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Rodrigo Naves fala sobre seu novo livro, “Van Gogh: A Salvação pela Pintura”

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"Os Comedores de Batata", 1885, Van Gogh. Foto: Reprodução

Gabriel San Martin*

No dia 5 de fevereiro, o escritor e crítico de arte Rodrigo Naves publicou o seu novo livro: Van Gogh: A Salvação pela Pintura (Editora Todavia). Apesar de o pintor holandês ser um artista muito discutido há mais de um século, Naves se mostra capaz de apresentar uma outra visão sobre a obra do pintor.

Se a qualidade das telas de Vincent Van Gogh (1853-1890) foi com recorrência atribuída às dificuldades e problemas psíquicos do artista, Naves se mostra convencido de uma interpretação distinta. Para o crítico, mais do que representar as dificuldades de sua vida ou se vitimizar, o pintor teve por motivo a criação de composições ligadas a uma tentativa de salvação através do trabalho. O holandês sempre foi muito ligado à religião calvinista – doutrina surgida a partir da Reforma Protestante no século XVI – e por isso, segundo Naves, o “destino de sua vida repousa num trabalho sem fim, uma condenação, portanto, que a alguém formado na moral calvinista seria simultaneamente esperança de salvação”.

Nesse sentido, essa entrevista tem por objetivo discutir alguns pontos interessantes de seu novo livro e sobre determinadas questões relacionadas à crítica de arte hoje. Leia abaixo:

Gabriel San Martin – O que te levou a escrever, nos dias de hoje, um livro sobre o Van Gogh?

Rodrigo Naves – Tem um lado, digamos, um pouco aleatório e um pouco mal entendido. Em 2017, o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, me pediu para fazer livros que fossem baseados no meu curso de História da Arte. Eu avaliei mal, porque eu já tinha 63 anos, mais ou menos, e não tenho uma saúde das melhores. Mas aceitei. Aí fiz o texto do Van Gogh, porque ele não apenas é um dos artistas que mais gosto, como também o texto já estava mais trabalhado, embora tive que achar as notas. Deu um bom trabalho.

GSM – Parece-me que a tese central do livro consiste em estabelecer um vínculo direto entre a admiração que os calvinistas têm pelo trabalho e a obra do Van Gogh, não? De modo que ele buscasse criar uma possibilidade de salvação através da pintura. Então eu gostaria que você, nas suas palavras, desse uma breve explicação dessa tese que você apresenta no livro.

Eu penso o seguinte: essa questão, sim, é muito central e, digamos, eu consigo ver trabalho na superfície das telas do Van Gogh. Porque, geralmente, se eu pego uma garrafa de Coca-Cola, por exemplo, o trabalho fica oculto. Seja em qualquer objeto industrial, um cortador de unha, os seus óculos…  Quer dizer, é um trabalho industrial, em geral, por não ser rude e não revelar a existência da intervenção humana. E, no caso do Van Gogh, por esse uso muito espesso da tinta – o que se chama, no jargão, de impasto –, a pincelada é simultaneamente a tentativa de figuração de algo, seja um rosto, um monte de feno, um girassol… De modo que, por ser muito espesso, ela cria uma tensão entre figuração e ser uma matéria amarela, azul etc. Então tem a ver com essa noção calvinista do trabalho, do trabalho como uma espécie de louvação, de glorificação de Deus. Um trabalho que não supõe recompensa, riqueza ou prosperidade, mas, sim, uma certa educação dos próprios sentidos, uma concentração em aspectos do mundo sensível que não seriam mais pro lado do vício do que da virtude, uma disciplina que é muito decisiva para essa denominação protestante.

Acredito que no luteranismo, que é a primeira vertente protestante, as coisas não são tão radicais. Tanto que no livro do Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, é o calvinismo. Ele [Van Gogh] vem de uma família muito ligada ao calvinismo, o pai era pastor e o avô, se não me engano, era um teólogo do calvinismo. Tanto em algumas cartas quanto nos temas que ele usa, essa questão do regime do trabalho é muito forte. Por exemplo, na última etapa, mais ou menos o momento em que ele realmente começa a pintar profissionalmente, no final de 1864, numa pequena aldeia, ele pinta os famosos comedores de batata. Então, os temas também são muito ligados aos trabalhos agrícola e camponês, o que mudou muito com as máquinas e a mecanização, mas que era o trabalho mais rústico, em que a relação com a terra é estreita. E ele vive, se não me engano, mais de uma semana com aquela família [de Os Comedores de Batata] para, enfim, incorporar melhor os gestos, o tipo de trabalho. Um indicador dessa questão também é que o grande amor da pintura para ele era Jean-François Millet, que é o pintor dos camponeses. E ele tem quatro ou cinco trabalhos que são cópias, cópias no estilo, em que ele toma por base temas semelhantes àqueles do Millet. Então, em vários aspectos, culturais e religiosos ou da própria formação dele, essa questão foi decisiva.

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A capa do livro. Foto: Editora Todavia

GSM – Ainda nesse sentido, você comenta bastante no decorrer do livro sobre como a obra do Van Gogh foi reduzida à situação dele enquanto uma pessoa que sofreu muito. Você acha que, não querendo estabelecer uma hierarquia, há uma força maior ainda nesse ímpeto do trabalho em detrimento desse ímpeto do sofrimento na obra dele?

Que ele tenha tido sofrimentos psíquicos em um grau mais terrível ou menos terrível me parece indiscutível. Ele teve também problemas fortes com alcoolismo. Aí as pessoas vão fazendo diagnósticos no Van Gogh de acordo com o que a psiquiatria vai mudando. Então, já foi esquizofrenia, agora é transtorno bipolar, diz-se também que ele tinha epilepsia… E o grande responsável por essa visão um pouco mais sofrida e angustiada do Van Gogh, que não é mentirosa, é um livro chamado, se não me engano, Lust for Life, de um escritor chamado Irving Stone, que depois dá origem ao filme do Vincente Minnelli, Ânsia de Viver, em que o Van Gogh é o Kirk Douglas e o Gauguin é o Anthony Quinn. Ambos, o livro e o filme, foram bestseller e blockbuster. Assim, ficou muito popular essa lenda, porque tem uma série de indagações que, depois quando as investigações foram aprofundadas, colocaram em questão até o suicídio do Van Gogh. Dois pesquisadores alemães pesquisaram os arquivos policias de Arles (França), que falavam que quem cortou o pedaço da orelha do Van Gogh não foi ele, mas que foi o Gauguin. Então, acaba que, de certo, você tem as cartas e os trabalhos, que, enfim, só ganharam prestígio e reconhecimento com o passar dos anos.

Agora, o que talvez seja decisivo também para que o Van Gogh dê o pulo do gato é a ida dele para Paris. Ele já havia estado em Paris, quando ele trabalhava na galeria, meio de segunda, de uns parentes afastados. Quando ele volta, em 1886, ele era tímido, pouco sociável, mas se aproxima daquele Peter, comerciante de material artístico, e lá ele conhece o Toulouse-Lautrec, o Signac e o Pissarro. O Pissarro vai ser o cara mais importante, que já tinha sido para o Cézanne e o Gauguin, para a introdução do Van Gogh à pincelada descontínua do impressionismo e essa coisa toda.

Então, do ponto de vista dos vários modos de representação artística, de fato o impressionismo é questão decisiva para o Van Gogh, embora ele vá dar às pinceladas separadas e às cores mais luminosas do impressionismo uma destinação quase oposta. Ele mesmo diz que usa a cor como expressão. Então, é como se ele quisesse representar uma paisagem com a emoção que ele sentia diante desses temas. Não é à toa que ele foi uma das fontes mais influentes do chamado primeiro expressionismo alemão, em especial àquele grupo chamado A Ponte. Porque, pense aqui comigo, por mais que eu, ao representar você, procure representar o sentimento que tenho por você, evidentemente menos realista será essa representação. Portanto, quando você quer se aproximar desse mundo que você representa pela emoção, pela expressão, ele se afasta mais. Afinal, ele está tingido dessa expressão. E eu acho que essa relação, digamos, meio conflituosa com a realidade, com o meio social etc., nasce um pouco com ele.

Eu não consigo identificar no Millet e em mais ninguém essa relação difícil com a realidade, embora, para ser honesto intelectualmente, uma influência importante também aos expressionistas foi o Matisse. Sobretudo a primeira fase do Matisse, dos fauves (fauvistas), por causa dos contrastes de cor. Mas, o Matisse era uma pessoa angustiada, apesar da experiência que nós temos em várias obras do Matisse é de uma alegria incontida. É mais ou menos por aí que consigo equacionar esses elementos.

GSM – Passando para um assunto mais pessoal do seu trabalho, há um trecho no final do livro no qual você diz: “Todos envelhecemos. E talvez o mais patético desse movimento natural seja tentar evita-lo pela adesão histérica às últimas tendências”. Eu gostaria de entender se, de algum modo, essa fala tem algum vínculo com toda a discussão que houve a seu respeito há alguns anos referente à sua possível adesão ou preferência por uma arte moderna. Você diria, hoje, que definitivamente fez as pazes com a arte contemporânea?

Olha, eu realmente fui mais formado na arte moderna. Agora, grande parte dos artistas sobre os quais escrevi são contemporâneos, vivos. Então, eu não tenho nenhuma, digamos, prevenção à arte contemporânea. Agora, tenho, sim, em relação a alguns valores que passaram a mensurar a arte contemporânea: valor de mercado, uma capacidade de julgar positiva e fazer o próprio marketing do seu trabalho… E alguns cacoetes mais ou menos contemporâneos, como uma politização da arte contra a qual eu não tenho nada quando é bem feita. Eu acho um dos melhores artistas contemporâneos aquele William Kentridge, que é um desenhista sul-africano, que faz desenhos animados. Mas, aquilo eu acho que tem uma concepção do desenho, da autorrepresentação, que é de fato muito esclarecedora. Eu acredito que o Joseph Beuys também tem uma arte política mais ampla, mais ligada à arte ecológica, e eu adoro o trabalho do Beuys, é um dos trabalhos que mais me tocam.

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O escritor e crítico de arte Rodrigo Naves. Foto: Reprodução

Agora, em alguns casos, e não são poucos, essa politização parece que é muito superficial, que ela é quase uma contradição dos termos. Ou seja, você usa ou a tinta, ou a madeira, ou o bronze, ou o mármore, ou a instalação, ou o espaço quase como uma matéria-prima para expressar alguma coisa. E acredito que essa subjugação dos materiais, que foi de alguma maneira um ideal da arte humanista do Renascimento, isso perdeu o sentido na situação em que o mundo está. Então, você usar um elemento qualquer para, como se fosse um fantoche que fala, literal, é facilmente compreensível. Eu não sei, pode até ser que haja um ganho político. Mas, eu não consigo ver, porque acho que é uma contradição dos termos. Posso até estar falando uma asneira, mas existe um setor, por exemplo, do socialismo soviético que tem interesse, sabe. Que não são só aqueles operários musculosos, aquelas mulheres fortes e saudáveis. Eu fui uma vez para Rússia e vi quase tudo que pude ver, e tem ali as vanguardas soviéticas (Tatlin, Malevich, Olga Rosanova) que acreditavam estar fazendo arte política, junto com o movimento soviético, claro. Isso logo depois da morte do Lênin, em 1924. Mas, enfim, o Malevitch chega a ser preso. Vários deles, como o Chagall, Kandinsky, Gabo, eles vão embora. Agora, era uma arte avançada não só no sentido de que fez a arte internacional andar, como até no sentido de que não há nenhum momento na arte moderna que tenha tantas mulheres boas artistas como naquela época.

Então, voltando à sua questão, eu não tenho nenhum preconceito ou algo semelhante em relação à arte contemporânea. Eu gosto muito dos trabalhos, por exemplo, da Agnes Martin, do Richard Serra, alguma coisa dos minimalistas, de vários brasileiros, para dar só um pequeno exemplo. E escrevi sobre quase todos, ao menos todos que tive condição de escrever. Agora, eu sei que fiquei um pouco estigmatizado como um crítico formalista, “anti-contemporâneo”. Agora, tudo bem ser isso desde que se entenda por “formalismo” você privilegiar o trabalho. Agora, infelizmente, eu acho que essa deixa de “formalista” ou “anti-contemporâneo” colou em mim, e acredito que me prejudica. E, no sentido prático, pode afastar alunos também. Mas, enfim, eu tenho posições. Não acho que toda fotografia tem a força que acham que tem. Foi me incomodando um pouco esse fato de quase todo artista que, evidentemente, fazia instalação, pintura, escultura etc., começar a fazer foto. O problema é que se você não tiver uma certa intimidade ou familiaridade com o seu meio (no caso, é a câmera), a tendência é que você reitere determinados esquemas extremamente reprisados. Mas, enfim, esclareço que também não tenho nada contra a fotografia.

GSM – Há certo momento do livro em que você diz: “E ainda há quem considere Roger Fry um formalista”. Me pareceu que, nessa frase, você atribui um teor até um pouco pejorativo à palavra “formalismo”, coisa que não sinto…

Hoje em dia virou um palavrão. Eu tive, uma vez, uma reunião com uma artista e ela disse: “Eu não sou uma artista formalista”. Quer dizer, e não é mesmo. Porque o trabalho era de uma apreensibilidade, sabe, que você pega aquilo, põe na algibeira e não precisa nunca mais ver. Agora, há algum tempo, eu li uma entrevista do [Richard] Serra em que fazem essa mesma pergunta para ele, e ele diz: “Olha, isso para mim não faz o menor sentido. Porque, há muito pouco tempo, formalismo era um elogio e agora passou a ser uma ofensa, né?”. Porque, no caso do Clement Greenberg (no do Roger Fry acho menos), é explícito. Há uma frase em que ele diz: “Não me interessa o que um trabalho significa, interessa o que o trabalho faz”. Então, ele quer entender como as coisas funcionam, e o Roger Fry não. Enfim, o que ele quer fazer é mostrar como o impressionismo tem a ver com a nova sociabilidade das metrópoles etc. Agora, ele tem a mão muito leve, e ambos [Fry e Greenberg] criticam o Van Gogh. Eu tenho a impressão, à respeito do Greenberg, de ele ter lido muito o Roger Fry, e ambos dizem que o Van Gogh foi um artista “incompleto”. Incompleto porque, vamos dizer, ele era meio amalucado por não conseguir se controlar de modo a desenvolver a completude do seu estilo. O Meyer Schapiro também fala isso, dizendo que ele chega a parecer um naif. Enfim, eu acho que isso que você disse, que é de fato um formalismo (dos soviéticos, essa coisa toda), foi um avanço na crítica literária. Por exemplo, o Roberto Schwartz é um negócio meio assim, com o ganho de fazer uma relação muito rica com a realidade social. Agora, muita gente já acha o Roberto Schwartz formalista.


*Gabriel San Martin é estudante de graduação em Filosofia pela Unicamp e pesquisador em estética e teoria da arte

Fábrica de Arte Marcos Amaro reabre as portas do museu e inaugura nova instalação na FAMA Campo

A Fábrica de Arte Marcos Amaro. Foto: Divulgação

Com as portas do museu abertas em Itu e uma nova instalação na FAMA Campo (em Mairinque), a Fábrica de Arte Marcos Amaro encerra fevereiro com uma retomada de suas atividades. A partir do dia 24 deste mês, aqueles que visitam Itu podem apreciar Tarsila – Estudos e Anotações, exposição da artista modernista que reúne desenhos raros, esboços e estudos guardados da vista do público há mais de cinco décadas (leia a coluna de Tadeu Chiarelli sobre a exposição) e a coletiva Ontologias. Na mostra, Marcos Amaro, Cabral e Kandro investigam questões sobre a existência (assista nosso vídeo sobre as exposições em cartaz).

A reabertura do espaço físico da FAMA Museu, em Itu, segue orientações da prefeitura, além de medidas categóricas de proteção, saúde e higiene estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e órgãos brasileiros de Saúde Pública.

A FAMA Campo, por sua vez, apresenta uma instalação inédita de Carlito Carvalhosa, mas mantém-se fechada para visitação presencial. Composta por uma cerca de mais de 8 metros de altura, com fio situado a cerca de 2,5 metros do chão, a obra Área de Propriedade ocupa 195 metros de extensão do museu a céu aberto e questiona a relação entre a imagem e a função daquilo que nos cerca. Para compreendê-la, assista à visita virtual no vídeo a seguir:

A obra divide visualmente o espaço do museu, mas não bloqueia a passagem, permitindo que pessoas e animais atravessem a cerca. Dessa forma, busca tornar visível o que passa despercebido aos olhos cotidianos e questionar a relação entre a imagem e a função daquilo que nos cerca. Foi durante uma viagem pelo pantanal mato-grossense que o artista deparou-se com as primeiras provocações que geraram a obra. Em meio às imensas áreas de inundação sem qualquer cerca que as delimitassem, Carlito Carvalhosa notou o quanto somos habituados a ver o campo definido pelas cercas que dividem pastos, propriedades e áreas em geral. Posteriormente, desenvolveu essa instalação site specific, feita especialmente para o espaço da FAMA Campo.

Serviço
Reabertura da FAMA Museu – Fábrica de Arte Marcos Amaro
24 de fevereiro, quarta-feira, a partir das 11h
Endereço: Rua Padre Bartolomeu Tadeu, 09 – Vila São Francisco – Itu/SP
Funcionamento: de quarta-feira à domingo, das 11h às 17h
Entrada gratuita

Exposição Estudos e Anotações, de Tarsila do Amaral
Inteira R$ 10,00
Estudantes/professores/educadores R$ 5,00 (necessário documento de comprovação)
Residentes em Itu R$ 5,00

Clique aqui para agendar sua visita. 

Em restauro: artistas mulheres, a parte esquecida da História da Arte Italiana

Elizabeth Wicks e Marina Vicente trabalhando na restauração da pintura "São João [San Giovanni di Dio] cura vítimas da praga", de Violante Ferroni, que será reinstalada no Hospital San Giovanni di Dio, em Florença. Foto: Francesco Cacchiani

Onde estão as mulheres? Essa foi a questão lançada pela Advancing Women Artists (AWA) aos espaços museais e aos visitantes dos turísticos museus de Florença nos últimos 14 anos. A organização filantrópica americana se dedicou a identificar, restaurar e exibir obras de arte feitas por mulheres na cidade berço do renascimento italiano. Desde sua fundação, 70 trabalhos de diferentes artistas que viveram entre os séculos XVI e XX foram restaurados, dentre eles pinturas de Artemísia Gentileschi, Marisa Mori e Plautilla Nelli. Em 2020, a AWA anunciou o fim de suas atividades.

A decisão está ligada à falta de verba para dar continuidade ao projeto. Porém, “enquanto o fechamento é triste para muitos, ele é na realidade um sinal de ‘vitória’, não derrota. AWA nunca buscou firmar sua perpetuação, foi criada como um recurso de sensibilização para os museus da Toscana, para que – através de projetos de conservação individuais – pudessem dar luz para tesouros pouco conhecidos, e restaurar a parte esquecida da História da Arte”, diz Linda Falcone, diretora da organização. A equipe acredita que essa tenha sido uma missão cumprida, pois percebem claras evidências de uma continuidade do projeto de restauração nas diferentes instituições com as quais firmaram parceria. As Galerias Uffizi são um exemplo, ao passo que aumentaram o número de obras feitas por mulheres em sua exibição permanente e realizaram, em 2017, uma exposição temporária individual de Plautilla Nelli. “Estamos determinados a carregar a missão e o legado da AWA”, declara Eike Schmidt, diretor das Galerias, em entrevista ao The Art Newspaper. 

Stefano Casciu, diretor regional dos museus da Toscana, também faz coro às ideias de Falcone. Em sua opinião, a organização foi muito importante para a redescoberta das artistas e de seu corpo de obras. Supervisor da administração de 49 espaços museológicos em Florença e cidades vizinhas, ele afirma: “O trabalho da AWA foi corajoso e inovador, não apenas pela restauração de obras específicas, mas através da expansão do conhecimento acerca da participação das mulheres na História da Arte italiana e nos museus de Florença”.

Restaurando histórias

Esse legado, porém, não se deve apenas à conservação de pinturas e esculturas. Complementando o processo, a equipe da AWA pesquisava sobre a vida de cada artista que tinha seu trabalho recuperado. “Nosso trabalho não era restaurar toda e qualquer obra atribuída a uma mulher”, explica Falcone. “O que nós buscamos é uma restauração permanente da personalidade das artistas e de suas produções”, completa.

A maioria das trajetórias artísticas redescobertas partiram de peças que constavam nos acervos dos museus florentinos, o que foi possível graças às parcerias estabelecidas com importantes instituições, como as Galerias Uffizi, Galleria dell’Accademia, Complexos de Santa Croce e Santa Maria Novella, Museu de San Marco, San Salvi, entre outros. Apesar de as obras já estarem preservadas nesses acervos, elas permaneciam desconhecidas e recebiam menos atenção do que trabalhos de artistas homens renomados internacionalmente. Foi esse o ponto que inquietou Jane Fortune, fundadora do projeto. Após se encantar por uma pintura de Plautilla Nelli no Museu de San Marco, a americana decidiu bancar a conservação da mesma. Fascinada pela artista, perguntou-se quantas outras estariam nas mesmas condições, com pinturas necessitando de reparos. A pergunta transformou-se em objetivo: dar mais visibilidade a essas mulheres.

“Vinte anos atrás, seria mais difícil conseguir verba para restaurar trabalhos atribuídos a artistas desconhecidas do passado”, destaca Schmidt. O diretor das Galerias Uffizi acredita que a Advancing Women Artists teve um papel importante no cenário local e internacional para aumentar o interesse popular nessas obras, e tem a esperança de que organizações locais se sintam motivadas a conservar mais trabalhos femininos.

No entanto, para alcançar o objetivo de Jane Fortune, o processo não pode acabar dentro dos acervos. Para a equipe da organização, a exibição das obras é a única maneira de fazer com que essas artistas sejam realmente conhecidas na Itália e no mundo. Por isso, durante os anos de atuação, trabalharam para que se estabelecessem exibições permanentes dos trabalhos nos museus e igrejas de Florença e, em alguns casos, apoiaram exposições temporárias. Ao lado disso, a AWA tem buscado espaços expositivos ao redor do mundo, onde as pinturas e esculturas possam ser exibidas temporariamente – para então retornarem aos acervos dos museus italianos. “É através da educação e da exibição dessas obras em Florença e internacionalmente que será possível mostrar esse legado cultural vital e sua importância em Florença, na Itália e no mundo”, declaram as organizadoras no site oficial do projeto.   

Um processo em andamento

Para o projeto, colocaram mulheres na linha de frente. “É uma honra estar envolvida com o projeto final da AWA. Ao longo dos anos, a organização deu oportunidades preciosas a conservadoras-restauradoras de trabalhar em obras feitas por artistas mulheres – o que no passado era raro de acontecer”, explica Elizabeth Wicks, responsável pela restauração da pintura de Violante Ferroni, que está prevista para ser apresentada ao público em maio de 2021. 

Para ela, bem como para todas envolvidas na equipe, uma coisa é clara: apesar de a missão da AWA de pesquisar, documentar e expor trabalhos de artistas ser encerrada com a entrega desta última restauração, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Ainda há uma grande parte da História da Arte italiana a ser restaurada e apresentada ao público.  

Rossella Lari restaurando a “Última Ceia” de Nelli. Foto: Francesco Cacchiani

Bernardo José de Souza participa do novo Acervo Comentado Videobrasil

O curador e crítico de arte Bernardo José de Souza [1] comenta a obra Porosity Valley 2: Trickster’s Plot, de Ayoung Kim. Uma das mais destacadas artistas contemporâneas da Coreia do Sul, Ayoung Kim foi a representante do país asiático na 56ª Bienal de Veneza de 2015, teve importantes mostras individuais no Festival de Melbourne e no Palais de Tokyo, em Paris, além de ter participado de diversas bienais e festivais de cinema ao redor do mundo.

Parte de sua obra, agora, integra uma exposição individual no site do Videobrasil Online. A mostra sucede Antropoceno: Coreia x Brasil 2019-2021, que ficou no ar até o começo deste mês, e compartilha da mesma parceria para sua organização com Juhyun Cho, curadora chefe do Ilmin Museum of Art, em Seul. A mostra é a quarta a ocupar o espaço do Videobrasil Online, inaugurado em setembro com o documentário Abdoulaye Konaté – Cores e Composições, seguido pela exposição Sacudimentos, de Ayrson Heráclito, e da mostra coletiva Antropoceno, das artistas sul coreanas.

Segundo Cho, Ayoung Kim apresenta, em vídeos, performances e instalações, questões contemporâneas como a história coreana moderna, a política do petróleo, o imperialismo territorial e a movimentação do capital no mundo. Em suas experimentações, a artista apresenta ainda um vasto trabalho com arquivos e com desenvolvimento de dados e evoca formas pouco familiares de ler, ouvir e pensar sobre as condições do mundo.

Acervo Comentado Videobrasil. Still de "Porosity Valley 2: Tricksters' Plot", de Ayoung Kim. Foto: Divulgação.
Still de “Porosity Valley 2: Tricksters’ Plot”, de Ayoung Kim. Foto: Divulgação.

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Neste episódio, a obra Porosity Valley 2: Trickster’s Plot, de Ayoung Kim, é analisada pelo curador e crítico de arte Bernardo José de Souza, confira a seguir:

A obra sugere um mundo e uma mitologia alternativas para as migrações de todo tipo do século 21. Sequência de Porosity Valley, Portable Holes (2017), avança em relação ao trabalho anterior criando a figura fictícia do aglomerado de migrantes, minérios e dados conhecido como Petra Genetrix. Sobrepondo migrações de refugiados e digitais, ambas características das migrações do século 21, gera um tempo-espaço especulativo ao questionar as “formas de existir” e as “formas de representar” dos refugiados iemenitas que chegaram recentemente à Coreia do Sul.

Os trapaceiros (do título da obra) vieram para perturbar a ordem no vale, conhecida como “a mitologia do puro-sangue”. Eles ameaçam o rígido sistema imunológico do estado-nação, mas acabam por fortalecê-lo, ao transplantar nele sementes heterogêneas (xenotransplante). O que se reflete aqui é um estado de coisas no qual refugiados são tratados como uma espécie de disfunção ou vírus que ameaça o estado-nação. A seguir, desdobram-se cenas de controle biopolítico, tal como é vivido por Petra e pelos próprios refugiados iemenitas na Coreia.

Still de “Porosity Valley 2: Tricksters’ Plot”, de Ayoung Kim. Foto: Divulgação.

O trabalho questiona ideias de fronteira, atravessamento e coexistência ou simbiose. A suposta solidez do território e das fronteiras que imigrantes, refugiados, minerais e dados cruzam começa a desmoronar. Isso se deve ao movimento das placas tectônicas, elas mesmas eternamente sujeitas à migração e ao movimento. Nesse sentido, o trabalho reflete a Terra e seus estratos, o movimento de seus diversos agentes e as fronteiras e relações simbióticas que o impedem e facilitam.


[1] Bernardo José de Souza é curador e crítico de arte. Foi diretor artístico da Fundação Iberê Camargo até 2019. Tem desenvolvido nos últimos anos projetos curatoriais no campo das artes visuais contemporâneas, em colaboração com instituições brasileiras e estrangeiras como Instituto Francês, Instituto Inhotim, Prince Claus Foud, Mondriaan Fonds, KW Institute for Contemporany Art, entre outros. Foi Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria de Cultura de Porto Alegre entre os anos de 2005 e 2013 e integrou as equipes de curadoria da 9˚ Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2013) e da 19˚ Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (São Paulo, 2015).

Ano Novo Lunar: heranças artísticas são reunidas pelo Google Arts & Culture em celebração

Ano Novo Lunar. Pintura em madeira feita por Feng Qingju. A obra adota técnicas da xilogravura e da pintura manual. A temática da criança segurando a carpa transmite desejos de boa fortuna, felicidade e uma longa vida. Foto: coleção da China Intangible Heritage Industry Alliance / Google Arts & Culture.
Pintura em madeira feita por Feng Qingju. A obra adota técnicas da xilogravura e da pintura manual. A temática da criança segurando a carpa transmite desejos de boa fortuna, felicidade e uma longa vida. Foto: coleção da China Intangible Heritage Industry Alliance / Google Arts & Culture.

Embora muitas nações ocidentais se refiram ao feriado do Ano Novo Lunar como Ano Novo Chinês, ele é celebrado não apenas nas comunidades chinesas espalhadas pelo mundo, mas em outras nações asiáticas como Vietnã e Coreia do Sul. Este ano, a ocasião começa no dia 12 e termina em 26 de fevereiro.

É de costume nos países que festejam o Ano Novo Lunar oferecer de três a sete dias de feriado, embora as celebrações não sejam concluídas até o 15º dia do primeiro mês lunar, também conhecido como Festival das Lanternas. Antes disso, o terceiro dia, chamado de Chi Kou, é uma data destinada à visitação de templos; em tempos não pandêmicos, amigos e família se reúnem durante as festividades, exceto no Chi Kou, pois acredita-se que as discussões são mais prováveis de acontecer neste dia.

Ren Yude, recorte de tigre da coleção da China Intangible Heritage Industry Alliance. Foto Google Arts and Culture.
Ren Yude, recorte de tigre da coleção da China Intangible Heritage Industry Alliance. Foto Google Arts and Culture.

Talvez você tenha ouvido falar sobre o calendário zodíaco chinês e a atribuição de um animal deste zodíaco para cada ano, mas, na verdade, é um pouco mais complexo do que isso: um ano não é classificado apenas por seu animal do zodíaco, há também um ciclo sexagenário composto por uma combinação de um dos 10 ramos celestiais e um dos 12 ramos terrestres. De acordo com o ciclo, por exemplo, 12 de fevereiro de 2021 marca o início do ano xin chou, em que “Xin” representa a haste celestial para o metal, enquanto “chou” é o símbolo do ramo terreno para o boi, tornando-o o Ano do Boi de Metal.

“O boi, na cultura chinesa, é um signo trabalhador do zodíaco. Geralmente significa movimentos, então, esperançosamente, o mundo ficará menos estático do que no ano passado e voltará a se mover na segunda metade do ano.”, explica a mestre de feng shui Thierry Chow à CNN.

Ano Novo Lunar. Cabeça de um fantoche que simboliza o "Espirito do Sapo", feito por Xu Zhuchu. Foto: coleção da China Intangible Heritage Industry Alliance / Google Arts & Culture.
Cabeça de um fantoche que simboliza o “Espirito do Sapo”, feito por Xu Zhuchu. Foto: coleção da China Intangible Heritage Industry Alliance / Google Arts & Culture.

Em Arts of the New Moon: Lunar New Year with arts and crafts from East Asia, na plataforma Arts & Culture do Google, é possível conferir algumas mostras temáticas com o Ano Novo Lunar. Do significado dos envelopes vermelhos da sorte até a arte dos recortes de papel do condado de Wei; dos fantoches de Zhangzhou até as pinturas tradicionais em madeira e a representação do zodíaco chinês na arte. Para acessar as mostras da plataforma clique aqui.

Pola Ribeiro assume direção do MAM-BA e diz que é preciso “recuperar a alma” do museu

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O novo diretor do MAM-BA, Pola Ribeiro. Foto: Shirley Stolze/ Divulgação

Uma das mais importantes instituições culturais de Salvador e da Bahia, tanto por sua história e acervo quanto pelo patrimônio arquitetônico de sua sede, o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) passou quase um ano sem diretor. Após esse período – no qual muitos acusaram o governo de descaso com o museu (o MAM está vinculado à Secretaria de Cultura do Estado) – e ainda de portas fechadas por conta da pandemia, a instituição ganha agora novo diretor, o cineasta, comunicador e gestor público Pola Ribeiro.

“Eu tenho consciência de que estou entrando para um projeto de curta distância, já que são os dois últimos anos de um governo de oito anos” diz Ribeiro, em referência à gestão de Rui Costa (PT). “Então não estou com projetos muito mirabolantes, mas com o plano de reestruturar o museu e dar musculatura a ele.” Para além dos ajustes administrativos, Ribeiro – que já comandou o Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia (Irdeb) e a Secretaria de Audiovisual do Ministério da Cultura -, afirma que pretende levar novamente “um pensamento” à instituição, o que teria faltado neste período sem direção.

Para isso quer contar com a presença de um curador-chefe (o nome ainda não foi divulgado), reforçar o trabalho educativo, fortalecer diálogos com outras linguagens artísticas como a música e a dança e se reaproximar da população local e de outras instituições de Salvador. Pretende também reconectar o MAM com o Recôncavo, região localizada em torno da Baía de Todos-os-Santos com intensa influência da cultura e das religiões de matriz africana. “Porque nos últimos 20 anos Salvador deu uma certa esnobada no Recôncavo, como se ela fosse Litoral Norte”, afirma, se referindo à uma região mais turística e rica do Estado.

Nesse sentido, por reforçar a ligação com o mar, Pola não vê com maus olhos a polêmica reforma do píer do Solar do Unhão, que acrescenta um atracadouro para pequenos barcos e lanchas. Nos últimos tempos, diversos arquitetos e urbanistas, entre eles pessoas que já trabalharam no MAM, se manifestaram afirmando que a reforma (que inclui a volta de um restaurante ao piso inferior do museu) distorce o projeto de Lina Bo Bardi – que reformou o Solar nos anos 1960 – e significa uma elitização e turistificação da instituição.

O novo diretor, que assume o museu com a obra já em fase de finalização, ressalta que o projeto foi feito pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e diz que vai trabalhar para que o restaurante esteja à serviço do museu “e não seja algo folclórico, explicitamente turístico”. Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Pola Ribeiro
O Solar do Unhão visto do mar. Foto: Divulgação

ARTE! – Você assume a diretoria do MAM-BA após a instituição ter passado quase um ano sem diretor. Queria que começasse contando um pouco qual a situação do museu hoje. Ou seja, o que você encontrou pela frente?

Pola Ribeiro – O MAM está dentro de um guarda-chuva do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), como outros dez museus. Então ele esteve sem diretor, mas não ficou totalmente sem uma gestão. Porque ali não é só um museu, é também o conjunto arquitetônico, o patrimônio, e isso não pode ficar largado. Agora, o que aconteceu tem uma certa gravidade, porque o mesmo período em que o museu ficou sem direção foi o tempo da pandemia de Covid-19. Então tem uma expressão aqui na Bahia que diz: “Tem, mas está faltando”. E é um pouco isso. O MAM está lá, mas com muita coisa precisando de reajustes, desde a manutenção do ar-condicionado, do elevador, da câmera de segurança etc. E estamos levantando isso tudo nesse período em que o museu ainda se encontra fechado, para podermos engatar o trabalho. Tem também a reforma na área do restaurante e do píer do atracadouro, que é um projeto do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), tocado pela Secretaria de Turismo, e que vai ser entregue agora no dia 19 de março. Mas para além disso tudo, dos ajustes administrativos e de colocar a coisa para rodar, o MAM ficou sem um pensamento. O museu já teve várias gestões, com pensamentos que vão se modificando a cada novo diretor, todos contribuindo de algum modo, mas nesses dez meses sem diretor ele ficou um pouco improvisado.    

ARTE! – Nesse sentido, quais então são os seus planos? Ou seja, qual é o pensamento que você traz para a sua gestão?

Em primeiro lugar estou negociando para trazermos um curador, com a ideia de que o museu tenha um diretor e também um curador-chefe, para pensarmos um projeto museal. E eu tenho consciência de que estou entrando para um trabalho de curta distância, já que são os dois últimos anos de um governo de oito anos. Então não estou com projetos muito mirabolantes, mas com o plano de reestruturar o museu e dar musculatura a ele. Então temos um projeto para o centenário da Semana de Arte Moderna, outro para o bicentenário da Independência do Brasil – e o museu tem essa vocação histórica, ligada ao passado de Salvador e da Bahia, vinculada, por exemplo, à Revolta dos Alfaiates -, e ainda teremos o Salão de Arte da Bahia, que é um evento que já vem acontecendo há alguns anos e deve finalizar nossa programação em 2022. Então temos que fazer esse desenho, e pretendemos também dialogar com outras instituições e eventos de arte, como a Bienal de São Paulo e os museus de arte moderna do país.

Mas quando eu falo desta programação de dois anos não estou dizendo que é uma coisa fechada, porque o que eu estou tentando fazer, colocar para a cidade, é que a gestão daquele espaço vai para além do IPAC, da Secretaria de Cultura, porque ali é uma plataforma da cidade. Eu vejo aquilo como um espaço de diálogo. O MAM está entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa; está também do lado tanto de uma das partes mais ricas da cidade, que é a Bahia Marina, quanto de uma comunidade carente; e ele reconecta Salvador com o Recôncavo. Porque Salvador, nos últimos 20 anos, deu uma certa esnobada no Recôncavo, como se ela fosse litoral Norte, Praia do Forte, o que é péssimo para a cidade. Então a gente busca se reconectar com o Recôncavo, lembrando que o MAM está ali na beira do mar, com uma praia quase dentro dele.

ARTE! – Em entrevista ao jornal A Tarde você disse que vai precisar ter uma escuta muito apurada, até por não ser um “nativo das artes visuais”. Você já falou sobre trazer um curador, mas poderia falar um pouco mais sobre esse assunto? Essa escuta se refere a pessoas de dentro e de fora do museu?

Pensando na cidade, eu tenho um relacionamento muito bom com diversas pessoas do setor cultural, com gestores de teatro, cinema, televisão. Com galeristas ainda não comecei a conversar, mas tenho conversado bastante com artistas. E estamos construindo isso, sabendo que a escuta é também com músicos (a Jam no MAM é uma referência), dançarinos etc. Porque o MAM tem essa característica, que tem sido a característica dos museus contemporâneos, de colocar diferentes linguagens em diálogo, pensar uma ressignificação das artes. Então estamos escutando muito, para fazer também uma gestão com a comunidade, que muitas vezes não se reconhece no museu. Precisamos trazer de volta também muita gente que se desconectou do museu, além de gente do circuito do comércio, da Fundação Gregório de Matos (órgão vinculado à prefeitura), entre outros. Então para tratar do MAM e do Solar do Unhão não existe conversa partidária, sectária. Tem que contar com todo mundo que pode contribuir, porque aquele lugar tem muito para dar.     

E sobre a questão de trazer um curador, existe o fato de que se você falar o meu nome no MASP, na Bienal, nos museus de arte de Recife ou do Rio, as pessoas não reconhecem, como reconheceriam no circuito do audiovisual. E eu não tenho muito tempo. Não tenho tempo de ir aos poucos ganhando credibilidade no setor, para assim colocar o museu no circuito. Então precisamos de um nome que as pessoas vejam e já reconheçam e reconectem imediatamente. 

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Área externa do museu durante a realização da Jam no MAM, em foto anterior à pandemia. Foto: Divulgação

ARTE! – Na mesma entrevista você falou também da importância de focar no trabalho educativo. Essa ideia de que um museu seja um espaço de participação, não apenas de contemplação, parece ganhar cada vez mais espaço na pauta das instituições culturais. O foco no educativo vai neste sentido? Quais os planos neste momento?

Exatamente. Eu visitei essa semana a Secretaria do Trabalho e tenho um encontro marcado com o secretário de Educação e de Ciência e Tecnologia após o Carnaval, para podermos buscar programas para o MAM. Como eu disse, estamos nos últimos dois anos de governo, então eu preciso trabalhar com programas que já existam, para que eu possa canaliza-los para aquele local. Então estou indo fazer essa sinalização com as autoridades maiores, de secretarias, para mostrar a importância do museu. Por exemplo, nós temos um projeto aprovado com a Sherwin-Williams, onde eles cedem além de oficiais, as tintas para pintar as fachadas da comunidade do Unhão. Então eu quero fazer isso, mas não preciso fazer apenas como gestor do Unhão, mas junto com a Secretaria do Trabalho, que tem um trabalho de ação comunitária que pode crescer.

E as oficinas do MAM sempre foram uma referência, há 40 anos, porque estão no desenho inicial da Lina. Era um museu de arte popular, depois um museu de arte moderna, com oficinas de artesanato ou desenho industrial. E a gente quer retomar isso, mas tirando o caráter sazonal delas. O que eu mais quero é que quem assumir o museu daqui dois anos não ache que eu fiz uma gestão personalista, e não queira botar debaixo do tapete o que foi feito para começar uma outra coisa totalmente diferente. Quero que a gente tenha uma gestão que a gente saiba que vai ter continuidade nas mãos de outra pessoa, trabalhar com essa perspectiva. 

ARTE! – O MAM, para além de sua atuação, de seu acervo, é também um patrimônio arquitetônico de Salvador, tanto pensando no conjunto histórico colonial quanto no projeto de Lina Bo Bardi. Neste sentido, existe uma polêmica em torno do atual projeto de instalação do restaurante no piso inferior do museu e do atracadouro. Muitos dizem que isso distorce o projeto da Lina e a ideia de um museu democrático, não voltado apenas para as elites e para o turismo. Enfim, queria saber como você vê essa questão?

Eu cheguei com esse projeto já em fase de finalização. E é um projeto do Iphan, porque qualquer alteração no museu tem que passar por uma autorização do Iphan. Observando com o olho de quem é apaixonado por aquele lugar, mas não tem o conhecimento técnico sobre interferências urbanas em patrimônio histórico, eu não vejo problema. É um píer de concreto, não sai da linha do mar, ou seja, não  atrapalha a vista do prédio, e eu acho que vai ficar belíssimo. E o espaço será também atracadouro, mas apenas de pequenas embarcações. E quando eu falo que Salvador se desconectou do Recôncavo, é porque ela se desconectou da Bahia de Todos os Santos. E eu sinto que este é também um canal de ligação, de onde se pode sair e ir para o Forte de São Marcelo, para a Ilha de Itaparica ou para o Museu Wanderley de Pinho, em Candeias, que está sendo recuperado. Então eu não acho que este atracadouro em si vá significar a elitização ou não.

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Célebre escada desenhada por Lina Bo Bardi no museu. Foto: Divulgação

ARTE! – Mas quando se fala nessas pequenas embarcações, o que são? A imagem de divulgação que foi publicada nas redes é a de uma lancha de luxo, por exemplo. Quer dizer, quem vai usar este atracadouro? 

Veja bem, o MAM está do lado da Bahia Marina e a maioria das pessoas que tem barco em Salvador tem a sua garagem náutica ali. Então eu não vejo tanto por aí. E a questão do restaurante… Nós tínhamos ali no MAM um restaurante de comida baiana, com shows folclóricos, que era muito careiro, e a gente achava que o museu ficava muito à serviço do restaurante. E eu vou trabalhar para que, desta vez, nessa licitação esteja colocado que o restaurante também esteja à serviço do museu, e não seja algo folclórico, explicitamente turístico. E que seja um espaço mais de comidas leves, para quem visitou o museu e quer sentar um pouco, ver o por do sol. Até porque ao lado, na Bahia Marina, já existem vários restaurantes grandes.   

ARTE! – Porque inclusive os arquitetos dizem que não há uma estrutura ali para abrigar uma grande cozinha de restaurante…

Sim, é isso mesmo.

ARTE! – Voltando um pouco à questão do pensamento do museu e dos rumos curatoriais, uma série de pautas relacionadas à questões raciais, de gênero e à ideia de decolonialidade têm ganhado espaço no debate feito pelas instituições culturais do país. Você pretende trazer esses temas para o trabalho no MAM?

Com certeza. Claro que eu tenho pouco tempo, como eu disse, e não posso botar o sarrafo tão alto. Mas queremos recuperar a alma do museu. No contato que já tive com a equipe, com os funcionários, sinto as pessoas muito apaixonadas pela instituição, e acho isso fundamental para poder mexer nas coisas. E reconectar com a comunidade, reaproximar pessoas que já foram funcionários do museu. E acho que isso vem também com essa estratégia que estamos fazendo de envolver as instituições, de despartidarizar, de dialogar com todo mundo, com as divergências, com as diferenças, com as complexidades…    

ARTE! – Falando do contexto político atual, por mais que o MAM seja um museu ligado à Secretaria de Cultura do Estado, temos hoje no país um governo federal que parece ver a área cultural, as artes, quase como inimigas. Como trabalhar neste momento tão conturbado para o setor cultural?

Quando eu fui convidado para o cargo eu tive que pesar essa questão. Porque, por exemplo, quando eu fui gestor do IRDEB, ou mesmo na Secretaria do Audiovisual, no meu telefone eu tinha o número do ministro, do governador, dos secretários… e eu ligava diretamente para o ministro para dizer que tinha tido uma ideia. Era uma coisa fantástica essa possibilidade de articulação nacional. Então eu pensei nisso, como uma coisa negativa do novo contexto, mas por outro lado aumentou a minha responsabilidade de assumir o cargo. Nesse momento em que temos tantos gestores que estão trabalhando contra as estruturas que foram criadas, contra as políticas públicas que foram desenhadas na base de intermináveis discussões, com pessoas boicotando e destruindo ponto por ponto, eu pensei que não tinha como dizer não. Eu tenho que ir e fazer desse limão uma limonada, fazer o que for possível com a motivação que ainda tenho para me apaixonar por isso.

E se você for olhar o MAM como um problema, você fica dez anos lá e não resolve. O administrador me falou que a equipe de pintura começa a pintar desde a capela e vai indo até o fim do parque de esculturas, e que quando acaba tudo já tem que começar a pintar a capela de novo. Porque a gente está na beira do mar. Então problemas não faltam. Mas temos que pensar como uma plataforma que de fato dá eco ao que é produzido aqui, para ser escutado fora, e também com uma escuta grande para o que existe fora e pode ser apresentado aqui. Ou seja, que seja também uma janela para os baianos, para que possam dividir essa experiencia que é um museu, que se transforma, mas não deixa de ser algo forte. 

Rosely Nakagawa participa do novo Acervo Comentado Videobrasil

"Myxomatosis", Solon Ribeiro, Acervo Comentado Videobrasil. Foto: Divulgação.
"Myxomatosis", Solon Ribeiro. Foto: Divulgação.

A curadora Rosely Nakagawa Matuck [1] comenta o vídeo “Myxomatosis” (2008), do artista cearense Solon Ribeiro (Crato-CE, 1956) [2], exibido no 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (São Paulo, 2015). Na obra, alguns fotogramas de filmes são projetados nas dependências de um matadouro; juntamente com a ação do artista, vísceras expostas, sangue e carne alteram a dinâmica do espaço, provocando um embate entre contextos. “Esses fotogramas que ele projeta no cenário de um matadouro começam a adquirir um tom de crítica, principalmente porque ele recebe imagens projetadas de atrizes do cinema, uma conexão com a indústria cinematográfica, esse mundo industrializado que vai moendo pessoas, personagens e ideias”, comenta a curadora.

Confira abaixo:

Sobre o Acervo Comentado:

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.

Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.


[1]Rosely Nakagawa Matuck é curadora independente, graduada em Arquitetura pela FAU/USP com especialização em Museologia pela mesma universidade. Como curadora independente, realiza mostras e edições de livros de fotógrafos brasileiros e estrangeiros, atuando em diversos estados brasileiros, especialmente no Norte e Nordeste, assim como no exterior.  Em 1970 criou a primeira galeria de Fotografia de São Paulo, a Galeria FOTOPTICA,  ao lado de Thomaz Farkas. Coordenou a Casa da Fotografia FUJI Brasil e foi curadora das galerias Fnac. Colaborou com diversos Festivais de Imagem e Fotografia, como a Bienal Videobrasil, Fotoempauta, Solar Festival Internacional, Prêmio Diário Contemporâneo entre outros.
[2] Solon Ribeiro é artista, curador e professor, graduado em arte e comunicação com especialização em fotografia pela L’École Superieure des Arts Decoratifs, Paris, em 1991. Atua na investigação de cruzamentos entre a fotografia, o cinema, a cenografia, a instalação e a performance. Através da recontextualização de imagens e fotogramas cinematográficos oriundos de montagens narrativas, o artista problematiza o estatuto do arquivo a fim de desmontar sua relação íntima com o passado. Com o intuito de liberar a imagem a novas formas e significações, procura explorar seus aspectos mágicos e metafísicos.

Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto tem inscrições abertas para residência artística

Sem título [Ouro Preto]. Fotografia de Germano Neto. Cortesia Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (ia)

Até o dia 13 de fevereiro, o Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (ia) tem inscrições abertas para a primeira edição do Programa Emergencial de Residência Artística – iai. A vivência de seis semanas acontecerá de forma inteiramente digital, contando com orientações curatorial e pedagógica e oferecendo bolsas de R$ 2 mil aos participantes.

A ser realizado com recursos da Lei Aldir Blanc, o programa é voltado para artistas visuais, pesquisadores e arte-educadores que se encontram em situação de vulnerabilidade e com sua produção comprometida ou paralisada em função da pandemia do novo coronavírus. Serão selecionados três candidatos residentes em Ouro Preto (MG), e outros três  brasileiros ou estrangeiros residentes em outros municípios do estado de Minas Gerais.  Dessa forma, o projeto busca traçar paralelos entre manifestações artísticas locais e globais e “reiterar a inevitabilidade atual de se produzir, observar, fruir e interagir em um contexto de distanciamento social”, explicam os fundadores da instituição em nota oficial.

Idealizado pelo Instituto de Arte Interativo (iai), braço virtual do ia, o projeto tem como eixo central um processo criativo com fins pedagógicos. Além disso, propõe um olhar decolonial para as artes associado à possibilidade de se estabelecer novas formas de ser e estar no mundo através de plataformas digitais. Assim, a residência se estrutura a partir de três questionamentos principais: de que modo as plataformas digitais podem ajudar a criar outras formas de produzir e estar no mundo? Como as plataformas digitais podem ser utilizadas para encontrar outras temporalidades e espacialidades nos/dos trabalhos artísticos? Como a realidade digital pode evidenciar territórios invisíveis e contribuir para uma discussão decolonial? “O programa que idealizamos, além de dialogar com essas perguntas, cada vez mais fundamentais, quer apontar horizontes de possibilidades não só para as residências, mas para os processos de fomento, produção e fruição da arte contemporânea”, afirma Bel Gurgel, idealizadora do Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto.

Ao fim do Programa Emergencial de Residência Artística – iai será realizada uma mostra coletiva virtual e a confecção de um material didático destinado a escolas da rede pública de ensino do município de Ouro Preto.

Fotografia de Germano Neto. Cortesia Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (ia)

O Instituto

Fundado em 2016, O ia é uma organização cultural sem fins lucrativos que busca fomentar expressões artísticas nas comunidades de Ouro Preto, Mariana e região, exaltando especialmente produções ligadas à diáspora africana e à gênese da nacionalidade. Através da pesquisa e de projetos culturais busca edificar um diálogo entre os saberes e fazeres artísticos locais (próprios da região dos Inconfidentes) e globais (estaduais, nacionais e internacionais) e promover um entendimento do panorama contemporâneo gerando reconhecimento e pertencimento histórico-cultural por meio da arte.

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Pretend It’s a Review

Pretend It's a City, Fran Lebowitz e Martin Scorsese.
Fran Lebowitz e Martin Scorsese, em cena de "Pretend It's a City". Foto: Netflix.

Dez anos atrás, Martin Scorsese e Fran Lebowitz colaboraram em Public Speaking, um documentário em que a autora expôs suas filosofias de vida. Agora, na nova série da Netflix Pretend It’s A City, Fran se reúne com Scorsese novamente para enfurecer mais pessoas. Por que? Ela também não sabe: “Embora eu saiba que as pessoas – com muita frequência – fiquem furiosas comigo, isso ainda me surpreende, porque ‘quem sou eu’? Estou tomando decisões por você?. Se pudesse mudar as coisas, eu não ficaria com tanta raiva delas, a raiva vem do fato que não tenho poder, mas estou cheia de opiniões”.

Pretend It's a City, Fran Lebowitz e Martin Scorsese.
Fran Lebowitz e Martin Scorsese, em cena de “Pretend It’s a City”. Foto: Netflix.

Além de ser uma reclamona por hobby, Fran Lebowitz é uma pessoa engraçada por profissão e uma escritora imersa em um bloqueio criativo de mais de duas décadas. Ela publicou três livros e começou sua carreira escrevendo uma coluna para a Interview Magazine, criada por Andy Warhol – seu encontro com Warhol vale ser conferido nesta entrevista. Mas seu atributo que justifica a reunião com Scorsese, um nova-iorquino apaixonado como ela, é justamente sua vida social na metrópole estadunidense e sua observação de tudo o que acontece ao seu redor.

Embora o título da série já aluda claramente a Manhattan, o protagonismo é duplo; a cidade aparece através das histórias e das andanças de Fran – metafórica e literalmente, quando o diretor a coloca como um flâneur Godzilla desbravando um modelo em escala da cidade, no Queens Museum. Vale notar que essa é uma das poucas direções que Martin dá a Fran em três horas de show, já que em Pretend It’s a City ele assume o papel de co-conspirador, às vezes na penumbra, se mostrando presente através dos ataques de riso encadeados pelas perguntas e respostas da entrevistada. Ninguém gosta mais da companhia de Lebowitz do que Scorsese, provavelmente por isso que ele nos fez a gentileza de usar seu meio para compartilhá-la.

Gravado em um tempo pré-pandêmico, o show utiliza uma linguagem visual que nos coloca frente a frente com Lebowitz em seu habitat, seja ele um bar, um teatro ou uma biblioteca. O encontro virtual é quase uma quebra de protocolo já que Fran nunca possuiu um computador, muito menos um smartphone, e ela não está nas redes sociais. Justamente, o título da série se refere à frustração dela com as pessoas tão absortas em seus dispositivos que esbarram em você na rua. “Finja que é uma cidade… onde há outras pessoas”, ela implora.

Cada episódio temático introduz seu guarda-chuva de assuntos, como observa a crítica Judy Berman à TIME Magazine: “Resplandecente em seus paletós, jeans e botas de caubói, sua marca registrada, cabelo preto repartido ao meio como seu antepassado espiritual Oscar Wilde, ela fala de escrever: ‘A maioria das pessoas que amam escrever são escritores terríveis’. Sobre a libertação queer: ‘Nada é melhor para uma cidade do que uma população densa de homossexuais furiosos.’ Em leilões de arte de nove dígitos: ‘Vivemos em um mundo onde eles aplaudem o preço, não o Picasso.’ Sobre as pessoas que desejam ver suas próprias experiências representadas em livros (um de seus grandes amores, junto com sono, festas e cigarros): ‘Um livro não deveria ser um espelho – deveria ser uma porta.’ Sobre os guilty pleasures: ‘Não os tenho, porque o prazer nunca me faz sentir culpada.’”

Sua persona se apresenta com o passar dos episódios, mas ela chega sem pedir licença, em grande parte porque Scorsese renuncia à tentativa de apresentar Lebowitz aos não iniciados. “Qualquer um que não esteja familiarizado com seu trabalho vai se acostumar com ela sendo o tipo de observador cultural ao qual plateias em Nova York sentariam para ouvir por horas”, ressalta Steve Greene, editor de Televisão para a Indiewire.

Nessas ocasiões, como uma conversadora, ela é astuta, autodepreciativa, dotada de um timing cômico impecável, mesmo nas entrevistas mano a mano, cujos trechos são inseridos por Scorsese aqui e ali junto com filmagens de acervo. As passagens mostram Lebowitz calmamente discordando, com relação a esportes, de um ansioso Spike Lee; engavetando qualquer tirada de David Letterman – ainda na década de 1980, logo após o lançamento de seu primeiro livro, Metropolitan Life -; e sua troca de postos para entrevistadora em uma conversa com Toni Morrison, a escritora estadunidense premiada com o Nobel de Literatura, com quem Lebowitz manteve uma amizade de mais de quatro décadas e a quem a série é dedicada.

Pretend It's a City é dedicado a Toni Morrison. Retrato de Morrison por Timothy Greenfield-Sanders. Foto: The New Yorker.
Retrato de Toni Morrison por Timothy Greenfield-Sanders. Foto: The New Yorker.

“Conheci Toni em 1978. Eu, é claro, era uma criança: tinha 27 anos e ela 47. Havia uma série de leituras na biblioteca pública em frente ao Museu de Arte Moderna, conta Lebowitz em um artigo para o The New York Times. “Eles me perguntaram se eu iria ler e eu disse que sim. Eles disseram: ‘Sempre temos duas pessoas. Você sabe quem é Toni Morrison?’ Ela não era muito conhecida na época, mas eu tinha lido todos os seus livros. Eu disse: ‘Eu amo o trabalho dela’. Eles disseram: ‘Você gostaria de ler com ela?’ Eu disse: ‘Isso é ridículo.’ Quer dizer, somos tão diferentes como escritoras. Mas eu acabei fazendo aquilo, e parecia que uma grande amizade havia se formado em apenas uma hora.”

A extinção das fronteiras é o que define a mudança

Ayoung Kim
Cena de "In Search of Petra Genetrix". Foto: Divulgação

* Por Bernardo José de Souza

Fronteiras estabelecem limites entre um espaço e outro, ou entre algo e uma outra coisa. Ao demarcar territórios, elas se impõem como mapeamento arbitrário, divisando zonas de poder e controle sobre fluxos humanos, de informação e mercadorias. Fronteiras também sinalizam os limites entre o conhecido e o desconhecido, entre o que é possível e o que não é possível – ou entre o que nos é dado a ver e aquilo que resta invisível. Reais ou virtuais, também servem para marcar diferenças, forjar antinomias e estancar formas fluidas de conhecimento.

Alegórica em essência, a obra de Ayoung Kim (atualmente em exposição no Videobrasil Online) desloca-se no tempo e no espaço movida pelo espírito especulativo que faz borrar fronteiras geográficas e epistemológicas. Quando toma a ficção científica como plataforma política, a artista sul-coreana recupera passagens da história universal ao passo em que atualiza suas diversas mitologias em busca de uma linguagem comum, atemporal. Nesta toada, escavar o passado e prospectar formas anômalas no presente e no futuro constituem processos dinâmicos para o desenvolvimento das epopeias audiovisuais e performativas narradas pela artista.

Se as obras iniciais de Kim dão conta da investida neocolonial do Ocidente rumo ao Oriente no século 20, suas últimas avançam desde o futuro sobre o passado em marcha à ré, conformando uma paisagem ficcional onde utopia e distopia confundem-se ao ponto de tornarem-se uma coisa só; ao esfumar o horizonte histórico, a artista acaba por relativizar juízos categóricos quanto à natureza do avanço tecnológico. Sobretudo em suas obras mais recentes, as tecnologias passam a ser ferramentas tão naturalizadas pela humanidade a ponto de converterem-se em entidades vivas, investidas de seus próprios dilemas animistas, éticos e políticos, quer afetivos, quer morais.

A artista Ayoung Kim. Foto: Min Gyungbok

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Acumulação Desigual de Tempos

Interessada nos processos de modernização que ganharam fôlego acelerado no pós-Guerra, os primeiros vídeos de Ayoung Kim investigam o impacto da cultura ocidental sobre as vidas e as cidades sul-coreanas. Em Every North Star Part 1 and 2 – Tales of a City (2010), confrontados com a cidade portuária de Busan, acompanhamos a trajetória decadente de uma estrela do turfe – Jin Hee Park, única mulher jóquei da Coreia do Sul até então – submetida às pressões de um esporte historicamente masculino, cuja perversa lógica competitiva reproduz as feições de um mundo globalizado a reboque da hegemonia cultural anglo-saxã, e do mercado capitalista de modo geral. Competitividade esta que também se revela no tríptico Please Return to Busan Port – Tales of a City 2, no qual a Olimpíada de Seul em 1988 é apresentada em reverse mode, com os atletas movendo-se em direção contrária ao pódio (e à vitória, portanto), enquanto noutra tela, simultaneamente, é possível observar um ciclista furtivamente escondendo drogas em sua bicicleta de corrida – uma alusão ao doping, mas possivelmente também ao contrabando que ali escoa através do mar. Ambas as obras são contos urbanos sobre sonhos perdidos num mundo de aparente prosperidade, muito embora fadado à arbitrariedade de sua herança neocolonial.

Situada na Ásia Oriental, a Coreia do Sul constitui uma democracia nos moldes ocidentais, em que pese o trauma de sua história recente marcada por governos autoritários e pela autofágica Guerra da Coreia (1950-1953), ainda hoje sem um ponto final, mas cujo desfecho objetivo, em meio ao contexto volátil da guerra fria, foi a secessão entre o norte e o sul da península orquestrado pelas forças soviéticas e norte-americanas. Já durante as últimas décadas do século 20, o país acabaria conhecido como um dos tigres asiáticos, convertendo-se numa das mais ricas e dinâmicas economias do mundo.

Valendo-se de uma passagem da biografia paterna – ele, funcionário de uma empresa coreana para prospecção de petróleo no Kuait –, em Zepheth – Whale Oil from the Hanging Gardens to You (2014), Ayoung Kim passa a explorar questões relacionadas à geopolítica, mas também à geologia e à ecologia em sentido amplo. Com esta obra, a artista propõe um outro arranjo midiático para suas narrativas, deixando o audiovisual momentaneamente num segundo plano para privilegiar a experimentação sonora, a musicalidade das vozes, a performance e o uso de algoritmos na composição dos textos. Na trilogia Zepheth (que em hebreu significa piche), são as imagens mentais que vão ganhar corpo; ora relatos burocráticos, ora passagens poéticas que versam sobre o petróleo e seus derivados, sobre o mar, os mergulhadores e as pérolas, sobre o deserto, o calor, a mudança da paisagem na estação das chuvas e os deslocamentos das tribos beduínas sobre a terra árida, dentre tantos outros arquétipos e iconografias ancestrais ou iminentemente atuais – ou mesmo ambas, a um só tempo.

Em meio à babilônia de relatos que se sobrepõem em Zepheth (vocalizados por um coro a ressoar a antiguidade grega), descortina-se um arco narrativo que alcança tempos tão remotos quanto os do Velho Testamento, e logo avança sobre a modernidade fazendo confluir um conjunto de histórias aparentemente disparatadas, mas que no fundo, e à rigor, respondem pela paisagem forçosamente sincrética com a qual convivemos na contemporaneidade. Da Arca de Noé revestida de betume às fontes de petróleo e suas labaredas, do óleo das baleias nos postes de luz ao ar-condicionado que ameniza as temperaturas do deserto, emerge um mundo globalizado no qual o espaço geográfico é tão resultado das formações geológicas, quanto das tecnologias desenvolvidas para transformar a natureza. Diante deste tumultuado panorama histórico, a presença nômade na paisagem desértica cede espaço à arquitetura intensiva das cidades e dos campos de petróleo no Golfo Pérsico e alhures – um abastecimento fóssil cujos dividendos retroalimentam os conflitos bélicos que só fazem “prosperar” entre as fronteiras territoriais do Oriente Médio, divisadas sob o signo do neocolonialismo europeu, contumaz em seu desprezo pela formação histórica, étnica e cultural dos povos nativos.

Esta acumulação desigual de tempos (Milton Santos) – essas camadas de história natural e humana sobrepostas no espaço físico, mas também no plano simbólico – talvez constitua a real operação semântica promovida por Ayoung Kim em seu ímpeto especulativo à contrapelo, quer da história, quer das formas assumidas pela memória. Ao justapor elementos inorgânicos, geologicamente consolidados há milhões de anos (a memória da pedra) aos vestígios narrativos compilados pela humanidade no curso de sua aventura sobre o planeta – seja por meio da oralidade, seja da palavra e da imagem gravadas analógica ou digitalmente –, a artista desborda as fronteiras do real, abre uma brecha no espaço-tempo e ingressa no reino da ficção, ou da virtualidade.

Cena de “Porosity Valley 2”. Foto: Divulgação

Porosity Valley (2017) vem justamente amalgamar diversos estratos de informação que se encontram dispersos nos âmbitos da natureza e da cultura & tecnologia, esferas em teoria distintas se levado em conta o paradigma epistemológico ocidental estruturado a partir da premissa dual sujeito/objeto – isto é, o sujeito apartado da natureza via cultura; ou, dito de outra forma, a humanidade e sua segunda natureza.

No campo especulativo conformado pela artista a partir desta nova narrativa audiovisual e suas sequências, imantadas pelo animismo, pela mitologia e pela ficção científica, a dicotomia real x virtual parece já ter sido superada, senão de todo no plano existencial, ao menos no tecnológico. Resta, entretanto, por entender como a inteligência artificial que emerge na dimensão futura de Porosity Valley vai projetar seu manto metafísico sobre a natureza e sua humanidade.

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Porosity Valley & Petra Genetrix e suas sequências (2017–2020)

Em meio à paisagem rugosa de Porosity Valley (espécie de pedra/placa-mãe) depositam-se criaturas pós-humanas cujas origens remetem tanto à ancestralidade geológica e às mitologias da antiguidade quanto à era da informação e à esfera da virtualidade. Animados por uma inteligência artificial – espécie de Deus ex-machina, guardião de uma nova natureza, híbrida, feita de big & meta data & resíduos psicoemocionais –, alguns habitantes desse futuro distante são levados a responder sobre sua condição ambígua no planeta Terra, bem como sobre sua promíscua relação com o fator humano, com os sentimentos e prerrogativas próprias da humanidade, cuja essência invariavelmente implica liberdade de pensamento e ação; em suma, livre-arbítrio.

Petra Gentrix, a misteriosa personagem desta saga sci-fi, encontra-se em busca de um lugar no mundo, de uma identidade e de sua autopreservação. Após um desastre ambiental (uma erupção causada pela agressiva extração de petróleo), ela é forçada a uma fuga intempestiva cujo destino deve ser arbitrado por uma autoridade maior – uma instância que se situa entre a virtualidade da inteligência artificial e o aparato burocrático mediado por humanos servis aos desígnios maiores da tecnologia. Constituída como um ente atemporal, sem gênero definido (ou não aplicável), Petra Genetrix é o resultado do acúmulo de informações obtidas ao longo de sua vida útil em contato com a espécie humana – uma forma parasitária de inteligência, desprezada pelo tempo e depositada na natureza como dejeto tecnológico, um vestígio mental contaminado pelas pulsões e desejos humanos; ou um receptáculo virtual para os mais caros dilemas existenciais da humanidade: suas preocupações ontológicas, seus sofrimentos e dores da alma, bem como seus prazeres redundantes que operam na contramão das noções de eficiência.

No atual estágio de nossa civilização, quando a humanidade se acerca mais e mais à tecnologia – física e intelectualmente –, a meta-narrativa proposta por Ayoung Kim tem o condão de articular metáforas e alegorias que respondem pelas prementes indagações político-filosóficas de nosso tempo. À exemplo de sua personagem Petra Genetrix, a artista igualmente está buscando sentido no conjunto de transformações sofridas pela natureza (também humana) na esteira de processos culturais e tecnológicos cujos resultados se apresentam tão opacos quanto inimagináveis. Assim, a ficção científica formulada por Kim opera antes como ferramenta hermenêutica a inquerir sobre o presente do que como exercício de futurologia ou mero diversionismo – embora haja, subjacente, o desejo de tanto explorar cenários futuros quanto fazer troça das vicissitudes ora impostas pela tecnologia.

Cena de “Petrogenesis Petra Genetrix”. Foto: Divulgação

Ao investir a anti-heroína de um caráter ambivalente quanto à sua natureza híbrida (mineral/humana/tecnológica), a artista pergunta tanto dos dilemas ético-políticos contingentes à sua condição de guardiã virtual da memória humana, quanto daqueles relativos à autonomia do pensamento e dos fluxos de informação em sociedades contemporâneas gradativamente mais refratárias aos direitos individuais. A ausência de liberdade experimentada por Petra Genetrix, em razão de seu desterro e da instabilidade atribuída à sua carga emotiva, vai espelhar, em larga medida, o status social de indivíduos cujos Estados identificam como nocivos ao ambiente político – terroristas, muçulmanos, rebeldes, imigrantes, mulheres, transexuais, negros, indígenas, entre tantos outros “grupos de risco”.

Quando deposita em suas fábulas ingredientes de um mundo em descontrole, semelhante a este que se assoma ao nosso horizonte imediato – diante do Antropoceno, da pandemia, da guerra, da discriminação sócio-étnico-racial e de gênero –, a artista trata de estabelecer correspondências entre o futuro e o presente, assim posicionando o espectador vis-a-vis sua iminente realidade, qual seja, a de uma contemporaneidade cingida por formas obscuras de controle social. Petra Genetrix, em sua qualidade de monstruosidade – isto é, um ente cuja natureza ambígua, potencialmente subversiva e apátrida representa um risco ao status quo –, responde, por analogia, ao contingente humano hoje excluído da vida cultural, política e econômica por força da sociedade de controle (Gilles Deleuze), do biopoder (Michel Foucault) e da necropolítica (Achilles Mbembe) – instâncias ideológicas cultivadas por Estados e corporações cujo papel discriminatório aparta os cidadãos dos meios de produção e do sistema de bem-estar social; ou então os submete, de maneira sub-reptícia, à manipulação política por meio dos insidiosos algoritmos gerados pelas big techs.

Tais mecanismos disciplinares, de vigilância e controle, que se dão a ver lá e cá – quer na ficção, quer na realidade –, nos permitem pensar a disseminação virtual da informação a partir de, pelo menos, duas categorias distintas: uma virótica, outra viral, uma vez que as informações tanto podem responder a estímulos “infecciosos” que lhes são dados pela inteligência artificial, quanto podem se reproduzir exponencialmente de forma autônoma, e anômala, nas redes de comunicação. Daí concluir que, no caso virótico, a I.A. nos rouba a capacidade de pensar livremente, caçando o juízo crítico sempre que se impõe como narrativa totalizante (via algoritmos e fake news, por exemplo); já no caso viral, a informação se dissemina insidiosamente nas redes, de maneira fortuita, obliterando os mecanismos de censura virtual (o WikiLeaks é um bom exemplo disso; o que equivaleria, no campo da ficção, ao vazamento de emoções humanas por Petra Genetrix). Quando, entretanto, o resultado do processo é consoante ao sistema coercitivo, a engrenagem haveria cumprido sua meta evitando o dano; quando, alternativamente, algo escapa ao controle da inteligência artificial, então se procederia ao expediente da quarentena ou da neutralização do vírus (pensamento, sentimento ou informação).

O que o projeto Petra Genetrix nos sinaliza, em seu futuro especulativo, é a noção de afeto enquanto risco: elementos humanos residuais a transitar pelas redes de circulação de dados, mas que devem ser detidos, controlados, ou então classificados como mental waste (resíduo mental), e, portanto, enviados ao exílio permanente sempre que houver afronta ao padrão de eficiência do sistema. Neste campo minado pela virtualidade, Kim acena com uma forma sui generis de cyber terrorismo “passivo”, qual seja, a do perigo representado pelas manifestações de humanidade e afeto no fluxo supostamente estável da I.A. Tão logo a fragilidade psíquica é introduzida na matriz informática, percepções de erro e ineficiência acabariam por corromper o sistema, produzindo falhas e desequilíbrios, provocando o colapso do (utópico ou distópico?) hibridismo entre homem e máquina.

Tal qual ocorre sob as placas tectônicas, por analogia a “lava” de sentimentos e dúvidas humanas a penetrar a rede pode provocar uma irrupção instantânea, como um vulcão – ou um erro fatal a comprometer a integridade do sistema operacional. É quando a volatilidade dos afetos finalmente encontra a solidez do disco rígido, malgrado a tão propalada virtualidade da rede – o afetivo (deficiente) alcançaria, então, a matriz de eficiência tecnológica.

Ayoung Kim
Cena de “In Search of Petra Genetrix”. Foto: Divulgação

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A natureza ainda não existe

No universo ficcional de Porosity Valley e Petra Genetrix (e de suas sequências em vídeo ou performance), os movimentos migratórios de placas tectônicas, indivíduos e informações, bem como a confluência entre as mais diversas culturas – que se encontraram e contaminaram no curso da história e do avanço tecnológico – nos leva a todos de roldão, como num cataclismo, relativizando as noções de utopia e distopia ao pôr em xeque o próprio entendimento sobre a natureza.

Segundo Theodor W. Adorno, “A natureza ainda não existe” – antes, trata-se de uma construção empreendida pela humanidade desde sua segunda natureza, aquela da convenção cultural e da tecnologia. Já a simbiose entre humanos e inteligência artificial proposta por Kim configuraria possivelmente um outro estágio, ou uma terceira natureza; não mais a segunda, tão naturalizada pela humanidade a ponto de exigir uma projeção romântica que pudesse dar conta, ao menos no plano ideal, do que seria o reino da primeira natureza, destituída das formas engendradas pela cultura: ou seja, a ideia de uma natureza (primordial) redentora, capaz de libertar a humanidade das amarras impostas pela segunda natureza – paradoxalmente, esta última resultado da obra e engenhosidade humanas.

Nesta terceira natureza, por assim dizer, homens e mulheres se tornam objetos, e não mais sujeitos em face da inteligência artificial. Ao reificar os sentimentos eminentemente humanos como material degradante a ser excluído em definitivo da matriz (espécie de bit rot), a I.A. acaba por remover a humanidade da equação sujeito/objeto que bem caracterizava a cultura iluminista ocidental, qual seja: nós, humanos, como agentes transformadores e controladores da natureza. Na obra de Ayoung Kim, ao revés, seríamos nós, humanos, os submetidos a esta outra força que mimetiza a natureza e, por consequência, a própria humanidade, a saber, a inteligência artificial.

Bibliografia:
SANTOS, Milton. 2007. Pensando o Espaço do Homem. São Paul: EdUSP.
DELEUZE, Gilles. 2010. Conversações. São Paulo: Ed. 34 Ltda.
FOUCAULT, Michel. 1999. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
MBEMBE, Achilles. 2011. Necropolítica. Barcelona: Melusina.
ADORNO, Theodor W. 2013. Aesthjetic Theory. New York: Bloomsbury Academic.

*Bernardo José de Souza é curador, professor e crítico de arte. Foi Diretor Artístico da Fundação Iberê Camargo até 2019. Atualmente, como curador independente, reside em Madri. Foi Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria de Cultura de Porto Alegre entre os anos de 2005 e 2013 e integrou as equipe de curadoria da 9a Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2013) e da 19a Bienal Sesc_Videobrasil (2015).