotográfica traduzida em xilo e litogravuras, que rapidamente inundou as publicações jornalísticas do período.

Não saberia precisar qual o romance ou conto escrito por um autor brasileiro em que aparece pela primeira vez a fotografia ou a imagem fotográfica, embora creia que tal fenômeno ocorreu com mais força a partir da década de 1870. A presença da fotografia e da imagem fotográfica na literatura brasileira por certo é um dos índices mais precisos sobre o papel relevante que a fotografia aos poucos foi ocupando em vários setores da vida brasileira, quer junto às camadas brancas da população, quer no cotidiano de pessoas negras livres ou libertas (caso do personagem Amaro, de Bom Crioulo, de Adolfo Caminha). Não se trata de afirmar que a literatura da época tenha espelhado de forma direta a presença da fotografia na sociedade brasileira, mas que esse reflexo surge trabalhado e transformado pela própria literatura, entendida como um espelho turvo, que concederá à fotografia e à imagem fotográfica não apenas a posição de exemplo de “modernidade” no Brasil da época, mas, em alguns casos, lhe dará o papel de personagem importante (em O Mulato, de Aluísio Azevedo, por exemplo) ou de personagem fundamental (como em Dom Casmurro, em Machado de Assis).

Por outro lado, pensar a literatura e a fotografia no Brasil durante o século XIX é refletir também sobre as contradições de um país em que conviviam índices incontornáveis de arcaísmo – a escravidão – com signos explícitos de modernidade: a própria fotografia e sua multiplicação via os meios de reprodução. Por mais que tenha sido naturalizado, é difícil entender como um meio de reprodução de imagens tão moderno, tão afinado com os avanços tecnológicos do século XIX, pode ter servido para a documentação da escravidão em um país como o Brasil.

É claro que este artigo não tem e nem poderia ter como propósito esgotar assunto tão complexo, a ser levado adiante não por um, mas por vários estudiosos. Ele pretende apenas chamar a atenção dos leitores e leitoras para esse assunto tão sedutor, para que fiquem com água na boca e se debrucem (ou voltem a se debruçar) na literatura brasileira do século XIX, agora em busca de todas essas peculiaridades que a modernidade constituiu no Brasil.

***

Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo, publicado como folhetim em 1883, pode ser um belo começo para o que quero discutir aqui: como a literatura brasileira do século XIX absorveu e filtrou a presença da fotografia no cotidiano da população. O romance narra a história de Amâncio Vasconcelos, que deixa seus pais em São Luiz do Maranhão para estudar medicina no Rio de Janeiro, onde se envolve com pessoas que o levam a desligar-se dos estudos, iniciando uma vida boêmia. Com a morte do pai em São Luiz, sua mãe, d. Ângela, lhe escreve pedindo para que volte para casa. No entanto, a senhora fica sabendo que o filho havia sido preso e, preocupada com Amâncio, toma um navio para o Rio de Janeiro acompanhada de uma mulher escravizada. Porém, o que a senhora nem desconfia é que, naquela altura, seu filho já havia sido solto e, logo depois, assassinado.

Aluisio Azevedo. Foto: Reprodução

Durante a viagem, d. Ângela conhece um senhor que, ao saber que ela, assim que chegasse ao Rio, pretendia seguir a pé pelo centro à procura do filho, decide acompanhá-la quando lá aportam. Ao chegarem, ele despacha as bagagens e pede à escrava da senhora que seguisse a condução com as malas, enquanto ele acompanhava a mãe de Amâncio.

Quando chegam à rua Direita, no centro da cidade, uma vitrine chama a atenção de d. Ângela: ali estavam à venda chapéus “à la Amâncio de Vasconcelos”. Seu acompanhante afirma que era tendência os comerciantes batizarem suas mercadorias com nomes de gente famosa. Vamos ao texto:

[…] É singular!… balbuciou a senhora.

– Por quê?

– É esse justamente o nome do meu filho.

– Oh! Não há só uma Maria no mundo!…

Mas d. Ângela fugira-lhe […] do braço para correr a uma nova vidraça. Eram agora bengalas e gravatas “à Amâncio de Vasconcelos” que lhe prendiam a atenção.

Acabavam de entrar na Rua do Ouvidor.– Vê?… interrogou ela, muito preocupada e procurando esconder a emoção. Ainda!

– Ah, fez o companheiro, já impaciente. V. Exa. vai encontrar o mesmo nome por toda parte. É o costume! Olhe! Se me não engano, lá está o retrato do tal Amâncio! Tenha a bondade de ver!

  1. Ângela aproximou-se do retrato, correndo, e soltou logo uma exclamação:

– Mas é ele! É meu filho! o meu Amâncio!

E começou a rir e a chorar muito perturbada.

O velho, meio comovido e meio vexado com aquela expansão […], principiava talvez a arrepender-se de ter sido tão cavalheiro com Ângela, quando esta, que estivera até aí a percorrer, como uma doida, outros mostradores, arrancou do peito um formidável grito e caiu de bruços na calçada.

Tinha visto seu filho, representado na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue.

E por debaixo, em letras garrafais:

“Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro no Hotel Paris, em tantos de tal”[1].
 

Desculpem o spoiler, mas o que chama a atenção neste final de romance é como Aluísio Azevedo sublinha a complexidade da sociedade brasileira no final do século XIX, dividida entre a instituição arcaica da escravidão – d. Ângela viajara acompanhada por uma mulher escravizada – e a moderna precessão dos meios de comunicação interpondo-se entre a senhora que chegava para salvar o filho e a notícia de seu assassinato. Com essa estratégia, Azevedo coloca a personagem Ângela em plena sociedade de massa, em que as relações sociais deixam de ser protagonizadas apenas por pessoas para serem mediadas por imagens produzidas por meio de comunicação de massa (o que não é pouca coisa, num país como o Brasil naquele final de século).

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Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, em História da fotorreportagem no Brasil, afirma que, na segunda metade do século XIX, era comum o uso retratos fotográficos de pessoas envolvidas em crimes. Como ainda não haviam prosperado técnicas de impressão direta da imagem fotográfica para a imprensa, essas fotografias preexistentes eram copiadas via litografia para que pudessem ser publicadas.[2] É o que parece ter ocorrido em Casa de Pensão: além do retrato do filho, Ângela também viu a imagem que descreve o cadáver no necrotério. Aluísio Azevedo não especifica a origem dessa imagem, mas podemos inferir que se tratava de uma fotografia de tipo forense, traduzida para a litografia. Como será visto, esse mesmo tipo de imagem fotográfica processada pela lito será personagem de outro importante romance brasileiro do período – o já citado Bom Crioulo. Mas a literatura brasileira não explorou apenas esse tipo de imagem fotográfica. Ela foi pródiga em abordar a fotografia com outras características.

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O romance Senhora, de José de Alencar, publicado em 1875 – portanto, alguns anos antes de Casa de Pensão –, descreve a penetração da fotografia no cotidiano da elite branca carioca. Um trecho interessante do livro é quando a heroína, Aurélia, explica para Fernando Seixas (seu marido, uma espécie de herói/anti-herói) o lugar que ocupavam os três tipos de álbuns de fotografia em sua residência. Na sala de visitas ficavam dois: o primeiro, dedicado às personalidades europeias, e o segundo, em que eram colocadas as fotos dos conhecidos de Aurélia. Após essa explicação, ela comenta: “O álbum das pessoas de minha amizade, eu o guardo comigo.” Ou seja, as fotografias das pessoas que lhes eram caras, Aurélia as guardava em um álbum que não ficava à vista de quem a visitava socialmente. Ela continua: “Estes são álbuns de sala, tabuleta semelhante às que têm os fotógrafos na porta”[3].

José de Alencar. Foto: Reprodução

Na residência de Aurélia, portanto, existiam três tipos de álbuns: aquele que guardava as fotos de celebridades internacionais; outro que arquivava as imagens de conhecidos e um terceiro, dedicado aos seus entes queridos, conservado em um espaço privado da casa.

Essa descrição de José de Alencar registra uma prática corriqueira das camadas mais privilegiadas da população carioca da segunda metade do século XIX: colecionar e armazenar fotografias para exibi-las (ou não) publicamente. Por outro lado, é interessante a menção que Aurélia faz às tabuletas que ficavam nas portas dos estúdios fotográficos, repletas de fotografias dos clientes, pois amplia nossa compreensão sobre a presença da fotografia nas ruas do Rio de Janeiro, naquele período.

Outro dado interessante nesse diálogo é que, a certa altura, os personagens comentam a inexistência de fotografias de celebridades nacionais, capazes de formarem um álbum específico. Fernando faz a seguinte afirmação sobre o fato:

É verdade, celebridades europeias, pois ainda não as temos brasileiras; isto é, em fotografia que no mais sobram. Admira que nesta terra tão propensa à especulação e ao charlatanismo, ainda ninguém se lembrasse de arranjar uns álbuns de celebridades nacionais. Pois havia de ganhar muito dinheiro; não só na venda de álbuns, mas sobretudo na admissão dos pretendentes à lista das celebridades[4].

A inexistência de álbuns de celebridades locais, em meados dos anos 1870 no Brasil, não significou que algumas pessoas não se valessem da imagem fotográfica para divulgar a própria imagem. Dentro desse grupo destaca-se a principal figura brasileira do século XIX, o imperador D. Pedro II. Em As barbas do imperador[5], Lilia Schwarcz apresenta grande parte da iconografia do segundo imperador do Brasil, em que sobressaem litografias produzidas a partir de daguerreótipos e fotografias. Esse material era distribuído ou vendido como encarte de revistas e jornais para que o público pudesse guardá-lo ou emoldurá-lo para decorar os cômodos da casa.

Adolfo Caminha. Foto: Reprodução

Em Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, romance publicado em 1895, é possível visualizar a presença da imagem de D. Pedro II nos aposentos dos personagens (o homem negro, Amaro, e seu amante, o jovem branco, Aleixo), atuando como uma espécie de um tipo de deus protetor dos mais pobres:

[Amaro] Pôs-se a olhar o teto, as paredes, um retrato do imperador, já muito apagado, que viera na primeira página de um jornal ilustrado, preso em caixilhos de bambu, um cromo de desfolhar, examinando com atenção o pequeno aposento, os móveis – a mesa e duas cadeiras –, como se estivesse num museu de coisas raras.[6]

Esta passagem descreve a origem daquela imagem do Imperador: tinha sido capa de um jornal ilustrado, produzida para ser destacada, emoldurada e colocada na parede. Por outro lado, é notável como, pela descrição do aposento, Pedro II surge pairando sobre o cômodo pobre, tornando-se um personagem na trama. Esta sensação ficará mais forte algumas páginas à frente onde se lê:

O retrato do imperador sorria-lhe meigo, com a sua barba de patriarca indulgente. Era o seu homem. Diziam mal dele, os tais ‘republicanos’, porque o velho tinha sentimento e gostava do povo…[7]

Este é um dos trechos mais importantes de Bom Crioulo por deixar claro não apenas a presença de imagens fotográficas em moradias das camadas mais pobres da população brasileira na segunda metade do século XIX, mas também pelo fato do autor ter sabido integrar a imagem fotográfica dentro do rol de personagens do livro, fazendo com que ela cumpra um papel importante para o entendimento da personalidade do personagem principal do romance. Para Amaro não importava o que os “republicanos” podiam pensar de D. Pedro II. Para ele, o imperador era seu protetor pois “gostava de seu povo” e era isso o que importava.

***

Vários artistas trabalhavam, tanto no processo de tradução de imagens fotográficas para a litogravura e a xilo – com o intuito de publicar essas imagens em jornais e impressos em geral –, quanto também no processo de produção de suas pinturas, no Brasil e no exterior. Ainda em Senhora, de José de Alencar, o autor apresenta o processo de produção dos retratos de Aurélia e Fernando Seixas, apontando o papel da fotografia nesse procedimento:

Aí foi Seixas encontrar dois grandes quadros, colocados nos respectivos cavaletes. Na tela viam-se esboços de dois retratos, o de Aurélia e o seu, que um pintor notável, êmulo de Vitor Meireles e Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma fotografia, para retocá-lo em face dos modelos.[8]

Senhora apresenta a fotografia em duas funções: como item de coleção e como apoio visual para o artista produzir retratos pictóricos. Em ambas ela atua como receptáculo de memória e será a partir dessa função primordial que a fotografia, no caso, a imagem pictórica de origem fotográfica, também aparecerá como personagem importante de Senhora:

Fernando que a seguia com o olhar surpreso, viu-a aproximar-se de um quadro colocado sobre um estrado e contra a parede fronteira.

A cortina azul do dossel correu; à luz do gás que batia em cheio desse lado destacou-se do fundo do painel o retrato em vulto inteiro de um elegante cavalheiro.

Era o seu retrato; mas do mancebo que fora dois anos antes, com o toque de suprema elegância que ele ainda conservava, e com o sorriso inefável que se apagava sob a expressão grave e melancólica do marido de Aurélia.

– O homem que eu amei, a que amo, é este, disse Aurélia apontando para o retrato. O senhor tem suas feições; a mesma elegância, a mesma nobreza de porte. Mas o que não tem é a sua alma, que eu guardo aqui em meu seio e que sinto palpitar dentro de mim, e possuir-me quando ele me olha.[9]

Em Senhora, portanto, Alencar não apenas documenta dois usos que poderiam ser feitos da fotografia (item de coleção e base para a produção de pinturas), como também a apresenta em seus efeitos junto à subjetividade dos personagens, após ter passado pelo processo de tradução para a pintura.

***

Em O mulato, também de Aluísio Azevedo, publicado em 1891, a fotografia é assumida como elementos importante da trama[10]. É por meio dela que Ana Rosa, enamorada do primo Raimundo, toma consciência da existência de uma suposta rival a quem tentará aniquilar virtualmente pela destruição de seu retrato. Primeiro vejamos como Ana Rosa entra em contato com a imagem da concorrente:

Ao virar de uma folha deram de subido com um cartão fotográfico, que estava solto dentro do livro; um retrato de mulher, sorrindo maliciosamente numa posição de teatro; com suas saias de cambraia, curtíssimas, formando-lhe uma novem vaporosa em torno dos quadris; colo nu, pernas e braços de meia.

– Oh! – articulou a moça, espantando-se, como se o retrato fosse uma pessoa estranha que viesse entremeter-se no seu colóquio.

E, maquinalmente, desviou os olhos daquele rosto expressivo que lhe sorria do cartão com um descaramento muito real e uma ironia atrevida. Declarou-a logo detestável.

– Ah! Certamente… É uma dançarina parisiense – explicou Raimundo fingindo pouco-caso. – Tem algum merecimento artístico…

E tomando a fotografia com cuidado, para que Ana Rosa não percebesse a dedicatória nas costas do retrato, colocou-a entre as folhas já vistas do álbum[11].

Um pouco mais à frente, Raimundo encontra a foto da dançarina com índices de vandalismo, e o seu próprio retrato também vítima dos arroubos de Ana Rosa:

[…] uma vez encontrou toda riscada à unha a cara da dançarina, cuja fotografia ele, com tanto cuidado, escondera de sua prima, porque nas costas do cartão, havia a seguinte dedicatória: A mon brélilien bien-aimé, Raymond…

[…] lisonjeava-lhe aquele interesse, aquela espécie de revelação tímida e discreta; gostou de perceber que seu retrato era, de todos os objetos, o mais violado, e, como bom polícia, chegou a descobrir-lhe manchas de saliva, que significavam beijos[12].

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Parece claro como Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha e José de Alencar souberam usar as potencialidades da fotografia e da imagem fotográfica para desenvolverem suas tramas. Porém, aquele que explorou esse elemento típico da modernidade do século XIX, dentro de um padrão único foi Machado de Assis. Embora ele faça uso da fotografia já em seu romance Iaiá Garcia, publicado em 1879, será em 1900 que Machado construirá o seu romance principal, tendo a fotografia como personagem imprescindível da trama: Dom Casmurro[13].

Machado de Assis. Foto: Reprodução

A dúvida de Bentinho (o dom Casmurro do título) sobre o fato de sua mulher, Capitú, tê-lo traído com seu melhor amigo, Escobar, torna-se certeza quando compara seu filho Ezequiel, então uma criança, com a foto de seu amigo:

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel gritando: – Mamãe! mamãe! é hora da missa! – restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada[14];

A fotografia de Escobar é a certeza da traição da esposa, fato que se tornará cada vez mais inequívoco conforme o Ezequiel ia crescendo, tornando-se ainda mais parecido com o amigo de Bentinho.

***

Entrando no comecinho do século XX, 1903, foi lançado o romance Luzia-Homem de Domingos Olímpio, uma trama que se desenrola durante o início da segunda metade do século XIX no sertão do Ceará. Nela a fotografia é mencionada e, quando em uma única oportunidade, quando um sertanejo relembra a primeira vez em que viu uma fotografia, levada para o interior do Brasil por um grupo de cientistas que integrava a Comissão Científica de Exploração, que de fato existiu, criada pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro que, entre 1859 e 1861, viajaram para o Ceará e para o Piauí:

[…] Era por volta da era de sessenta. Não me lembro bem o ano; só sei que eu era rapazote; pelo tope dos doze. Andava por estes sertões uma comissão de doutores, observando o céu com óculos de alcance, muito complicados, tomando medida das cidades e povoações e apanhando amostras de pedras, de barro, ervas e matos, que servem para mezinhas, borboletas, besouros e outros bichos. Os maiorais dessa comissão eram homens de saber, Capanema, Gonçalves Dias, Gabaglia, um tal de Frei Alemão, e um doutô médico chamado Lagos e outros. Andavam encourados como nós vaqueiros; davam muita esmola e tiravam, de graça, o retrato da gente com uma geringonça, que parecia arte do demônio. Apontavam para a gente o óculo de uma caixinha parecida gaita de foles e a cara da gente, o corpo e a vestimenta saíam pintados, escarrados e cuspidos, num vidro esbranquiçado como coalhada […][15]

Domingos Olímpio. Foto: Reprodução

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São muitos os lugares onde a fotografia encontra a literatura produzida no Brasil durante o século XIX, esse período tão proteico da cultura do país. Quer como índice de modernidade ou como verdadeira personagem dessa modernidade problemática que é a brasileira, comumente a fotografia se encontra presente abrindo uma série de possibilidade para que se reflita sobre o país e a sociedade aqui engendrada. Neste texto foram pinçados apenas alguns exemplos desse universo à espera de quem o trafegue em busca de outros aspectos tão ou mais interessantes dos que aqui foram citados.

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[1] – AZEVEDO, Aluísio. Casa de Pensão. Porto Alegre: L&PM, 2002. Pág. 387/388.
[2] – ANDRADE, Joaquim Marçal F. História da fotorreportagem no Brasil. A fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pág. 157 e seguintes.
[3] – ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1971, pág. 130 e segs.
[4] – Idem. pág. 130.
[5] – SCHWARCS, Lilia. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[6] – CAMINHA, Adolfo. Bom Crioulo. Editora Martin Claret, 2003. Pag. 62.
[7] – Idem. Págs.72/73.
[8] – ALENCAR, José de. Idem. Pág. 171.
[9] – Idem, pág. 180.
[10] – AZEVEDO, Aluísio. O mulato. Porto Alegre: L&PM. 2002.
[11] – Idem, pág. 123.
[12] – Idem, pág. 138.
[13] – ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.
[14] – Idem, pág. 152.
[15] – OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. São Paulo: Ed. Moderna, 1983, pág. 91.

O espetáculo deve continuar?

Exposição OSGEMEOS: Segredos, na Pinacoteca. Foto: Divulgação.

Escrevo este texto fora de São Paulo, onde estou passando a pandemia, um tanto abismado com as imagens nas redes sociais da reabertura das instituições de arte na capital.

Muitos artistas, intelectuais, curadores e até galeristas escreveram nos últimos meses que após esse momento o sistema da arte precisaria mudar, que chegava o momento de desacelerar o circuito, que era hora de se atentar para novas questões que se impunham dentro do contexto de crise sanitária.

Nas imagens que vejo, nada mudou. Seguem as mostras que estavam em processo de montagem no mês de março, às vésperas da abertura da feira SP-Arte, um ponto de inflexão no calendário de museus e galerias, quando a tendência ao espetáculo e à opulência costuma crescer sem pruridos.

Passaram-se sete meses e minha questão é: faz sentido a reabertura dos museus sem algum tipo de reflexão sobre essa pausa forçada? Afinal, durante esse período nada menos que 150 mil mortes ocorreram e seguem ocorrendo no país pela falta de um governo sensato, a Amazônia e o Pantanal estão em processo de destruição, negras e negros estão sendo assassinados brutalmente e manifestações contundentes sendo realizadas pelo mundo afora, e o fascismo cresce em popularidade no país.

Nesse contexto, as instituições de arte reabrem como se nada estivesse acontecendo e mantêm a mesma programação de março de 2020? Esses sete meses nos perpassaram como anos e suas consequências ainda são difíceis de prever, mas além do óbvio cuidado com higiene e formas de evitar a contaminação, essas instituições não conseguem ir além de “o espetáculo precisa continuar”?

Amigos que foram ver as mostras em cartaz, testemunharam que não há – seja na Pinacoteca, no Museu de Arte Moderna de SP ou no MASP, por exemplo – nenhum tipo de posicionamento sobre o momento atual. A lógica do cubo branco, que isolou o espaço expositivo do mundo ao redor, teria agora sido incorporada como política institucional de negacionismo do contexto?

Durante o VI Seminário Internacional que ARTE!Brasileiros organizou no início de outubro, totalmente pensado frente às questões urgentes deste tempo difícil, Ailton Krenak foi direto em um recado ao circuito da arte: “É como se a ideia das nossas bienais de arte, das nossas galerias estivessem todas ficado no passado, vencidas pelo tempo, pela urgência de uma nova mentalidade, de nós os humanos aprendermos a pisar com cuidado, a pisar suavemente na Terra profundamente marcadas pelas nossas pegadas, que nos puseram no limiar desse Antropoceno.”

Onde está a sensibilidade das gestões desses museus para encarar uma nova mentalidade?