Ateliê de Arthur Piza no centro de Paris, França. Foto: Hélio Campos Mello
Em conversa com Betina Zalcberg, historiadora de arte e um dos membros do conselho do Fundo de dotação Arthur Luiz Piza (Fonds Arthur Luiz Piza, sediado em Paris), a arte!brasileiros teve a oportunidade de mergulhar na história de Piza e de alguns outros artistas que se estabeleceram entre os anos 1960 e 1980 na capital francesa, em uma época rica e conflitiva da história do Brasil.
Arthur Piza nasceu em São Paulo em 1928 e iniciou sua formação artística em 1943, estudando pintura e afresco com Antonio Gomide (1895-1967). Depois de participar da 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, viajou para a Europa e passou a residir em Paris. Faleceu naquela cidade em 2017, aos 89 anos.
Betina Zalcberg tem passagens pela Sotheby’s, MAM – Ville de Paris e Centre National des Monuments Historiques. Hoje, navega entre São Paulo e Paris. Leia abaixo a entrevista.
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Arthur Piza e Lygia Clark com a obra "Cabeça Coletiva", da artista, em seu ateliê (1975). Foto: Alécio de Andrade, ADAGP Paris, 2021
Jérôme Benitta, Clelia, Arthur Piza e Fabricio Lopez em exposição coletiva (2015). Foto: Arquivo pessoal
Piza e Sérvulo Esmeraldo em Paris. Foto: Alécio de Andrade, ADAGP Paris, 2021
ARTE!✱ – Como você conheceu Arthur Piza?
Betina Zalcberg – Vou começar essa história puxando um fio lá longe – tanto pelo prazer de evocar uma pessoa querida quanto pelo efeito dominó de amizades que representa. Me refiro a Vera Pedrosa, que conhecera Arthur Luiz e Clelia Piza em 1953, quando acompanhou seu pai – Mário Pedrosa, então membro da Comissão artística da 2ª Bienal de São Paulo junto a Flávio de Carvalho e Tarsila do Amaral – em sua viagem preparativa daquela que seria conhecida como a “Bienal de Guernica”. Quase 30 anos depois, foi ela, então seguindo carreira no Itamaraty, quem apresentou o artista Julio Villani ao casal. Eu entrei no elo do carinho em seguida, através dele. [Julio e Betina são companheiros desde então]
Recém chegado a Paris, Julio recebera de Piza e Clelia a mesma acolhida calorosa que reservavam a tantos artistas brasileiros nos anos 1980. Para além da generosidade de ambos, essa tradição era a extensão de um engajamento que começara nos anos 1960: o casal foi uma das âncoras de uma rede de solidariedade para com os exilados brasileiros, radicados na França após o golpe de 1964.
Quando a situação política começou a desanuviar do lado de lá do Atlântico, se dedicaram mais especificamente ao mundo das artes. Muitos são os jovens artistas que viajaram a Paris – para estudar na Escola de Belas Artes ou simplesmente a passeio – que podem testemunhar a atenção recebida por parte do casal. Foi aliás numa dessas visitas – como conta Zerbini no catálogo da exposição Leonilson por Antonio Dias, Perfil de uma coleção, realizada na Pinakotheke Cultural em 2019 – que Piza sugeriu a Leonilson, então com 24 anos, que fosse conhecer Antonio em Roma. Pressentiu que daria liga. Sabemos hoje que foi um encontro alinhavado nas estrelas!
Enquanto Piza recebia os artistas plásticos, Clelia Pisa (assim, com um S todo feminista, para traçar seu caminho independentemente do marido) se dedicava à divulgação da literatura brasileira. À ela se deve a primeira edição de Carolina Maria de Jesus fora do Brasil: Journal de Bitita (Ed. A.M. Métailié), cujo prefácio assina, e que se encontra exposto na mostra sobre a autora em cartaz no IMS Paulista. Por acaso, a outra exposição atual no IMS também remete indiretamente a ação de Clelia nos meios literários: reza a lenda que foi ela que introduziu Clarice Lispector às Editions des Femmes em Paris. Em todo caso é dela o prefácio da primeira edição francesa de A paixão segundo G.H., hoje um dos mais conhecidos romances da autora.
Piza era particularmente próximo de Sérgio Camargo, Sérvulo Esmeraldo, Samson Flexor, Lygia Clark, Rossini Perez, Flávio Shiró, dos argentinos Julio Le Parc e Antonio Seguí, do chileno Roberto Matta (estou certamente esquecendo gente…). No meio desta efervescência intelectual e certa euforia política (eleição de Mitterrand na França, abertura gradual dos regimes na América do Sul), Piza funda e anima – com Le Parc, Matta, Luis Tomasello, Garcia-Rossi, Rodolfo Krasno, Jack Vanarsky, seguidos de outros tantos – o Espaço Latino-americano, definido como “um lugar de confronto e de divulgação de diversos aspectos da criatividade latino-americana atual”, mas também um meio de “fazer conhecer a obra de jovens artistas franceses e europeus na América latina”. [L’Espace latino-américain funcionou em Paris, de 1980 a 1993].
Biblioteca do ateliê: o importante fundo de literatura brasileira de Clélia ladeia mementos de Piza. Foto: Hélio Campos Mello
ARTE!✱ – Como surge o Fundo Arthur Piza?
Quando Piza faleceu, em 2017, o fundo de dotação toma forma, segundo as linhas diretivas traçadas pelo casal. Instalado no atelier do artista, ele tem como objetivo a preservação e a divulgação da sua obra – incluindo a elaboração de seu catálogo raisonné, ao qual os seis membros do Conselho (três pelo Brasil e três pela França: Marcelo Araújo, Maria Antonieta Dente, Catherine de Leobardy, Virginie Durval, Henri Helman e eu) se dedicam ativamente. Damos também continuação ao Prêmio Piza, instituído pelo casal em 2014.
ARTE!✱ – Em que consiste especificamente o prêmio?
Ele se destina a perpetuar e expandir a troca entre as cenas artísticas francesa e brasileira, na qual ambos tanto acreditavam. Os laureados – um/a por ano, alternadamente franceses e brasileiros – são convidados a passar um mês no “outro” país. Não há qualquer obrigatoriedade de produção, nem tampouco linguagem plástica privilegiada. A ideia é oferecer um momento de contato, de curiosidade benfazeja, de descoberta. As pontes vão se fazendo, quase naturalmente. Em sua vinda ao Brasil, o primeiro laureado, o parisiense Jérôme Benitta, que pratica uma pintura super matérica, encontrou o segundo, o excelente gravador Fabricio Lopez. Quando este foi para Paris, a maionese pegou: fizeram uma série de obras a quatro mãos, e uma exposição que os Piza tiveram o prazer de presenciar. A ponte leva às vezes mais além do que aos artistas do prêmio: Jérôme já voltou a São Paulo para duas residências no Ateliê Fidalga, e tem exposição prevista na CasaGaleria em agosto de 2022.
Placa de cobre para gravura. Foto: Hélio Campos Mello
Por causa da pandemia, os prêmios de 2020 e 2021 viajarão em 2022. Trata-se de Jeremy Chabaud, cuja prática artística incluindo pintura e escultura já lhe valeu prêmio residência da Fundação Albers em Nova Iorque, mas que usa também de uma enorme dose de “fazer-junto”, desenvolvendo projetos colaborativos (não à toa, ele é o atual diretor da associação Jeune Création em Paris); e de Santídio Pereira, nascido no Piauí em 1991, que vem desenvolvendo uma maneira bem sua de fazer gravura, com um domínio cada vez maior da técnica a serviço daquelas imagens maravilhosas que carrega em si.
Não faltarão oportunidades para que eles, Sophie Lambert (artista de figuração refinada, prêmio Piza 2016), Estela Sokol (que usa luz e cor como matéria escultórica, laureada 2017) e os próximos laureados, continuem tecendo vínculos entre os dois países. É o dominó de amizades e afinidades em torno do(s) Piza que continua a avançar. ✱
Pablo Picasso, "Massacre na Coreia", 1951. Foto: BPK/RMN-Grand Palais/Mathieu Rabeau/Succession Picasso/VG Bild-Kunst, Bonn 2021
Por Tereza de Arruda*
Pablo Picasso, “Massacre na Coreia”, 1951. Foto: BPK/RMN-Grand Palais/Mathieu Rabeau/Succession Picasso/VG Bild-Kunst, Bonn 2021
Picasso dividido é uma mostra concebida pelo Museu Ludwig de Colônia com o apoio especial do Museu Nacional Picasso de Paris, sob curadoria de Julia Friedrich, com o propósito de rever o papel e visibilidade exercidos por Pablo Picasso nas duas Alemanhas, ainda divididas durante o período da Guerra Fria. Mais de 30 anos após a queda do Muro de Berlim, a recente memória e legado histórico deste país são revistos em inúmeras facetas, mas é nesta mostra que um ícone da arte contemporânea é analisado sob uma lupa, como um exemplo entre tantos outros, cujas existências fazem parte não somente do imaginário, mas de um legado político cultural.
A exposição aborda temas relevantes para o entendimento do que associamos a Picasso? E o que os alemães do pós-guerra associaram a ele quando a sua fama estava no auge? Não se trata apenas do artista, mas do seu público, que no ocidente capitalista e no oriente socialista assimilou a arte de Picasso de formas concebivelmente diferentes. O Picasso alemão era uma arte dividida e fragmentada, mas a divisão inspirou a comunicação: todos questionavam esta arte porque ela tinha algo a dizer a todos, independente de que lado do país se encontrava o apreciador de sua obra.
A recepção da obra Picasso na Alemanha do pós-guerra foi determinada por dois períodos: A era nazista e a Guerra Fria. Os nazis puseram um fim brusco a qualquer envolvimento com a arte de Picasso; após 1945, a arte modernista passou por revisão minuciosa. Mas a Guerra Fria forçou a Alemanha capitalista e a socialista a chegarem às suas próprias interpretações. No Ocidente, Picasso foi elogiado pela diversidade formal e pela produtividade. O Oriente, pelo contrário, celebrou o seu compromisso, porque a partir de 1944 Picasso foi membro do Partido Comunista Francês. Será que os nazis usurparam a arte? Isso significa que agora a arte tem de ser isenta das aspirações políticas? Essa foi a conclusão no Ocidente. Ou deveria a arte estar agora ainda mais envolvida na luta política? Esse era o pensamento no Oriente, e também o pensamento de Picasso. Também não faltam surpresas: Picasso foi banido no Ocidente. E embora o seu trabalho quase nunca tenha sido visto na RDA – República Democrática Alemã (Oriental), o debate sobre ele foi mais vivo lá do que na RFA – República Federal Alemã (Ocidental). Além disso, as fronteiras estatais eram frequentemente atravessadas – o que também faz parte da história do Museu Ludwig, pois Peter e Irene Ludwig, colecionadores, possuíam negócios promissores em ambas Alemanhas.
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Vista "Picasso Dividido" no Museu Ludwig, em Colônia. Foto: Achim Kukulies, Düsseldorf / Picasso Succession/VG Bild-Kunst, Bonn 2021
Picasso assinou lenços para uma delegação da Juventude Alemã Livre Socialista (FDJ) no encontro de jovens em Nice, 1950.
Foto: Picasso Succession/VG Bild-Kunst, Bonn 2021
A exposição mostra obras políticas, tais como a pintura Massacre na Coreia, 1951, do Museu Picasso em Paris. Em 1955, pouco antes da grande retrospectiva itinerante de Picasso pela Alemanha Ocidental, em Munique, Colônia e Hamburgo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros aconselhou a direção da exposição a abster-se de mostrar obras políticas. Isto incluiu Massacre na Coreia, que denunciou o papel que o exército americano desempenhou na Guerra da Coreia (1950-1953). O quadro foi contudo exposto, mas não suscitou qualquer grande discussão. Ao mesmo tempo, houve uma luta em torno de Picasso na República Democrática Alemã. A revista especializada de arte da RFA Bildende Kunst nivelou a acusação de que obras como Massacre na Coreia eram como caricaturas e insultou as vítimas. O artista, segundo a revista, tendeu para o “formalismo”. Os defensores de Picasso salientaram que, entre outras coisas, as mudanças nas percepções das pessoas na era moderna também exigiam uma mudança na forma.
Além desta obra icônica podem ser vistas na mostra atual cerca de 150 trabalhos que refletem a produção de Picasso e seu efeito, como fotos de exposições, cartazes e catálogos, textos jornalísticos, cartas, filmes e reportagens televisivas, bem como uma cortina de teatro do Berlin Ensemble na qual Bertolt Brecht pintou “a pomba beligerante da paz do meu irmão Picasso”. O artista era adequado como figura de proa e de projeção em ambos os sistemas, atendendo às perspectivas distintas de leitura. Foi membro do Partido Comunista Francês, apoiou lutas de libertação e congressos de paz. No entanto, viveu no Ocidente e permitiu que a crítica burguesa o estilizasse como um gênio apolítico, um “mistério Picasso”. Que obras foram mostradas sob o socialismo e quais sob o capitalismo? Como é que Picasso foi comunicado? Será que o Ocidente viu a arte, a política oriental? O que é que o próprio artista vivenciou? Picasso Dividido examina a imagem que poderia ser feita das imagens de Picasso de ambos os lados. Um dos focos é a coleção Picasso de Peter e Irene Ludwig, ainda hoje uma das mais extensas e base desta mostra concebida para o Museu Ludwig de Colônia.
*Tereza de Arruda é historiadora de arte e curadora independente. Vive desde 1989 entre São Paulo e Berlim, onde cursou história da arte na Universidade Livre de Berlim. Realizou curadorias em instituições como CCBB, Museu da República (DF), me Collectors Room Berlin e Kunsthalle Rostock, onde é curadora-adjunta desde 2015.
Instalação de Urs Fischer na rotunda da Bolsa de Comércio de Paris. Foto: Hélio Campos Mello
Estamos fartos de saber que os países desenvolvidos cultuam sua história, e que vários desses movimentos foram às custas da nossa própria existência como países subdesenvolvidos, seja porque levaram nossas obras, nosso ouro ou nossas terras.
Não obstante, é impossível não ficar impressionado com o respeito à memória e o cuidado que exercem pelo que foi construído por seus antepassados. O Estado forte serve entre outras coisas para, em parcerias público-privadas, remodelar, reformar e manter o patrimônio arquitetônico e cultural desses países.
É até por isso que tem sido fundamental reclamar e criar movimentos pela restituição de várias das obras africanas e latino-americanas em posse de alemães, franceses e outros europeus. Em novembro passado, por exemplo, 26 obras de arte do antigo Reino de Dahomey, que estavam expostas no Museu du Quai Branly, em Paris, foram devolvidas ao Benim. Desde 2020, por iniciativa do presidente francês Emmanuel Macron, está em vigor uma lei que facilita a devolução de obras apreendidas no período colonial.
Já a reabertura da Bourse de Commerce (Bolsa de Comércio) de Paris, na rue de Viarmes, com a exposição da coleção François Pinault, é sem dúvida um exemplo do cuidado com a memória. O edifício central foi construído como um grande celeiro a céu aberto no século 18 e, a posteriori, fechado com uma grande cúpula de ferro.
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Peter Doig, "Red Man", 2017. Foto: Hélio Campos Mello
O interior da rotunda cujos afrescos representam a história do comércio entre os cinco continentes foram pintados na época por Alexis-Joseph Mazerolle, Évariste Vital Luminais, Désiré François Laugée, George Clairin e Hippolyte Lucas e restaurados em 1998.
Agora, após três anos de reformas e restaurações feitas pelo arquiteto japonês Tadao Ando, o edifício reabre suas portas e ganha uma linguagem contemporânea sem macular um único espaço da sua estrutura original. Hoje, o átrio comporta sete galerias ao longo de três andares, um grande salão e um restaurante no último andar.
A exposição Overture marca, além da transformação do prédio, a busca do colecionador Pinault por valorizar e defender valores sobre a liberdade, ligados à diversidade, a posições emergentes. Como em uma ópera, a exposição traz vários “momentos” e “atmosferas”, assim como diferentes práticas artísticas como esculturas, vídeos, instalações, performances, fotografias e pintura, muita pintura.
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Antonio Obá, "Garoto com cabelo de pipoca Atotô", 2019. Foto: Hélio Campos Mello
Kerry James Marshal, "Laundry Man", 2019. Foto: Hélio Campos Mello
Tatiana Trouve, "The Guardian", 2019. Foto: Hélio Campos Mello
Estão lá não só artistas europeus de renome como Maurizio Cattelan, Marlene Dumas, Pierre Huyghe, Philippe Parreno, Rudolf Stingel e Tatiana Trouvé, entre outros, mas também representantes da nova cena de artistas negros como o norte-americano Kerry James Marshall e os brasileiros Antonio Obá e Paulo Nazareth. No centro da rotunda encontra-se a instalação de Urs Fisher, Untitled (Giambologna), de 2011, que é uma réplica exata da The abduction of the Sabine Women, uma estátua maneirista de 1579-1582, produzida por Giambologna. Desta vez produzida em cera e aço, e com mechas acesas, ela se derrete em diferentes lugares e vai perdendo sua forma.
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"Natures Mortes" (Natureza Morta), da artista e performer alemã Anne Imhof no Palais de Tokyo em outubro de 2021. Foto: Patricia Rousseaux
"Natures Mortes" (Natureza Morta), da artista e performer alemã Anne Imhof no Palais de Tokyo em outubro de 2021. Foto: Patricia Rousseaux
Outra experiência digna de ser acompanhada foi a abertura do segundo subsolo, no Palais de Tokyo, edifício consagrado da arte contemporânea em Paris, no 16≠ arrondissement do lado da Torre Eiffel, e que deu lugar a performance Natures Mortes (Natureza Morta), da alemã Anne Imhof. Um espaço completamente aberto sem divisórias que permitiu acolher uma obra polifônica que funde espaço, música, instalações e a participação dos corpos dos cerca de trinta artistas convidados.
Fortíssima, com movimentos e encenações que relembraram o tempo todo o momento que vivemos: de solidão, pavor, sofrimento e em alguns momentos de alienação, a performance de cerca de quatro horas congregou centenas de pessoas em segurança, máscaras e certificado de vacina para entrar, mas que também se movimentavam um pouco absortos pelo espaço, como esperando ou buscando algo que faltou a todos e a cada um nesse tempo onde a incerteza foi a nota alta da nossas vidas.
"Regras do jogo", No Martins, 2021. Foto: Patricia Rousseaux
“Regras do jogo”, No Martins, 2021. Foto: Patricia Rousseaux
Como se não bastasse saber da nossa fragilidade, é fato que estão vindo à tona, como nunca, os embates que cedo ou tarde apareceriam por conta da desigualdade brutal que foi construída ao longo dos séculos 19, 20 e 21. O brutal processo colonizador segue excludente em novas roupagens e, pior, faz retroceder muitas conquistas duramente alcançadas após a Constituição de 1988.
Na arte, isso apareceu no grito dos artistas indígenas e negros que, crescendo na sua representatividade, se encontram com pressões inerentes às barreiras culturais próprias da dicotomia que existe quando se trata de fazer arte, compartilhar arte e comercializar arte. A voracidade perversa do circuito coloca tudo em questão: não basta escrever, tem que vender; não basta pintar, tem que vender; e, para vender, nem sempre a melhor obra é a que dá para pendurar na parede.
É só observar obras levadas por galerias para a Art Basel Miami, ostentando a cor para garantir uma espécie de condomínio da alienação.
Porém, como vivemos tempos agudíssimos, tudo isso está em questão e até os grandes colecionadores se rendem à ideia de que não dá para disfarçar. Com isso, crescem a presença das mulheres, indígenas e negros nas coleções. São conquistas que vieram para ficar, apesar das reclamações do patriarcado privilegiado.
No meio das tréguas que o vírus e suas variantes nos dão, junto a uma maior vacinação, houve oportunidade de sair novamente, entrar em contato com obras, visitar novas cenografias e até viajar e dar uma olhada na cena internacional.
Assim, acompanhamos artistas brasileiros que transitam na nova cena internacional, que estão experimentando novos projetos no interior do Brasil e que formam parte da razão pela qual sempre foi válido investir na cultura brasileira, singular e prolífica.
Até a coleção de François Pinault, onipresente em Veneza e uma das maiores do mundo, ganhou espaço em Paris com a exposição Overture, na reformada Bourse de Commerce (Bolsa de Comércio), incluindo obras do brasileiro Antonio Obá – nascido em Ceilândia, cidade satélite de Brasília. Julio Villani, com sua enorme trajetória, expõe em Paris e Nova York; No Martins está na maior galeria de Chicago, Mariane Ibrahim, agora com sede também em Paris; Maxwell Alexandre, no Palais de Tokyo, e o gravador Santidio Pereira expõe em Shangai.
Nesse sentido, é dramático ver a contradição que existe entre a realidade e a miséria ideológica dos políticos que hoje nos governam, que iniciaram uma cruzada de precarização das instituições e empresas dedicadas à cultura e a difusão da cultura. Ouvimos impávidos o secretário de cultura Mario Frias – vinculado atualmente ao Ministério do Turismo, que se “responsabiliza” pela cultura, suas estratégias e seu orçamento no Brasil –, dizer que lutará com todas suas forças para que não avance a recém-aprovada Lei Paulo Gustavo, que prevê uma verba de quase R$ 4 bilhões para o setor cultural em Estados e municípios.
Em longa entrevista nesta edição, Danilo Santos de Miranda, que preside o Sesc-SP desde 1984 e é responsável por inúmeras atividades permanentes de altíssima qualidade em mais de 40 unidades no Estado, comenta:
“É uma sequência de pioras progressivas, infelizmente. A lei Rouanet é uma lei invejada por outros países do mundo (…) Havia problemas sobretudo quanto à questão geográfica e quanto à uma mistura entre o publicitário e o cultural mas, ainda assim, era uma lei que tinha ampla participação de empresários, artistas, promotores culturais, criadores e gestores, com uma comissão representativa da sociedade. Quando você corta isso e torna tudo decidido unicamente por uma pessoa, seja quem for, você está andando para trás.” (leia a entrevista com Danilo Miranda)
É necessário falar, mesmo que alguns se sintam incomodados, que a arte, como parte da cultura e da educação geral de uma sociedade, precisapular fora dos muros dos grupos ideológicos e financeiros para poder ser grande.
Grand Palais Ephemere, onde ocorreu a Feira Internacional de Arte Contemporânea (FIAC) de Paris em 2021. Foto: Hélio Campos Mello
Em inúmeros países da Europa, a volta para a montagem de mostras, feiras e eventos tem conseguido reunir visitantes cautelosos, mas radiantes por poder reencontrar seus colegas, seus clientes e um amplo público ávido por experimentar novamente o contato com a obra.
Existem ainda dificuldades de programação, já que vários países enfrentam diferentes cenários quanto à vacinação, trazendo como consequência novos picos de contaminação. Com a chegada do inverno no hemisfério norte e novas cepas do vírus, recrudesce a predisposição para a doença, o que está levando ao endurecimento de medidas por parte dos governos, inclinados a tornar obrigatória a vacinação. Já na França, mesmo usando máscaras de forma rigorosa, o visitante não pode entrar em nenhum estabelecimento, seja restaurante, drogaria ou museu sem a apresentação do Passaport Sanitaire francês ou do país de origem traduzido e reconhecido.
Especificamente, a tradicional feira francesa FIAC, que aconteceu do dia 21 a 24 de outubro, em Paris, voltou completamente repaginada no Grand Palais Éphémère, já que seu endereço original, o Grand Palais, entrou em uma reforma pesada desde 2019. Este novo espaço, construído especialmente para a feira, foi autorizado na Reunião Nacional de Museus junto ao Comitê dos Jogos Olímpicos de Paris 2024. Foi construído pelo arquiteto Jean-Michele Wilmotte no espaço ao lado da Place Joffre, no Champ de Mars, levando em consideração materiais sustentáveis (madeira, lona) passíveis de serem desmontados com facilidade e repaginados.
A feira, na abertura, se apresentou quase improvisada, com um bom sistema de segurança, mas com inúmeros problemas de atendimento ao público. Sistema precário de agenda, atendimento à imprensa e visitantes e alguns estandes pouco cuidados. Não foram pensados espaços confortáveis para se recolher, ler e se planejar no trajeto entre os estandes.
Isso, que diz mais sobre a gerência administrativa da feira, quase uma certa arrogância, no entanto não chegou a opacar o brilho dos expositores que concorreram de vários países da Europa, África e Ásia e que sempre trazem excelentes elencos.
Galerias históricas e tradicionais como Thaddaeus Ropac mostraram obras do Georg Baselitz, coincidindo com a nova retrospectiva do artista alemão que acaba de abrir no Centro Pompidou, e que permanecerá até 7 de março de 2022. A Thaddaeus Ropac vendeu, do artista, Bad in Flur (2021), no valor de 1.2 milhões de euros.
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Max Ernst, La Place de I’Étoile, 1929
Francis Picabia, sem título, 1940-43
Man Ray, Personnage, 1941
Jean Dubuffet, Ford 548-Y-63, 1961
A Galeria 1900-2000, fundada em 1972 sob os conselhos de Man Ray, focou no início no dadaísmo, nos surrealistas, no pop, e nos hiper-realistas e foi ampliando seu elenco para o Fluxus e contemporâneos como George Condo e Jean-Michel Basquiat. Ela mostra tradicionalmente tesouros de Picabia, Max Ernst e Man Ray, do Alighiero Boetti e Joseph Kosuth.
O artista brasileiro Julio Villani, radicado em Paris desde 1982, forma parte do núcleo de artistas da galeria. Sua obra, 65 cm de pintura, acrílica sobre tela de 1992, foi vendida no primeiro dia.
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Obra da série "Pictures of What I Did Not See", de Chantal Joffe, feitas em giz pastel e lápis de cera, expostas pela galeria Victoria Miro na FIAC 2021. Foto: Hélio Campos Mello
Obra da série "Pictures of What I Did Not See", de Chantal Joffe, feitas em giz pastel e lápis de cera, expostas pela galeria Victoria Miro na FIAC 2021. Foto: Hélio Campos Mello
Detalhe de "Dispersión devant l’Impasse", de Omar BA, 2021. Foto: Hélio Campos Mello
Várias obras figurativas reaparecem como estrelas. Alice Neel, Chen Ke, Jean-Michel Othoniel, Yves Laloy, que foram vendidas logo no começo. Victoria Miro apresentou uma série belíssima de 10 pastéis de Chantal Joffe, What I did not see, 2019. E artistas negros também passam a ter maior expressão no circuito. A Templon trouxe uma obra muito original de Omar Ba, senegalês nascido em 1977, Dispersion Devant l’impasse,2021.
Na toada da inclusão de artistas representantes da art brut ou art outsider no “circuito oficial do mercado”, que vem crescendo desde a exposição Palazzo Enciclopedico, na Bienal de Veneza de 2013, e se inserindo em museus como o Met e o MoMA, a Christian Berst Art Brut, de Nova York, apresentou o artista checo Luboš Plný, cujo potente trabalho é produto da sua fascinação com a iconografia médica. Ele chega a provocar e estudar situações no próprio corpo, quase como performances, testando seus limites. Seu trabalho já foi apresentado na 17a Bienal de Veneza e no Museu National d’Art Moderne de Paris, em 2013.
No setor de arte contemporânea, a brasileira Jaqueline Martins, que abriu recentemente uma filial em Bruxelas, apresentou uma paisagem construída com esculturas em madeira, cada uma fazendo parte de uma composição ficcional.
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Artista checo de Art Brut, Luboš Plný, apresentado por Christian Berst Art Brut. Foto: Hélio Campos Mello
George Baselitz, "Karl May Bar", 2021. Foto: Hélio Campos Mello
Como sempre a FIAC tomou a cidade em associação com o Museu do Louvre, apresentando Hors les Murs, cerca de 20 obras e instalações distribuídas ao longo do Jardin des Tuileries e no centro de Paris.
Visitar a FIAC, para quem compra ou para quem está atento aos movimentos internacionais de arte moderna e contemporânea, é um imenso prazer, ainda mais porque permite percorrer os museus e instituições francesas cujas curadorias e exposições são sempre um novo descobrimento.
Jérémy Chabaud, vencedor do Prêmio Arthur Piza e atual diretor da Association Jeune Création. Foto: Hélio Campos Melo
O artista francês Jérémy Chabaud é um dos dois laureados deste ano do Prêmio Arthur Luiz Piza, iniciativa cuja proposta é manter viva a relação dos artistas jovens franceses com o Brasil e dos jovens artistas brasileiros com a França.
Jérémy, que já expôs na França e nos EUA, é o atual diretor da Association Jeune Création, entidade de artistas criada em 1949. A Association, que ele preside, acabou de ganhar um espaço na Fondation Fiminco, em Romainville, na região noroeste de Paris, e possui também um local para residência de artistas em Marselha, no sul da França. É considerada uma iniciativa fundamental para artistas que não estão inseridos no mercado. “Por 70 anos a Jeune Création está em movimento, se reinventando e sempre deixando-se envolver pelas gerações que o atravessam. Ela procura ser o reflexo cru e sólido do mundo e da sua época”, comenta Jérémy.
Anualmente é realizada uma importante exposição, agora em sua 71ª edição em 2020/21, que exibe as obras de 46 artistas escolhidos por um júri formado por jovens artistas e uma convidada, neste caso a crítica de arte e curadora Nathalie Desmet. A metodologia de trabalho, comenta Jérémy, é extremamente horizontal, já que a direção e os trabalhos são escolhidos pelo próprio grupo, que é composto em sua maior parte por artistas no começo de suas carreiras. “O reconhecimento mútuo é, portanto, muito importante. Grande parte da discussão é também baseada em assuntos éticos: visibilidade, paridade, representatividade, inclusão. O festival anual do Jeune Création não é, portanto, apenas uma exposição, mas uma espécie de convenção de múltiplas vozes; o reflexo de uma experiência que é tão humana quanto é artística, onde as escolhas coletivas acabam se tornando a seleção: um extrato do que nos seduz, o que nos marca, o que a nós nos parece promissor ou necessário trazer à luz”, diz Nathalie Desmet.
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Santídio Pereira, ganhador do Prêmio Arthur Piza, em seu ateliê. Foto: João Liberato
Santídio Pereira em seu ateliê. Foto: João Liberato
Xilogravuras de Santídio Pereira na exposição "No Power Station of Art", em Shanghai, China. Foto: Orange Image
Deste lado do Atlântico, o gravurista Santídio Pereira é o escolhido pelo Prêmio Arthur Luiz Piza para viajar para França em 2022 e realizar sua pesquisa e residência. Ele nasceu em 1996, em Curral Comprido, um pequeno povoado localizado na cidade de Isaías Coelho, no interior do Piauí. Foi um dos jovens favorecidos pelo Instituto Acaia, uma ONG que atende crianças e adolescentes residentes próximas ao Ceagesp, local onde Santídio também trabalhou.
“A xilogravura atendeu aos primeiros interesses do artista, que desenvolveu procedimentos próprios de trabalho, como o que ele denomina ‘incisão, recorte e encaixe’, ou seja, a composição por meio da combinação de várias matrizes recortadas, como peças de um quebra-cabeça. Além de proporcionar um jogo de cores através do acúmulo e justaposição de tinta, essa técnica permite subverter a função de multiplicidade, tão característica da gravura. São duas as séries de xilogravuras mais representativas de Santídio: Pássaros (2018) e Bromélias (2019). A memória afetiva levou o artista a investir numa pesquisa iconográfica sobre os pássaros da caatinga do Piauí. Mais tarde, a partir da residência artística Kaaysá, realizada em Boiçucanga, surgiu a série de Bromélias. Já Morros (2021) surgiu com o sentimento de liberdade ao se deparar com a paisagem natural de Santo Antônio do Pinhal, Serra da Bocaina e da Cantareira, todas em São Paulo”, informa a biografia do autor no site da Galeria Estação – que o representa desde o começo de sua carreira. Santídio acaba de participar de importante exposição em Shangai. Ele resgata reminiscências de cores, imagens e sensações e sua obra é ao mesmo tempo quase minimalista, de alto teor sensível.
Danilo Santos de Miranda, filósofo, sociólogo e diretor-regional do Sesc-SP Foto: Matheus José Maria
Danilo Santos de Miranda, filósofo, sociólogo e diretor-regional do Sesc-SP Foto: Matheus José Maria
Mesmo se dizendo uma pessoa otimista, Danilo Santos de Miranda, 78, não esconde sua grande preocupação com o momento político que o Brasil atravessa: “Estamos em uma situação terrível, sob vários aspectos”, diz o sociólogo e filósofo, diretor-geral do Sesc-SP desde 1984. “Isso vem de antes da pandemia, com erros na condução da economia, com a falta de financiamento para a cultura, com esse negacionismo ao campo do conhecimento e da ciência. E a coisa ficou muito pior com os milhares de mortos, o sacrifício, a dor e o luto espalhados pelo país.”
Em entrevista à arte!brasileiros, Miranda faz um balanço da atuação do Sesc-SP durante a pandemia, com sua intensa atividade virtual, e fala da volta ao presencial: “O encontro, o convívio, as atividades presenciais, isso é essencial para o nosso dia a dia”. É por isso mesmo que a instituição planeja também a abertura de uma série de novas unidades nos próximos anos, algumas delas já em construção – como Franca, Limeira, Marília e Parque Dom Pedro (na capital).
Sobre as constantes tentativas de corte de recursos para as entidades do Sistema S – como Sesc, Senac, Sesi e Senai -, financiadas por taxas compulsórias cobradas na folha de pagamento das empresas (com orçamento anual que chega a quase R$ 20 bilhões), Miranda afirma que isso não é exclusividade do atual governo: “Isso sempre nos preocupou e exigiu de nós uma espécie de comprovação permanente da nossa importância. Como se todos os dias tivéssemos que mostrar o porquê de existirmos, qual o papel que nós fazemos e motivo pelo qual a sociedade necessita da nossa atuação”.
Por outro lado, o que é característica mais particular da atual gestão federal, segundo ele, é que “o governo não tem nem a menor ideia do que é cultura. Não são pessoas que se dedicam ou que mergulham nesse conceito. Quando colocam, por exemplo, a cultura como parte de uma ação voltada para o turismo, sem dúvida nenhuma não entenderam nada do que ela significa” – o ministério da Cultura foi extinto sob o governo Bolsonaro e a atual secretaria é vinculada à pasta do Turismo.
Miranda falou também sobre a desigualdade global e regional escancaradas pela pandemia, sobre a necessidade de aprendermos a ser mais solidários e de atentarmos “à questão ambiental, à questão da diversidade, à questão de gênero e do respeito mútuo”. Leia abaixo a íntegra da entrevista.
ARTE!✱ – As unidades do Sesc, mesmo sendo espaços privados, sempre se colocaram na cidade quase como extensões do espaço público. São abertas a todos, pensadas para uma convivência criativa e democrática, enfim, ligadas a um projeto de “bem-estar social e de bem viver”, nas suas próprias palavras. Por um ano e meio estas unidades precisaram fechar as portas, por conta da pandemia. Como foi essa experiência de tentar manter a missão do Sesc sem os espaços físicos?
Danilo Miranda – Fez muita falta, já que o espaço é vital para podermos cumprir a nossa missão plenamente. O encontro, o convívio, as atividades presenciais, isso é essencial para o nosso dia a dia. Eu costumava dizer que a nossa grande especialidade é juntar gente. Agora, diante dos fatos, da nova situação, tivemos que nos reinventar, mudar as coisas. Então as unidades foram fechadas e passamos a fazer uma infinidade de atividades através do nosso sistema à distância, com grande alcance em nossas páginas. Tivemos uma ação muito forte do ponto de vista de conteúdo, com destaque para o Sesc Digital, que é uma plataforma que já estava pronta e foi lançada logo no início da pandemia, em abril de 2020. Lá temos muito material de acervo – mais de 20 mil itens -, uma complementação muito grande do ponto de vista de prestação de serviços e muita informação. E isso foi se aperfeiçoando. Aos poucos fomos prestando alguns serviços presenciais pré-agendados, na parte de alimentação, de odontologia e, mais à frente, até cursos, exposições, shows etc. Somente agora estamos reabrindo completamente.
Espaço aberto do Sesc Pompeia, em São Paulo, projetado por Lina Bo Bardi Foto: Araty Perone
ARTE!✱ – A partir de agora o Sesc-SP passa a trabalhar então em um modelo híbrido entre virtual e presencial? Como são os planos neste sentido?
Sim, nós vamos misturar os dois, o que vai tornar a nossa atuação ainda mais efetiva. Eu já dizia, há algumas décadas, que tudo o que fosse possível deveria ser feito à distância. E nós não tínhamos nem dimensão ainda de quanta coisa isso representava, do lugar em que as tecnologias chegariam. Eu pensava principalmente na parte burocrática, de informações, agendamentos e inscrições, para que as pessoas já chegassem nas unidades com as coisas facilitadas. Mas isso se exacerbou, especialmente agora na pandemia, e o virtual ganhou uma força muito maior, e vamos trabalhar também com essa realidade.
ARTE!✱ – No início da pandemia muito se falou sobre a necessidade de aprender algo com o que estava acontecendo, ou seja, uma ideia de que deveríamos sair deste período sabendo lidar melhor com o mundo à nossa volta. Agora, quando vemos um avanço grande na vacinação e a retomada de grande parte das atividades, você acha que de fato aprendemos algo? Mudamos nosso modo de ser ou voltamos para o mesmo lugar?
Falando institucionalmente, no Sesc-SP nós fizemos um grande esforço nesse sentido. Muitas coisas que acumulamos neste período – de informação, modos de fazer e de encarar as coisas – vão ser incorporadas nos nossos hábitos. Agora, falando de modo amplo, eu não gosto da expressão “retorno ao normal”. Porque o normal já era problemático demais, nós já enfrentávamos uma situação de aperto econômico, de dificuldades para financiar muitas ações… Não digo no Sesc, internamente, mas do ponto da sociedade, especialmente no mundo da cultura. Já havia constrangimentos graves antes da pandemia. E então voltar ao normal significa voltar para aquilo? Não nos interessa. Então vamos retomar nossos hábitos, mas também buscar esse caminho novo, que não tem nada a ver com o período pandêmico, mas tampouco com o período anterior. Queremos mudanças mais profundas.
Porque acho que, apesar de tudo, nesse tempo nós enriquecemos o nosso entendimento das coisas, sob determinados aspectos de convivência, de solidariedade, de consideração com o outro, da dependência mútua entre nós. São coisas que foram incorporadas, mesmo que de um jeito muito forte, quase forçado, e nós precisamos ter mais consciência de que vivemos em uma sociedade onde a solidariedade deve ser incorporada – independentemente de posições de caráter político ou religioso, mas do ponto de vista puramente humano. E nesse aspecto alguns pontos ficaram muito exacerbados. A questão ambiental, a questão da diversidade, a questão de gênero, do respeito mútuo, tudo isso vem junto. Não são coisas novas, mas começaram a ser mais exigidas de nós respostas a tudo isso. Então uma grande quantidade de instituições, organizações e empresas estão mais atentos a isso, no mundo inteiro. Governos também, mas aí não é o nosso caso. Somos uma exceção, um absurdo total.
ARTE!✱ –Em conversaque tivemos no começo da pandemia, quando o epicentro dessa crise estava na Europa, você afirmou que se lá a epidemia estava sendo grave, aqui seria ainda pior. De fato, chegamos agora a cerca de 620 mil mortos. A pandemia escancarou ainda mais as desigualdades globais?
Sem dúvida nenhuma. Há um desequilíbrio enorme, isso é notável. Se olharmos o que ocorreu aqui, mas também em países da Ásia, da África e outras partes mais pobres do mundo, sobretudo no hemisfério sul, é bem diferente do que acontece no hemisfério norte. Isso vale para economia, para política, cultura, diplomacia… e vale também para a saúde. É muito grave.
E pensando internamente, em nosso país, há também uma desigualdade muito grande. Nós temos na cidade de São Paulo 100% da população adulta vacinada, enquanto em outros lugares do Brasil há ainda situações muito inadequadas, números muito abaixo disso.
Agora, de lá para cá as coisas caminharam de uma forma um pouco imprevista. Aqui no Brasil de fato chegamos a uma situação gravíssima, inclusive um descontrole total no começo deste ano, mas de lá para cá – mais por força da sociedade, da imprensa e de políticos de outros níveis que não o federal – nós conseguimos um processo de vacinação bastante amplo. E isso hoje nos coloca numa situação até de certa vantagem sobre uma boa parte da própria Europa, onde há um negacionismo muito maior em relação à vacina. Então as coisas mudaram um pouco e é por isso que podemos ter também essa perspectiva de reabertura no Sesc. Ao mesmo tempo, temos razão de sobra para ter muita prudência ao pensar, por exemplo, nas festas de fim de ano, no carnaval e até mesmo nas propostas de liberação do uso de máscara em espaços abertos. No Sesc, por enquanto, vamos exigir as duas doses de vacina e máscara, para os funcionários e para os visitantes.
Obra de Carlito Carvalhosa em área interna do Sesc Guarulhos, inaugurado em 2019. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Lembrei de uma entrevista sua em que você fala que nós vivemos uma realidade muito materialista, onde as coisas são colocadas apenas do ponto de vista do desenvolvimento econômico, mas que, cada vez mais, se percebe que a busca pela qualidade de vida depende de muito mais coisas. E aí você fala de educação e cultura em um sentido amplo, sendo elas as bases do trabalho do Sesc-SP. Poderia falar um pouco sobre isso?
Para nós, o conceito de cultura sempre foi muito amplo e muito vinculado à questão educacional. Nesse sentido, os conceitos de cultura e educação até se confundem, porque significam a preparação para uma vida melhor, a busca de um bem-estar maior para todos, em todos os aspectos. Aí entra a questão do conhecimento, da visão de mundo, da percepção das coisas, de senso estético, do senso de comunidade e de pertencimento. Mas entram também as questões de caráter pessoal, questões físicas, de saúde, de alimentação, do modo de vida, e também questões ambientais. Inclusive, os nossos povos indígenas colocam isso de maneira muito integrada, tudo é parte de tudo: nós somos parte desse todo, e o que este todo também é parte de nós. E então, voltando ao Sesc, nós temos essa visão bastante holística, bastante ampla, bastante abrangente, atuamos com essa perspectiva.
ARTE!✱ – Essa visão ampla de cultura é, entre outras coisas, o que falta ao atual governo federal do país?
Não tenha dúvidas. O governo atual não tem nem a menor ideia do que é cultura, nem mesmo a tradicional, clássica. Não tem ideia nem do que é o conceito mais restrito de cultura, esse voltado para as artes e para o simbólico, nem do conceito mais amplo, de caráter antropológico, que diz respeito a tudo que é criação humana. Não são pessoas que se dedicam ou que mergulham nesse conceito. Quando colocam, por exemplo, a cultura como parte de uma ação voltada para o turismo, sem dúvida nenhuma não entenderam nada do que significa a própria cultura.
ARTE!✱ – Pensando nesse sentido, passaram pelo governo até agora cinco secretários de cultura, todos com atuações bastante polêmicas. Chegamos então ao atual secretário, Mário Frias, que parece estar cerceando cada vez mais a atuação na área, paralisando a Lei de Incentivo, entre outras coisas…
É uma sequência de pioras progressivas, infelizmente. A Lei Rouanet é uma lei invejada por outros países do mundo, uma vez que trata da questão do incentivo fiscal a partir das empresas, com os projetos empresariais vinculados à questão da cultura pública. É uma coisa que deve ser mais aprofundada, melhorada, avançada, sem dúvida nenhuma, e não digo que a lei é perfeita. Havia problemas sobretudo quanto à questão geográfica e quanto à uma mistura entre o publicitário e o cultural mas, ainda assim, era uma lei que tinha ampla participação de empresários, artistas, promotores culturais, criadores e gestores, com uma comissão representativa da sociedade. Quando você corta isso e torna tudo decidido unicamente por uma pessoa, seja quem for, você está andando para trás, prejudicando todo o entendimento da lei e impedindo efetivamente que ela seja aplicada devidamente. É um recuo gravíssimo, que diz respeito não apenas ao financiamento, mas ao caráter que eu chamaria de didático, educativo, no sentido de envolver as empresas em um compromisso de caráter cultural, social, comunitário e participativo.
ARTE!✱ – Aliás, é este mesmo secretário que foi à Bienal de Veneza e disse não saber quem é Lina Bo Bardi, arquiteta que projetou uma das mais emblemáticas unidades do Sesc-SP, o Pompeia…
Arquiteta que estava sendo premiada no evento. E o Sesc Pompeia é uma unidade exemplar, de fato, ícone da cultura no Brasil e no mundo. É um orgulho do Sesc e acho que de todo o país. Das obras de Lina é, para mim, a mais significativa e importante. Claro que o Masp tem papel central, o Solar do Unhão, a Casa de Vidro, todos são muito importantes, mas o projeto que tem maior vinculação com um vasto programa cultural e educativo, com a convivência, é o Sesc Pompeia.
ARTE!✱ – Migrando da Secretaria de Cultura para o Ministério da Economia, desde o início do governo há uma ameaça de cortes nos recursos do Sistema S. Recentemente isso se deu mais uma vez, com Paulo Guedes dizendo que queria usar parte da arrecadação para um programa de estímulo ao emprego. Em que ponto está esse imbróglio?
Olha, eu estou no Sesc há mais de 50 anos e desde lá eu ouço, por parte de praticamente todos os governos, sobre essas tentativas de tirar recursos ou até mesmo de impedir a continuação do funcionamento dessas entidades do Sistema S – como se elas tivessem um caráter supérfluo, desnecessário, desimportante. Bom, isso sempre nos preocupou e exigiu de nós uma espécie de comprovação permanente da nossa importância. Como se todos os dias tivéssemos que mostrar o porquê de existirmos, o porquê de devermos existir, qual o papel que fazemos e o motivo pelo qual a sociedade necessita da nossa atuação. E isso tem sido o grande elemento que impede que essas ideias de cortes prosperem, porque quando eles vão verificar sabem que essas instituições têm um caráter fundamental para a sociedade brasileira, em todos os sentidos – especialmente as quatro originais: Sesc, Senac, Sesi e Senai. Nós temos uma enorme quantidade de pedidos de prefeituras que desejam ter um Sesc, porque consideram essencial ter essa presença em suas cidades. Isso significa um valor importante, somos desejados e é sinal de que há uma aprovação da seriedade e qualidade do nosso trabalho. E, além disso, a nossa importância não é dada necessariamente pelos dirigentes públicos, pelos governos; nossa importância, nosso valor, é dado pelas milhares de pessoas que usam, que frequentam nossas unidades. Pessoas pelo país afora que usufruem seja da formação profissional especializada que o Senac e Senai oferecem, seja de um programa de cidadania, de bem-estar social e valorização do ser humano que o Sesc, o Sesi e outras instituições do Sistema S oferecem. Ou seja, nós prestamos conta do que fazemos permanentemente.
Mas, enfim, quanto à nossa relação institucional com o governo, nós temos também uma dependência efetiva de ações públicas e governamentais em nossa programação, em nossa maneira de agir. Temos relações com o governo e gostaríamos que elas fossem muito saudáveis, temos todo o interesse em manter boas relações com os três níveis de poder.
Imagem do futuro Sesc Franca, já em construção, uma parceria dos escritórios SIAA e Apiacás Arquitetos. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Aproveitando que você comentou de cidades que desejam ter a presença do Sesc, poderia falar das unidades que estão em construção neste momento?
Nós temos todo um planejamento para os próximos dez anos, aproximadamente, que prevê a criação de várias unidades em cidades do interior, na capital e no litoral de São Paulo. Atualmente estamos construindo uma unidade importante em Franca, que é a obra mais adiantada, além de outras em Limeira, Marília e no Parque Dom Pedro (capital). Recentemente inauguramos uma unidade em Mogi das Cruzes, teremos outra em Osasco e em breve a recuperação de uma área que nos foi entregue em São Bernardo do Campo. Há ainda ampliações em Registro e Ribeirão Preto – que é uma unidade muito antiga e precisa ser atualizada, e temos previsões também para construir em Pirituba, São Miguel Paulista e Campo Limpo. É muita coisa.
ARTE!✱ – De algum modo, portanto, apesar de toda a situação ruim no país, há sempre motivos para otimismo, para tocar em frente os projetos e imaginar transformações na sociedade?
Eu acho que sim, eu sou uma pessoa otimista. Olha, estamos em uma situação terrível no país, sob vários aspectos. Isso vem de antes da pandemia, com erros na condução da economia, com a falta de financiamento para a cultura, com esse negacionismo ao campo do conhecimento e da ciência. E a coisa ficou muito pior com os milhares de mortos, o sacrifício, a dor e o luto espalhados pelo país todo com o coronavírus. Agora, temos que ter uma perspectiva de mudança pela frente, temos que acreditar nisso, uma visão otimista, porque isso tudo tem que ser superado, não pode continuar. E depende muito de nós, de deixarmos evidente tudo o que está acontecendo.
Posso dizer que no Sesc-SP nossa programação segue muito positiva, otimista, com muitas coisas pela frente em todos os campos. No campo das artes visuais, por exemplo, já temos uma série de exposições importantes em cartaz – Alfredo Jaar no Sesc Pompeia, a Trienal Frestas em Sorocaba, entre outras– e em 2022 devemos trabalhar muito também com o centenário da Semana de Arte Moderna de 22, com os 200 anos da independência e com uma série de assuntos atuais que são fundamentais. Nós vamos continuar tocando o barco sem restrições. ✱
Em 2013, uma grande instalação foi apresentada na 18ª Bienal Sesc_Videobrasil com destaques dos primeiros 30 anos de trajetória do festival. Foto: Divulgação
Depois de um período de grandes incertezas e instabilidades – que obviamente ainda não se dissiparam totalmente no Brasil atual -, os próximos anos prometem ser um período prolífico e até mesmo celebrativo para a Associação Cultural Videobrasil (VB). Primeiro, pela efeméride dos 40 anos do 1º Festival Videobrasil, realizado em 1983, ainda nos últimos anos da ditadura civil-militar no país. Segundo, pela confirmação da realização da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil em 2023, adiada por dois anos por conta da pandemia e que já terá atividades programadas para o próximo ano. Há, ainda, a realização de uma grande exposição do vasto acervo do VB em Vitória (Espírito Santo), a partir de março, a continuidade das mostras virtuais no Videobrasil Online e a participação em outros projetos como uma exposição em cartaz no Museu da Língua Portuguesa.
Curadora estabelecida com vasta atuação no Brasil e no exterior, ex-diretora do MAM-BA e no comando da Associação VB desde o início, Solange Farkas era apenas uma jovem recém-formada – em jornalismo e história da arte pela Universidade Federal da Bahia – quando decidiu realizar o Festival Videobrasil. Já radicada em São Paulo, teve como principal incentivador o seu sogro, Thomas Farkas (1924-2011), um dos mais importantes nomes da fotografia e do cinema modernos no Brasil e, à época, dono da empresa Fotoptica. Já interessada no cinema underground brasileiro, tema de seu trabalho de conclusão de curso na UFBA, Solange se deixou levar pelos estímulos de Thomas, somados à clara percepção de que o vídeo se estabelecia como nova linguagem no país e no mundo.
“No início dos anos 1980 o vídeo estava surgindo como um equipamento. Existia o cinema e a televisão, mas não o que chamamos de vídeo”, conta ela em entrevista à arte!brasileiros. A produção brasileira anterior a esse período, ainda dos anos 1970, era basicamente circunscrita ao núcleo do professor Walter Zanini, que após adquirir no exterior um equipamento para o MAC-USP cedeu o uso para artistas como Regina Silveira, Wesley Duke Lee, Carmela Gross, Julio Plaza e José Roberto Aguilar. “Mas o equipamento de vídeo mais acessível chegou apenas no início dos anos 1980 e o Thomas sacou que ali tinha algo grande. E me perguntou se eu não queria fazer uma mostra, ou algo do tipo, que estimulasse os artistas a usarem o vídeo e mostrarem essa produção.”
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Cartaz do 1º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 2º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 3º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 9º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 10º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
Cartaz do 14º Festival Videobrasil. Foto: Divulgação
E assim foi realizada, no Museu da Imagem e do Som em agosto de 1983, a primeira edição do festival, em uma escala ainda pequena se comparada à da atual bienal, mas já com mostra competitiva, apresentação de performances, instalações e até mesmo com uma feira de novas tecnologias como computadores, teletexto e videogames. Era o contexto dos últimos anos de ditadura – trabalhos tinham de ser submetidos à censura – e o tom geral era de crítica ao monopólio da televisão aberta, o que se apaziguou nos anos seguintes com a aproximação de produtoras e diretores de vídeo aos canais de TV. A partir daí a história é longa, cheia de transformações e reviravoltas, e sempre ligada não só aos contextos político e cultural, mas também ao caminhar do desenvolvimento tecnológico audiovisual.
Após a realização de oito festivais, Solange criou em 1991 a Associação Cultural Videobrasil, com estatuto que previa a manutenção e ativação do crescente acervo de obras e publicações reunidos nos eventos. No ano seguinte, o Sesc-SP entra como principal parceiro do festival, o que possibilita sua realização com grande estrutura desde então, em unidades como a Pompeia, o Belenzinho e o 24 de Maio.
Primeiras batalhas
Não só os equipamentos de filmagem foram se transformando, mas as próprias tecnologias de armazenamento e cuidado com o acervo. “Manter o vídeo vivo, fisicamente, é caríssimo”, explica Solange. “É uma mídia extremamente frágil para conservação e extremamente volúvel, porque a cada poucos anos muda a mídia de preservação do momento e você precisa converter tudo novamente. Estou fazendo isso há 40 anos e nunca para, dá até para fazer uma arqueologia da mídia a partir dessa história do VB.” Por conta dos enormes custos deste trabalho, Farkas já negocia a passagem do acervo do VB para as reservas técnicas de instituições com maior estrutura, em um processo que deve ter uma conclusão em um futuro próximo.
Parte da exposição da 20ª Bienal Sesc_Videobrasil, em 2017, no Sesc Pompeia. Foto: Divulgação
Está conectada a essa história tecnológica, também, a longa batalha da instituição pelo reconhecimento do vídeo enquanto suporte artístico relevante, tão importante quanto qualquer outro. “O preconceito contra o vídeo, dentro do próprio cenário das artes, era pesadíssimo”, conta ela, que foi tanto observadora quanto agente da transformação desta perspectiva ao longo das décadas. Curiosamente, com a atual pandemia de Covid-19 e o longo confinamento das pessoas em suas casas, a curadora nota um retorno maior a essa mídia: “É interessante pensar como o vídeo, nesse momento, ocupa um lugar central em todos os campos da cultura. O vídeo é o modo de comunicação, é a expressão possível nesse momento, é o que está nos conectando”, afirmou à arte!brasileiros ainda em 2020.
Uma outra longa batalha travada pelo VB ao longo das décadas, talvez mais dura e permanente, se refere à decisão da associação de se dedicar à produção artística do chamado Sul Global, definido em uma de suas publicações como “termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central”. Após a internacionalização do festival na passagem dos anos 1980 para 1990 e a inclusão do termo “arte eletrônica” no nome do evento em 1994, o Videobrasil se firmou de fato como plataforma dedicada a produções “de fora do eixo tradicional formado pela Europa e pelos Estados Unidos”.
O conceito de Sul Global, no entanto, esteve sempre em transformação e não deixa de incluir também territórios internos aos países centrais: “É um Sul político, não exatamente geográfico. Não é recortar o globo no meio”. A aproximação com diversas regiões da África, América Latina, Oriente Médio, Leste Europeu e Ásia, entre outros, colocou o VB em um lugar de vanguarda, mas criou também uma série de dificuldades em um mundo geopoliticamente tão desigual. “Inclusive entre os artistas, alguns me diziam: eu não quero ir para África, quero ir para Paris. Porque todo mundo, para existir, queria ir ou para a Europa ou para os EUA”, conta. “Foi uma militância nossa a de tentar criar pontes, redes, que possibilitassem o trânsito entre nós do Sul Global, para que ele pudesse existir sem que os artistas tivessem sempre que ser chancelados pelo norte.”
Se a questão está longe de estar resolvida, Farkas percebe uma enorme mudança nos dias de hoje, com a proliferação, por exemplo, de espaços culturais e residências artísticas em lugares antes excluídos do mapa global das artes. Na entrevista concedida em 2020, no primeiro pico da pandemia, ela afirmou: “Existe uma coisa interessante – se é que é possível falar de alguma coisa interessante nesse momento em que há tanto sofrimento, tantas pessoas padecendo -, que é que todas as grandes certezas, as diretrizes sempre colocadas de lá para cá, do Norte para o Sul, estão sendo postas em cheque. (…) Nesse sentido, estamos um pouco parecidos. E quando passar o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas; nós que vivemos em crise permanente e que sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura”.
21ª Bienal Sesc_Videobrasil, em 2017, no Sesc 24 de Maio. Foto: Everton Ballardin
Queda e volta por cima
Bastante anteriores à pandemia, outros marcos na história do Videobrasil foram a inclusão, a partir de 2011, dos mais variados suportes artísticos para além do vídeo e da arte eletrônica nos festivais e mostras; e a mudança de sua sede, em 2015, para um grandioso galpão na Vila Leopoldina (São Paulo). Em 2019, o evento assumiu também o nome de bienal, passando a se chamar Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Mas o VB, assim como tantas instituições culturais, não ficou imune às ininterruptas crises vividas pelo país nos últimos anos, especialmente sob o governo Jair Bolsonaro. Com a dificuldade para captação de recursos, a associação devolveu o galpão (onde chegou a realizar mostras importantes) ainda em 2019 e encarou uma espécie de paralisia institucional. “É impossível planejar qualquer projeto diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo”, afirmou Farkas em 2020.
A diretora afirma também que em um profundo período de reflexão nos últimos anos percebeu que precisava repensar algumas estruturas da associação, inclusive estabelecer um tipo de independência do VB em relação à sua própria pessoa. “Porqueo acervo, enorme, maravilhoso, também assusta. A pandemia trouxe um dado de realidade cruel, a percepção de que podemos morrer a qualquer hora. E o que acontece com esse acervo? Não pode estar apenas nas minhas mãos, vi que preciso pensar em continuidade.”
A responsabilidade por uma coleção com grande custo de manutenção, que inclui não só os trabalhos reunidos ao longo dos 21 festivais – vários deles feitos a partir de comissionamentos -, mas também coleções inteiras cedidas por artistas (ou suas famílias) como Rosangela Rennó, Rafael França, Marina Abs e Moysés Baunstein, aceleraram a ideia da passagem dos cuidados do acervo para outras instituições. A concretização deste plano não significaria, no entanto, a desvinculação deste acervo da associação, como ressalta Farkas. Neste ponto, ela exemplifica a riqueza do material citando alguns nomes que possuem ao menos dois trabalhos na coleção: Akram Zaatari, Barbara Wagner e Benjamin de Burca, Enrique Ramirez, Eder Santos, Bouchra Khalili, Cao Guimarães, Jonathas de Andrade, Liu Wei, Marcellvs L., Maya Watanabi, Sebastian Diaz Morales, Seidou Cissé, Vincent Carelli, Virgínia de Medeiros, Walid Raad, Walter Silveira, Ximena Cuevas e Ximena Garrido-Lecca.
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Cena de "Laboratorio de invención social o posibles formas de construcción colectiva", 2018, filme da argentina Gabriela Golder. Foto: Divulgação
O artista Abdoulaye Konaté, que é tema do documentário que estreiou a plataforma. Foto: Everton Ballardin
Cena de "!Women Art Revolution", 2010, filme da norte-americana Lynn Hershman Leeson que esteve em cartaz no Videobrasil Online. Foto: Divulgação
Cena de "Volando Bajo", de Calderón y Piñeros. Foto: Divulgação
Com tudo isso em mãos, o VB começou a sair de sua paralisia com a criação da plataforma Videobrasil Online, em setembro de 2020, no auge da pandemia. “Nessa ausência do espaço físico, ficou muito claro para mim que o lugar do vídeo é de fato na telinha. E que faz sentido, mais do que nunca, voltarmos a focar no vídeo, que é a origem da associação.” A página virtual, que apresenta tanto mostras com trabalhos do acervo quanto produções inéditas, já está em sua nona exposição, da artista argentina Gabriela Golder. A mostra, segunda de uma parceria com a KADIST (instituição com sedes em São Francisco e Paris) que inaugurou com a exposição da americana Lynn Hershmann Leeson, seguirá com uma coletiva apenas de mulheres das coleções das duas instituições.
Passaram ainda pelo VB Online ao longo deste pouco mais de um ano as exposições de Abdoulaye Konaté (Mali), Ayrson Heraclito (Brasil), Ayoung Kim (Coreia do Sul), Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi (Brasil), Calderon y Piñeros (Colômbia) e uma coletiva sobre o sistema prisional no Brasil, curada por Juliana Borges. “Então o Videobrasil Online surgiu, em boa parte, como um projeto que funcione neste mundo virtual e que cumpra minimamente esse papel da digitalização e ativação do acervo. É uma plataforma expositiva que nos obriga a digitalizar a mídia, legendar, criar novos verbetes e colocar tudo no ar, com um alcance de público global, o que é fascinante”, diz Farkas.
A “volta por cima” do VB acontece ainda com a realização em Vitória, a convite do Governo do Estado do Espírito Santo, de uma grande mostra que ocupará dois espaços da cidade: no Museu de Arte do Espírito Santo haverá um grande recorte da coleção da associação; no Galeria Homero Massena, uma curadoria em cima dos mais de 300 vídeos de performances guardadas pelo VB que será montada em uma grande instalação audiovisual. Além disso, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, está a mostra Sonhei em Português!, que abriga uma sala com vídeos do VB relacionados a temas da migração e da diáspora de povos ao redor do mundo. “É um exemplo de como, a partir de uma proposta curatorial dada, você pode ir no acervo e achar coisas sobre qualquer tema. Dá para contar muitas histórias, montar diversos recortes, inclusive que dialoguem com os contextos locais. Isso é o nosso grande tesouro.”
Por fim, a maior celebração deve ser a realização da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil – que esteve em suspenso por conta da pandemia – em 2023, exatas quatro décadas após o incipiente festival de 1983. Com curadoria do carioca Raphael Fonseca e da senegalesa Renée M’boya, a mostra no Sesc 24 de Maio já estava em planejamento quando precisou ser cancelada, mas retoma agora a produção em ritmo acelerado. No início do ano será realizada a chamada aberta para os projetos de artistas, que se somam aos cinco nomes convidados para a edição. “Vamos ter que adaptar os temas e o recorte curatorial a um outro mundo, muito diferente daquele de dois anos atrás”, conclui Farkas.
"Tempos modernos: arte, tempo, política", de Jacques Rancière, publicado em 2021 pela N-1 edições. Foto: Reprodução
“Tempos modernos: arte, tempo, política”, de Jacques Rancière, publicado em 2021 pela N-1 edições. Foto: Reprodução
Se existe um local onde inclusão, decolonialismo e debate antirracista são muito presentes é na cena da arte contemporânea. Por isso, não deixa de ser estranho que o novo livro de Jacques Rancière, Tempos modernos – arte, tempo, política, se dedique a uma espécie de revisão do modernismo apenas com referências de autores homens, brancos e europeus ou estadunidenses.
Afinal, seu livro A partilha do sensível – estética e política, publicado no Brasil em 2005, é uma referência importante sobre a compreensão de que uma obra de arte deve ser vista sempre dentro do “tecido da experiência”, como o próprio Rancière conceitua, portanto dentro de um contexto.
É verdade que a publicação que sai, agora em 2021, pela editora N-1, reúne quatro textos já um tanto datados, a maioria de 2015. Sim, seis anos no atual momento, pós #metoo e #blacklivesmatter, é um período suficientemente largo, porque alterou paradigmas culturais e acadêmicos, que não toleram mais certas práticas ultrapassadas.
No Brasil, essa questão torna-se ainda mais pertinente pois já tiveram início as reflexões em torno dos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, e muitos seminários e eventos buscaram rever a efeméride a partir de óticas mais inclusivas e de autoras e autores com distintas representatividades.
Regime da experiência
Apesar de tudo isso, o marxista Rancière segue buscando criar conceitos que possam olhar para formas de emancipação, como ao problematizar a noção de moderno como “construir um novo senso comum, um novo tecido sensível em que as atividades prosaicas recebam o valor poético que faz delas os elementos de um mundo comum”.
Esse “tecido sensível” é visto também como um “regime da experiência” e torna-se parte do foco desta pesquisa: apontar que a noção de tempo linear da modernidade deve ser repensada, pois “o tempo não é simplesmente a linha que se estica entre um passado e um futuro. Ele é também, e antes de mais nada, um meio em que se vive”. Dos quatro textos da publicação, com uma um tanto óbvia homenagem ao filme de Charles Chaplin, Tempos Modernos, dois deles são dedicados a linguagens específicas da arte: a dança e o cinema.
Sobre a dança ele aponta o caráter libertário e livre, especialmente dos anos 1920 e 1930, abordando coreógrafas e bailarinas de um amplo espectro: da expressionista alemã Mary Wigman (1886-1973), precursora da dança-teatro, à norte-americana Lucinda Childs.
Já no ensaio sobre cinema, Rancière trata de cenas específicas de três filmes: Um homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov, As vinhas da ira (1940), de John Ford, e Juventude em Marcha (2006), do português Pedro Costa. Ao menos aí, Costa representa uma certa marginalidade no pensamento tão eurocêntrico do autor.
"Vista desde la desembocadura del arroyo Ugarteche mirando hacia el sur", da argentina Luisa Lerman, é uma das obras que integram a mostra coletiva Laboratorio Ampibio del Plata. Foto: Divulgação
Em sua terceira edição, a BIENALSUR (Bienal Internacional de Arte Contemporânea do Sul) amplia ainda mais seu raio de alcance, estendendo suas ações para diferentes partes do globo e tentando consolidar-se como um evento alternativo às bienais tradicionais de arte. Os números indicam que a ideia de realizar um evento descentralizado, dinâmico e colaborativo vem surtindo resultados. Em sua estreia, em 2017, envolveu 16 países, 34 cidades e mais de 80 sedes (como são chamadas as instituições que abrigam as mostras). Quatro anos depois, esses números tiveram um aumento significativo: agora são 23 países, 47 cidades e 120 sedes espalhadas pelo mundo. Com grande concentração na América Latina (em especial na Argentina, que sedia o projeto) e Europa, o evento também tem desdobramentos em lugares menos prováveis como a Arábia Saudita e Japão.
Idealizado por Aníbal Jozami e Diana Wechsler, da Universidad Nacional de Três de Fevereiro (Untref), de Buenos Aires, o projeto procurou desde o início subverter algumas premissas do circuito das artes, descentralizando decisões, abrindo convocatórias abertas aos artistas, estabelecendo parcerias com pesquisadores e instituições internacionais e procurando estabelecer uma plataforma que se estenda pelo tempo e pelo espaço. A primeira mostra foi inaugurada em julho em Salta (Argentina) e já deu a tônica que marca essa edição do evento, com uma forte presença de questões ligadas ao meio ambiente e aos direitos da terra. A escuta e os ventos. Relatos e inscrições do Grande Chaco trouxe trabalhos de artesãs, ativistas dos povos originários e artistas convidadas, como a argentina Andrea Fernández (que também é a curadora da exposição) e a alemã Inka Gressel, falando de tradição e resistência.
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"De las cenizas", de Donna Conlon, integra a mostra Desde la herida. Foto: Divulgação
"Itiyuro", imagem do ensaio documental "Territorio", de Brayan Sticks. Foto: Divulgação
"Misterios", de Christian-Boltanski, integra a exposição Conciencia medio ambiental capítulo 1 Paisaje en foco Miradas desde el presente. Foto: Divulgação
“Desde a primeira edição a questão de migrações, fronteiras, trânsitos e identidades vem sendo um leitmotiv e continua aparecendo de maneira muito forte, na quantidade de propostas que aparecem”, explica Diana Wechsler, diretora artística do evento. Essa ideia de temas predominantes decorre da própria lógica estrutural do evento, que se guia pelas inscrições abertas (nesta edição foram submetidas mais de 5,5 mil projetos) para identificar as principais questões mobilizadoras no plano da arte. Outro tema forte neste momento, que está norteando as exposições organizadas na Arábia Saudita, são os modos de habitar. A mostra coletiva Ecos. Um mundo entre o analógico e o virtual, aberta em outubro em Riad, reúne 24 artistas de distintas nacionalidades – 70% deles mulheres – que lidam com essa questão do espaço de moradia e existência, uma vivência cotidiana que flui entre o analógico e o digital, o real e o virtual. São trabalhos nos quais, segundo Diana, “espaço e tempo aparecem por momentos alinhados e por outro dissociados”. Essa discussão ganha maior fôlego quando pensada no contexto da pandemia, em que esses dois aspectos apareceram fortemente dissociados e foram objeto de muitas reflexões poéticas, além de ter uma profunda conexão com o caráter um tanto atemporal e nômade do próprio projeto da BIENALSUR.
Aliás, a BIENALSUR é um dos poucos eventos internacionais que não alterou seu calendário em função do Covid-19, como fizeram as bienais de Veneza e São Paulo. Sua natural dispersão geográfica e a presença cada vez mais intensa das redes de internet em sua lógica estrutural – com um destaque bastante importante dado à comunicação virtual, por meio sobretudo do siteestão entre as razões para a manutenção do calendário. “Nos pareceu que a lógica de rede, a lógica de trabalhar de maneira simultânea, polifônica, descentralizada nos ia permitir seguir adiante e creio que isso ficou demonstrado pelo fato de que desde 8 de julho, quando lançamos a primeira exposição, até hoje, BIENALSUR veio crescendo, somando sedes, somando projetos, articulando-se entre si e gerando uma comunidade de arte que contribui hoje com o desenvolvimento de uma cultura crítica no tempo contemporâneo”, diz Diana.
“Oil Painting”, de Sujin Lim. Foto: Cortesia artista
Naturalmente, esse esgarçamento acaba por provocar uma sensação de desorientação, que pode ser captada por exemplo nos comentários e pedidos de explicação que se acumulam nas redes sociais do evento. Mas, por outro lado, traz, segundo Diana, uma flexibilidade um tanto libertadora, dando uma maleabilidade e uma grande capacidade de adaptação. “A BIENALSUR é um projeto associativo, que se adapta, que é flexível e que trabalha com as lógicas de cada lugar. Não é um projeto prepotente ou imperativo que vai a cada lugar colonizando, mas o contrário: chega a cada lugar com a humildade do estrangeiro, se senta para conversar sobre a possibilidade de trabalhar juntos e a partir de compartilhar uma agenda de interesses e de questões a levar a cabo juntos”, pondera a diretora artística e idealizadora do evento. “Estamos atentos não só aos processos que de maneira singular fazem cada um dos artistas, mas entendemos que esses processos de alguma maneira são processos da sociedade, são processos coletivos, são processos que se fazem também na pluralidade e na diversidade”, complementa.