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“It is necessary to reactivate the erotic body of society”, says Franco “Bifo” Berardi

Franco "Bifo" Berardi. Foto: Divulgação

The diagnosis of the philosopher Franco Berardi on the present is acid and accurate: we are living the death of the capitalist system, we inhabit a putrefied corpse, but that still stands and dictates the rules of the game. Even defining society so skeptically in the terminal phase of capitalism, the thinker proposes an encouraging image of struggle and transformation of this gloomy scenario, calling youth, poets and artists as strategic agents of transformation, seeing surviving in the chaos, the fighting forces necessary for overcoming the serious problems that plague humanity and put it at serious risk of extinction. Against the feeling that we live inexorable moments, despair at the rise of fascist movements around the world and the serious environmental imbalances facing the planet, Bifo – as he has been known since childhood – clearly stands beside those who do not conform with the limits of oppressive daily life and dare to fight for a fairer society , supportive and egalitarian.

It thus responds boldly to the reference to the “art of the possible”, a term adopted as a subtitle of the seminar “In Defense of Nature and Culture”, in which he participated on October 8. And it emphasizes that we should not consider the “possible” as a limit imposed on us by a naturalization of the barbarism committed by capitalism, but rather the search for a new path, the strengthening of our capacity to challenge the march that, if not contained, leads us to extinction. “Against social misery, geopolitical chaos, economic debacle, we have a way out: solidarity and frugality as well. We need to develop the ability to focus on what is useful for our life, for our pleasure, and forget about money, competition, monetary abstraction”, defends the philosopher.

Bifo introduces a fundamental element of his reflection by beginning his speech citing the protests that shook Chile last year and hailing the holding (on October 25) of the referendum to overthrow the constitution that has been in force since Pinochet’s military regime, which he said perpetuates the dictatorship – military and neoliberal – imposed by the authoritarian regime inaugurated with the coup of 1973. Thus, it reinforces the importance of spontaneous, supportive, combative movements, such as that in defense of the environment led by the resistance of Gretta Thunberg, the various manifestations that broke out in 2019 throughout the planet and the explosion of the anti-racism movement in the United States.

The theme adopted by the American protests, “I can’t breathe” (in reference to the murders of Eric Garder and George Floyd by the police), became a strategic piece in Berardi’s reflection, including serving as a title for Asphyxia: Financial Capitalism and Language Insurrection, one of three works of his own published in Brazil by UBU, book publisher. If the work already pointed out and reflected on the suffocation, literal and metaphorical, of contemporary society, the issue ended up acquiring new developments with the outbreak of the pandemic of the new coronavirus, a disease that deeply weakens the respiratory system. We live, according to Bifo, “the convulsion of a suffocated body.”

The effects of the pandemic, compared by him to an overwhelming storm, which has been killing thousands and makes more close the idea that human survival is at risk, have somehow contained the transformative power of social movements, making solidarity difficult or almost impossible. “It is necessary to reactivate the erotic body of society,” says the philosopher, who is extremely concerned about the devastating effects of this disease, not only on the physical level but on the psychic level. “The proximity of the skin has become a kind of metaphysical danger,” he diagnoses, saying he fears the effects of this phobic sensitization in relation to the body, to kissing. But he warns that we must be aware that, despite the danger posed by the virus, it is not the cause of our evils. The philosopher, who since his youth aligns himself with libertarian movements such as May 1968 and the Italian autonomist movement, deed to say that we live in an apocalyptic moment. After all, in its etymological sense, “apocalypse means revelation, a sudden understanding that something has gone horribly wrong.”

“The real origin of the current disaster is capitalist aggression against people’s freedom, the environment, the acceleration of the pace of exploitation, extractivism. All this has left democracy empty. We are powerless.” And there is no point in thinking nationally anymore, since the effects of this emptying of politics spread, like the virus, all over the world. The epidemic in a way highlights the impasse before which we are. It makes the collapse more intense and palpable.

“Covid-19 is not the catastrophe itself,” says Berardi, who in the heat of the hour, during the quarantine confinement, wrote a kind of diary. Extreme – Chronicles of Psychodeflation plunges into the meaning of this pandemic, seeks to analyze its effects on the collective unconscious and revived the hopes of a profound change, led by pleasure and not by the destructive politics of “people who hate the world, because they hate their own lives”. “Political reason cannot deal with this kind of contraction, of suffering. Psychoanalysis, music, poetry, those are the political languages of the future.”

 

Colaboradores da edição #52

Eduardo Simões é jornalista de cultura, tendo atuado como repórter de cinema em O Globo e de literatura na Folha de S.Paulo, além de ter sido editor da arte!brasileiros. Tem também passagens por publicações de lifestyle, como Wish Casa e MADE. Nesta edição, assina matéria sobre o encontro com curadores e artistas da Bienal de Berlim que aconteceu no VI Seminário Internacional Virtual promovido pela revista e pelo Goethe-Institut.


Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte, PhD pelo Courtauld Institute of Art. É membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da UERJ e atua como pesquisador associado junto ao Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin (Alemanha). É autor de diversos livros sobre história da arte e do design, além de quatro obras de ficção. O mais recente, Modernity in Black and White: Art and Image, Race and Identity in Brazil, 1890-1945, será lançado em breve pela Cambridge University Press.


Giulia Garcia é jornalista graduada pela Faculdade Cásper Líbero e atriz, com formação técnica pelo Senac-SP. Pesquisadora de Arte e Comunicação, é membro do Grupo de Pesquisa CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Já atuou como repórter nas revistas Trip e Tpm e, desde agosto de 2020, integra o time da arte!brasileiros. Nesta edição escreve sobre arte asiático-brasileira para além dos estereótipos e preconceitos.


Miguel Groisman é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Cinema pela FAAP. Já escreveu sobre cinema e fotografia para a Revista Esquinas e foi pesquisador discente sob orientação da Profa. Dra. Simonetta Persichetti, desenvolvendo uma pesquisa sobre a representação das pessoas que vivem com HIV/AIDS no fotojornalismo. Atualmente é repórter da arte!brasileiros e assina, nesta edição, reportagem sobre o fotógrafo sul-africano Gideon Mendel.


Marcos Grinspum Ferraz é jornalista. Formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou entre 2009 e 2012 no jornal Folha de S.Paulo e entre 2012 e 2017 na Editora Brasileiros, sempre cobrindo a área de cultura. Estudou Antropologia Visual na Universidade Nova de Lisboa, em 2017, e no ano seguinte voltou ao time da arte!brasileiros. É coorganizador do livro Brasil Arquitetura: Projetos 2005-2020 e nesta edição da revista escreve sobre o artista Isael Maxakalí.

Fotos: arquivo pessoal | Mariana Ser

“Desverticalizar” o museu

Keyna Eleison e Pablo Lafuente, curadores do MAM Rio, em frente ao museu
Keyna Eleison e Pablo Lafuente em frente ao MAM Rio. Foto: Fábio Souza

Desde o dia 1º de setembro passado, o Museu de Arte Moderna do Rio (MAM Rio) tem à frente uma nova direção artística, escolhida a partir de um edital público, em um exercício de transparência raro no cenário nacional. A proposta veio do diretor executivo do museu, Fabio Szwarcwald, que assumiu o posto no início do ano.

Essa nova direção artística carrega ainda outra novidade: a gestão exercida por uma dupla, a brasileira Keyna Eleison e o espanhol Pablo Lafuente, que vive no Brasil há sete anos, desde que fez parte da equipe curatorial da 31ª Bienal de São Paulo, intitulada Como (…) coisas que não existem. Em comum, ambos passaram “pelas várias posições que envolvem a prática da arte: escrita, curadoria, gestão, educação”, como definiu Lafuente durante entrevista virtual concedida à arte!brasileiros no início de outubro. Entusiasmados na nova função, respondiam com humor e se revezando, em uma sintonia característica de casal novo.

Durante a ditadura militar, o MAM carioca protagonizou alguns dos momentos mais marcantes da história da arte no Brasil, como na mostra Nova Objetividade, em 1967, onde Hélio Oiticica apresentou seu penetrável Tropicália, e nos Domingos da Criação, encontros promovidos por Frederico Morais com artistas experimentais na área externas do museu, em 1971. Desde então, contudo, a instituição foi se fechando e há muito deixou de ser referência, desafio que se impõe à dupla. “Nós compartilhamos essa leitura sobre a potência histórica e, em nosso projeto, discutimos o que pode ser um processo de abertura do MAM”, conta Eleison.

“O MAM, mesmo antes do Frederico Morais, começa em um prédio que era o Bloco Escola (inaugurado em 1958) e só depois vem o Bloco de Exposições (1967). Então, ele já começa com práticas outras como a pedagogia, que faz parte da criação, e resulta em processos de exposição, que por sua vez resultam em projetos pedagógicos, tudo isso acompanhado da Cinemateca, um arquivo que se conserva e se exibe. Essa conjunção de práticas é fundamental para a história do MAM”, explica Lafuente. Para ele, isso representa “uma complexidade orgânica, onde todos os processos se alimentam uns aos outros, sem que nenhum deles seja o centro”.

Levando em conta essa contextualização, a nova gestão chega cumprindo a agenda deixada pelos antecessores. “A gente tem um legado institucional para celebrar. E a palavra é mesmo essa, porque é comum que, quando entra uma nova direção, a antiga seja demonizada. Não é nesse sentido que queremos trabalhar. Então será a partir de julho do próximo ano que teremos uma contundência maior”, conta Eleison. Fernando Cocchiarale e Fernanda Lopes deixam a curadoria em outubro e uma nova vaga se abre e será preenchida por concurso. 

Mas, se do ponto de vista da programação a proposta da dupla só será mesmo mais visível em 2021, há um componente de gestão distinto, como afirma Lafuente, que já será exercido agora: “O MAM não tinha direção artística. Tinha curadoria, curadoria da cinemateca. Entramos com a responsabilidade de criar uma identidade de projeto artístico para essa diversidade de ações.”

Assim, para além da própria programação, há uma nova atitude a ser revista no museu criada a partir da gestão compartilhada. “A dupla é importante para nós porque cria uma diversidade obrigatoriamente. Não tem como duas pessoas terem um olhar idêntico. A gente coincide em muitas perspectivas, mas também diverge em apreciações e histórias. A diversidade é constitutiva e a negociação também”, segue Lafuente.

No projeto vencedor apresentado à comissão de seleção para a diretoria artística do museu, com 38 páginas, o trabalho em dupla é colocado em uma contextualização histórica: “Diretorias duplas não são novidade em contextos artísticos ou em cenários não artísticos. Um dos princípios operativos do Partido Verde alemão é o Doppelspitze, que determina que todas as diretorias devem estar formadas por duas pessoas, uma de gênero feminino e outra masculino”. 

Propor novas formas de gerir instituições de arte é essencial no contexto brasileiro, marcado em geral por uma grande centralização e personalização, já a partir de suas presidências, como ocorreu no MAM paulista durante a gestão de Milú Villela, que permaneceu no poder por nada menos que 24 anos, de 1995 a 2019, com poderes absolutos.

Nova ordem

“Queremos entender o MAM como uma estrutura só, o que é o nosso maior jogo dentro da instituição”, conta Eleison, que é completada por Lafuente: “A gente está criando corpos de decisão mais extensos; não é apenas a pessoa que está na gerência de educação e participação que vai decidir isoladamente qual será o programa público, mas ela vai ativar outras áreas de dentro e mesmo de fora do museu.”

Com isso, para se pensar como um museu deve atuar agora, a nova gestão busca exercitar isso na administração da própria instituição, criando relações mais horizontais? “Estamos tentando trabalhar desverticalizando o museu. Acho melhor a expressão desverticalizar do que horizontalizar, porque o próprio termo horizontal não procede no dia a dia. Afinal, nós continuamos sendo os diretores artísticos, há gerentes, têm nomeações que são importantes para serem dadas e responsabilizadas, e tem salários também”, define Eleison.

“A gente tem que negociar nossas propostas com diferentes equipes, somos responsáveis por um grupo grande, e têm outras gerências que não são nossas. Então temos uma proposta que tem que ser negociada por quem está aqui”, conta Lafuente.

A fachada do MAM Rio
A fachada do MAM Rio. Foto: Fabio Souza/Divulgação

Com isso, eles esperam socializar, com públicos internos e externos, as decisões, tanto artísticas como de gestão. E ao dar visibilidade esses processos podem ser monitorados e avaliados. “Queremos forçar a estrutura para ver até onde ela pode chegar, repetir por repetir não faz sentido”, diz Lafuente. No projeto apresentado há um cronograma detalhado de como se dará o processo de tomada de decisões no museu, que inclui reuniões semanais e quinzenais das equipes.

Entre as ações que devem marcar a gestão está a própria utilização do edifício icônico projetado por Affonso Eduardo Reidy (1909-1964). “Recuperar a visão do prédio é fundamental, já que é um museu que se pensa estruturalmente aberto. O Reidy tem um texto muito bonito sobre a luz que entra pelas janelas, de como ela cria uma experiência sensorial que enriquece qualquer experiência das obras de arte. Isso na história da arte é polêmico, pois escapa do cubo branco. E ao longo dos anos foram sendo dispostas paredes na frente das janelas para que a luz, o sol, as árvores e as pedras gigantes da Baía de Guanabara não entrassem. A gente quer recuperar isso física e simbolicamente, que o externo influencie o interno”, conta Lafuente. 

Outro eixo que a dupla pretende implementar é abrir a instituição para aquilo que não está lá – objetos, saberes, pessoas – poder entrar, como diz Eleison: “É uma gestão de questionamento institucional muito forte. Uma das grandes questões é não só olhar para a inexistência de corpos, inteligências e objetos dentro das coleções, mas quando elas entram, como elas o fazem. Enquanto mulher preta me interessa um tipo de pesquisa sobre as pessoas que não foram colocadas aqui, o porquê elas não foram colocadas aqui e o que elas estavam fazendo”. 

Com isso, o MAM Rio pode exercer uma relação mais autêntica com a produção que agora vem ocupando outras instituições, como a feminina, a negra, a indígena ou a queer – mas de forma um tanto estatística, como para cumprir uma agenda, sem, contudo, criar vínculos efetivos. “Nós não queremos trabalhar com a ideia de convite, porque quando há convite, está claro que o convidado não é daquele lugar. E nós queremos muito questionar a ideia do exótico, porque o que se chama de exótico é formativo da nossa estrutura”, conclui a diretora.

Novos territórios ampliam reflexão da arte

Beatriz Lemos, Thiago de Paula Souza e Diane Lima, curadores da 3a edição da Frestas - Trienal de Artes
Beatriz Lemos, Thiago de Paula Souza e Diane Lima são os curadores da 3a edição da Frestas - Trienal de Artes, organizada pelo Sesc Sorocaba. Foto: Indiara Duarte

O segundo dia do Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, em 9 de outubro (assista), teve início com uma conversa com a equipe curatorial da 3a edição da Frestas – Trienal de Artes. Organizado pelo Sesc-SP, com base na unidade de Sorocaba, o programa contínuo aproxima artistas locais de produções regionais e internacionais, estabelecendo um diálogo entre questões sociais próprias ao contexto brasileiro e reflexões da esfera global.

Nesta edição, a equipe curatorial é formada por Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza, que participaram do seminário. Logo no início de sua fala, Diane pontuou que, ao ser uma curadoria coletiva, dois pontos-chave são acionados: as negociações e as contradições que constituem o processo curatorial. Sendo três curadores não brancos, perceberam o abismo existente na representatividade e optaram por pensar as negociações e contradições dentro dessas políticas representativas e identitárias. “A gente tem um cenário no Brasil onde nos ver aqui hoje estaria na categoria não da arte do possível, como propõe o tema do seminário, mas da arte do impossível, e isso atravessa nossa curadoria”, disse Diane.

Com o título O rio é uma serpente, essa edição da Trienal reúne cosmologias e cosmovisões “que não passam somente por esferas econômicas e sociais, que sustentam uma coleção de conhecimentos e pensamentos afroindígenas, nativos e ancestrais”, afirma a curadora. Para o trio, “O rio é uma serpente não é um tema, mas uma cosmovisão interessada em reunir e apresentar os aprendizados que tivemos até aqui”, explica Diane.

Entre negociações e contradições

Beatriz Lemos pontua que os aprendizados começaram com a compreensão de qual é esse chão de Sorocaba, onde a Frestas se instalaria. Para isso fizeram encontros de escuta na cidade e criaram um diálogo com artistas, produtores, gestores e educadores. “Foi a partir daí que percebemos que nossos pontos de partida seriam o território e o educativo”, explica.

Diane Lima, Beatriz Lemos e Thiago de Paula Souza, curadores de Frestas, no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí
Durante a viagem curatorial, o trio visitou o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. Foto: Arquivo pessoal

De forma a expandir essas negociações e entender outras narrativas de Brasil, além dos próprios conhecimentos e repertórios, o trio embarcou para uma viagem pelo país. “O mais importante para nós era construir uma viagem coletiva, para que a partir desse corpo em movimento e em embate com outros territórios pudéssemos criar esse corpo curatorial”, conta Beatriz.

Fizeram uma rota inicial de dois meses por localidades do Norte e do Nordeste. Assim entraram em contato com a lógica local dos circuitos de arte e da sociabilidade dessas regiões específicas. “Buscamos entender de diferentes maneiras a grandiosidade dessas naturezas e como operavam as estratégias de crimes ambientais”, conta. Para Beatriz, essa seria a forma de entender como as grandes iniciativas privadas afetam as comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas das regiões, através de um racismo ambiental. Esse, por sua vez, constituído por “práticas, legitimadas historicamente, que anulam uma fruição de prazer e contato de meios ambientais a comunidades negras, indígenas, não brancas e migrantes”, explica Beatriz. Ao que Diane complementa: “De fato, as práticas artísticas e suas expressões são ferramentas para atravessar esses colapsos naturais que a gente vem vivendo”.

Para Thiago, a compreensão desse cenário era imprescindível, como forma de construir uma prática curatorial que “busca a colaboração como uma maneira ética de imaginar o mundo de outro modo; de perguntar como a arte contemporânea pode nos ajudar a desenvolver um horizonte um pouco menos brutal em que a violência não molde as nossas existências”.

Para manter essa ideia, buscaram “experimentos curatoriais em diálogo com artistas que tem a vida e a prática diretamente conectadas com a violência colonial, sem contribuir para a assimilação dessa práticas”, explica o curador.

Quando o rio toma forma de serpente

Em sua fala, Thiago explicou que, neste segundo semestre de 2020, o trio desenvolve um programa de estudos, a partir de encontros com um grupo de 15 artistas. Composto de atividades formativas, tem o objetivo de fomentar práticas educativas radicais e, ao mesmo tempo, incentivar políticas de redistribuição e acesso à arte. Além desse programa, estão previstas ações online gratuitas e abertas ao público, como cursos, seminários, palestras, lançamentos editoriais, mostras de filmes e vídeos e um programa de formação de professores.

O resultado da Frestas é diferente daquilo que se pensava no início, pois a edição foi elaborada em um mundo pré-pandêmico. Porém, a situação pareceu intensificar a mensagem que a curadoria pretendia transmitir. “A pandemia não só revela a obscenidade das estruturas raciais e classistas do país, mas também a obscenidade no sentido do que o sistema da arte sempre tentou esconder”, explica Diane. Para ela, a situação global não impediu, mas em certos pontos até reforçou uma questão importante desse pensamento: O que é ser um corpo dissidente e racializado dentro do circuito da arte contemporânea, que sempre invisibilizou e subalternizou os nossos conhecimentos? E é essa questão que O rio é a serpente pretende refletir.

Se interessou? Assista à conversa completa com os curadores de Frestas no VI Seminário Internacional: em defesa da natureza e da cultura – a arte do possível clicando aqui.

Instituto José Rufino: lugar de pensar arte, ciência e natureza

Rufino observa seus espécimes de Araceae
Rufino observa seus espécimes de Araceae. Foto: Divulgação.

A natureza seduz, transforma, maravilha, pela exuberância e responsabilidade sobre o planeta. Há artistas que incorporam o meio ambiente em suas pesquisas levados pela tendência do momento e outros que já o trazem naturalmente dentro de si. José Rufino experimentou o saber rural como menino de engenho, formou-se em geologia e paleontologia, trabalhou com Marlene Almeida, sua mãe, em uma pesquisa sobre os pigmentos da terra e agora encontra um lugar especial para reverberar suas experiências, o Instituto José Rufino. Com isso inaugura uma nova compreensão da natureza e do fazer artístico em sua vida. Em trâmite burocrático, o espaço ainda é chamado de Sítio Sabiá, nome do antigo local, e se estende pelo terreno de 50 mil metros quadrados, que logo serão 70. Localizado no município de Bayeux, na grande João Pessoa (Paraíba), é um lugar para pensar arte, natureza, cultura e desenvolver pesquisas levando em conta o meio ambiente.

O que torna esse espaço provocador? José Rufino mescla seus conhecimentos científicos em situações cheias de ambiguidades, descobertas e muitas experimentações com vegetação selvagem e domesticada. “O Instituto conta com cerca de 160 espécies da família Araceae, dos antúrios, imbés e filodendros, mais 250 da família Arecaceae, das palmeiras, além de um acervo de espécies nativas, entre as quais destaco o tucum (bactris ferruginea), cujos espinhos são usados como elemento corporal indígena. “Considero minha coleção de plantas um arquivo vivo de experiências vividas. Cada uma representa um acervo sensorial, etnográfico, uma escultura viva”, afirma. Todos os caminhos que cortam a paisagem são irregulares, submetidos ao interesse e desenvolvimento das próprias plantas. Trata-se de uma reflexão espacial emancipada que contempla ainda animais das famílias dos tamanduás, preguiças-de-três dedos, capivaras, raposas, guaxinins, saguis, entre muitos outros. Essa dilatação da experiência chega ao grande ateliê que tanto pode ser ocupado por Rufino quanto pelos residentes. “A construção está implantada no limite entre um trecho de Mata Atlântica e a parte mais alta do jardim. O espaço foi construído entre as árvores que se recuperavam de décadas de cortes descuidados e queimadas, e agora já estão bem frondosas”. A área total do terreno fica entre o tabuleiro costeiro e o estuário do rio Sanhauá. Faz fronteira com o Parque Estadual Mata do Xem-Xem, cujas ruínas de um açude do século 19 estão dentro da propriedade.

Escolher o local do Instituto ativou um pensamento desbravador em Rufino, que visitou muitos sítios prontos, com camadas de histórias de seus antigos donos, algo que não o interessava. Quando encontrou um terreno degradado, estéril, riacho poluído e obstruído, decidiu comprá-lo. O impulso mais profundo de sua utopia surgiu do encontro com esse caos ambiental, em 1984. “Isso me animou, queria salvar esses hectares começando tudo do zero. Meu pai, que cresceu no engenho, quando viu o cenário ficou horrorizado e disse que ali não cresceria nem urtiga”. Nesse sentido, Rufino teve que lidar com expectativas o tempo todo, mas essa ideia de discordância foi mais uma provocação motivadora. Agora, depois de muitos anos de trabalho constante, pesquisas e consultas a especialistas, o solo não só renasceu como está muito rico. A natureza deu resposta à altura de seus esforços, se transformou, recriou o microclima e tudo está exuberante.

“Minhas memórias mais antigas sobre uma conversa solitária e silenciosa com a natureza foi no engenho do meu avô. Eu não morava lá, mas ia todos os fins de semana e passava as férias inteiras. As recordações sensoriais que trago da infância são mais do engenho do que da cidade.” Aos poucos ele foi se aproximando da história natural, influenciado pelos livros de botânica de seu pai engenheiro, repletos de ilustrações. “Passei a colecionar plantas, fósseis, o que me tornou quase um naturalista mirim. Também era curioso sobre a origem dos nomes populares das plantas e o porquê dos nomes científicos”. Atuando entre a ciência e o delírio, foi atrás de sementes de tamarindo recolhidas do quintal do poeta Augusto dos Anjos. Viajou a Salvador em busca do fruto de cacau de uma árvore plantada por Pierre Verger. “Hoje tenho o prazer de produzir, por meio da perspicácia de meu pai, pequenas barras do chocolate Verger”.

Já formado em paleontologia, seu olhar foi refinado com método, como ele diz. Mas o terreno do Instituto se auto explica, a liberdade por lá corre solta com um paisagismo que respeita a vontade das plantas, bem próximo à natureza tropical. “Burle Marx foi quem introduziu esse conceito em vários projetos. Ele colocava sem pudor as plantas que trepavam sobre as outras formando uma massa, não era uma coisa planejada como o jardim europeu, especialmente o francês.”

Obra de Rufino na sacada de seu ateliê, com a Mata Atlântica e o vale do rio Sanhauá ao fundo
Obra de Rufino na sacada de seu ateliê, com a Mata Atlântica e o vale do rio Sanhauá ao fundo. Foto: José Rufino

O artista não tem a pretensão de tornar o Instituto José Rufino em um tipo de Inhotim, repleto de obras de artistas. “Tudo o que estiver ali tem que atravessar minha poética. Durante a pandemia realizei muitos trabalhos e agora vou fazer uma expedição pelo terreno, por outros itinerários, que vai gerar a mostra Phantasmagoria, como parte do projeto Ontologias, que será exposta em março na FAMA (Fábrica de Arte Marcos Amaro), em Itu, em um galpão que está sendo restaurado para recebê-la”. No cenário aberto do Instituto Rufino, ele vai dar continuidade às residências artísticas, que já aconteceram em pequena escala, abrirá para estudiosos da área de botânica, zoologia e etnologia que queiram compartilhar conhecimentos e pensamentos estratégicos nessa escala. “Atuamos próximos ao conceito de residências em zonas rurais, porque apesar de situados na cidade, estamos afastados do perímetro urbano”. Seja como for, não há como voltar atrás, como ele diz. Hoje o Instituto Rufino é uma realidade, um patrimônio que tem que ter também retorno social e esse é um dos seus desafios.

Para além do estereótipo: a arte brasileira por asiático-brasileiros

A artista Cyshimi pensa a decolonialidade na arte asiático-brasileira
Na vídeo-performance "Cosplay de mim mesma", parte da instalação "#IdentidadesImportadasCompactadasDemarcadas.zip", Cyshimi questiona os estereótipos internalizados e/ou impostos a asiático-brasileiros. Foto: Cortesia da artista
A artista Cyshimi pensa a decolonialidade na arte asiático-brasileira
Na vídeo-performance “Cosplay de mim mesma”, parte da instalação “#IdentidadesImportadasCompactadasDemarcadas.zip”, Cyshimi questiona os estereótipos internalizados e/ou impostos a asiático-brasileiros. Assista clicando aqui. Foto: Cortesia da artista.

Nos últimos anos, o debate sobre preconceitos e inclusão de minorias passou a ocupar um espaço crescente no circuito das artes. Porém, ainda pouco se ouve sobre a inclusão (ou exclusão) de pessoas asiático-brasileiras nesses ambientes. 

Em um mundo que foi surpreendido com uma pandemia em 2020, o fato de o coronavírus (Covid-19) ter tido início na China gerou um movimento xenofóbico ao redor do globo com pessoas de diferentes ascendências asiáticas. No Brasil, não foi diferente. Porém, como destaca a artista transdisciplinar Cyshimi, “as questões que permeiam asiático-brasileiros não são novas”, começaram muito antes e vão muito além do vírus. 

Na edição #51 da arte!brasileiros, Luciara Ribeiro trouxe uma reflexão sobre o assunto (leia clicando aqui): “Precisamos sempre nos perguntar o porquê de racializarmos determinadas populações e atribuírmos a elas termos específicos, como afro-brasileiras, indígenas brasileiras ou asiático-brasileiras: será porque reconhecemos a chamada arte euro-brasileira como sendo apenas arte brasileira?”. Para Shima, vencedor do Prêmio PIPA 2013, este é um ponto essencial da discussão. “Nasceremos e morreremos asiáticos no Brasil, por mais brasileiros que nos sintamos. Sei que jamais serei convocado para representar uma ‘arte brasileira’”, afirma.

Nesta edição, decidimos olhar especificamente para a arte brasileira feita por asiático-brasileiros, os preconceitos que a envolvem, a luta que a permeia e suas possibilidades. Para introduzir essa discussão, conversamos com artistas, pesquisadores e curadores de diferentes ascendências.

 “Ao invés de lutar por reconhecimento, fui buscar nas minhas vivências os fatores de identidade e pertencimento para que eu pudesse ao menos pertencer a mim mesmo. O indizível está diante dos meus olhos e encontro também na minha produção algum antídoto para este ambiente tóxico que nos oferecem para existir”, diz Shima

Existe preconceito com asiático-brasileiros?

A Ásia é o continente mais extenso e o que apresenta a maior densidade populacional no mundo. São 50 países com diferentes fenótipos, etnias e culturas. Porém, como destacam artistas e militantes, no Brasil ainda há uma associação direta de Ásia com o Japão e uma redução ao Leste Asiático. “A homogeneização de etnias asiáticas carrega traços do colonialismo ao simplificar e objetificar corpos, identidades e culturas diversas e, com isso, motiva a perda de memória e assimilação de povos”, explica a artista, pesquisadora e curadora Caroline Ricca Lee. Juily Manghirmalani, artista audiovisual e pesquisadora de cinema bollywoodiano, destaca que é por essa homogeneização que comumente as pessoas se esquecem que há também no espectro asiático e asiático-brasileiro, pessoas de origem indiana, do Sudeste Asiático e do Oriente Médio. 

Para Youssef Cherem, pesquisador e professor de história da arte do Oriente Médio da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), essa redução está ligada a uma falta de conhecimento popular da cartografia mundial. Juily faz coro. Em sua visão, a arte pode ter um papel importante na dissolução desses estereótipos, trazendo um maior conhecimento sobre essas diferentes culturas. “A falta de repertório das pessoas sobre outras realidades e expressões acaba criando um distanciamento entre etnias. A arte está 100% interligada com a falta de intercâmbio cultural.”

As ideias de Shima vão de encontro a esse pensamento: “O silenciamento de vozes dissonantes que trazem uma diversidade e pluralidade de interpretações/reflexões, nos levam a uma sociedade rasa no pensamento, sem autocrítica, sem ação, uníssona, monótona. A produção cultural e suas manifestações artísticas nos oferecem parâmetros para dizer onde estou, quem eu sou, e para onde vou.” Um primeiro passo para que a arte cumpra esse papel e de fato facilite esse intercâmbio, para Youssef, parte de entendê-la para além dos estereótipos de cada região: “Por exemplo, por que pensar que a coisa mais importante ou mais interessante das pessoas do Oriente Médio é uma religião? Ver só esse lado nos fecha para outras experiências relevantes”, diz. 

É nesse aspecto que Caroline, Cyshimi, a artista e arte-educadora Alice Yura e a artista visual Singh Bean pensam a decolonialidade ao lado da arte que fazem e, por isso escreveram um manifesto em 2020 relacionando a arte asiática contemporânea aos pensamentos decoloniais. “Arte e decolonialidade dialogam na possibilidade de trazer à tona narrativas contra-hegemônicas, quando artistas através de suas produções revelam contextos que fazem esse ‘giro de olhar’ sobre nossa memória, cultura e sociabilidades”, explica Caroline. 

Mas como isso se dá no trabalho de fato? Segundo Cyshimi, pode se dar ao contrapor a ideia de uma ancestralidade apenas fetichizada e comemorada, politizando as identidades. Como complementa Caroline, pensar um discurso artístico que não se satisfaz apenas no relato único, mas se propõe à discutir questões coletivas e sociais e vai além de pautar identidade também faz parte desse movimento, “pois na decolonialidade está intrínseca uma oposição à história colonial, imperialista, patriarcal e normativa”, explica a artista. Dessa forma, propõem que a discussão se expanda não só à pauta asiático-brasileira, mas à inclusão de corpos dissidentes como um todo, com suas interseccionalidades.

No mundo da arte

É nesse ponto que adentramos o circuito das artes e passamos a refletir acerca da representatividade presente nele. Para o artista multimídia, músico, performer e professor Dudu Tsuda, “o sistema de arte brasileiro é um reflexo da nossa sociedade, estruturalmente racista e centrada na cultura branca europeia e norte-americana. Ele reflete as estruturas de poder sócio-político-econômico-culturais, hegemonicamente dominadas pela branquitude”.

“Vir de culturas tão opostas à branquitude me fez enxergar o mundo de forma mais cautelosa, mais empática, mais enfurecida e mais ambiciosa. Levo minhas expectativas de mudança social para dentro do que produzo”, diz  Juily Manghirmalani.

Segundo Cyshimi, esse é um dos pontos que dificulta a representatividade nas instituições de arte e na mídia. “Sinto falta que essas instituições e veículos também nos enxerguem mais profundamente, tentando conhecer a multiplicidade das nossas produções individuais e não só nos colocando como categoria”, diz. Para Dudu Tsuda, essa postura não significa que não exista um esforço de inclusão por parte das instituições, mas está ligada à ausência de asiáticos brasileiros em posições de poder nesses espaços. “O que nos resta sempre é um olhar da branquitude para os nossos corpos e fazeres artísticos.” Para ambos, isso acaba resultando em um exotismo e uma romantização das identidades racializadas. 

Singh Bean acredita que esse olhar do circuito das artes muitas vezes limita as identidades racializadas ao invés de representá-las de fato. “Às vezes, parece que a gente é chamado para expor para ser um totem do sofredor. Não quero estar nesse lugar de totem apenas, não sou só isso, também mereço um lugar pra falar do que eu quiser”, explica. A artista conta que já questionou a si mesma sobre a relevância de seu trabalho, “como se só tivesse relevância se fosse político”, mas percebe que essa não é uma cobrança para pessoas brancas. 

Para Caroline e Dudu, uma forma de evitar esse olhar fetichista ou limitante sobre os corpos dissidentes é a presença de pessoas não brancas na curadoria e no comando das instituições. Ao que o curador Yudi Rafael complementa: “Se um trabalho sistemático não está sendo feito por instituições de arte no Brasil, nesta área, o que existe hoje, em termos mais engajados, são iniciativas independentes que estão articulando um campo de questões e construindo plataformas para discuti-las”.

Sob um olhar crítico e dissidente

Para Yudi, entender essa pluralidade e a questão asiático-brasileira envolve pesquisa e diálogo por parte de curadores e instituições. “Sem uma perspectiva histórica e crítica, se ‘confunde’ asiático-brasileiro com asiático. Falta então um entendimento de que falar sobre asiaticidades brasileiras é falar do Brasil”, explica. 

Performance "A quarta raça", na qual Shima se prendeu ao Monumento às Três Raças, em Goiânia, com fitas.
Shima na performance “A Quarta Raça,” uma intervenção Monumento à Três Raças (indígena, negro e branco) da Praça Cívica de Goiânia. Foto: Cortesia do artista

Nesse aspecto, torna-se necessário ampliar os entendimentos sobre as relações raciais no Brasil, entendendo que o mito das três raças não faz sentido quando temos tantas etnias plurais compondo o país. “Não passamos pelo racismo estrutural que pessoas pretas passam, mas obviamente não somos pessoas brancas”, diz Cyshimi. Ao que Caroline complementa: “É fato que a sociedade brasileira é uma população de maioria negra e terra pertencente aos povos originários, com isso é preciso que tais narrativas sejam sempre privilegiadas e enaltecidas. A solidariedade antirracista necessita ser uma prática aplicada de forma cotidiana”. Ambas concordam que só a partir de uma solidariedade antirracista será possível compreender como as questões asiático-brasileiras se dão no território brasileiro.

Nesse sentido, Juily acredita que “o momento de reconhecimento étnico que estamos vivendo através do pertencimento e orgulho de nossas origens, tão diferente de gerações anteriores que foram colonizadas a terem vergonha e medo, é algo ainda muito recente. É preciso ensinar, abrir canais de conversa, fazer alianças, crescer em comunidade”. Isso nos esclarece que esta conversa aqui na arte!brasileiros é apenas um início, um primeiro e pequeno passo em direção a esses diálogos.

Youssef complementa que é preciso criar esses diálogos de forma crítica e aprofundada, para além de “discursos açucarados”. Para isso, a arte pode ser um caminho, avançando nas discussões de forma mais hermética e próxima, como propõe Cyshimi: “Acredito que essa seja uma das minhas coisas preferidas no fazer da arte, pela forma como assuntos políticos e herméticos se tornam mais próximos, humanos e reais, o que abrange e pluraliza o imaginário sobre certo assunto”.

A imagem mostra a obra "Estudo para o Tempo Suspenso Ma 間 :: Silêncio, o espaço tempo de resistência e resiliência", de Dudu Tsuda, onde duas pessoas se equilibram envolvidas por um mesmo tecido, no deserto de sal 'Salar del Uyuni' para IX Biennal SIART de La Paz
A vídeo instalação “Estudo para o Tempo Suspenso Ma 間 :: Silêncio, o espaço tempo de resistência e resiliência”, de Dudu Tsuda, é derivada de uma performance site specific que lida com a sensação de tempo suspenso a partir do conceito Japonês de Ma “間”. Realizada no deserto de sal ‘Salar del Uyuni’ para IX Biennal SIART de La Paz / Bolívia em 2016. Foto: Cortesia do artista. Assista clicando aqui.

Uma obra que ajuda a “clarear” o povo Maxakali

Imagem do filme Konãgxeka: O Dilúvio Maxakalí, 2016, de Charles Bicalho e Isael Maxakalí. Foto: Reprodução

A primeira frase dita por Isael Maxakali ao atender a ligação da arte!brasileiros para uma entrevista sobre seu trabalho e o prêmio que recebeu no último mês de agosto foi bastante esclarecedora de como pensa o artista: “Para mim é uma honra grande, porque com o meu olho eu quero clarear o povo Maxakali. Se o meu nome cresceu bastante, também cresceu o nome do povo indígena e da nossa aldeia. Se eu ganho um prêmio, eles ganham também”. E ele completa: “Clareou meu povo, que sempre sofreu discriminação e preconceito”.

A fala sobre os Maxakali e a preocupação com a difícil situação vivida por eles nas aldeias de Minas Gerais demonstram uma visão onde as conquistas no âmbito pessoal só têm valor se vierem para o bem coletivo. Desse modo, em filmes, desenhos e animações produzidos por Isael ao longo de cerca de 15 anos de trajetória, o artista procura apresentar a identidade – “verdadeira”, como ele ressalta – dos Maxakali (ou Tikmũ’ũn, como se definem).

“No meu trabalho eu quero mostrar a nossa cultura para o Brasil todo reconhecer e respeitar. E assim poder ajudar os povos indígenas a terem terra, a recuperar seu território. Porque hoje a terra chora, o rio está secando, está poluído. Tem muito asfalto, vidro e cimento no lugar da mata. E aí vem o calor, o aquecimento, e isso tudo adoece as pessoas”, diz Isael.

O artista recebeu o Pipa Online, categoria aberta à votação popular de um dos mais importantes prêmios de arte do país, com 4.191 votos. Isael foi premiado com o valor de R$ 15 mil e deverá doar uma obra para o Instituto PIPA. Na sequência de Jaider Esbell e Arissana Pataxó (em 2016) e Denilson Baniwa (em 2019), essa é a terceira edição nos últimos cinco anos em que artistas de origem indígena recebem o Pipa Online.

Para Baniwa, “apesar de toda a controvérsia que é uma premiação, já que é sempre fruto do apagamentos de outras histórias – só existe um vencedor porque existe um derrotado -, é também o reconhecimento de uma caminhada que está sendo mais visível agora”. “Então do lugar onde estou, enquanto indígena, acho maravilhoso, porque eu estava saturado de ver nos prêmios sempre rostos que não se pareciam comigo, nem com as pessoas com quem eu ando”, segue ele.

Carmindo Maxakalí (à esq.) e o artista Isael Maxakalí (à dir.) em cena do filme GRIN (Guarda Rural Indígena), 2016, de Isael e Roney Freitas. Foto: Reprodução

A preocupação do artista de que um prêmio coloque diferentes narrativas fundamentais em disputa – de pessoas indígenas, negras, pobres ou não binárias – não deixa de vir acompanhada da satisfação de ver o reconhecimento dos indígenas enquanto artistas. “Então de onde eu estou tento entender essas narrativas e chamar também para relações um pouco mais saudáveis do que essa disputa”, conclui.

O fato é que artistas como Baniwa e Maxakali ajudam a trazer à tona questões urgentes na atualidade, especialmente em um Brasil que vivencia de modo intenso a opressão aos indígenas e a destruição dos ecossistemas. “O governo não tem compromisso com os povos indígenas e com as florestas”, diz Maxakali. “E no Brasil todo, onde tem aldeia, a aldeia preserva a mata, preserva o rio, preserva a cultura. Mas o governo quer acabar com a nossa cultura”, lamenta.

Trajetória nas artes

Nascido em Santa Helena de Minas em 1978, em uma das poucas aldeias Maxakali ainda existentes – que reúnem hoje cerca de 2 mil habitantes em áreas no nordeste de MG -, Isael passou a se interessar pela linguagem audiovisual por volta de 1999. “Por que eu aprendi a fazer filmes? Porque eu vi muitos filmes de outras aldeias, de Xavantes, Guaranis, e virou meu sonho fazer também dos Maxakali”. Isael não falava português – nem comia comida temperada ou bebia café, ressalta – e, ao mesmo tempo em que começou a aprender a língua, teve seus primeiros contatos com filmagem através da professora Rosangela de Tugny, da UFMG.

Foram anos de trocas com pesquisadores de Belo Horizonte até que produzisse seu primeiro filme. Em 2007, filmou tanto um ritual de iniciação de meninos, denominado tatakox, quanto o fim do resguardo de uma mulher após o nascimento do filho, feito através de rituais e cantos em um rio próximo à Aldeia Verde, onde Isael habitava à época. Hoje, o artista, que é também vereador da cidade de Ladainha desde 2016, ajuda a erguer a Aldeia Nova, também nos arredores da cidade.

Questões territorias, insegurança alimentar, falta de água potável e de acesso aos rios são apenas algumas das dificuldades cotidianas enfrentadas pelos indígenas locais – e não deixam de permear os trabalhos de Isael.    

Após os primeiros filmes, montados e legendados com a ajuda de colaboradores como Charles Bicalho, em Belo Horizonte, Isael intensificou a sua produção, muitas vezes ao lado da mulher Sueli Maxakali. Em Xokxop Pet (2009), por exemplo, registrou a ida de diversos indígenas a um zoológico de Belo Horizonte, onde cantam seus yãmîy (cantos sagrados) em homenagem aos animais no cativeiro; em Dia do Índio na Aldeia Verde Maxakali registra celebrações feitas na aldeia em 2010; e em Xupapoyanãg (2013) filma um grande ritual em que alguns indígenas representam lontras – bichos sagrados para os Maxakali – que vêm à aldeia vingar à morte de seus parentes.

Para Denilson Baniwa, Isael consegue como ninguém traduzir a riqueza e potência da cultura Maxakali para o mundo ocidental. “E, nessa conexão, ele cria uma relação onde ambos podem conviver. Quando ele coloca os espíritos Maxakali para o mundo, talvez eu entenda como uma voz de tentativa de criar relações. De dizer: ‘O meu mundo é esse, eu estou apresentando ele a vocês de uma maneira que vocês conseguem entender, que é pelos sentidos do mundo ocidental – pela audição e visão -, mas eu também quero que vocês compreendam que existe alguma coisa muito maior do que só o que vocês estão vendo e escutando’.”

Desenhos e animações

Não foi muito depois do interesse pelo cinema que Isael iniciou sua prática como desenhista.  No começo dos anos 2000 passou a utilizar principalmente aquarela para desenhar a natureza, os animais e pessoas. Apesar de entender como práticas distintas, diz que ambas produções fazem parte de um mesmo desejo. “Para mim toda imagem é viva, é espiritual, tanto no filme quanto no desenho. Se eu desenho, só falta colocar coração, para andar”, afirma.

Imagem do filme Konãgxeka: O Dilúvio Maxakalí, 2016, de Charles Bicalho e Isael Maxakalí. Foto: Reprodução

E foi o desejo de fazer o desenho falar e andar que desencadeou o interesse pelas animações, que se concretizou em anos mais recentes em dois filmes. Ao lado de Bicalho, após a aprovação de um projeto no Edital Filme em Minas 2015, produziu Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali, curta exibido em uma série de festivais nacionais e internacionais. Outro filme que ganhou destaque foi Grin, de Isael e Roney Freitas, exibido e premiado na 21a Bienal Sesc_Videobrasil. O documentário resgata, através de uma série de entrevistas, as memórias dos Maxakali sobre a formação da Guarda Rural Indígena (GRIN) durante a ditadura militar, com relatos de violências sofridas pela população.

Atualmente, a recém-aberta 18a edição do Doclisboa apresenta Yãmiyhex, as Mulheres-espírito, novo filme de Isael e Sueli. Enquanto isso, o artista segue “cuidando da roça, buscando lenha, brincando” e trabalhando para erguer a nova aldeia Maxakali em Ladainha, enquanto exerce seu cargo político e o papel de liderança local. Está também fazendo mestrado na UFMG, “e se der, depois vou fazer o doutorado, para clarear o nome dos Maxakali, do meu povo”, conclui.

Segundo Baniwa, “apesar de algumas pessoas não conseguirem entender o quão complexo é o mundo Maxakali, assim como são os outro mundos indígenas, acho que o trabalho do Isael consegue alcançar as pessoas de maneira sensível. E se talvez em um primeiro contato não consiga ser entendido, é uma semente. Uma semente que é plantada e que o tempo irá dizer se eclode ou se ela morre, nesse solo em que eu, Isael e outros artistas indígenas estamos plantando”.

Os 60 anos de arte de Aguilar

Pintura horizontal "Rio Amazonas", de Aguilar, em meio à uma sala de exposição.
Obra símbolo de Aguilar militante contra a devastação das florestas, Rio Amazonas foi pintada em 2015 e faz parte da série Rios Voadores. Foto: Karin Kahn

Delírio e afetos traduzidos em pinturas marcam a volta de José Roberto Aguilar ao circuito de arte, com a exposição Destinos, o Homem Inventa o Homem, em cartaz na Fiesp. A performidade de cada tela é parte de um voo ancestral proposto por ele na tentativa de desvendar o universo, o homem e a natureza, na mostra que marca seus 60 anos de arte.

Aguilar interpreta as superfícies brancas das 69 telas como pistas de pouso para exibir uma cosmologia cujo fio condutor perpassa pelos filósofos gregos, Revolução Francesa, Picasso, Van Gogh, Bispo do Rosário e a cidade de São Paulo. Seus desejos são espiralados como um tornado e evoluem com a liberdade costumeira, como na abordagem radical de Guernica de Picasso. Pintada este ano, a intervenção é uma alusão à bipolaridade política do mundo atual num conflito que desemboca no dilema: ou a guerra ou a paz. As telas de grandes dimensões, algumas inéditas, dispostas na boa montagem de Haron Cohen, são demonstrações inconclusas de uma arte de hipóteses que parecem nunca ter um ponto final. Em Mademoiselles d’Avignon de Picasso, que leva o título 1907, ele celebra o ano da invenção da arte moderna e a criação da teoria da relatividade restrita, de Einstein.

O trabalho de Aguilar é intenso e obsessivo como atesta Rio Amazonas, uma tela de grandes dimensões que traduz a sua ligação com o ativismo ambiental na defesa do planeta que, segundo ele, vem sendo destruído pela ganância e ignorância. “Essa tela está ligada à série Rios Voadores, alusão aos cursos de água atmosféricos que se deslocam, passam por cima de nossas cabeças carregando umidade da Bacia Amazônica para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil”. Desde 2004, Aguilar se divide entre São Paulo e Alter do Chão, no Pará, onde mantém casa/ateliê e uma forte relação com a floresta amazônica e a comunidade ribeirinha local, envolvendo-a em suas obras coletivas. A imensa tela é uma ode à natureza e um grito de alerta, o mais potente e emblemático trabalho da mostra.

"Guerra ou Paz", de Aguilar, é uma acrílica e esmalte sobre tela
“Guerra ou Paz”, de Aguilar, é uma acrílica e esmalte sobre tela de 2019, e faz alusão à polarização política que atualmente toma conta do mundo. Foto: Karim Kahn

Aguilar mantém uma narrativa livre, sem filtros e traz a multiplicidade de interesses que gravitam em torno de suas reflexões sobre raciocínio, livre arbítrio, destino, meio ambiente. Dez de suas telas de grandes dimensões ensaiam um voo sobre a civilização ocidental, desde os filósofos gregos até uma possível ocupação de Marte em 2050. Em um segundo conjunto de 35 pinturas que podem ser lidas como tarôs, faz o caminho inverso, do objeto à ideia. Ele propõe ao visitante um jogo, uma viagem a locais imaginados. “Os destinos se transformam sempre, depende de você, como tudo na vida”. Cada quadro é identificado como a escolha de cada pessoa e se constitui em um campo cifrado com diálogos entre o que vemos e como compreendemos o que vemos. “A tela mais recente da exposição eu fiz há três semanas, como uma performance dentro da sala da exposição. No campo ampliado nascem gestos expandidos que formam uma grande onda”. Em outro trabalho, um emaranhado de fios com nomes de bairros emerge sob o título São Paulo, uma fricção da arte e urbanismo, com seus sapatos borrados de tinta pairando no ar.

A linha evolutiva dos 60 anos de arte revela Aguilar e seu intenso envolvimento com a arte contemporânea brasileira. “Tudo começou em meados dos anos 50, com meu colega de colégio Jorge Mautner. Aos 15 anos líamos tudo que caia nas mãos. Eu queria ser escritor, mas segui as artes plásticas e Mautner foi para a literatura”. Aos 22 anos Aguilar expõe na VII Bienal de São Paulo e Mautner, com 21, lança o livro Deus da chuva e da morte, que começou a maquinar aos 15.

Tentar categorizar a arte de Aguilar é correr atrás do vento. Até hoje ele vive a multiplicidade de suas transgressões na literatura, pintura, videoarte, música, cinema. Sua pintura ganha impulso em 1963 quando chama atenção de Mário Pedrosa e Clarival do Prado Valladares. Suas telas já traziam as cores e técnicas que lembram o grupo CoBrA. Dois anos depois ele participa da antológica exposição Opinião 65, com Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Antonio Dias, Carlos Vergara, considerada um marco na arte brasileira.

“Com o AI-5 o clima fica insuportável e mudo para Londres, onde já estavam Caetano, Gil e Mautner”. Na área das performances cria obras polêmicas como Ópera do Terceiro Mundo, com Lucila Meirelles, e apresentada na Journées interdisciplinaires sur l’art corporel et performances, no Beaubourg de Paris, e irrita os críticos. “Só não nos interromperam porque lá não há censura”. A década de 1980, foi marcada pela Casa Azul, seu ateliê na Joaquim Eugênio de Lima, por onde passavam intelectuais como Mário Schenberg, Haroldo e Augusto de Campos, o pintor Nuno Ramos e o compositor e músico Arnaldo Antunes, que logo cria a banda Titãs. Aguilar mistura Bukowski com ensinamentos indianos, expande seu circuito, expõe na Alemanha e Japão, ganha as páginas da Art in América.

Autorretrato de Aguilar tirado frente a um espelho, está com a câmera nas mãos e sorrindo.
Autorretrato de Aguilar, imagem emblemática da juventude do artista multimídia.

Em 1980 incendeia o átrio da Pinacoteca do Estado, antigo anfiteatro do museu, com a performance Concerto para Luvas de Box e Piano. “Esse evento deu início à Banda Performática com Arnaldo Antunes e outros amigos. Fizemos muitos shows e gravamos disco”. Em 86 surpreende com a intervenção no Museu da Imagem e do Som com Anticristo, “uma alusão ao artista búlgaro Christo que embrulhava monumentos, museus, pontes”. Aguilar desembrulha o MIS, que foi coberto por plástico preto durante IV Festival Videobrasil, quando o museu era na avenida Europa. “Fazíamos tudo com muita diversão.”

Todas as fases e linguagens de Aguilar se entrecruzam, dialogam entre si e são testemunhas de uma estranheza que muda o olhar do espectador sobre a realidade e a representação. Suas pinturas são performances de cores e gestos que trazem para o mesmo espaço a percepção de uma realidade ímpar, diferente daquela que move o homem convencional.

A resistência a distância

Minerais exportados pelo Brasil integram a obra "A cruz do sul", em que Aline Baiana faz crítica ao extrativismo. Foto: Mathias Voelzke Völzke

Para Lisette Lagnado, uma das quatro curadoras da 11a Bienal de Berlim, o novo coronavírus colocou ainda mais em evidência questões que o próprio evento, cuja abertura oficial aconteceu em 5 de setembro, com três meses de atraso, propusera-se a discutir em 2020. “Falávamos de necropolítica, fanatismo, patriarcado capitalista, extrativismo e devastação ecológica. A pandemia só veio aprofundar o fosso que separa os países do sul global do lugar onde a gente está”, ponderou Lisette em sua fala de abertura no VI Seminário Internacional Virtual ARTE!Brasileiros.

A conversa teve mediação do jornalista Fabio Cypriano, com a participação também do espanhol Agustín Pérez Rubio (da equipe curatorial da bienal berlinense, ao lado de Lisette, da chilena María Berríos e da argentina Renata Cervetto) e de dois dos artistas selecionados para a exposição, a brasileira Aline Baiana e o guatemalteco Edgar Calel.

Ainda na abertura, Lisette manifestou certo incômodo com o subtítulo do seminário, A arte do possível. “Nosso trabalho como produtores e agentes de cultura é sempre lidar com o impossível”, disse. “É muito difícil colocar o conceito de solidariedade quando uma bienal internacional, europeia, anuncia suas datas de realização, a despeito de os artistas ainda estarem em lockdown nos países do sul global. Queria chamar a atenção para a violência intrínseca para a decisão inicial de fazer a bienal acontecer em 2020”.

Para a curadora, o “capítulo mais substancial da bienal” – cujo epílogo, intitulado The crack begins within (a ruptura começa por dentro), será exibido até 1o de novembro na capital alemã – havia sido aberto em setembro de 2019, com oficinas, pequenas exposições e performances, no bairro berlinense Wedding, num espaço que propunha escuta e troca com os moradores do lugar, na maioria imigrantes.

“Havia toda uma dinâmica de estarmos juntos e de repente fomos interrompidos nesta maneira de trabalhar”. Foi necessário, continuou a curadora, criar o que ela chama de protocolo ético: “Dizer que não cederíamos nenhum centímetro em nossa posição e, nesse sentido, a palavra possível é perigosa porque ela pode parecer oportunista. Rosa Luxemburgo dizia que o oportunismo é a arte do possível. E quero insistir que, ao fazer bienal nessas condições, temos que nos preocupar com nossos próprios princípios. E não nos dobrar àqueles ditados por uma situação de exceção.”

Artista ativista

No seminário virtual, Lisette exemplificou o peso político da mostra apresentando, inicialmente, a americana Marwa Arsanios e sua trilogia Quem tem medo da ideologia?. A obra reflete, contou a curadora, um feminismo ecológico q

ue desde 2017 marca o trabalho de Marwa, junto a mulheres que participam de movimentos de luta pela terra, em lugares como o norte da Síria e a Colômbia.

“[É algo que] recontextualiza um feminismo dos anos 1990, que escamoteou a análise ideológica afirmando que a igualdade de gênero já era uma etapa vencida”, disse. “Com esta crítica, Marwa foi buscar um feminismo para além de um tipo de vida liberal da classe média, que ela encontrou na militância ecológica. Neste filme, a área rural é o território onde se dá a luta pela terra e onde estas mulheres são também guardiãs das sementes, das fontes de água e da biodiversidade. Nós vemos aí um exemplo da figura de artista cuidadora e ativista.”

Cena da obra “Quem tem medo de ideologia?”, de Marwa Arsanios. Foto: Reprodução

O ativismo de Marwa acaba encontrando ecos na esfera da arte contemporânea, também regulada pela lógica do extrativismo, assinalou a curadora. “Trago, como ela, a preocupação de evitar a transformação dessas vidas precarizadas em mercadorias cultuadas nas bienais internacionais. Como evitar que a apropriação destes saberes genuínos se transformem em outra coisa a partir da exploração de mazelas alheias”.

A cruz do colonialismo 

Aline Baiana começou sua participação questionando a dificuldade, por parte da ciência, de perceber o conhecimento afrobrasileiro ou indígena como tal, relegando-se à essas perspectivas um caráter fabular, muitas vezes em livros infantis.

“O que tento fazer com meu trabalho é compartilhar estes entendimentos de mundo e tensioná-los com o entendimento ocidental, hegemônico […] uma forma de colaborar para a luta anticolonial”, explica Aline, que apresenta em Berlim a instalação A cruz do sul.

“Este trabalho começou, enquanto ideia, quando aconteceu o crime ambiental em Mariana [o rompimento da barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019]. Fiquei chocada e perturbada vendo aquelas imagens do rio morto por uma empresa que já levou seu nome [Vale do Rio Doce], que me fizeram pensar neste lugar de exploração infinita que o Brasil e outros países do sul ocupam. E como os riscos da mineração são obliterados do produto final, ficam para as populações.”

A escolha do nome da obra também continha uma crítica: a constelação, símbolo do Mercosul e presente em bandeiras de muitos países do hemisfério, representada como cruz, a partir de uma perspectiva cristã, num ato colonizador.

Aline também explicou porque a ideia de “arte do possível” a incomodou, lembrando-se de duas frases: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, do britânico Mark Fisher, no livro Realismo capitalista. E “Vivemos no capitalismo, seu poder parece inescapável – mas até aí, o direito divino dos reis também parecia. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos. A resistência e a mudança começam frequentemente na arte”, da americana Ursula K. Le Guin. “O que eu penso como artista é o que o papel da arte seja talvez o de provocar reconexões, a imaginar outras possibilidades”, concluiu Aline.

Ancestralidade e resistência

Em sua fala, Edgar Calel ponderou inicialmente que somos produto da natureza e das culturas antigas do mundo, como aquela em que nasceu e cresceu na Guatemala. O artista leu então o trecho de um relato sobre a criação do universo segundo o Popol Vuh, registro documental maia do século 16.

“Sob este panorama de literatura indígena ancestral, me parece interessante como, por meio da arte, as pessoas, conseguem atravessar diferentes espaços físicos e de tempo, e com isso unimos as situações antigas e as contemporâneas, com a necessidade de escutar o passado para projetar o futuro. Parte do meu trabalho é fazer estes percursos físicos e temporais também”, disse Edgar.

O artista Edgar Calel veste pele de onça em ritual ancestral no prédio da Bienal em São Paulo
Acima, a performance decolonizadora de Edgar Calel, que veste pele de onça em ritual ancestral no prédio da Bienal (SP)

O artista levou à mostra berlinense o vídeo Sueño de obsidiana, feito em colaboração com o paulista Fernando Pereira Santos. Nele, Edgar representa um ritual indígena ligado à terra, tendo como cenário um dos ícones da arquitetura modernista brasileira, o prédio da Bienal, em São Paulo. Com a pele de uma onça, seu espírito animal segundo a tradição guatemalteca, ou um suéter azul, que está exposto na daadgalerie, e em que costurou os nomes de idiomas indígenas de seu país, o artista fala de resistência anticolonial por meio da reconexão com a ancestralidade.

“Fazer esta caminhada naquele edifício de concreto, sendo um indígena de ascendência maia, é uma afirmação sobre a destruição dos limites, das fronteiras impostas entre países como Brasil, Paraguai, Bolívia etc. Somos todos um. Isso, para mim, é algo fundamental, que devemos contribuir para este outro mundo possível”, argumentou.

Deus e o diabo

“Esta é uma bienal de capital sensível, de capital de relações”, ressaltou Agustín Pérez Rubio, ao começar sua participação. “E também o que talvez a pandemia tenha nos feito valorizá-la mais, uma ideia de cura, de curador, não somente de se sanar nada, mas acompanhar, cuidar”, disse.

Agustín recorreu à imagem de Edgar vestido com a pele de onça, no prédio da Bienal, para falar de outro recorte da mostra berlinense: o fanatismo e o deus do capitalismo, da internet e, no caso da obra do artista guatemalteco, uma ideia de igreja da arte contemporânea, incorporada pela construção modernista. Segundo ele, é importante abrir frestas em instituições como a bienal e os museus, para estas questões: “Para que artistas como Edgar nos mostre como, num ícone da modernidade brasileira, está implícita a negação de um conhecimento, que foi segregado durante anos”, argumenta Agustín.

O curador em seguida mencionou o trabalho de Antonio Pichillá, também da Guatemala, apresentado na mostra berlinense: o vídeo Ação de um personagem árvore, em exibição no Gropius Bau, que abriga o segmento O museu invertido da bienal, uma tentativa de “contra-narrativa” à perspectiva eurocêntrica sobre a arte. “Para entender como esta visão colonial é perpetuada pelas instituições”, disse Agustín, citando o Humboldt Forum, espaço museológico que será aberto ainda este ano em Berlim.

Agustín também criticou a recepção das obras por parte de jornalistas alemães: “Eles só podem ver a etnografia destes trabalhos e não conseguem considerá-los a partir de uma raiz filosófica, estética e artística como trabalhos contemporâneos. Ou, para eles, são obras com algo de esotérico. É muito interessante ver que todos estes críticos e a cultura alemã deixaram que este racismo e esta maneira de ver a alteridade fossem perpetuados, a partir de sua etnografia eurocêntrica”, afirmou. “E como na Alemanha o esoterismo está muito próximo da extrema direita, preferem quase não falar destes trabalhos”.

Demolição, retribuição

Como evitar, então, o extrativismo de bienais e outros eventos culturais? Como o quarteto curatorial da mostra de Berlim lidou com a questão? “O patriarcado, as mazelas coloniais, estão nos sufocando, e temos que reagir mesmo com violência. Por outro lado, há uma questão do cuidado. Então, como ser violento e, ao mesmo tempo, acolher outras vozes e estas vidas mais vulneráveis? O que sempre me guia é um misto de intuição com ética. E nesse sentido escutar tem sido nossa bússola”. Para Agustín, além da escuta, uma maneira não extrativista seria entender que você toma algo, mas também retribui. “A ideia de  restituição, com os artistas, as comunidades, os museus vulneráveis”, concluiu.

Estratégias do possível

Em videoconferência do Goethe-Institut, o argentino Osías Yanov e a brasileira Castiel Vitorino falaram sobre as obras que exibiram em Berlim

Para complementar o seminário aberto, o Goethe-Institut Rio realizou também uma videoconferência especialmente organizada para um grupo de convidados que não conseguiram viajar na ocasião da abertura da 11a Bienal de Berlim, em setembro. Dentre eles, curadores, artistas e gestores de diferentes museus e das diferentes unidades do Goethe-Institut da América latina. Neste dia participaram, além dos curadores, os artistas Osías Yanov (Argentina) e Castiel Vitorino (Brasil).

Em Berlim, Osías participou do espaço dedicado a experimentações da mostra, o ExRotaprint. Parte de seu projeto foi comprometido pelas restrições sanitárias da pandemia, entre eles seus exercícios grupais, que já fizera na Argentina, numa reflexão sobre a repressão dos corpos, entre outras questões.

Trabalho de Osías Yanov apresentado no seminário. Foto: Divulgação

O artista buscou manter o necessário contato à distância com seu grupo de performers, que faziam desenhos e liam contos. Os resultados foram apresentados na bienal, junto a elementos caros à sua pesquisa artística: colheres – cucharitas – que remetem ao ato de dormir abraçado com alguém, e apareceram em formas escultóricas, e o sal – substância ligada à noção de purificação e cura. Por meio de alto-falantes, o registro sonoro das leituras fazia vibrar mesas de acrílicos no chão, criando desenhos no sal em contato com elas.

Lisette Lagnado ressaltou a importância da escuta no trabalho de Osías e mencionou outra experimentação feita em ExRotaprint com o coletivo feminista FCNN, que discutiu o espaço institucional que a arte deixa para jovens artistas mães, que não têm onde deixar seus filhos. A presença da mulher na bienal, em luta contra o patriarcado, também é um dos temas importantes da exposição. Em Berlim, a curadora teve a oportunidade de ler um livro sobre maternidade, da egípcia Iman Mersal, que trazia a ideia de uma criança destruir os possíveis devires da mãe, com a pressa de alcançar o novo mundo. “Era algo que estávamos sentindo em relação à bienal, diante da pandemia, e tomamos emprestado esta noção de rachadura, fissura, para o título.”

Trabalho de Castiel Vitorino apresentado no seminário. Foto: Divulgação

Já Castiel levou a Berlim uma série de fotografias em que aparece usando máscaras compradas num antiquário de Santos (SP), vendidas como sendo africanas, mas, na verdade, feitas por um amigo do dono da loja. Com a obra, a artista expõe a exotização do discurso colonizador sobre as culturas do continente. “Com a fotografia, tento criar imagens para me fazer lembrar da possibilidade de viver não circunscrita e ordenada pela mitologia racial”, disse.

 

 

Somos natureza

O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak. Foto: Reprodução

Choveu. E a chuva trouxe alegria para Ailton Krenak em um momento que sintetizou as falas da primeira mesa do VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, que também contou com Naiara Tukano e Antonio Donato Nobre.

Naiara abriu o evento com um canto de seu povo Yepá Mahsã, do alto do Rio Negro, na Amazônia, e um manifesto breve e contundente. “Nós, povos indígenas, somos a memória viva de milhares de anos, nossas visões e cosmovisões são a nossa ciência, onde aprendemos a nos comunicar e a viver junto com a terra. Por isso defendemos a vida e a diversidade”, disse em um trecho da mensagem inicial.

O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak. Foto: Reprodução

Após as falas de aberturas institucionais de Patricia Rousseaux, pela arte!brasileiros, e de Julian Fuchs, pelo Goethe-Institut, Krenak seria o primeiro a falar, mas um problema de conexão adiou seu depoimento, para sorte de quem acompanhou o seminário.

Graças ao problema de conexão, acabamos sendo testemunhas da primeira chuva após meses de seca na Aldeia Krenak, às margens do Rio Doce, em Minas Gerais, que foi saudada pela alegria e o canto do líder indígena e ex-deputado constituinte. Assim que a chuva teve início, ele virou seu computador para compartilhar a cena com quem assistia ao seminário. “A mais bela arte é essa chuva que cai do céu agora, em cima dessas colinas, fazendo a terra respirar, caindo sobre a terra seca, fazendo subir um mormaço do chão”, disse empolgado.

Nada mais afinado com esse momento do que o raciocínio que ele desenvolvia sobre “esse escândalo de afirmar que existe natureza e cultura, separando alguma coisa indivisível”.

Os caminhos do coração

Essa visão inclusiva já havia sido defendida por Antonio Donato Nobre em sua fala inicial: “Os indígenas são os verdadeiros sábios da natureza, eles têm uma conexão direta com a natureza e têm preservado essa conexão, o que a sociedade global perdeu. Quero vir aqui dar uma mensagem como cientista, mas de um cientista que está descobrindo os caminhos do coração”.

Algo em comum nessas três falas inaugurais foi a necessidade de afeto e respeito com o planeta, o que Nobre apontou em um paralelismo entre o filósofo Sócrates e os astronautas. “Há 2500 anos, Sócrates teria dito que quando o ser humano olhar o mundo de fora vai reconhecer sua grandiosidade. Os povos que vivem em contato com a natureza têm a percepção do que significa estar na Terra”, disse.

Em seguida, relatou como os astronautas ganham a mesma percepção após retornar do espaço: “Quando eles veem a Terra de fora, eles são instantaneamente transformados, eles têm o overview effect, que é o efeito panorama sugerido por Sócrates.”

Assim, astronautas e indígenas não padecem do distanciamento com o planeta, ou uma divisão que se replica na separação entre mente e corpo. Para o cientista, “existe um desastre cognitivo na sociedade ocidental, que ocorreu principalmente na Europa, do divórcio entre a chamada mente racional, onde reside o intelecto, e a cognição ampla, intuitiva, holística, integrativa”.

Então, de acordo com Nobre, é preciso deixar de pensar apenas com a razão: “É o coração que une todo o corpo e ele pensa também, pois a neurociência descobriu que ele possui tecidos neurológicos. Assim, quando estamos com o coração aberto, a gente capta coisas. Sem coração, o intelecto é frio, ele pode fazer coisas aberrantes”. Em sua fala, ele citou os cientistas que contribuíram com o nazismo como exemplo, mas não faltam, no Brasil atual, casos no governo que confirmem a teoria.

Não deixe de assistir a fala completa (clicando aqui) para ver o curto vídeo compartilhado por Donato, desenvolvido por uma década, que aponta como a Amazônia é o coração do planeta.

Transformação

Já Naiara Tukano iniciou sua fala contando sobre a cosmologia de seu povo, que veio da grande canoa de transformação, a Cobra-Canoa. Foi no ventre de uma Cobra-Canoa que os primeiros ancestrais dos povos Tukano partiram em uma viagem subaquática pelos rios Amazonas, Negro e Uaupés, no noroeste amazônico, e assim chegaram à região onde atualmente vivem, no Alto Rio Negro. A canoa foi parando ao longo desse percurso e, a cada parada, esses ancestrais adquiriram poderes e conhecimentos que até hoje fazem parte da herança cultural das etnias da família Tukano.

Naiara contou como, milhares de anos antes dessa viagem, “nós fomos gente peixe, até nos transformarmos em animais que vivem nas florestas, como lontras, macacos; aí o criador veio e cortou o rabo dos animais e trouxe o homem para a terra, sendo esse o terceiro tempo da humanidade, quando o homem surgiu”.

O significado dessa ancestralidade animal e desse processo de transformação ao longo do tempo tem um reflexo importante no pensamento Tukano: “Devemos entender que outros seres visíveis e invisíveis que vivem na Terra são nossos parentes, eles nos contam como devemos agir sem causar mal e nem receber o mal. Assim, nunca esquecemos do nosso lugar”, disse Naiara.

A ativista indígena e artista Naiara Tukano. Foto: Reprodução

Decorre daí, então, a percepção da importância do cuidado com o planeta de forma global, como ela afirma: “Quando a gente rompe os fluxos da Terra, a gente a prejudica, porque ela é um todo, tem uma consciência própria e a gente não pode recortá-la como um mosaico, como estamos fazendo. Há centenas de anos nossos pajés alertam para cuidar da natureza, nós somos natureza.”

E conclui sobre a importância de rever atitudes em tempos de pandemia: “É preciso que a gente se reconecte com nossa essência, e através da arte, da espiritualidade, dos cantos, que a gente se conecte novamente com a terra. Plantar, diminuir o lixo, buscar uma forma de vida mais simples, buscar outras formas de troca baseadas em outras sabedorias. É pela reconexão com a terra que podemos buscar um caminho de cura. O sopro da vida existe em cada um de nós”.

Natureza-morta

Um pouco depois do que havia sido programado, Ailton Krenak entrou no seminário problematizando um dos gêneros da pintura. “Todos os grandes mestres da pintura do ocidente deixaram algum rastro de natureza-morta atrás de si”, contou. E prosseguiu: “Será que eles estavam prenunciando um tempo em que a natureza ia se erguer, sair daquelas telas e invadir as nossas vidas na forma de vírus, na forma de afeto, no sentido de nos virar pelo avesso, de nos pôr em questão, e denunciar que não existe uma fronteira entre cultura e natureza, a não ser nas nossas mentalidades, convocando a uma mudança de mentalidade”.

Mais tarde, ele explicaria que “como poetas, esses artistas estavam prenunciando o que ocorre no século 21; não é uma reclamação, uma acusação, mas uma revelação do que a gente ia viver muito tempo depois”.

Mas ele fez um alerta ao mundo da arte: “É como se a ideia das nossas bienais de arte, das nossas galerias, estivessem todas ficado no passado, vencidas pelo tempo, pela urgência de uma nova mentalidade, de nós humanos aprendermos a pisar com cuidado, a pisar suavemente na Terra, profundamente marcada pelas nossas pegadas, que nos puseram no limiar desse Antropoceno”.

É mais ou menos nesse momento que começa a chuva e o momento mais poético do seminário. Enquanto ele afirmava que “o céu sempre vai nos dar a arte do possível”, passa um caminhão de água, como a lembrar da destruição do Rio Doce pela Samarco, há cinco anos, e que tornou necessário o abastecimento por veículos que percorrem de 200 km a 300 km para abastecer a aldeia com 130 famílias.

E Krenak concluiu como Naiara: “Quando pus em questão a divisão que nós fazemos entre natureza e cultura é uma convocação para que a gente viva mais imerso na natureza e na nossa própria experiência do corpo sendo natureza”.