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Geração em diálogo

Detalhe da obra "Parede da Memória", de Rosana Paulino. Foto: Isabella Matheus/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2018

A julgar por aquilo que observamos à partir da movimentação de museus, instituições culturais, galerias, espaços formais e informais, a produção de artistas negros e negras do país vem confirmando a característica resiliência daquela parte da população da qual esses artistas fazem parte. Pois suas realizações vêm ganhando visibilidade e proeminência na mesma proporção em que avançam as ações antirracistas e anti-colonialistas que pretendem mitigar as mazelas sociais derivadas do racismo que asfixia e mata, e que ainda hoje é negado por aquela parcela da população que dele sempre se beneficiou.

Seria possível cogitar uma família artística afro-brasileira contemporânea? Sobre uma genealogia qualquer capaz de agrupar artistas em linhagens de projetos que por algum motivo se imantem? Essa genealogia seria de confecção tão arredia quanto qualquer outra que se refira ao povo preto brasileiro. Mas, no intuito de conter ou denunciar o epistemicidio que corre paralelo ao genocídio da população negra, a prospecção das memórias e ancestralidades dos descentes dos escravizados africanos vem se constituindo em uma das tarefas a que tem se dedicado uma parte expressiva de artistas afro-brasileiros que têm na sondagem da história, na construção de identidades e na desconstrução de preconceitos o mote de suas poéticas. Este talvez seja um índice.

Quando vivo, Sidney Amaral (1973-2017) esteve muito próximo de Rosana Paulino, que ele chamava de “madrinha”. Partilhavam ideais estéticos e a crença no poder transgressivo e transformador da educação. Sidney Amaral, a despeito de sua ascensão artística, permaneceu professor da rede pública de ensino até sua morte. Essa dupla jornada de trabalho que intercalava o ateliê e as salas de aula não contrariava Amaral ou Paulino. O magistério sempre esteve em suas cogitações e na perspectiva de ambos, o que apenas confirma a complexidade e as exigências da prática artística atravessada por preocupações de ordem social. Em comum, Paulino tinha com Amaral o interesse pela história pretérita e atual da diáspora afro-brasileira; Rosana Paulino é uma artista pesquisadora, fundamenta suas proposições a partir de diligentes investigações e isto não tem significado um esfriamento de sua poética. Pelo contrário, ela parece extrair das verdades prospectadas a contundência de trabalhos como Assentamento, e não por acaso a artista mantém em seu ateliê uma alentada biblioteca replicando a mesma atitude que, quando vivo, acalentava Sidney Amaral – que, além disso, procurava organizar uma hemeroteca onde arquivava imagens e textos os mais variados, que costumavam abastecê-lo de ideias e alimentavam sua indignação.

“Imolação”, de Sidney Amaral. Foto: Romulo Fialdini/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2016

Em 2018 Rosana Paulino teve sua obra contemplada em uma mostra retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo, instituição que foi dirigida pelo curador Tadeu Chiarelli, que era professor titular do Departamento de Arte da Universidade de São Paulo quando da passagem da artista por lá; foi ali que, em 1994, ainda como discente, a artista elaborou uma obra que é até agora central na sua história – A parede da memória, trabalho que seria adquirida muito posteriormente pela mesma Pinacoteca que, aliás, também adquiriu uma importante coleção de obras de Amaral.

Tanto Rosana Paulino quanto Sidney Amaral realizaram obras que exibem grande apuro técnico na sua execução. Em suas cogitações residia a ideia de que os trabalhos deveriam permanecer, resistir à passagem dos anos, como um testemunho de um tempo de transição e de transe que eles protagonizaram. Rosana Paulino além do mais é restauradora por formação, o que também explica seu rigor na execução dos seus trabalhos. Para um e outro, a técnica apurada e as formas que ela faz surgir estão à serviço de um projeto poético – são atravessados por ética e política e não dizem de virtuosismo, embora ele seja evidente, mas realçam aquela competência às vezes negada ao artista afro-brasileiro.


*Claudinei Roberto é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.

Colaboradores da edição #53

Ana Letícia Fialho é gestora, professora e pesquisadora nas áreas de economia da cultura e mercado de arte. Doutora em Ciências da Arte e da Linguagem, é assessora para o projeto do Novo Museu do Ipiranga.


Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.


 

Eugênio Lima é Dj, ator-Mc, diretor de teatro, pesquisador da cultura afro-diásporica, membro-fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, da Frente 3 de Fevereiro e do Coletivo Legítima Defesa.


Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca e pelo Programa de Pós-Graduação da UNIFESP. É técnica em Museologia pela ETESP e diretora de conteúdo da Diáspora Galeria.


Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e no Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, entrevistou a crítica e pesquisadora Aracy Amaral.


Renato Araújo da Silva é pesquisador e curador. Graduado em Filosofia pela USP, é consultor pela Coleção Ivani e Jorge Yunes e pertence ao grupo de crítica de arte contemporânea do CCSP. É autor de livros como África, Mãe de Todos Nós.

Fotos: arquivo pessoal | Sérgio Silva

10ª Mostra 3M de Arte, em conversa com a natureza

"Geografia", de Cinthia Marcelle, na Mostra 3M de Arte. Foto: Karina Bacci
"Geografia", de Cinthia Marcelle. Foto: Karina Bacci

A persistência das relações entre a arte, a natureza e a cidade encontra elementos simbólicos e narrativos na coletiva Lugar Comum: travessias e coletividades na cidade, a 10ª Mostra 3M de Arte. Com curadoria bem conduzida por Camila Bechelany, as dez instalações inéditas, desenvolvidas por seis artistas convidados e quatro selecionados por edital, foram distribuídas pelo Parque Ibirapuera, colocando o visitante em estado de imersão progressiva em um campo de escuta e percepção. Um dos trunfos da coletiva foi situar as intervenções em um contexto de confronto e sentido com as diferentes correntes existentes nesta área. O campo expandido da imagem e do som se encontra no trabalho de Lenora de Barros, dentro do contexto da earcology, obra para se ouvir, com caixas de som perfiladas e drone falante que voa sobre cinco pontos do parque. Lenora criou um poema especial para esta obra: O QUE OUVE É JÁ/ONTEM É JÁ/ HOJE, AMANHÃ É JÁ. “Nas cinco diferentes leituras que faço no percurso das caixas de som, uso entonações e alturas diversas, busco gerar vários significados, focando na mensagem de que cada momento é resultado do anterior e o futuro é resultado do ontem, do agora, do momento-já”. O ponto de partida é a frase de John Cage: “O mundo se transforma em função do lugar onde fixamos a nossa atenção”, falada por ela e emitida pelo drone que dialoga com o poema O QUE OUVE. A palavra “já”, segundo Lenora, é o fio condutor da performance vocal e é repetida durante o trajeto, até se tornar um “som invertido” em que se ouve a frase “age já”. Lenora trabalhou com Cid Campos, músico e compositor, e juntos criaram uma obra sem recursos digitais, tendo só a voz da artista como matéria prima.

"O QUE OUVE", de Lenora de Barros na Mostra 3M de Arte
“O QUE OUVE”, de Lenora de Barros. Foto: Jones Kiwara

As instalações desaceleram e esticam o tempo. Camila Bechelany conduz a curadoria levando em conta que cada indivíduo é participante ativo e receptivo no meio urbano. “Nesse sentido, a questão do acesso à arte se torna imperativa e urgente diante da crescente exclusão social no mundo contemporâneo.” Lugar Comum é vivida como um ecossistema cultural com personagens já consagrados, outros menos, e há os emergentes em que ela apostou. Projeto compartilhado, traz a arte para dentro do fluxo cotidiano com a instalação Geografia, da série Unus Mundus de Cinthia Marcelle. Dezenas de metros de mangueira jogam água no lago, fazendo o caminho inverso do esperado. Inúmeras reflexões são suscitadas. Uma delas é dispor da água, elemento vital, como construção subjetiva do silêncio, dentro da narrativa da ecologia acústica. Marcelle reforça o pensamento de Argan: “A natureza é o material com que os homens fabricam o espaço”.

Também nesse sentido, Camila Sposati cria território singular com seu Teatro Parque Arqueológico, uma intervenção prospectiva que observa o Ibirapuera como território fundante, criando uma obra sonora, performática e de impermanência. Ela promove combinações entre as relações complexas que se sobrepõem em um mesmo ambiente com seus instrumentos-esculturas em cerâmica, inspirados em dois trabalhos anteriores – Teatro Anatômico da Terra e Phonosophia. Onde é o melhor lugar da palavra? O Púlpito Público, de Maré de Matos parece responder o óbvio ao discutir o espaço “palco” como um átrio onde a coletividade pode e deve ter voz. A frase “Viver é muito perigoso”, de João Guimarães Rosa, encontra seu equivalente em O Brilho da Liberdade Diante de seus Olhos e Alto Astral trabalho de Rafael RG inspirado na vida de Harriet Tubman, ativista norte-americana que em 1820 salvou dezenas de escravos, como ela, traçando uma rota de fuga a partir da observação da constelação Estrela Norte. A carta celeste foi produzida no parque em backlight, como processo de compreensão das esferas de energia luminosa. A história de Harriet virou filme e, em homenagem ímpar, seu rosto foi estampado na nota de 20 dólares.

O trabalho de Luiza Crosman é de hipóteses, O Mundo Versus o Planeta tangencia as distintas funções da ciência, propõe o entendimento sobre a diferenciação entre terra e planeta e a observação entre a arte e a ciência. Os temas de renovação estética e política materializam o presente revisitando o passado com questões como gentrificação e apagamento. O assunto é o gatilho da intervenção Entre o Mundo e Eu – A Caminho de Casa, de Diran Castro, que tem amigo cujos parentes humildes moravam no terreno do Ibirapuera antes da construção do parque para os festejos do quarto centenário de São Paulo, em 1954. A artista estuda temas da decolonização e sua instalação, uma cidade em escala reduzida, foi feita com desobediência estética e civil como alerta à gentrificação generalizada.

O distanciamento generoso entre as instalações cria pontes para experiências perceptivas, especialmente as soundscapes ligadas à ecologia acústica, teorizada por Murray Schafer, músico e ambientalista canadense. O hibridismo entre som, imagem e tempo norteia a instalação Objeto Horizonte, do Coletivo Foi à Feira, composto por Clarissa Ximenes, Gabriel Tye, Luís Felipe Porto, Matheus Romanelli e Raysa Mucunã. Uma esfera transparente de autorreflexão convida o visitante a gravar um áudio com mensagem sobre a cidade do futuro, que é enviado a um receptor que transforma as vozes em inserções aleatórias, como uma máquina do tempo. Fazendo uso de elementos primordiais à sobrevivência, vários artistas se dedicam à agro arte realizando intervenções gigantescas (land art) ou reduzidas como o Canteiro Suspenso, de Narcíso Rosário, um conjunto de caixas sobre cavaletes onde o vegetal faz parte de um acervo sensorial e orgânico. A arte é um fermento de combustão imediata e de energia criativa. Ao criar uma padaria no parque, a dupla Gabriel Scapinnelli e Otávio Monteiro atraiu o observador-performer introduzindo-o na arte de fazer o pão, criando assim um sistema que se inicia na arte e termina no que Joseph Beuys definiu como escultura social. Lugar Comum: travessias e coletividades na cidade contribui para uma reflexão crítica sobre o lugar da arte na esfera pública de uma cidade.

"Objeto Horizonte", do Coletivo Foi à Feira na Mostra 3M de Arte
“Objeto Horizonte”, do Coletivo Foi à Feira. Foto: Karina Bacci

Carta da editora

Moisés Patrício, Sem título, série: "Álbum de família", 2020. Foto: João Liberato/Cortesia Galeria Estação

Terminamos o ano com uma única certeza. Mesmo quem teve sorte e não adoeceu – física ou psiquicamente – ou perdeu o emprego, está esgotado.

Os esforços para sustentar um ano de isolamento levaram as instituições culturais a criar alternativas através do desenvolvimento de projetos virtuais, gerenciando marchas e contramarchas. Alguns desses projetos conseguiram abrir para o público presencialmente e ainda subsistirão até março/abril de 2021.

Já o Estado, na cultura, cortou investimentos, demitiu, diminuiu residências, prêmios e editais.

Estamos pessimistas. O obscurantismo que se instalou no governo brasileiro, que começou com a negação da história colonial, defendendo a inexistência de racismo no Brasil, a imunidade das milícias, a politização da justiça e a devastação do meio ambiente, luta agora abertamente contra a ciência, proclamando-se contra a necessidade de investimentos e logística em prol da vacinação.

Chacotas do presidente contra o destino de quase 200 mil mortes não foram suficientes para criar vergonha em parte da população que ainda acha que esta gestão não é responsável pelos resultados do descaso. Que insensibilidade é essa?

Partindo da arte, estamos empenhados em mostrar o quanto é possível se rebelar contra o negacionismo e a necessidade de apagar a história. A arte contemporânea se insere neste ethos. A estética e a ética não permitem se alienar desta realidade.

O final do ano foi coroado com várias manifestações específicas resultantes do incentivo a esta violência. A maioria da população brasileira que morreu vítima da violência, de Covid-19 ou da fome foi a população negra.

Nesta edição fizemos questão de ouvir colaboradores especialistas, pesquisadores, acadêmicos, curadores e artistas negros capazes de denunciar e pronunciar-se contra todo este ataque desvairado, marcando o enraizamento secular desta violência.

Se há algo que podemos fazer é incentivar a memória. Desvelar o mito da miscigenação cordial e colaborar mostrando o quanto a arte afro-brasileira e indígena somos nós.

Queremos no encerramento do ano agradecer especialmente a aquelas e aqueles que apoiam este projeto, cujo objetivo continua sendo difundir e respeitar a diversidade.

Desejamos a todos um bom descanso, com saúde, e um ano de 2021 mais esperançoso.

Pinacoteca do Estado: Acervo radical

Vista da primeira sala da Pinacoteca: Acervo, parede com retratos e autorretratos de artistas. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo

Inclusiva e arrojada. A nova disposição do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, aberta no final de outubro passado, é um salto de qualidade da instituição. Na versão anterior, o acervo estava disponível em 400 obras ocupando 11 salas e outras 150 obras acessíveis em arquivos, totalizando 550 no total.

Agora, o acervo ocupa 19 salas, tanto do primeiro como do segundo andar do edifício sede, com cerca de mil obras de mais de 400 artistas. As artistas mulheres passaram de 17 para 95, e os artistas afrodescendentes de 7 para 26. Não são ainda números suficientes para dar conta de uma história da arte brasileira verdadeiramente plural, mas não há dúvida de que é um avanço a se notar, algo difícil de se perceber em outras instituições.

A disposição anterior tinha um princípio de que menos é mais, buscando dar mais visibilidade ao que estava exposto. Funcionou, e por isso é possível agora uma outra organização muito mais radical, que abandona a ordem cronológica, o que outros museus importantes como o Centro Pompidou (Paris) e a Tate Modern (Londres) já fazem há tempos.

Essa quebra na ordem temporal é substituída por três eixos: Territórios da Arte; Corpo e Território; Corpo individual/Corpo coletivo. São como grandes temas que permitem exercícios curatoriais mais livres e, ao mesmo tempo, sintonizados com reflexões contemporâneas. Aí está um dos trunfos dessa nova ordenação, que de fato parte de uma constatação bastante necessária: só é possível rever o passado com os olhos do agora. Um acervo é, afinal, o arquivo de um museu, e como ensina Jacques Derrida, “o arquivo será sempre lacunar, toda leitura será diferente”. A equipe da Pinacoteca que fez a mudança levou a sério esse princípio e deixou escolas, movimentos e termos rígidos de lado para permitir um novo olhar reflexivo – que já tem um prazo definido para terminar: 2025.

Outro diferencial importante é que a curadoria assume uma atitude realmente propositiva, onde a disposição de obras alcança um modo instalativo, já que em cada sala criam-se ambientes não só surpreendentes, como bastante contundentes.

É o caso da parede sobre autorretratos, que faz parte do eixo Territórios da Arte, onde se veem artistas acadêmicos, modernos e contemporâneos mesclados, mas o destaque acaba sendo a pintura de Sidney Amaral (1973-2017), artista negro que sempre abordou questões relativas à raça e é visto na cortante obra Imolação (2009). A imagem dele com uma arma no pescoço acaba repercutindo em todas as demais, como a apontar para o drama de ser artista negro no Brasil. É um dos momentos emocionantes da mostra e que aponta para um forte diálogo com 2020, ano em que o movimento negro conquistou grande visibilidade.

"Imolação", de Sidney Amaral. Foto: Romulo Fialdini/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2016
“Imolação”, de Sidney Amaral. Foto: Romulo Fialdini/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2016

Sidney Amaral, aliás, está presente em vários outros momentos da exposição, característica reservada a algumas figuras chaves nessa reorganização do acervo, o que ocorre também com Claudia Andujar, que comparece com várias imagens dos Yanomamis, por exemplo. Há uma dupla de obras que criam um diálogo genial, quando se vê a pintura Proclamação da República (1893), de Benedito Calixto, ao lado do conjunto de desenhos e aquarelas Incômodo (2014), de Amaral: a primeira a versão oficial, a segunda a visão do racismo estrutural que decorre da República.

Outra sala icônica na nova disposição é a que abriga a instalação de Jonathas de Andrade Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste próxima de obras-primas de artistas que retrataram o povo brasileiro, como as pinturas Caipira picando fumo, de Almeida Júnior (1850-1899), Bananal, de Lasar Segall (1889-1957) e Mestiço, de Candido Portinari (1903-1962). Essa transversalidade na seleção não só revê a narrativa que costuma construir a história da arte no país como também ajuda a questionar o discurso um tanto paulista da centralidade da Semana da Arte Moderna de 1922.

Essas misturas realmente provocantes trazem um grande frescor ao museu, como que atualizando boa parte do acervo da Pinacoteca que se concentra no século 19. Uma vitrine que mistura trabalhos de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) – um dos fundadores da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, tendo antes trabalhado na corte de Napoleão – com obras do artista indígena Denilson Baniwa é o exemplo de um gesto de descolonizar o museu efetivamente em seu coração, isto é, seu acervo.

Véxoa

A remodelação do acervo no segundo andar do museu transformou também a disposição das salas para mostras temporárias. Antes alocadas nos quatro cantos do prédio, agora elas se concentram em três salas centrais no mesmo piso. Junto com o novo acervo, a exposição que inaugura o espaço é Véxoa: nós sabemos, com curadoria de Naine Terena, a primeira mostra dedicada à arte indígena na Pinacoteca.

É significativo que uma mostra sobre a produção indígena seja organizada por uma indígena, que selecionou 23 artistas e coletivos de diferentes regiões do país. Também é digno de menção que em seus 115 anos, somente no ano passado a Pinacoteca adquiriu obras de indígenas.

A mostra parte de um princípio questionador dos limites entre arte e artesanato, revendo assim os cânones tradicionais, assim como aborda temáticas distintas: seja da defesa dos direitos humanos dos povos indígenas, seja dos processos de cura utilizados nestas comunidades.

"Tatu", Ailton Krenak. Foto: Isabella Matheus/Pinacoteca do Estado de São Paulo
“Tatu”, Ailton Krenak. Foto: Isabella Matheus/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Cerâmicas tradicionais estão dispostas junto a novos trabalhos, como pinturas recentes de Ailton Krenak – sim, ele mesmo, o líder na Assembleia Constituinte de 1988 e uma das vozes mais potentes durante a pandemia – que retrata macacos e tatus.

Padronagens, que são marcas dos povos indígenas, são vistas em obras de Daiara Tukano, sejam em telas de pequenas dimensões, seja em uma pintura mural que retrata uma cobra.

Com a nova disposição do acervo e uma mostra indígena potente, a Pinacoteca dá sinal de que a renovação ocorre em sintonia com novos tempos e abrindo espaço não só para quem não tinha a representatividade, mas trabalhando junto com esses grupos.

 

Serviço

Pinacoteca: Acervo 

Pinacoteca de São Paulo |Praça da Luz, 2, Luz.

De quarta-feira a segunda-feira, das 10h às 18h.
Entrada gratuita

Véxoa: nós sabemos

De 31 de outubro de 2020 a 11 de abril de 2021

Pinacoteca de São Paulo | Praça da Luz, 2, Luz.

De quarta-feira a segunda-feira, das 10h às 18h.
Entrada gratuita

 

Aracy Amaral: uma pesquisadora movida pela curiosidade e pelo rigor

Aracy Amaral: “É uma batalha permanente”. Foto: Antonio Henrique Amaral/ Divulgação

Irrequieta, Aracy Amaral continua encarando o desafio de buscar caminhos para uma maior compreensão da arte e da cultura nacional. A despeito das enormes dificuldades impostas pela pandemia, vem trabalhando intensamente nos últimos tempos para dar corpo a uma exposição ambiciosa, que procura iluminar os vários modernismos que brotaram no Brasil nas primeiras décadas do século XX. A mostra, feita a quatro mãos, em parceria com Regina Teixeira de Barros, promete revelar uma trama interessante entre história, arte e pensamento nas primeiras décadas do século passado. Trama essa que, por contraste, deixa evidente uma das marcas do Brasil atual: a ausência de qualquer projeto coletivo, de superação da desigualdade e proposição de novas bases para o desenvolvimento nacional.

Pesquisadora, crítica, curadora, professora e, sobretudo, observadora atenta e curiosa da cena cultural brasileira desde a década de 1950, Aracy viveu com intensidade e vivacidade a segunda metade do século XX e as duas primeiras décadas do século atual. É, portanto, do ponto de vista privilegiado de quem se dedicou a investigar o passado e perscrutar o presente que ela conversou com a ARTE!Brasileiros. Na entrevista a seguir, ela fala sobre seus anos de formação, sobre a experiência à frente de instituições como a Pinacoteca do Estado e o Museu de Arte Contemporânea da USP, sobre alguns dos diversos temas de pesquisa aos quais se dedicou com rigor e curiosidade (como a preocupação social na arte; arte construtiva; arte contemporânea; as relações entre as culturas brasileira e latino-americana; o modernismo em geral – e Tarsila do Amaral em particular) e sobre a agonia e as adversidades decorrentes da pandemia.

ARTE! – Vamos começar falando da exposição que você e Regina Teixeira de Barros estão preparando para o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) no ano que vem, antecipando as celebrações em torno do centenário da Semana de 1922.

Aracy Amaral – Nós vamos falar dos vários modernismos no Brasil. A ideia é ampliar, cobrindo o período entre 1900 e 1937, quando se dá o golpe de Getúlio Vargas. Abordamos então o pré-modernismo, a chegada dos modernismos propriamente ditos na década de 1920 e depois, com a queda da bolsa de Nova York, a alteração de rumos, com a federalização, o surgimento de um nacionalismo de outro gênero. Vamos passar por toda essa transformação que vive o Brasil nesse período, a eletrificação, a reconstrução de várias cidades como São Paulo e sobretudo Rio de Janeiro, enfim, o que vai acontecendo no país. As artes, nesse aspecto, são apenas uma ilustração. E nós vamos querer que no catálogo haja ensaios. Já tratamos com vários autores: Felipe Chaimovich, que vai escrever sobre o pré-modernismo; Ana Maria Belluzzo, que vai escrever sobre modernismo; sobre poesia e literatura vai escrever a  professora Flora Süssekind; o Ruy Castro vai falar sobre o Rio de Janeiro; Cacá Machado vai escrever sobre música; e Luis Felipe de Alencastro vai escrever sobre a problemática política econômica e social no país nesse período. Nós queremos que seja como um debate, um catálogo sobre o que se passou nesse período.

ARTE! – É uma mostra histórica então, com uma trama bem complexa. Você disse que nunca tinha feito uma curadoria tão difícil. Por que?

O interesse é que seja histórico. Agora, estamos tendo muita dificuldade de conseguir as obras porque as instituições se fecham, cada uma quer fazer o seu. O MAM-SP quis fazer um ano antes (das comemorações de 22) justamente para não enfrentar essa competição de obras. Mas acontece que todos recusam, pensando no que farão no ano seguinte. Claro que a Pinacoteca não abre mão da Antropofagia, e agora estamos pendentes da resposta do Museu Nacional de Belas Artes. Enfim, é uma batalha diária. Nunca fiz uma curadoria tão árdua, tão dura, a gente tem que recomeçar várias vezes. Eu e a Regina já fizemos várias relações de obras. Em um momento em que está tudo fechado, a gente não pode ir ao Rio, não se pode mais ver as obras ao vivo, não podemos falar diretamente com as pessoas, é tudo por celular, computador. É mais complicado, muito pesado. Portanto, dependemos muito da boa vontade dos interlocutores.

ARTE! – Falando em pandemia, qual você acha que vai ser o principal efeito disso tudo, pensando no futuro. Esse olho no olho, esse contato pessoal é muito importante para um trabalho de garimpo como esse, não? Você acha que a gente vai conseguir achar um novo modelo, ou que a gente retoma do mesmo ponto?

Você diz do ponto de vista museológico, ou do ponto de vista de vida?

ARTE! – Dos dois.

Acho que é um enigma, a gente não sabe. Estamos tateando, sem saber que tipo de comportamento poderemos vir a ter. Está todo mundo grudado na tela, esgotado de ter ou dar aulas por computador. A gente não sabe o que vai acontecer no dia de amanhã, se as vacinas vão sair. Principalmente num país como o Brasil, em que tudo é imponderável, fruto de caprichos eleitoreiros, não há um planejamento visando a sociedade como um todo. No caso das classes menos favorecidas, que são as que mais sofrem, com o desemprego, com falta de recursos, a situação é de caos. Vivemos um momento de espera e ao mesmo tempo caótico.

ARTE! – Fazendo um paralelo com o período da exposição que você está trabalhando, acho que essa diferença é fundamental: hoje a gente não tem projeto. Vivemos um momento de desestruturação de tudo.

Pois é. E no caso do nosso país você não sente ninguém à frente do governo, com uma capacidade pensante que diga: temos um norte, estamos projetando isso para a região Norte, isso para o Nordeste… É tudo um enigma, não existe uma firmeza. Isso é doloroso, para um país de 210 milhões de habitantes.

Na 2a Bienal de São Paulo, conversando com o critico uruguaio Nelson di Maggio. Foto: Acervo Pessoal

ARTE! – Uma coisa que você sempre defendeu, como professora, é que o aprendizado de arte se dá olhando. Como fazer hoje?

Acho que ninguém está olhando, inclusive porque os jovens não leem livros, nem do ponto de vista de literatura nem do ponto de vista de história da arte. Sei lá, eu lia muito. A gente tinha que fazer resumo, tinha que fazer apreciação, tinha uma formação que hoje não existe mais. Eu me sinto totalmente obsoleta do ponto de vista de aprendizado e do ponto de vista de o que eles leem hoje. Não é o livro em si. Acho, por exemplo, que só se debruça sobre literatura quem está fazendo literatura.

Em geral a nova geração só vê o celular, veem quando muito o computador, quando tem que fazer os trabalhos escolares ou universitários. Tive um ex-aluno, que hoje é professor na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), que disse que seus alunos de artes visuais da ECA nunca foram ao MASP. Eles são de São Paulo e nunca foram ao MASP! Se a gente sabe que eles não têm o hábito de olhar, o hábito de ver, de acompanhar a escrita através do original, imagine agora. Mas você pode dizer: por isso mesmo eles têm um bom treino para tudo que nós estamos passando.

ARTE! – De certa forma a gente sempre está em minoria, não? Esse esforço pela democratização da arte, por tornar a arte acessível – uma marca de sua trajetória – não acaba.

Essa é uma luta insana, mas é uma luta que prossegue. É uma batalha permanente. Agora os museus tentam temperar, fazem coisas mais recreativas. Ir ao museu se tornou um passeio, você não pode levar muito a sério, porque senão ninguém vai. Há que se fazer exposições que distraiam. É complicado isso, ter que enganar o público. Não é como na Europa onde é possível fazer, sei lá, uma retrospectiva de um grande artista como Holbein ou Delacroix, que as pessoas vão visitar porque muitos deles já estudaram esses autores no curso ginasial, no secundário. Aqui não existe isso. Se nós temos dificuldade de alfabetizar, imagine se pensarmos do ponto de vista da alfabetização do conhecimento, da leitura dos períodos da arte. A situação é muito mais grave e não devemos pensar apenas do ponto de vista das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Temos que pensar em termos do interior de Goiás, do interior do Ceará, do Pará. Imagine, é um deserto absoluto. Só escapa desse deserto aquele que tiver a possibilidade de ganhar uma bolsa e estudar fora. Não que aqui não haja bons professores, mas é muito pouca gente que segue, é muito pouca gente interessada nesse tipo de formação. É preciso alimentar a formação do artista, que ele saiba o que aconteceu no começo do século, o que aconteceu no século XIX, que tenha ideia do que ocorreu no fim do século XVIII. É uma raridade o artista que pode se expressar em relação ao que aconteceu no passado. Acontece o mesmo com os críticos de arte. Em 2011 participei de um grupo que fez a curadoria da exposição do Mercosul e notei que os críticos que tinham por volta de 40, 45, até 50 anos se interessavam apenas por artistas  que surgiram a partir da década de 1990 pra cá. O que aconteceu antes não conheciam e não tinham nenhum interesse em conhecer. Interessava do conceitual para cá. Há uma delimitação muito grande do ponto de vista geracional de estar aberto ou não para todas as épocas. Eu acho que é impossível querer ser um grande escritor sem ter lido os autores do começo do século XX, do fim do século XIX. Para mim é um enigma, uma pessoa ter uma formação na sua área sem conhecer os que o precederam.

ARTE! – Falando em formação, você poderia nos contar um pouco da sua. Na sua família há uma veia artística muito forte, não?

Minha formação foi eclética, confusa, caótica (risos). Mas acho que se houve influência artística familiar, veio tudo pelo lado da minha mãe, Abreu. Do nosso lado lusitano. Como meu pai era primo distante de Tarsila, todo mundo pensa que veio por aí, mas do lado da Tarsila não há absolutamente nenhum outro artista. Já minha mãe, minhas tias pintavam. Uma delas, que morreu aos 27 anos, era desenhista gráfica.

ARTE! – E foi nesse ambiente doméstico que o gosto foi se formando?

Não é que minha mãe fazia a gente se interessar. Mas do ponto de vista de influência, a gente sabia que minha mãe gostava dessas coisas, que minhas tias também gostavam. Havia um precedente familiar aí, mesmo que não fosse percebido. Só hoje percebo isso, olhando para trás. E creio que tanto eu como minhas irmãs e meu irmão pertencemos a uma geração que se formou numa época bastante tumultuada e alvissareira, do ponto de vista de curiosidade intelectual aqui no Brasil e em São Paulo em particular. Minha adolescência foi toda durante a Segunda Guerra Mundial, eu era chamada na minha casa de repórter Esso porque eu tinha verdadeira loucura para ouvir o que estava acontecendo. Eu despencava escada abaixo para ouvir o repórter Esso, queria saber onde estava a Alemanha, quem estava invadindo, se a França estava recuperando o território, sobre o bombardeio da Inglaterra. Enfim, vivenciávamos esse clima.

ARTE! – Foi esse apelido de repórter Esso que te levou ao jornalismo?

Minha formação é de jornalista e meus primeiros empregos foram como jornalista. Trabalhei na A Gazeta, no Diário de São Paulo, fiz uma coluna de correspondências na Folha de S.Paulo. Mais tarde, no começo da década de 1970 trabalhei também como redatora de publicidade, na mesma agência em que trabalhou Décio Pignatari e o jornalista Fernando Lemos. Éramos redatores. Fiz até um programa sobre arte na rádio Jovem Pan. Ele se chamava “Vamos falar de Arte?”. Parecia que não era nada, só dois minutos por dia. No começo eu fazia assim, ao vivo, direto, depois comecei a gravar e comecei a redigir porque as pessoas posteriormente me cobravam, por correspondência, por chamadas, por carta. E eu tinha toda a liberdade. Acho muito interessante esse meio de comunicação, que não foi superado nem pela televisão nem pela internet nem por nada.

Em 1951, entrevistando o diretor do MoMA, René d’Harnoncourt, para o jornal da Faculdade. Foto: Acervo pessoal

ARTE! – E a experiência como monitora da 2a Bienal de São Paulo, como foi?

Uma coisa leva a outra. Como eu dizia, em São Paulo na década de 50 havia muita vivacidade. Ao mesmo tempo eu fiz um pouco de dança contemporânea com a Yanka Rudzka, fiz mímica com Luís de Lima, me inscrevi para fazer cinema até que me aprovaram e eu fiquei apavorada, sai de medo. Fiz o Teatro Paulista do Estudante, estreamos no mesmo dia que estreou o Guarnieri, o Vianinha. Antonio Henrique, meu irmão, também participou dessa peça. Era tudo assim, todos tinham todas as aberturas possíveis. Então a jovem geração ficava muito contaminada. A gente se encontrava no final da tarde, todos iam ao Museu de Arte Moderna na rua Sete de Abril ver as exposições, discutir, assistir os filmes que o Paulo Emilio Salles Gomes projetava, todo mundo participava de tudo. Os que eram curiosos iam se nutrir da história da arte, da história do cinema, de exposições, conferências também na Biblioteca Municipal… A gente assistia tudo. Ficávamos até atordoados com tantas possibilidades, tão multidirecionais que a gente tinha. Daí um partiu para o cinema, outro partiu para o teatro. Minha irmã Ana Maria foi fazer criação de direção de teatro, foi morar em Nova York, e depois ela foi fazer teatro de bonecos, ser professora na ECA, ganhando prêmios internacionais. Suzana foi fazer cinema, Antonio Henrique foi pintar. Era uma coisa assim contagiante.

ARTE! – Acho que você tem uma capacidade surpreendente de mudar de assunto e de se apaixonar por novos temas.

Sim, isso para mim é fundamental, porque ficar parada num lugar só, com um tema único, é impossível. Tanto que eu fiz uma série de pesquisas sobre o modernismo. Primeiro “Artes Plásticas na semana de 22”, depois, a partir de Tarsila, eu vi tanta coisa na casa dela, tanto material documental, que acabei fazendo, antes mesmo do trabalho sobre ela, o livro Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas. Porque me dei conta de como tinha sido importante a presença e a influência dele sobre Tarsila e Oswald de Andrade. Depois veio o livro sobre Tarsila, que eu apresentei como doutorado na USP, na ECA. Daí eu fiquei farta de modernismo, porque as pessoas só me chamavam para falar disso, sabe? Então pensei: preciso partir para outra. Então eu fiz a Expo-Projeção-73, sobre os jovens que estavam mexendo com as novas mídias, trabalhando com vídeo, todas as formas de expressão não usuais, em 1973. Daí comecei a ser chamada também, fui fazer palestra em Buenos Aires…

ARTE! – É a partir daí que você começa a circular mais intensamente pela América Latina ou essa conexão já existia?

Eu já tinha esse vínculo. Não sei se porque quando a gente era pequena, meu pai trabalhando com o Instituto Brasileiro de Café (IBC), nós moramos na Argentina. Fiz o primário lá. Aí eu voltei, tive umas aulas aqui para tirar todo o espanholismo de minha fala e fiz o ginásio em Santos. Mas não sei se terá sido isso. Por que eu me interessei pela América Latina? Será que foi pelo precedente da Argentina? Por que eu conhecia a história argentina melhor do que a nossa? Por que eu tinha feito primário lá?

ARTE! – Talvez porque você não tenha partido do lugar tradicional que o Brasil reserva aos vizinhos. O Brasil evita olhar para o lado.

Pois é, pode ser. O Brasil olha para fora. Eu sempre falei que os dois países mais similares na América do Sul são Venezuela e Brasil. Ambos têm os olhos postos fora e se interessam muito pelo que ocorre nos Estados Unidos, na Europa, e menos pelo que ocorre na América do Sul. Tanto é assim que a Venezuela vai ter os grandes cinéticos e o Brasil vai ter outras gerações de artistas plásticos também voltados para o exterior, com interesse na informação que vem de fora. Ao passo que os países andinos são mais fechados dentro de si próprios em suas tradições e Argentina, Uruguai e Chile são mais ligados à Europa. Retomando, eu estava cansada de fazer trabalhos sobre o modernismo e Tarsila, tinha encerrado esse aspecto, tinha encerrado já a Expo-Projeção e comecei a viajar pela América Latina. Tive uma iluminação através de um livro encontrado na casa da minha mãe. Estava fazendo muitos trabalhos com Luís Saia, sobre o patrimônio em São Paulo. Percebi que as casas que eles chamavam, entre aspas, de bandeiristas não eram senão uma “casa de hacienda”. Há inúmeros casos muito similares. Em São Paulo essas casas eram também todas distantes do centro, seja no Caxingui, seja no Butantã, em São Bento… Comecei a ver essas plantas, fui viajar, estive no Paraguai, fui para a Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela. Ia nas minhas férias da USP e muitas vezes quando ia para algum congresso fotografar essas casas. Eram muito similares, muitas persistiram até o século XIX. Não adianta que o Julio Katinsky, o Carlos Lemos fiquem falando de isolamento da casa paulista. Ela existe em toda a América do Sul, como um prolongamento.

Obra de Miguel Rio Branco exposta no 34º Panorama da Arte Brasileira, “Da pedra Da terra Daqui”, com curadoria de Aracy. Foto: Divulgação

ARTE! – Você descobriu que a imagem da padroeira argentina é brasileira?

Quando fiz esse estudo, em correspondência com um historiador jesuíta de Buenos Aires, descobri que a Imaculada Conceição, que se tornou a Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, é uma imagem paulista. E de qualidade menor que aquelas feitas em Santana do Parnaíba ou Mogi, mas havia, ao mesmo tempo, um comércio entre Lima e São Paulo. Temos que lembrar que havia outro tipo de intercâmbio, que depois foi superado. E os arquitetos aqui não tinham se dado conta disso porque nunca tinham viajado pela América do Sul. Preferiam viajar para Paris, para outros lados, então fixaram a ideia de que São Paulo tinha uma casa que só tinha aqui. Quando eu publiquei a A Hispanidade em São Paulo, eles não reconheceram o trabalho, em primeiro lugar porque eu era mulher, um fator a ser considerado queira ou não. Em segundo lugar porque eu não era arquiteta e estava falando de arquitetura e a FAU nesse aspecto não perdoa. Havia uma discriminação. Você não é arquiteta, você fica no seu lugar, escreve sobre história da arte, o que você quiser, mas não entre num terreno que não é o seu. Eu nem defendi a livre-docência com essa pesquisa porque eles iam dizer: você não é arquiteta. Uma não arquiteta escrevendo sobre arquitetura! A prova disso é que depois, quando me cansei do problema do concretismo e decidi fazer um trabalho sobre a preocupação social na arte brasileira, outra coisa que começou e me apaixonar, um amigo arquiteto me perguntou: “Seu capítulo sobre arquitetura você não vai publicar né?”. Ao que respondi: “Por que não? Faz parte do livro, já está até com editora”.

ARTE! – Você enfrentou muitas dificuldades? O Brasil parece ser um lugar em que, na arte, as mulheres tiveram um pouco mais de espaço do que em outros lugares. A que você atribui isso?

É verdade, o Brasil tem muita artista mulher. Nos Estados Unidos, as mulheres se queixavam, na década de 1970, 1980, que não havia espaço para elas, que eram perseguidas. É o caso até da mulher do Pollock, a Lee Krasner, ou da Helen Frankenthaler, mulher do Motherwell. No Brasil ao contrário, nossas grandes artistas são muitas: Anita Malfatti, Tarsila, Maria Martins, Maria Leontina, Lygia Clark, Mira Schendel, Carmela Gross, Regina Silveira… Há uma infinidade de artistas mulheres que não podemos negar, porque elas fazem parte da história da arte do Brasil. Uma vez eu escrevi para uma revista em Nova York que me pediu um texto sobre isso. Nas décadas de 1950, 1960 e talvez até nos dias de hoje, as mulheres brasileiras talvez  tenham tido mais espaço para pesquisa que as mulheres da França, dos EUA, Alemanha, porque aqui sempre tiveram auxiliares que davam uma mão na casa enquanto em outros países a vida doméstica era muito mais dura. Esse é um dos lados.

ARTE! – Talvez também a arte aqui não fosse uma carreira tão valorizada pelos homens?

Se o Milton da Costa era um excelente artista até um certo ponto da vida dele, a Maria Leontina foi grande durante todo o decorrer de sua carreira. E no entanto ela mantinha também esse espaço discreto de ser a mulher de um artista que ela respeitava. Tanto que uma vez, nos anos 1970, um diretor do Guggenheim veio aqui e eu levei ele para conhecer vários artistas. Gostaria muito que ele conhecesse o trabalho da Maria Leontina. Liguei para ela para perguntar se poderia marcar. Ela me disse: “Aracy, seja bem clara comigo. Ele quer ver os meus trabalhos ou ele quer ver os trabalhos do Milton?” Eu falei: “Os seus”. Ela falou: “Me desculpe muito, mas prefiro então não recebê-lo”. O caso é muito datado, mas é peculiar. Veja bem, é o retrato de uma época.

Obras na mostra “Das Mãos e do Barro”, na Galeria Millan, sobre arte popular indígena e latino-americana, com curadoria de Aracy. Foto: Everton Ballardin

ARTE! – Aproveito essa história para falar desses movimentos mais recentes de resgate da arte das mulheres e dos negros também. Como você vê este movimento, mais ligado a causas identitárias?

Bem, o das mulheres está aberto aí porque os Estados Unidos já o fazem há muito tempo e aqui no Brasil começou de uma forma até meio exasperada mais recentemente. Mas a arte dos negros acho uma coisa incrivelmente positiva, porque nós ficamos fechados para a cultura negra, nós ignoramos a história da negritude. Até hoje você sabe que é uma disciplina que deveria ser ensinada em todas as escolas, mas não há nem professores especializados em África. Agora, nós estamos assistindo um outro tempo, não é? Na televisão vemos muitos anúncios em que há casais miscigenados, apresentam o negro de uma forma inaudita.

ARTE! – E do ponto de vista artístico há uma grande potência, talvez a mais importante do momento, na arte contemporânea, não?

Na verdade a inspiração afro sempre existiu, seja na pintura, em particular na música. Qual a maior influência internacional na música do século XX? É a música negra. Seja no tango, seja no samba, seja no ritmo caribenho, no jazz na música norte-americana, onde você quiser, o ritmo que se impôs é o ritmo negro, é a música internacional que chega a Paris. Não só por causa da Josephine Baker na década de 1920, mas porque é o ritmo do século XX. Não há dúvida nenhuma.

ARTE! – Outro capítulo nessa mesma linha, digamos, de lacunas que estão sendo escancaradas, é que o Brasil parece que começou finalmente a perceber que têm indígenas e que essa cultura também é importante para a gente.

Eu não sei se o Brasil já descobriu isso… Acho que ainda não. Porque no caso da presença africana isso não tem dúvida, está a flor da pele. Afinal de contas o branco hoje é uma minoria no Brasil. E o que é o branco? Ninguém sabe se existe branco no Brasil. É muito raro. Quem não é miscigenado de alguma forma? Existe a herança indígena, mas para nós ela transparece muito na arte popular, que também é uma coisa que ainda não foi assimilada e aceita. Não falo só da arte pura, tipo cestaria Yanomami, mas da arte popular do interior do Ceará, que é riquíssima, ou do Piauí… Já existem inúmeras galerias trabalhando nessa direção. Mas ainda não existe uma aceitação que valorize o caráter precioso dessas obras, entende? Mesmo a preservação delas.

ARTE! – Dentre seus trabalhos recentes, está a curadoria de uma mostra de desenhos de Tarsila, em cartaz na Fábrica de Arte Marcos Amaro. Você poderia falar um pouco sobre esse aspecto da obra dela?

A exposição – que é uma curadoria conjunta também com Regina Teixeira de Barros, grande estudiosa e curadora – traz o desenvolvimento do percurso da Tarsila a partir do desenho. É muito curioso ver como o exercício do desenho pautou o desenvolvimento e a libertação dela como artista, desde, digamos assim, o estudo, a formação, primeiro acadêmica, depois parisiense, com grandes mestres da época como Andre Lhote e Gleizes, até chegar a uma liberação total e ela se sentir apta a voltar à figuração, numa viagem a Minas, com toda liberdade, mas com um espírito de síntese muito grande. Depois ela vai cair um pouco numa figuração, num realismo tão ao gosto das décadas de 1930, 1940, 1950, que é a época que, digamos assim, vai liberar também uma figura como Portinari. Uma época também em que ela escreve crônicas para o Diário de S. Paulo, e faz muita ilustração para livros, muitíssimas. Como não existia mercado para a pintura, ela vive de ilustrações, vive também de crônicas. Não é uma época de inatividade, mas de alteração de atividade.

Exposição “Tarsila, estudo e anotações”, com curadoria de Aracy e Regina Teixeira de Barros, na FAMA, em Itu, 2020

ARTE! – Se você tivesse que escolher dentre as várias personalidades que você tem, como critica, professora, diretora de museu…

Eu não sei o que eu seria. Eu fui uma mistura de tudo isso. Em cada momento eu fui uma coisa. Se eu fui vanguarda na década de 1960, 1970, depois eu fui historiadora na década de 1970, 1980. Depois fui diretora de museu. Eu curti demais ser diretora da Pinacoteca, porque eu alterei completamente a imagem da Pinacoteca. Era um museu fechado, que as pessoas faziam sinal da cruz quando passavam na frente pensando que era um templo. E depois comecei a fazer exposições, cursos lá dentro, curso de modelo vivo, exposições temporárias. Mudei a Pinacoteca e essa mudança, que foi sensível, foi um prazer, uma satisfação enorme. Colocar lá Ana Maria Belluzzo, colocar lá o Paulo Portella, um fazendo arte-educação, outro me ajudando na pesquisa, poder montar lá aquela exposição do Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, cursos, tudo foi muito interessante. Nesse período da Pinacoteca ainda haviam os salões, uma época em que acabou. Os artistas jovens eram lançados a partir de salões de cidades pequenas e depois, com os prêmios que eles ganhavam, passavam para um outro patamar.

ARTE! – Hoje dependem do mercado.

Agora, a partir das décadas de 1980 e 1990, um fenômeno novo entra no mundo da arte no Brasil: Volpi, por exemplo, que vendia muito pouco até a década de 1940. Ele vai fazer a primeira exposição em 1944, numa pequena galeria, na Barão de Itapetininga. Não tinha nem catálogo ainda e ele tinha 48 anos de idade. Hoje tem muito artista com 40 anos que já tem livro publicado como se fosse uma obra acabada. Era outro ritmo. O artista produzia, uma pessoa ia fazer uma bienal ou um grande salão, ia no ateliê do artista, escolhia as obras. Hoje o artista faz as obras para o evento. O mercado hoje é avassalador. E para a minha geração é um fenômeno novo. É lógico que para os jovens hoje é o princípio fundamental da atuação deles.

ARTE! – Philip Kennicott, do Washington Post, afirmou há pouco que se sente “mais livre para gostar das coisas sem pedir permissão” em função da pandemia. Não lhe parece assustador esse reconhecimento?

Muitos curadores e críticos que nós conhecemos, que tem entre 30 e 50 anos, estão atrelados ao mercado, você sabe disso. Muitas vezes a gente não nomeia, mas sabemos quem são. A gente trabalhava com museus, com entidades. Se eu tenho que recorrer a uma galeria, eu faço isso com um pouco de recato, digamos assim. Porque eu acho que mercado é uma coisa e quem faz uma curadoria tem que ter um outro ponto de vista, procurar museus, procurar colecionadores privados. Agora, muitos curadores ou jovens críticos não vão à casa dos artistas, não vão às casas dos colecionadores. Você pode alegar: não vão porque não conhecem, não têm acesso. Pois é, mas por que a gente tinha? Por que conseguíamos entrar? Vai ver porque eram pessoas que publicavam em jornal e o nome já era conhecido, então eles abriam as portas para vocês. Mas hoje o curador, um jovem crítico, escreve para o catálogo de galerias. Ou seja, ele já escreve para o mercado. Ele não tem o hábito de frequentar o ateliê do artista nem de frequentar a casa do colecionador.

Exposição “Tarsila, estudo e anotações”, com curadoria de Aracy e Regina Teixeira de Barros, na FAMA, em Itu, 2020

ARTE! – Você comentou que os jovens que não veem muito a história pregressa da arte, do que foi produzido antes deles. Mas a gente também vê muita gente que fica parado no tempo e que não vê o que vem depois.

Eu acho que hoje a gente vê muitos pesquisadores da história da arte que ficam trancados no seu gabinete fazendo mestrado, doutorado, pós-doutorado, livre-docência, que só se preocupam com a titulação para poder galgar uma garantia de um concurso para poder se firmar na universidade ou o que quer que seja.  Mas eu acho que eles não vão ao ateliê do artista. Eles não saem do seu gabinete. Isso eu também acho criticável. Eu te garanto que os artistas teriam o maior prazer em receber historiadores… tenho certeza.✱

A arte em transformação

Retirantes
"Retirantes", de Pedro Zagatto | Foto: Isabella Matheus

Entre obras que retratam festas e tradições populares, pinturas que expõem a violência policial, expressões de um feminismo crescente, cenas cotidianas e retratos da degradação ambiental brasileira, a Bienal Naïfs do Brasil 2020 abriu as portas de sua exposição presencial. A mostra teria início em agosto no Sesc Piracicaba, mas foi adiada por causa da pandemia, e agora segue em paralelo com a programação digital até julho de 2021. Buscando reunir as ideias de Ailton Krenak – com Ideias para adiar o fim do mundo – e Arthur Danto, a mostra leva o título Ideias para adiar o fim da arte e conta com curadoria de Ana Avelar e Renata Felinto.

“Eu diria que Ideias para adiar o fim da arte é na verdade ampliar para 360 graus a nossa possibilidade de olhar. Parar de mirar adiante, mas ter atenção à visão periférica, e se necessário, virar o corpo pra poder enxergar o que ficou pra trás”, diz Felinto. A curadora acredita que a quantidade de pessoas diferentes na exposição já anuncia a intenção de esgarçar os limites que categorizam as produções de artes visuais no hoje. “As obras apontam para discussões que atravessam inúmeras identidades, mas que tendem a escancarar as possibilidades de humanidades que precisam ser vistas também através da arte”, explica.

Pensando nisso, talvez fique claro que ao invés de adiar o fim da arte, o debate seja mais sobre expandir a nossa compreensão de arte e as narrativas que incluímos nessa história. Como coloca Ana Avelar: “Na contemporaneidade já não acreditamos mais em apogeu, acreditamos que as artes se desenvolvem ao longo da história, com suas especificidades e seus assuntos. Ou seja, pensar o fim da arte já não é mais possível, mas podemos pensar a transformação dela e dos sistemas nos quais ela opera, e nós buscamos oferecer entradas de compreensão para essas narrativas”.

Mas o que os artistas naïf têm a ver com isso? Talvez as suas narrativas sejam justamente algumas que estavam invisibilizadas até então. Para compreender, vale voltar um pouco no tempo. “Naïf é um termo de origem francesa e sugere algo natural e ingênuo”, explica Margarete Regina Chiarella, agente de cultura e lazer no Sesc Piracicaba. “Mas visitando a Bienal, vocês vão perceber que de ingênuo não há nada. Essa arte tem como característica a espontaneidade e a liberdade para que os artistas expressem, como se sentem, como percebem o mundo sem ficar presos às regras da academia ou aos modismos. São insubmissos, trabalham com regras próprias.”

Visando minimizar essa inivisibilização, o Sesc optou por dar foco ao artista, e na 15ª Bienal, além de mostrar uma pluralidade na arte naïf, criou espaços que simulam ateliês e trazem relatos em vídeo dos próprios criadores, contando ao público seus processos e suas pretensões artísticas, e permitindo que o visitante da bienal o veja para além de um generalismo, mas como pessoa artista. “Então para nós isso é importantíssimo, porque ainda que a crítica de arte e a curadoria sejam fundamentais para se organizar um discurso expositivo, não é mais admissível que desprezemos a fala da pessoa artista”.

Muito dessa proposta curatorial está baseada nas ideias das teóricas Ana Mae Barbosa e Lélia Coelho Frota. Como explica Ana Candida Avelar, esta edição da Bienal Naïfs também busca homenagear as mulheres. Por isso, parte de ambas as teóricas como referências na curadoria e convida Carmela Pereira, Leda Catunda, Raquel Trindade e Sonia Gomes para dialogar com a exposição. “Olhar para o trabalho delas nos faz perceber como saíram das realidades mais diversas para estar nos lugares onde estão, nos faz notar que esses e essas outras artistas estão percorrendo caminhos semelhantes e possuem esse espaço já aberto tanto por iniciativas como a do Sesc, quanto por figuras como essas artistas”, diz Ana Avelar.

Aliada à exposição presencial, uma série de iniciativas digitais foram e serão desenvolvidas. Dentre as atividades aconteceram oficinas voltadas aos artistas autodidatas, para que aprendessem a fotografar suas obras – e assim acessar outros espaços expositivos mais facilmente – e a elaborar portfólios – necessários às seleções de mostras nacionais e internacionais. Esse tipo de iniciativa visa uma ação maior do que a realização de um evento. Por isso, o trabalho com os artistas populares vai muito além do período da Bienal Naïfs e busca entender o evento não como um fim, mas um caminho, que permita a essas pessoas ampliar suas vozes e construir novas conexões e oportunidades.

Uma visita ao Sesc Pompeia em tempos de pandemia

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"Caos + Reparo = Universo", 2014, obra de Kader Attia em cartaz no Sesc Pompeia. Foto: Gui Gomes/ Divulgação

Sábado, 14 de novembro. Exatamente oito meses após um confinamento levado muito a sério, visito a primeira exposição de arte. Escolho o Sesc Pompeia por ser um dos locais mais acolhedores da cidade, pela arquitetura de Lina Bo Bardi, pelas mostras em cartaz. Exposições costumam ser o lugar da surpresa, do espanto, da pesquisa, do questionamento, é onde se pode rever o cotidiano, repensar o real, propor novos mundos, e também a possibilidade de fantasia e ativismo.

Mas em um mundo em pandemia, que no Brasil se tornou uma política de morte, o que significa retornar a uma exposição de arte contemporânea? Dá para olhar arte com máscara, medo de se aproximar de outras pessoas e a impossibilidade de tocar na obra? Ou a experiência de uma exposição está comprometida e sua arquitetura e organização não podem mais seguir parâmetros pré-11 de março de 2020, quando a OMS anunciou a pandemia?

Desde os anos 1980, com a Aids, o mundo da arte incorporou a ideia de “contaminação” como uma afirmação positiva e a palavra inundou textos curatoriais, críticos e mesmo de descrição de mostras. Talvez seja agora o momento de se rever o uso dessa palavra, especialmente porque está claro que a contaminação está em todo lugar, mesmo levando-se em conta as medidas sanitárias necessárias, e ela segue mortal.

Na visita ao Sesc, as medidas são dadas pelo número limitado de visitantes, que só podem entrar com inscrição prévia, e pela medição de temperatura na entrada. O local, além do mais, é um lugar amplo, com muita ventilação, outro aspecto importante que dificulta a contaminação.

O Sesc Pompeia tem duas mostras em cartaz, que seguem até o fim de janeiro: Farsa. Língua, Fratura, Ficção: Brasil–Portugal e Kader Attia – Irreparáveis Reparos. Como experiência, e creio que isso é importante agora mais do que nunca, a exposição do artista franco-argelino me pareceu mais adequada ao tempo presente, apesar de ambas terem sido concebidas e desenhadas no mundo pré-pandêmico.

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Esculturas de Kader Attia expostas na mostra Irreparáveis Reparos. Foto: Gui Gomes/ Divulgação

É muito atual uma exposição que fale sobre reparo, como a de Attia, a partir de sua poética em abordar os legados coloniais, especialmente suas repercussões na África, e as possíveis ressignificações de objetos e ações de violência. É o caso do vídeo Mimeses como resistência, onde pássaros reproduzem os sons de motosserras, as máquinas de destruição da natureza, uma ironia sobre como vítimas assumem o discurso do poder.

Os trabalhos de Attia, além do mais, costumam criar ambientes que fazem referência a uma situação pós-apocalíptica, o que em 2020, parece muito próxima com os alarmes cada vez mais intensos de catástrofe climática e a escalada da devastação na Amazônia. Esse cenário é uma referência explícita na instalação com máscaras e esculturas de madeira chamuscadas e queimadas, originalmente vendidas a turistas na África, e que fazem referência ao incêndio no Museu Nacional no Rio de Janeiro, em 2018. A potência da obra do artista está em ser uma síntese de diversos problemas expostos de um mundo à beira do abismo.

Parte do poder da mostra, com curadoria da alemã Carolin Köchling, está justamente em trazer as histórias de grupos vulneráveis, sejam povos colonizados por outros países, sejam coletivos de mulheres trans, sejam sobreviventes da 1ª Guerra Mundial, em um ano que todo o planeta se tornou vulnerável à catástrofe.

E é muito comovente ouvir, no vídeo Refletindo a memória (2016), sobre a necessidade de se viver o luto, a partir de depoimentos sobre a Síndrome do Membro Fantasma, quando pessoas que tiveram partes do seu corpo amputadas seguem sentindo esses membros. Quando o mundo já ultrapassou 1,5 milhão de mortos por conta da COVID-19, o trabalho de Attia se torna uma reflexão sobre a própria pandemia e mostra o terror como uma construção cotidiana na história humana. Mas há também esperança, como na escultura Caos + Reparo, um globo construído por pedaços de espelhos quebrados costurados por fios de metal, um pouco a sensação de quem atravessou 2020.

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Vista da exposição “Farsa – Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal”. Foto: Ilana Bessler/ Divulgação

A mostra conta com poucos trabalhos espalhados por sete salas e uma arquitetura generosa, o que transmite um sentimento de segurança, por um lado, e a possibilidade de apreensão total, por outro. É especialmente sob essa ótica que Farsa se torna uma espécie de antítese do que poderia ser uma mostra nos dias atuais. Teria sido uma ótima mostra em “condições normais”, mas já que elas não existem, a questão é porque a curadoria, a cargo de Marta Mestre e Pollyana Quintella, não a repensou para o momento.

Há desde trabalhos interativos a muitos monitores que obrigam o uso de fones dispostos no espaço, mas sem condições de higiene adequadas. Para que se aventurar a pegar um objeto que outras pessoas podem ter tocado sem limpar?

O conceito da mostra gira em torno dos limites da linguagem e da comunicação, focando artistas que trabalham no Brasil e em Portugal, em dois tempos: nos anos 1960/70 e no século 21. Há um sentido nessa escolha, o primeiro é o momento da busca de expansão da arte para novos campos além do próprio circuito, atitude que perde espaço nas décadas seguintes, para retornar nos anos recentes. São períodos importantes de renovação, transformação e transgressão.

O problema é que a mostra ambiciosa chega a ter um caráter enciclopédico: mais de cem obras de 68 artistas, a dimensão de uma bienal. Isso tudo demanda um tempo e uma concentração um tanto difíceis no novo contexto, com limitação na visita, quando não dá para ver vídeos em pequenas salas, quando não se pode manipular obras.

Farsa é um exercício de linguagem muito bem elaborado, mas creio que o momento agora é de síntese, não de dispersão. Por isso, Irreparáveis Reparos ganha potência. Consegue expressar com contundência questões relevantes, que se já mereciam atenção antes de 2020, agora são urgentes.

Tempos sombrios e férteis

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Na página ao lado, Aqui é mais do que o Vírus, de Rosana Palazyan, uma série de pequenas máscaras nas quais a artista borda frases com os próprios fios de cabelo
“Aqui é mais do que o Vírus”, de Rosana Palazyan, uma série de pequenas máscaras nas quais a artista borda frases com os próprios fios de cabelo

Vivemos nos últimos tempos uma falsa impressão de normalidade, muitas vezes acompanhada de uma esperança de que tudo poderia retornar ao que era antes. No entanto, mesmo que fosse possível resgatar velhos hábitos, apenas acrescidos (e não por todos) do cumprimento de protocolos como uso de máscara e álcool em gel – o que parece bastante improvável com o crescimento exponencial dos índices de contágio –, há algo de amargo nessa ilusão de que se pode recuperar o tempo perdido. Em primeiro lugar, porque o período da quarentena não foi um parêntese, um momento em suspenso. Este isolamento, o mergulho íntimo num cotidiano que ora se revela idêntico ora parece ser de um outro mundo, revelou-se muito mais complexo e desafiador. Acabou também gerando uma tal profusão de camadas de interpretação, reflexão, engajamento ou negação que custaremos a digerir e que nos coloca diante de um mundo muito mais complexo, paradoxal e contraditório do que aquele anterior a março de 2020.

São muitas as perguntas sem resposta que se acumularam de lá para cá e muitos são os pontos de vista desses questionamentos, gerando uma enormidade de interpretações, desejos, reflexões capazes de alimentar uma forte – e muitas vezes angustiante – dúvida sobre os impasses do momento atual e o que assistiremos no futuro próximo. Ao longo dos últimos nove meses (não por acaso tempo equivalente ao de uma gestação), muito foi produzido e começa aos poucos a chegar às nossas mãos.

Um desses conjuntos, que traz uma ampla gama de análises desenvolvidas por pessoas das mais diferentes áreas do conhecimento, é No Tremor do Mundo, coletânea de ensaios e entrevistas publicadas recentemente pela editora Cobogó. São ao todo 25 autores que procuram destrinchar não apenas os efeitos da pandemia sobre o mundo, os indivíduos e a sociedade, mas também entender de que forma essa situação excepcional ajuda a iluminar, transformar ou acentuar a crise atual, seja ela política, econômica, ambiental ou humana. Os textos oscilam entre um otimismo quase redentor e um pessimismo ácido em relação aos desafios gigantescos a serem enfrentados para, nas palavras de Ailton Krenak (um dos vários entrevistados pelos organizadores da publicação, Luisa Duarte e Victor Gorgulho), “adiar o fim do mundo”.

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Capa do livro. Foto: Divulgação

Nada mais terrível do que uma doença – até o momento incontrolável – que nos lembra que “o amanhã pode simplesmente não existir”, como alerta Sidarta Ribeiro. Ou, nas palavras de Guilherme Wisnik, um vírus que revela “um mundo dominado por sentimentos crescentes de paranoia e angústia”. A variedade de respostas ensaiadas pelos diferentes autores não esconde uma certeza em comum: que o momento atual funciona como uma espécie de alerta, revela a necessidade de uma mudança radical. “O Covid expôs a extensão e a profundidade da ruptura necessária”, sintetiza Heloisa Starling.

O enfrentamento pode se dar pela ação concreta, real, de movimentos como o das Marés ou do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), cujas estratégias de combate ganham visibilidade nas entrevistas feitas com Eliana Souza Silva, fundadora da ONG Redes da Maré, e com os coordenadores do MLB. Mas também se revelam a partir de reflexões filosóficas de amplo alcance, que na maioria das vezes retomam instrumentais que já vinham sendo elaborados pelos pensadores, como demonstra Pedro Duarte numa bela síntese sobre os principais lances dados pelos filósofos nesses tempos turvos.

No campo mais específico da cultura e da arte, uma questão parece ricochetear em praticamente todos os comentários, interpretações e questionamentos aventados: como pensar a questão da experiência da troca, do intercâmbio – porque não do contágio – da prática artística se o contato entre as pessoas foi limitado? A própria criação artística parece oferecer essa ponte, propor uma aproximação, poética ou reflexiva, afetiva ou simbólica, como podemos perceber em várias ações que vêm sendo compartilhadas ao longo desse período de “isolamento”. É o caso, por exemplo, do diário que a escritora Noemi Jaffe – uma das autoras convidadas de No Tremor do Mundo – se propôs a escrever como um “ato de elaboração em meio a um grande luto”.

Rosana Palazyan, cuja obra é marcada por uma delicadeza cortante e pela capacidade de combinar o universal e o particular (sua instalação Uma História que eu nunca Esqueci ajudou a Armênia a conquistar o Leão de Ouro de Melhor Pavilhão Nacional, na 56a Bienal de Veneza), também mergulhou nesse período de quarentena num rico processo de elaboração simbólica do drama coletivo vivenciado por todo o globo nesse 2020, e que em países como o Brasil – submetidos a governos de índole totalitária e negacionista e marcados por uma profunda desigualdade – é vivido de forma ainda mais intensa. Desde abril ela vem desenvolvendo a série Aqui é mais do que o Vírus, um conjunto de pequenas máscaras que cabem nas palmas das mãos e foram realizadas a partir do único retalho de que dispunha (desde o início da pandemia resolveu instalar-se na casa da mãe, ficando longe de seu ateliê). Sobre essas delicadas miniaturas, Rosana borda frases, palavras, desenhos das mais diferentes origens (apropriadas de conversas, pensamentos, reportagens…) utilizando como linha seus próprios fios de cabelo, material que utiliza desde um trabalho com meninos de rua desenvolvido em 1998. “São como as palavras e pensamentos que saem das bocas que passaram a ficar escondidas. Espaço para nossas falas, relacionando os acontecimentos diários que aqui precisamos resistir para vencer muito além de um vírus mortal, dentro de uma realidade desigual e injusta”, sintetiza.

livros pandemia
Capa do livro. Foto: Divulgação

Alfredo Nicolaiewsky, artista e professor gaúcho, também sentiu-se estimulado pelo isolamento da pandemia e desenvolveu um interessante processo de criação e troca. Com a agenda mais livre, resolveu retomar seu trabalho com pintura, técnica que havia abandonado há 20 anos. Começou a pesquisar diariamente novas composições, usando como suporte caixas de papelão de descarte. Contrariamente ao usual silêncio do ateliê (normalmente os artistas preferem exibir suas obras quando já prontas ou encaminhadas), passou a enviar imagens desses trabalhos e conversar sobre eles com um grupo de amigos por Whatsapp, estimulando assim um diálogo e uma proximidade que mostra, na prática, como a cultura é algo coletivo. O resultado desse processo acabou sendo transformado em livro digital, cujo título Alfredo em Processo; Nicolaiewsky em quarentena ironiza esse duplo nível de relação, entre o autor público e o indivíduo que enfrenta as adversidades do cotidiano.

Outros vários livros, virtuais ou não, tem vindo à tona nos últimos tempos, com diferentes enfoques e abordagens, tornando mais rica essa reflexão. É possível citar, por exemplo, a antologia Histórias da Pandemia, organizada pela editora Alameda, que reúne dez contos de autores que trazem pontos de vista históricos, pessoais e narrativos distintos, porém complementares, em que se sucedem momentos de delicada comédia (Ciúmes, de Luiz Kignel), revisão histórica (As Mortes de Antônio Valle, de Marcelo Godoy) ou uma narrativa que mescla memórias de infância, o despertar da sexualidade homoerótica e a dureza das perdas pelo coronavirus numa sociedade que se recusa a enxergar o óbvio (Supernova, de Felipe Cruz).

Essa enorme oferta e a diversidade de caminhos adotados só mostra que, em meio à ansiedade pela retomada, é preciso parar para pensar, manter olhos e ouvidos abertos para murmúrios menos espetaculosos, mas talvez mais organizadamente conectados com a traumática experiência dos últimos meses, observar atentamente processos, reflexões, escritas, criações que nasceram desse período de quarentena, ameaça e isolamento.

A Bíblia, o inferno de León Ferrari

Divindade fálica oriental Go-Shintai
Divindade fálica oriental Go-Shintai

 

Sem título (série “Bíblia”). Desenho do Duomo de Pisa sobreposto por gravura da escola moderna de Ukiyo-e e Jeová de Rafael Sanzio. Fotos: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari

No ano em que León Ferrari completaria 100 anos, escolho a série Bíblia, de 1989, como objeto de reflexão. Com essas obras ele conclui sua ponte para o inferno, iniciada em 1965 com a obra seminal La Civilización occidental y Cristiana, estopim do seu embate com a igreja católica. Mais de vinte anos depois Ferrari retomou o tema religioso com mais de cem colagens realizadas com variantes híbridas, misturando textos e imagens da escritura sagrada com obras de Michelangelo, Dürer, Goya, Da Vinci, Rafael, notícias de jornais e gravuras orientais, de elegância formal e erotismo à flor da pele. Bíblia é o balizamento da arte total de Ferrari e com ela desencadeia vários comentários verticais sobre a Escritura Sagrada, que vão de Deus a moradores da periferia fuzilados pelo esquadrão da morte na ditadura dos anos de 1970.

Dezenas dessas colagens estão reunidas no livro Bíblia, considerado um dos marcos de pensamento transgressor, com apresentação do poeta Regis Bonvicino. As imagens xerocadas, opacas, trabalhadas em branco e preto lembram o processo gráfico dos jornais sindicais ativistas. Max Ernst define colagem como “o encontro de duas realidades distantes em um plano estranho a ambas”. Usando apenas a imagem de um pênis, que representa a Divindade fálica oriental Go-Shintai, do século 17, e uma gravura de anjo com espada, retirado da Bíblia Shnorr, de 1860, Ferrari reitera o pensamento de Max Ernst e cria uma obra de poética iluminada pelo contrassenso. Ele não se constrange com a moral comum dos preceitos seguidos pela maioria. Utilizar os textos da Bíblia é parte de seu pensamento anárquico, com a intenção de libertar a iconografia presa em livros e lhes dar vida justapondo e superpondo-a em trabalhos próximos à fotomontagem. O oriente e o ocidente coexistem no provérbio visual de Ferrari, um inventário encadeado por uma narrativa de textos e imagens que anunciam contrariedades. Ao confrontar diferenças de sexualidade em outras culturas ele chega a um trabalho desafiador. Apropria-se do desenho do Duomo de Pisa e o contrapõe à gravura Ukiyo-e, de 1910, e a Jeová, de Rafael Sanzio, século XVI, precedida do comentário bíblico: “Se a filha de um sacerdote for apanhada em estupro e desonrar o nome do pai, será entregue às chamas (Levítio21,9)”. A contra leitura que se instala em torno das obras dessa série se compõe de camadas de interpretações.

Sem título (série Bíblia)
Sem título (série “Bíblia”), xilogravura de Hishikawa Moronobu sobreposta à “Última Ceia”, de Dürer.

Com o desaparecimento de seu filho pela ditadura militar, em 1976, Ferrari deixa a Argentina e se fixa em São Paulo. Presença/ausência é o espectro que o acompanha no exílio e o atormenta até o fim de sua vida. Ferrari opera no vazio que existe entre a arte e a vida, desarruma o sistema, escancara a lógica da dominação com personagens coletivos que contestam, interrompem e colocam em xeque a história.

As indagações constantes sobre as Escrituras não se refletem apenas na arte, mas contaminam toda sua forma de viver. Em uma carta à sua irmã Suzana escrita em 1984 ele comenta: tirar do inferno o “pecado” ou, melhor, converter o inferno em um jardim cheio de flores, como o é em realidade, pode ser um bom caminho para limpar ou começar a limpar nossas cabeças dos versículos da Bíblia e seus congêneres.

Ferrari desobedece e rejeita todo projeto genocida do poder. Na década de 1980, vi alguns rascunhos dessa série em seu ateliê paulistano e me chamou a atenção que os personagens bíblicos flutuavam no alto das lâminas/folhas. Deus, santos, anjos pareciam denunciar o céu religioso como um lugar de vigilância da ordem, que se remete a Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir.

Divindade fálica oriental Go-Shintai
À dir., Divindade fálica oriental Go-Shintai com anjo com espada, retirado da Bíblia Shnorr. Foto: Cortesia Fundación Augusto y Leon Ferrari

Em 2004 ele sofre uma nova investida da igreja e do sistema quando sua exposição Infernos e idolatrias, no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, é invadida por fanáticos católicos que incendiaram algumas obras. Na ocasião, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa Francisco, entrou em confronto com ele chamando-o de “blasfemo”. Ferrari nunca negociou sua liberdade de expressão com nenhum poder estabelecido, seja da Igreja ou do Estado. Ao contrário, deu continuidade e alargou seu repertório de concepção catártica, ao desenvolver novos processos simbólicos contra os arbítrios.

Ferrari incomodou e muito pela forma livre com que sempre trabalhou, na contramão do circuito de arte, que costuma se alinhar ao sistema. Em 1989, depois de ser convidado a participar da coletiva Art in Latin América, na galeria Hayward de Londres pela curadora Dawn Ades, sua obra foi censurada e cortada da coletiva. Em 2013, como uma resposta a todas as censuras que sofreu ao longo dos anos, ele faz um pronunciamento definitivo: “A liberdade de consciência, o direito de crer em qualquer deus, ou em nenhum, implica também, para alguns, o direito de cada um estudar, defender, criticar, fazer arte, humor, cinema, teatro, literatura, com qualquer das crenças”.