Início Site Página 35

Acervo político

Os colecionadores Patricia e Pedro Barbosa
Os colecionadores Patricia e Pedro Barbosa | Foto: arquivo pessoal
Haris Epaminonda, Untitled 11, 2011 | Foto: Daniel Perez / Cortesia da artista e da Rodeo Gallery

O engenheiro químico de formação Pedro Barbosa, que trabalhou por 25 anos no mercado financeiro, iniciou em 1999 a coleção hoje chamada de moraes-barbosa (cmb), que conta com um acervo de obras de arte de peso e um extenso arquivo de documentos raros. Recentemente, foi implementado na coleção um programa de bolsas que propõe que artistas e pesquisadores desenvolvam estudos em interação com o acervo. Em conversa com a arte!brasileiros, Barbosa comenta que um dos obstáculos para o crescimento do circuito da arte no Brasil é o hábito que se tem de jogar questões que envolvam a relação entre ética e estética para debaixo do tapete, quando elas deveriam, na verdade, estar em primeiro plano de importância.

arte!⁕ – Como começou seu projeto de colecionismo?

Pedro Barbosa – De modo absolutamente involuntário. A [galerista] Raquel Arnaud é minha prima de primeiro grau. Eu visitava a sua galeria com alguma frequência, apenas para apreciar. Um dia, comprei uma obra [Petite Ronde Olive (1999), de Jesus Rafael Soto] e foi o início do que se tornou hoje a coleção. Durante minha vida universitária na USP, nos anos 1980, eu já era interessado por museus e pela contracultura paulistana, e acompanhava as artes visuais pelos jornais. Depois da primeira compra, veio a segunda, a terceira e assim por diante. Eu fui, então, tomando gosto pelo colecionismo.

A subida repentina de preços no início dos anos 2000 me expeliu do segmento da geometria abstrata e tive que partir para artistas novos ou em meio de carreira, fui gostando e me envolvendo mais. Até o ponto em que entendi que isso era um espaço de ativismo político. Que eu poderia usar as obras, ou uma certa narrativa da coleção, para me expressar politicamente.

Em 2012, achei que poderia navegar no mercado internacional, fazendo uma compra aqui e ali. Primeiro, tive uma conversa com [o colecionador] Luiz Augusto Teixeira de Freitas, que havia chamado um curador externo para acompanhá-lo no desenvolvimento da sua coleção. O Luiz Augusto foi supergeneroso, contou-me absolutamente tudo, trocamos ideias, “veja, isso aqui fiz errado e não faria de novo; nisso, eu daria mais ênfase”. Peguei uma experiência de nove anos que ele já tinha e copiei o modelo dele, com minhas nuances. Foi ele que me apresentou ao trabalho de stanley brouwn, por exemplo.

Aí vi que precisava de alguém no Brasil com formação e conhecimento que me ensinasse sobre a arte contemporânea internacional e suas tendências. Só tinha um cara, que era o Jacopo [Crivelli Visconti, curador]. Propus a ele trabalhar comigo no desenvolvimento desse projeto, inicialmente pensado para durar dez anos, mas que foi terminado em 2019, quando o Jacopo foi chamado para ser o curador da 34a Bienal de São Paulo.

Em um mês haveria a Art Basel, na Suíça, e Jacopo fez uma lista de 100 artistas contemporâneos, muitos deles bastante conhecidos no circuito artístico atual. Reduzimos a lista para 40, para ter melhor atenção, e deles sobraram no máximo 15 ou 20. Ao mesmo tempo, continuamos olhando a cena brasileira. Fomos montando um projeto que envolvia publicações, residências no Brasil e outras em Londres, em parceria com a Delfina Foundation. Atualmente, tenho uma coleção com certo protagonismo, e Jacopo foi finalmente reconhecido quando foi chamado para fazer a Bienal. Teve uma caça às bruxas violenta a ele, que é um doce de pessoa, muito profissional, dedicado e ético. Convivi com ele por sete anos, todos os dias.

Jacolby Satterwhite
Jacolby Satterwhite, Reifying Desire 6, 2014 | Foto: cortesia do artista

A sua coleção tem um traço muito particular. Como você construiu essa linha de colecionismo?

O Jacopo fez tese de doutorado baseada em artistas andarilhos, que fazem land art, walking art. Então havia essa afinidade com uma arte mais imaterial que me fascinava. Juntou a fome com a vontade de comer. Eu queria caminhar para a arte conceitual, então foi um casamento perfeito. Eu encontrava algumas coisas, ele sugeria outras, e íamos trocando ideias, construindo tudo junto. Dentre esses artistas contemporâneos que vieram da pesquisa do Jacopo está a cipriota Haris Epaminonda, de quem compramos algumas obras já em 2012, e que ganhou o Leão de Prata da Bienal de Veneza em 2019.

Mas logo no segundo ano, eu comecei a trazer umas coisas extremamente contemporâneas que não eram do gosto do Jacopo, porque não tem a ver com a estética dele, por exemplo a obra do Jacolby Satterwhite. Ano passado estive no Haus der Kunst de Munique, no hall principal estava uma instalação gigantesca do Jacolby. Eu fui um dos primeiros compradores dele na história, que era representado apenas por uma galeria perdida em Palma de Mallorca.

Mas isso era eu caminhando minha trajetória, ainda que acompanhado do Jacopo, era uma troca de experiência muito produtiva com extensas conversas. Acabamos olhando coisas diferentes juntos, como Ken Okiish e Nick Mauss. Eram artistas estrangeiros que já produziam antes do começo dos anos 2010, mas eu os peguei num ponto de inflexão, de serem encontrados pelos museus.

Há um diferencial que aproxima você deles. Do que se trata na sua opinião?

Posso talvez fazer um comentário extremamente preconceituoso e perigoso, mas acontece que nos EUA e na Europa estes artistas têm formação acadêmica. E, para este colecionismo que segui, penso que é necessário, mas não suficiente, esse tipo de formação. Tem a minha identidade nisso. Não estou criticando a produção artística que não tenha formação acadêmica. Tudo é arte. Mas este caminho traz para mim uma interlocução com que tenho mais afinidade.

Dê um exemplo de onde isso fica evidente em seu acervo.

A nossa próxima exposição, com a Leslie Thornton, professora na Brown. Uma precursora da videoarte nos EUA. Vamos mostrar cinco trabalhos que nunca foram vistos no Brasil. E que acabaram de ser exibidos no MIT [Massachusetts Institute of Technology].

Mas nem sempre um acadêmico é capaz de construir uma boa obra…

Claro que não. Entretanto, no caso da arte conceitual, que está no foco da minha coleção, o trânsito dos artistas entre as salas de aula e os ateliês cria reflexões que se materializam na produção artística. E como eles não vendiam obras, era inevitável que eles tivessem a academia como fonte de renda. Ou davam aula, ou morriam. Uma ‘ideia’ do Robert Barry ou uma ‘conversa’ do Ian Wilson, dificilmente eram compradas. Ao passo que um bela pintura figurativa tem mais chances de ser comercializada.

Você acha que por isso o León Ferrari, por exemplo, demorou tanto a ser entendido?

Mas acho que ele fez mais obras materiais. Fez pintura, muitas obras em papel e esculturas. Estou falando do grupo que andou a partir de meados dos anos 1960 com o galerista Seth Siegelaub, como Carl Andre, Sol LeWitt e Douglas Hubler, entre outros.

Neste sentido, você acha que é mais difícil num lugar como o Brasil construir uma linguagem como essa?

Muito mais difícil porque são mínimas as escolas de arte. Aqui acham que quem as frequenta é comunista e vagabundo, exatamente o contrário do que se vê na Alemanha, onde um dos pilares da Reunificação, por exemplo, foi a arte. Os EUA fizeram uma conquista estética, viram na arte a importância geopolítica após a Segunda Guerra Mundial. Aqui, infelizmente, tivemos no governo Lula uma oportunidade de fazer uma conquista estética na América Latina, mas… Hoje isso nem passa pelas cabeças desses caras. Por isso é necessário ter um nível educacional mais alto.

Então concluímos que criar um conceitualismo mais radical não é uma questão geracional ou de tendências, mas tem a ver com a possibilidade ou não de adquirir certos conhecimentos. Ou seja, um tipo de cultura…

Um tipo de cultura menos material e comercial. O Antonio Dias, por exemplo, ao estar na Itália, conseguiu total comunicação com artistas e conceitualistas europeus. Entre os grandes artistas da arte conceitual, vale destacar dois grandes nomes: o brasileiro Cildo Meireles e o alemão Hans Haacke. São dois mestres que conseguem juntar a excelência do conceitualismo e a política de forma extremamente harmoniosa. O brilhantismo de Antonio Dias já se expressa, nos anos 1960, quando da criação do NAC (Núcleo de Arte Contemporânea) na Universidade Federal da Paraíba. E o Haacke foi, por décadas, professor da Cooper Union em Nova York. O Cildo tem uma sólida formação acadêmica na Universidade de Brasília (UnB).

Jonathas de Andrade
Jonathas de Andrade, Educação para Adultos, 2010 | foto: Cortesia do artista e da Galeria Vermelho

Então você, ao se identificar com estes artistas, descobriu uma forma de militância.

Para mim, tem a ver com o jeito como fui formado. Meu pai é professor. Todo mundo em casa tem PhD. Sou o único que não tem. Então sempre tive certa fascinação por este tipo de coisa. Muita gente na família é ligada à universidade.

Por exemplo, vi na Bienal de 2010 uma obra baseada nos métodos de alfabetização do Paulo Freire, um cara sobre quem eu tinha escutado falar em casa a vida toda, e que hoje é execrado por gente que nem o conhece!

Se você olhar as aulas que tem em Harvard, no MIT, na Caltech, das que eu já vi, nada mais são do que variantes de um método desenvolvido por este brasileiro.
Educação para Adultos, do Jonathas de Andrade, é uma obra em que ele formalizou algo político de modo superconceitual. E fui dos primeiros a comprar trabalhos dele.
Viajo muito, estou em tudo quanto é lugar. Tenho acesso a galerias e a espaços independentes, tenho interlocução com estas pessoas que desenvolvem projetos experimentais. Esse foi o caminho.

Aqui, por exemplo, tem uma coleção completa com mais de 300 folhetos do CAyC [Centro de Arte y Comunicación, centro internacional de cultura e arte pop, criado na Argentina nos anos 1970]. Compramos este material. Aqui é o lugar onde tem mais itens sobre o CAyC no Brasil. Assim como a edição de 1966 de Diagonal Cero [revista dirigida pelo artista argentino nascido em La Plata, Edgardo Antonio Vigo, dedicada à arte experimental, conceptual e à poesia visual. Num gesto vanguardista, o editor pulou a edição 25 e a dedica “ao nada”].

Entrei neste jogo sedutor, que é uma Babel ou um labirinto borgeano, em que você entra e de que não sai jamais. As associações são infinitas.

O fascínio está no quase inalcançado. O desejo se move em direção à falta, como diz o Lacan…

É por aí. Eu não vou conseguir dominar a coisa. Estou sempre atrás. É muito gostoso você viver numa relação que é de eterno desafio.

Parece-me que no fundo, seria um pouco o contrário do que vemos no colecionismo visto apenas como commodity, em que o fascínio está em adquirir uma peça para tê-la, esperar que se valorize e depois vendê-la. Aqui o prazer está em você continuar pesquisando, encontrando elos e associações a partir da obra.

E isso é infinito. Desafia muito mais intelectualmente. Não tenho nada contra quem faz isso comercialmente, mas a minha parte comercial é outro lado da minha vida. Neste jogo aqui, estou eternamente caminhando atrás do que eu não sei. E aí, não preciso somente de material. Preciso de pessoas extremamente inteligentes para conviver. Aí, de novo, não dá para tirar a parte humana desse circuito, porque quem faz isso aqui são essas mentes brilhantes. E eu escolhi um caminho que remete à minha história de vida, a meu pai professor, minha irmã cientista, meu irmão também professor, primos na USP e assim por diante. Eu consegui uma independência financeira e estou numa posição privilegiada que me permite isso.

Você comenta que nesse colecionismo há dois mundos diferentes. Mas esse outro, o que te traz independência financeira, ele fica esquizofrênico ou você consegue manter teus posicionamentos nele? Grande parte das instituições públicas está sendo dirigida por executivos ligados ao mercado ou ao mercado financeiro, não só no Brasil, e são geralmente colecionadores, ou profissionais ligados diretamente a galerias. Essas instituições, que manejam alguns milhões, estão tomando decisões estéticas e éticas. Isso não representa um conflito de interesses dentro do que seria um ideal no mundo da arte? Isso não tem que ter limites? Há códigos de ética?

No Brasil, todo mundo é público e privado, porque depende de Lei Rouanet. Se você pegou dinheiro público, você tem que ter respeito pela sociedade à qual ele pertence.
Eu sei, por exemplo, que existe um código no museu Reina Sofía, na Espanha, para os colecionadores que participam dos comitês de aquisição. Há quase dois anos, dois colecionadores que moram em Paris, um italiano e outro grego, chamaram-me para um grupo e fizemos discussões extensivas, para criar um código de conduta. Primeiramente com os artistas, depois os galeristas, os museus, os colecionadores, as instituições independentes, as coleções públicas e as privadas, e assim por diante. Obviamente, isso vai ser sempre reformulado. A primeira versão está no ar no site ethicsofcollecting.org.

Feito em inglês, mas traduzida para o espanhol, chinês e o francês, e em breve teremos a versão em português. Propusemos várias coisas extremamente discutidas e negociadas, visando a uma proposta coletiva. Conseguimos endossos diversos, que veem o código como algo com um objetivo comum, em que todos se beneficiam. Por exemplo, uma coisa que a gente advoga como colecionador: jamais pedir mais de 20% de desconto para um galerista, mas o galerista também tem que ajudar não deixando se influenciar pela pressão que sofre. Se eu mato o galerista, mato um pedaço do circuito.

Tem colecionador que chega e pede 40% a 50% de desconto. Pergunto: qual o interesse? Sufocar o galerista, matar o artista? Veja bem, isso não é um mercado de pulgas onde a regra número um é a barganha. Quando eu não concordo com um preço, simplesmente vou embora, adeus. Os preços se ajustam no tempo.

E nos museus…

É o CIMAM [comitê internacional para museus] que vai te dar um norte, porque é um código público amplamente discutido. Aqui temos mania de jogar para debaixo do tapete, precisamos discutir essas coisas no dia a dia, implementar e aperfeiçoar as condutas do CIMAM.

Mas este tema precisa ser amplamente discutido porque a arte também tem valor comercial e financeiro, e quem coleciona se beneficia das exposições, sejam mostras individuais ou coletivas.

O processo de doações para museus tem que ser profundamente discutido. Quando as pessoas votam a favor ou contra a aquisição de uma obra, pode haver algum tipo de conflito, e isso deveria ser debatido com a instituição e documentado. No caso de videoarte e fotografia, pelo fato de muitas vezes serem edições, obviamente o conflito aparece com mais frequência.

Um outro ponto a ser levantado, é o número de obras de arte mostradas em exposições, em instituições públicas ou privadas, em que os curadores mantêm relações próximas com os colecionadores de onde partem esses trabalhos a serem exibidos. Infelizmente esse não é um problema só do circuito brasileiro de arte, é um problema global.

Mas neste sentido não deveríamos ser mais radicais e dizer que não pode ser o diretor do museu, enfim, aquele que está no museu ocupado de buscar patrocínios etc., a mesma pessoa que está ligada à compra e venda de obras, já que estão se beneficiando sistematicamente da informação de terceiros para isso?

No Brasil estamos caminhando na profissionalização dos museus. No meu ponto de vista a diretoria deve ser de funcionários do museu. Nos conselhos, sim, há espaço para os mantenedores, mas também deveria ter espaço para os outros agentes da arte. Eu tenho preferência pelo estilo de governança da Pinacoteca do Estado de São Paulo. O modelo da Pinacoteca está mais próximo dos modelos estrangeiros em que os diretores são funcionários da instituição.

Os colecionadores Patricia e Pedro Barbosa | Foto: arquivo pessoal

Parte importantíssima de sua coleção são arquivos. Como os estão organizando, como funciona a sua equipe?

Catalogação e preservação já são questões técnicas importantíssimas, e cuidamos disso. Mas criamos aqui um esquema com o objetivo de transformar o arquivo em algo vivo, mais dinâmico. Então decidimos investir em artistas, curadores, pesquisadores, que por seis meses, trabalham em período part-time, recebem uma bolsa, ficam estudando e pesquisando em temas do seu interesse em intersecção com o nosso arquivo.

Esse percurso tem como objetivo entregar um resultado, de domínio público, que pode ser um vídeo, um livro de artista para baixar da internet, uma exposição, um texto. Os editores somos nós. O pesquisador tem um interesse especial em uma área, esse é o disparador. É isso que vai dirigir seu trabalho.

É como uma residência de pesquisa…

De vez em quando tem de seis a sete pessoas aqui, que vão se ajudando também. Tudo aqui é de domínio público. Um dos bolsistas, o artista Pontogor, começou a pesquisar o trabalho da videoartista holandesa Manon de Boer, que trafega pela arte conceitual e de quem temos aqui, na coleção, seis obras. O resultado foi um vídeo-ensaio que relaciona trabalhos de Manon de Boer, Antonio Dias, Guy Debord, Roberto Bolaño e outros.

Na exposição Horror Vacui, que abrimos no dia 7 de maio deste ano, com organização do Pontogor, é apresentado o vídeo Como Ver um Fantasma?, em que ele investiga as diferentes manifestações do vazio na arte.

Cris Ambrósio e Deyson Gilbert apresentaram a exposição Estado de Possessão – Notas para uma Estética da Tortura, que permaneceu aberta ao público de novembro de 2021 a fevereiro de 2022. ⁕

O penoso aprendizado dos museus

Imagem colorida. Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças indígenas do Brasil, durante a II Marcha das Mulheres Indígenas: Reflorestamentos, Corpos e Corações para a cura da terra. Brasília, 2021. Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá
Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças indígenas do Brasil, durante a II Marcha das Mulheres Indígenas: Reflorestamentos, Corpos e Corações para a Cura da Terra em 2021. Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá

O Museu de Arte de São Paulo (Masp) chegou finalmente a um acordo satisfatório com as curadoras do núcleo Retomadas, Sandra Benites e Clarissa Diniz (que montavam para a instituição uma mostra que faria parte da exposição coletiva Histórias Brasileiras, inaugurada em 1º de julho). Em maio, Sandra e Clarissa foram surpreendidas pela insólita disposição do Masp de eliminar um recorte de sua seleção artística, recusaram seguir sem o material por julgarem que estavam sendo objeto de censura e se demitiram no dia 17 de maio.

Para reverter a situação, o Masp concordou no seguinte: a exibição voltará a ter a presença de todos os fotógrafos que tinham sido anteriormente vetados na exposição, e cujas obras retratam o Movimento Sem Terra (eram seis fotografias do MST de autoria de André Vilaron, Edgar Kanaykõ Xakriabá e João Zinclar). Esses registros, vetados anteriormente, terão agora ampliações distribuídas a todo o público (em formato de pôsteres), e a exposição ampliará a gratuidade de acesso ao museu e às suas atividades também às quartas-feiras (tradicionalmente, a entrada grátis é somente às terças). A instituição também reconhece a propriedade intelectual do trabalho das curadoras e dará ao argumento curatorial o caráter de copyleft.

O Masp aceitou ainda realizar um seminário online tratando do processo de produção da mostra, com convidados comissionados, com o intuito de debater os desafios e desdobramentos da proposta curatorial, além de produzir (por intermédio da editora Expressão Popular, do MST) uma revista que trate dos processos das lutas sociais. Na abertura da exposição, no dia 26 de agosto, o Movimento Sem Terra (MST) e movimentos sociais e indígenas convocarão um ato cultural que será abrigado pela exposição, e o museu se comprometeu também em realizar novas edições do núcleo Retomadas em escolas e espaços de formação do movimento de luta pela terra.

O museu ainda promoverá a readmissão da antropóloga Sandra Benites como curadora adjunta, voltando a ter em seu corpo de curadores a primeira mulher indígena a integrar o bureau do Masp. Sandra e Clarissa divulgaram uma carta aberta como forma de reagir a um aceno de reconsideração do Masp, feito em nota oficial uma semana antes. No dia 20 de maio, a instituição se manifestou publicamente anunciando “um novo posicionamento” sobre a questão, alegando que buscava aprender com o episódio. Havia dolorosas arestas a serem aparadas – o museu atribuiu o cancelamento à negligência das duas profissionais, e elas consideraram isso ultrajante.

“A instituição lamenta publicamente o cancelamento do núcleo, tão importante para a  exposição, e a saída das curadoras do projeto”, dizia a nota. “Pretendendo avançar para que episódios semelhantes não se repitam no futuro, estamos abertos a ouvir Benites e Diniz, com a finalidade de aprendermos com essa experiência e aprimorarmos processos e modelos de trabalho”.

Real envolvimento

Sandra e Clarissa se dispuseram ao diálogo, mas estabeleceram seis principais condições para que pudessem regressar ao projeto. Essas condições, agora aceitas parcialmente pelo Masp, buscam ilustrar a possibilidade de criar um novo patamar de relacionamento das instituições museológicas com a sociedade. Em vez de os movimentos afirmativos e sociais se prestarem a lustrar o prestígio dos museus (que precisam dessa ressonância), é proposta agora uma relação de real envolvimento nos diagnósticos e movimentos que a arte promove em suas exposições. O museu que abrigava circunstancialmente passa a ser também o museu que participa, que ativa, que se envolve, que vai além das representações e assume compromissos. Algo que chacoalha a conveniência das antigas neutralidades.

Oficialmente, após essas concessões de parte a parte, o Masp confirmou então em nota que o núcleo Retomadas voltará a fazer parte da exposição e que a mostra está confirmada para o período de 26 de agosto a 30 de outubro. A experiência dialética do Masp, embora tenha se imposto à revelia da vontade do museu, é um desafio que se abre para toda a museologia na nova ordem internacional. Retomadas faz parte da série Histórias, que incluiu Histórias da Sexualidade (2017), Histórias Afro-atlânticas (2018), Histórias Feministas (2019), entre outras. Um museu “diverso, inclusivo e plural”, que busca “estabelecer diálogos críticos e criativos entre o passado e o presente por meio das artes visuais”, como se apresenta a série, não pode lançar mão de subterfúgios que mascarem atitudes de censura e genuflexões para com o poder político instituído.

Essa encruzilhada está sendo encarada em todo o Planeta nesse momento. A incorporação da crítica anticolonial e antirracista, a amplificação das questões de gênero, o debate sobre a manutenção dos sistemas de poder na sociedade, a urgência de se transmutar forma em processo. É um desafio ainda maior na atual conjuntura de regressão democrática no Brasil, país no qual o presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) publica uma portaria aprovando o regimento interno dos museus do sistema em 30 de março e, 47 dias depois, revoga o texto que o próprio governo tinha aprovado sem maiores explicações.

CIMAM 2022

É por não fugir do debate contemporâneo que o tema do congresso do International Committee for Museums and Collections of Modern Art, o CIMAM 2022 (conferência anual de museus do mundo todo, que celebra 60 anos de realização), é justamente o seguinte: O Museu Atento – Práticas Permeáveis para um Terreno Comum. Ele terá 12 conferencistas do mundo todo, incluindo diretores de instituições como o Reina Sofía, de Madri, e será realizado na Espanha entre 11 e 13 de novembro próximo, tratando da proposição de diferentes modelos que podem oferecer uma nova visão de governança, narrativas, discurso de caráter decolonial e uma visão sobre o museu global face a novas narrativas e novos modelos institucionais, além do futuro sustentável.

O CIMAM abordará temas que dizem respeito a toda a movimentação da sociedade contemporânea. Mudando a Partir de Dentro: Como Nós Devemos Governar a Nós Mesmos, com Mami Kataoka, presidente do CIMAM, é a conferência que abre o primeiro dia de debates. Outra frente de reflexão é o tema Aprendendo com a Comunidade: Ações Coletivas em Face da Emergência. Destravando a História e as Novas Narrativas, com a filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva, pesquisadora do Social Justice Institute da University of British Columbia de Vancouver, Canadá (com outras debatedoras no painel), é o tema seguinte.

Denise é uma das principais pensadoras a abordar com maior energia o tema mais candente da atualidade: “Para além da crítica pós-colonial como um exercício intelectual, a arte do confronto é uma intervenção anticolonial precisamente porque transforma o espaço entre o artista e o público numa trincheira”, ela escreveu, no texto Reading Art as Confrontation. “Ao encenar um confronto, a arte anticolonial forja uma experiência estética que expõe a própria violência que é o pensamento moderno precisamente por causa da in/diferença entre o palco e o museu como espaços de exibição”.

“Convido a uma reapropriação da atenção”

O artista e curador da Bienal de Berlim, Kader Attia.
O artista e curador Kader Attia.
por Patricia Rousseaux e Fabio Cypriano
Kader Attia
Kader Attia durante a entrevista concedida à arte!brasileiros

Generoso, Kader Attia conversou conosco no KW Institute for Contemporary Art, sede da Bienal de Berlim, no que ele chamou “de um excelente encontro, mais do que uma entrevista”. Artista, curador e pensador francês, nascido em 1970, Attia cresceu entre a França e a Argélia, fazendo dessa experiência de pertencimento a diferentes culturas sua prática. Ele encena uma obra sensível, na busca por um resultado estético e ético nos seus relacionamentos e na sua produção. É defensor incondicional da necessidade de trazer à luz o impacto que o colonialismo teve na modernidade, e sua pesquisa se centra em diferentes formas de reparação perante a hegemonia cultural ocidental. Vencedor de prêmios da Fundação Miró e do Marcel Duchamp, em 2016, e do Yanghyun Art Prize, de Seoul, em 2017, Kader Attia tem, entre suas individuais mais recentes, The Museum of Repair, na State of Concept de Atenas (Grécia), e Irreparáveis Reparos, realizada em 2020/2021, no Sesc Pompeia, em São Paulo.

ARTE!✱ – Temos, no Brasil, uma importante discussão em andamento com relação ao apagamento que os governos e a sociedade brasileira fizeram do racismo e da brutal desigualdade que nos caracteriza como país colonial…

Creio que o discurso e o diálogo decolonial é uma conversa que necessita evoluir permanentemente. Fundamentalmente no campo do qual estamos falando, o da arte. O capitalismo tenta se recuperar, por meio da cultura e da arte, apropriando-se das mensagens políticas, como essa da decolonização, e com isso temos o risco de que elas se tornem institucionalizadas. Ou seja, temos de ser capazes de cuidar das retóricas, de inventar uma linguagem, sempre nova, quase novos vocabulários, quem sabe abandonar a palavra “decolonial” e criar outra, por exemplo, “desmodernizar”, porque decolonial não inclui o feminismo, por exemplo.

O capitalismo tenta se recuperar, por meio da cultura e da arte, apropriando-se das mensagens políticas, como essa da decolonização

Você é um artista e já foi curador de exposições diversas. Qual foi o desafio maior de pensar uma Bienal?

Para mim, uma bienal não é uma feira de arte, é um laboratório, no qual temos que inventar o mundo. E nessa invenção, precisamos preservar a história da qual viemos, que nos precede. Porque a amnésia não faz bem. Eu conheço feministas, como Paula Bacchetta, que me comentava outro dia como os jovens de hoje dizem que não havia negras ou árabes feministas nos anos 1970. Não é verdade, havia nos anos 1980 uma organizacão de mulheres árabes chamadas Les Beurettes [nome dado a jovens de origem magrebina nascidas na França]. E a Paula também me disse que havia feministas nos anos 1970 que colaboraram com os movimentos de independência de Porto Rico, assim como com os Panteras Negras. Quer dizer, o feminismo já era decolonial, muito mais cedo do que imaginávamos.

Por isso, incluí muitos arquivos na bienal. Temos, por exemplo, projetos bem específicos, como o da israelense Ariella Aïsha Azoulay, The Natural History of Rape, e em outros lugares estão objetos em vitrines, como livros da coleção Archiv der Avantgarden, de Egidio Marzona, e o livro Djamila Boupacha, de Simone de Beauvoir, que fala da jovem militante argelina que foi violentada por soldados franceses e faz um eco com a incrível pintura Grand Tableau Antifasciste Collectif, que está na Bienal.

Nós também tivemos encontros com pessoas incríveis que já vieram falar aqui, como Françoise Vergès, Felwine Sarr, Joseph Tonda e Stefania Pandolf.

Eu diria que, como artista, tive uma facilidade de me relacionar com os outros artistas, por entender certas dificuldades. Ajudou o meu sentido de espaço e de como trabalhar com economias limitadas. Como artista, trabalhamos com outros artistas, que são outros universos intelectuais e emocionais.É uma responsabilidade enorme, que funciona com a confiança que os artistas dão a você, e para criar esta mensagem e compartilhar com o público, você tem que pensar muitíssimo em espaços que separam as obras. Espaços intersticiais, e então criar diálogos entre as obras, como o que acontece entre a pintura de Calida Garcia Rawles e o vídeo Erasing the Green, de Dana Levy.

Equipe artística da 12ª Bienal de Berlim
Equipe artística da 12ª Bienal de Berlim; esq. para a dir., Ana Teixeira Pinto, Noam Segal, Kader Attia, Đỗ Tường Linh, Rasha Salti, Marie Helene Pereira

Ou seja, como artista, criar um espaço de diálogo para compartilhar uma visão e assim abrir o pensamento do público. Porque especialmente nós, que trabalhamos com os tópicos da reparação, da decolonização, da modernização, não o fazemos para nossa própria comunidade. Estamos de acordo com a importância deles, mas as exposições – não sei quantas pessoas virão à Bienal, umas 100 mil – desempenham um papel político na sociedade muito importante, porque o público, a meu ver, está perdido em um mundo onde as informações e opiniões estão sendo constantemente manipuladas pelos meios políticos.
Ao criar um espaço de exposição como este, onde se trata de dar outra visão de uma sociedade cheia de feridas que não foram reparadas, é aí que outros espaços intersticiais são importantes, porque os espectadores têm que construir uma narrativa.

No WhatsApp, no Twitter, os grupos se relacionam em comunidades que são câmaras de eco fechadas, fascistas sem que saibam

Uma das coisas que chamam muito a atenção é a participação interdisciplinar dentro da mostra…

Creio que Jean Lassègue, um filósofo amigo, disse-­me que conhecia um matemático, David Chavalarias, que fizera um projeto analisando 82 mil contas de Twitter, entre as duas eleições de Macron. Encontrei Chavalarias e disse a ele que, o que me parecia interessante em seu trabalho, é que estava mostrando a vulnerabilidade da opinião dos indivíduos hoje em dia. Bem, vocês no Brasil conhecem isso, com a eleição de Bolsonaro. Segundo Chavalarias, Gabriel Taub dizia, no fim do século 19, que o carisma e o magnetismo que um político consegue exercer sobre grupos alcança no máximo 500 pessoas. O processo de influência da opinião pública pertence aos sujeitos, entre si. E o que a governança algorítmica está fazendo hoje é a ampliação disso, que é tecnicamente possível.

No WhatsApp, no Twitter, os grupos se relacionam em comunidades que são câmaras de eco muito fechadas, fascistas sem que saibam, onde as pessoas vão ouvir o que querem ouvir, isolados. Nesse sentido, para mim, o que parece importante na ideia de espaços intersticiais para o espectador e com o espectador é, por exemplo, o que disse a David Chavalarias quando o encontrei: o principal seria como mostrar esse trabalho para o público. Como fazê-lo possível. Para mim isto é fundamental, e acredito que é o trabalho do curador, não apenas do artista. O trabalho é mostrar ao público como nos tornamos antissemitas, islamofóbicos, homofóbicos, transfóbicos, sem nos darmos conta, com uma espécie de raiva, quando somos manipulados por dados que circulam na velocidade da luz.

Convido as pessoas que vão para uma exposição para apenas estarem vivas e presentes, e não para instagramar suas vidas

Na sua opinião, qual é um dos maiores perigos que estamos enfrentando?

O verdadeiro perigo é a coleta de dados que está nos transformando. Primeiro, temos que entender qual seria a coisa que este capitalismo tecno-liberal mais deseja, quais são os mercados futuros que o capitalismo está explorando e, a partir daí, desenvolver estratégias de luta. Em suma, qual é esse neocolonialismo? É o neocolonialismo que está coletando dados por um processo simples que é chamar a atenção: quando a sua atenção está ativada, a governabilidade algorítmica está coletando informações.

Ontem, vi um artista falando que odeia a palavra vigilância. Então eu disse que não era de fato vigilância, mas é como [a escritora norte-americana] Shoshana Zuboff fala em seu livro The Age of Surveillance Capitalism. Trata-se da extração de dados, que na verdade constitui este mercado da atenção, esta economia da atenção e o torna extremamente poderoso.

Mas o processo de extrair dados nestas grandes companhias, como Facebook e Google, é apenas a parte mais visível dessa extração de dados, que depois são vendidos. O que nós produzimos constantemente, todos os dias, isso é um comportamento que é vendável neste mercado de atenção. Nós somos as cobaias desta economia de atenção. Como poderíamos lutar contra isso? Os artistas, os amantes da arte, aqueles que acreditam nela?

Eu me voltei aos estudos de Marshall McLuhan, que disse uma vez algo muito importante: no fim das contas, um trabalho de arte opera apenas com atenção. E o artista está roubando atenção. Então decidi que não trabalharia com arte digital na bienal porque isso seria uma armadilha também. Você quer criticar esta ideia, mas acaba apresentando o trabalho de alguém a quem admira. Há artistas que trabalham com isso, como o matemático David Chavalarias, Omer Fast e Zach Blas, que falam da vigilância digital, mas há também obras do passado, que estão contando a mesma história. Por isso, provavelmente, é muito importante para nós estarmos conectados com a fisicalidade da arte. Porque se trata de um campo de criação, produzido pela humanidade, que deixa muito mais espaço ao observador do que a vigilância computacional.

Quando você está olhando uma obra de arte, que seja por um segundo, você está aprendendo. Está ativo, e não passivo. A obra não está extraindo qualquer coisa de nós.
Para mim, é extremamente importante entender que, se eu me importo com o presente, eu na verdade me preocupo com a atenção. Eu convido a uma reapropriação da atenção.

Convido todas as pessoas que vão para uma exposição para apenas estarem vivas e presentes, e não para instagramar suas vidas, achando que eles estão consumindo algo, mas elas não estão. Elas estão apenas alimentando a máquina. A velocidade com que se manipula o Instagram é baseada em nossa confiança. Tudo é confiança.

Então, acho que temos que voltar ao espaço como um terreno comum, onde realmente nos encontramos, um espaço onde uma pessoa é tocada emocionalmente por um trabalho. Ficando com raiva de uma obra, por exemplo. Isso significa que você está vivo. Você não está passivo, desativado por um governança que tenta extrair de você.

Berlim mapeia feridas do mundo

Antonio Recalcati, Enrico Baj, Erró, Gianni Giancarlo Dova, Jean-Jacques Lebel, Roberto Crippa, "Grand tableau antifasciste collectif", 1960. Exposto na Bienal de Berlim
Antonio Recalcati, Enrico Baj, Erró, Gianni Giancarlo Dova, Jean-Jacques Lebel, Roberto Crippa, "Grand tableau antifasciste collectif", 1960. Foto: Cortesia dos artistas / VG Bild-Kunst, Bonn 2022; Erben Enrico Baj, Gianni Dova

“Qual é a razão por trás das falhas em reparar traumas coletivos que assombram nossa sociedade como um membro fantasma de um corpo amputado?” A questão é apresentada pelo artista e diretor artístico da 12ª edição da Bienal, Kader Attia, no catálogo da mostra. Em seu diagnóstico, ele defende que as feridas da sociedade atual não são reparadas porque se tornaram invisibilizadas por narrativas colonialistas “ainda presentes”, como é o título desta bienal.

Ainda Presente, contudo, não se refere apenas ao passado colonialista europeu, que gerou toda a riqueza da modernidade, mas também é uma afirmação de resistência: estar vivo e “ainda presente”, apesar de todas as perversões que seguem no mundo, é, assim, um ato necessário.

Ocupando seis espaços em Berlim, incluindo agora uma ala inteira da Hamburger Bahnhof, além da sede original, o KW, a mostra, em cartaz até 18 de setembro, é realizada por Attia junto a Ana Teixeira Pinto, Đỗ Tường Linh, Marie Helene Pereira, Noam Segal e Rasha Salti.

Não é uma bienal que se vê sem passar por forte impacto. No KW, por exemplo, Ariella Aïsha Azoulay apresenta A História Natural do Estupro, uma investigação sobre os milhares de estupros que mulheres alemãs sofreram após a Segunda Guerra Mundial e que foram praticamente apagados dos livros da época. De acordo com Azoulay, em um dos textos da instalação, de milhares de fotos realizadas em abril e maio de 1945, não há nenhuma com menção a estupro e, em 9.558 páginas sobre o período, apenas 161 abordam os estupros massivos de mulheres.

Uma mesa apresenta os livros que tratam do assunto, mas as imagens estão recobertas com uma tarja negra, como a proteger as vítimas. A artista apresenta uma complexa documentação sobre o tema também em uma parede. Ao lado deste conjunto, encontra-se a Grande Pintura Coletiva Antifascista, realizada por cinco artistas em Milão, em 1960, uma denúncia das torturas e do estupro sofridos por Djamila Boupacha, uma líder da Frente Nacional pela Libertação da Argélia, acusada injustamente de ter feito um ataque com bombas, na Argélia, no mesmo ano.

Ao ser exibida pela primeira vez, a pintura chegou a ser confiscada pela polícia italiana e foi devolvida apenas 27 anos depois, circulando desde então em diversos países. Ainda na mesma sala, Cold Cases (casos frios), de Susan Schuppli, apresenta em vídeos impressionantes relatos de como no Canadá e nos EUA a polícia usa de baixas temperaturas para torturar e até mesmo matar indígenas, no caso do primeiro país; e assustar imigrantes latinos, no segundo. São histórias realmente inacreditáveis. Na fronteira entre México e Estados Unidos, por exemplo, há celas de detenção com temperaturas perto de zero grau, para desestimular pedidos de asilo.

Se as histórias por trás destes trabalhos em meios e tempos distintos são tão absurdos, uma outra seção, no mesmo espaço, dá conta de mostrar como a arte resiste a tempos difíceis. Trata-se de um pequeno apanhado da coleção Arquivo da Vanguarda, de Egídio Marzona, de Dresden. Esse acervo reúne 1,5 milhão de documentos e objetos reunidos por Marzona desde os anos 1960, recentemente doados à Coleção dos Museus Públicos de Dresden. Entre as publicações, há desde revistas antinazistas alemãs a panfletos contra a Guerra do Vietnã, além de manifestos antirracistas dos anos 1960.

Ao longo da Bienal, a equipe curatorial inclui outros trabalhos de pesquisa, que não necessariamente surgiram no campo da arte, como o livro recém-lançado Toxic Data, do matemático David Chavalarias, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. A partir da publicação, ele criou a instalação Shifting Collectives (moldando coletivos), na Hamburger Bahnhof, onde apresenta, por meio de vídeos, imagens e sons, como os valores democráticos franceses ruíram com o fortalecimento da xenofobia e do nacionalismo. Tudo isso a partir de uma ferramenta que analisa centenas de milhares de comentários no Twitter. Entre os fatos que ajudaram a colapsar as democracias, Chavalarias aponta a eleição de Bolsonaro no Brasil.

Também no mesmo museu, uma das obras mais polêmicas da Bienal toca em outra ferida: a violência da invasão no Iraque, em 2003, por tropas norte-americanas. Trata-se uma instalação em forma de labirinto de Jean-Jacques Lebel, composta por imagens de cenas de violência, muitas delas divulgadas pelos meios de comunicação, em que soldados abusam da agressão contra iraquianos. A polêmica aí está em se usar imagens tão fortes que acabam por reforçar estereótipos da violência ao invés de questioná-los, um debate bastante atual que busca não revitimizar a dor dos outros.

O contraponto nesse grupo é o contagiante vídeo de Clément Cogitore, no qual bailarinos de várias raças fazem uma batalha no estilo Krump, ao som da ópera de 1735, Les Indes Galantes (as índias amorosas), de Jean-Philippe Rameau, que também dá título ao trabalho. A ópera, em sua montagem original, trouxe africanos para se apresentarem nos palcos franceses pela primeira vez. A performance no vídeo é um contraste à formalidade da ópera – para muitos o estilo mais sofisticado de arte – trazendo a espontaneidade das manifestações dessas batalhas. “

Ainda Presente é uma bienal que enfoca problemas conhecidos sobre a perspectiva da arte, trazendo muitas vezes revelações um tanto assustadoras, como as torturas à baixa temperatura. Muitas obras, como é o caso de Azoulay ou Lebel, partem de questões reais para criar arquivos e dispositivos que buscam evitar o apagamento e o esquecimento. Pode não ser fácil de se conviver com tudo isso, mas é um confronto necessário, já que ele não se realiza em muitos outros campos.

Mostras que se complementam

Richard Bell, Sol, 2022
Richard Bell, “Sol”, 2022. Foto: Patricia Rousseaux

Três exposições de grande escala em cartaz na Europa – a documenta de Kassel, a Bienal de Berlim e a Bienal de Veneza – dão conta de um complexo e complementar panorama da arte contemporânea. As duas primeiras são realizadas basicamente por fundos públicos alemães, o que permite maior independência – aliás, com curadores escolhidos por processos democráticos com profissionais da área.

Já a centenária bienal veneziana, a cargo da curadora italiana Cecília Alemani, segue próxima do mercado – apesar de, nesta edição, em todas as legendas as obras serem identificadas apenas como “cortesia do artista”, evitando assim o óbvio nexo. De qualquer forma, é explícito que a mostra italiana continua apresentando muito mais uma produção objetual, disponível em grande parte nas galerias poderosas do circuito, que vê a figura da artista e do artista como gênios individuais com um trabalho que valoriza o fazer em detrimento do conceito.

Enquanto isso, as exposições na Alemanha enfatizam processos, como dos trabalhos colaborativos, no caso da documenta, a cargo do coletivo indonésio ruangrupa; ou de denúncia social, como em Berlim, que tem à frente o artista franco-marroquino Kader Attia. Contudo, é inegável que ver Veneza é um prazer: a maior parte das obras parte de um acabamento estético primoroso, além de estar buscando um efeito de reparação à própria história da bienal.

Isso porque em cerca de 200 artistas presentes, 180 nunca participaram desta que é considerada a primeira bienal – iniciada em 1895 –, sendo que a maioria composta por artistas mulheres, além de um significativo aporte de negras, indígenas e figuras do Sul Global. As mostras alemãs, por outro lado, são muito mais contemporâneas de fato.
A documenta, com seu orçamento multimilionário de mais de 42 milhões de euros (R$ 232 milhões) consegue fazer algo que, desde o início da produção contemporânea, lá nos anos 1960, busca-se de fato: acabar com a representação para tornar a vivência o principal sentido da arte. Com cerca de 70 coletivos, que por sua vez mobilizaram mais de 1.500 artistas no total, a mostra em Kassel traz uma energia vibrante para apontar como a arte pode transformar o mundo, seja através de processos educativos, seja no cuidado com o ambiente, entre várias temáticas abordadas.

Já Berlim aposta na necessidade de denúncia, de apontar para questões que nem sempre estão visíveis, seja dos abusos pela polícia norte-americana contra imigrantes latinos, seja sobre como algoritmos conduzem o mundo para a direita. Tudo isso, importante dizer, sem abrir mãos de elementos estéticos que permitem que esses debates aterradores estejam no campo da arte. De qualquer maneira, cada uma a seu modo, essas exposições conseguem se complementar pois reúnem formas de trabalhar que, mesmo contraditórias em alguns casos, seguem sendo realizadas e constituem a complexa cena contemporânea atual.

Editorial: Reativar a atenção

Patricia Rousseaux | Foto: Alex Flemming

Tivemos a oportunidade de acompanhar, nesses três meses, o debate que diversas mostras internacionais apresentaram para o mundo da cultura e da arte. Após o momento de privação que vivenciamos durante os dois últimos anos, elas refletem, ainda mais, as polarizações econômicas, sociais e políticas globais, em que a arte está tendo um papel notável como transmissor dessas disrupções.

Em vários de seus artigos nesta edição, o crítico e membro de nosso conselho editorial, Fabio Cypriano, descreve muito bem a complementariedade e a diversidade que aparecem nestas edições da Bienal de Veneza, na Itália, da Bienal de Berlim e da documenta quinze, em Kassel, ambas na Alemanha.

Há, porém, um denominador comum no intento de denunciar, de uma ou outra forma, a ferocidade com que o homem vem lidando repetidamente com o outro.

A necessidade de apagar o passado – segregações raciais e religiosas, invasões territoriais, massacres – ou confundir o presente usando-se dos avanços científicos e tecnológicos – fake-news, vigilâncias e centralização de dados digitais, milícias. Todas são, enfim, manobras a serviço de não refletir sobre esse passado colonial tão violento, marcado pelo abuso de poder e pela necessidade de uma perversa opressão do outro.

Frente a isto, Kader Attia, artista, filósofo e diretor criativo responsável pela Bienal de Berlim, conclama a militar, como forma de reparação, pela retomada de atenção por parte dos indivíduos, para tudo aquilo que nos rodeia. Certamente um dos pensadores mais agudos da problemática internacional, ele foi entrevistado pela arte!brasileiros, na capital alemã.

Para ele, perdemos a capacidade da “atenção”, de parar para ver, parar para entender, para nos emocionar. Consumimos imagens e informações soltas, meros objetos. Assim sua potente mostra se propõe a criar ligações sutis, com espaços intersticiais, em que, depois de imagens aterradoras, espera-nos um texto do psiquiatra e escritor anticolonialista Frantz Fanon, conclamando pelo humano: ”A única possibilidade de recuperar o equilíbrio é enfrentar todo o problema, já que todas estas descobertas e indagações levam apenas a uma direção: fazer o homem admitir que ele não é nada, absolutamente nada. E que ele deve por fim ao narcisismo em que se apoia para imaginar que ele é diferente dos outros animais”. (Black Skin, White Masks, 1952).

Esta crítica aparece também, implícita na proposta da documenta quinze, cujo diferencial com qualquer outra mostra anterior deixou perplexos desde alemães até brasileiros. Dirigida pelo ruangrupa, coletivo vindo da Indonésia, decidiu fazer da mostra uma obra, cujo corpo é formado por infinitos corpos.

A proposta associa a arte às práticas cotidianas e aos costumes de 14 outros coletivos de artistas vindos da Nigéria, do Camboja, das Américas e Indonésia.

Não se pode entender essa experiência sem perceber que ela não está nas suas partes e sim em um todo, cujo significado é a importância de aprender sobre diferenças e como conviver com elas.

A importância está dada em como partilhar conhecimentos, como cuidar do outro, como grupos distintos pensam a defesa do meio ambiente, organizam-se para um futuro sustentável e como a arte pode ajudar como catalisador.

A rigor, já nos anos 1980, na documenta sete, apesar de não vir de um coletivo, uma proposta parecida se transformou num dos paradigmas da arte contemporânea, quando o artista Joseph Beuys apresentou um dos maiores projetos de arte pública e ecológica, 7000 Carvalhos, em que, defendendo a proposta de escultura social, ele plantava sete mil árvores numa cidade de terra arrasada. Assim, ele trazia à tona um dos maiores bombardeios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, na cidade que deu início à documenta em 1955.

Hoje, 40 anos depois, quem entra em Kassel, vindo da principal estação de trem, não tem como não se emocionar ao ver uma frondosa alameda florida na primavera, crescendo ao lado de rochas, depositadas ao lado de cada árvore.

Há luz no fim do túnel, desde que resgatemos a pulsão de vida. E, como diria Deleuze, a alegria. A arte tem que sair do circuito que a transforma em mercadoria, tem que incomodar e fascinar.

Antropofagia versus modernismo

"Antropofagia", Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Isabella Matheus / Acervo da Fundação José e Paulina Nemirovsky em comodato com a Pinacoteca de São Paulo

É possível imaginar o quanto já foi escrito sobre o modernismo de São Paulo, desde 1922. Um número incalculável de artigos de jornais e revistas, memórias, livros, dissertações e teses, assim como exposições, catálogos, palestras e cursos. É justamente esse conjunto de reflexões que fez com que o modernismo paulistano – e seu ponto crucial, a Semana de Arte Moderna de 1922 – com o tempo se tornasse um mito, símbolo da renovação da arte e da cultura brasileiras, um processo contínuo de renovação.

Porém, se muito se escreveu sobre a importância (ou não) da Semana de Arte Moderna e sobre os efeitos do modernismo no campo da literatura do País, parece-me que menos problematizada foi a questão das artes visuais.

Não quero afirmar que, em comparação ao papel do modernismo paulista na literatura, existam menos estudos no campo das artes visuais. Pode ser até que de fato isso ocorra, mas não é este propriamente o problema. O que interessa sublinhar é: se a história do modernismo literário de São Paulo é repleta de análises que reelaboram ou colocam em perspectiva as visões mais canônicas que foram construídas sobre o fenômeno, o mesmo não ocorre com as artes visuais. A narrativa criada sobre elas encontra-se apaziguada, seus pressupostos já naturalizados. Estudamos Anita Malfatti, estudamos Candido Portinari, entre outros, mas são raros os estudos que problematizem o que se convencionou entender sobre o modernismo paulista nas artes visuais.

“Antropofagia”, Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Isabella Matheus / Acervo da Fundação José e Paulina Nemirovsky em comodato com a Pinacoteca de São Paulo

Mas, afinal, o que se convencionou entender como o modernismo nas artes visuais? Suprimindo alguns eventos também considerados importantes, vamos lá:

1917/1918 – Exposição de Malfatti em São Paulo e a crítica de Monteiro Lobato “contra” a artista;

1919 – A “descoberta” de Victor Brecheret por Menotti Del Picchia, Helios Seelinger e outros;

1920 – A primeira maquete do escultor para o Monumento às Bandeiras;

1922 – Entre os dias 13 e 17 de fevereiro, a Semana de Arte Moderna, contando com uma exposição no Theatro Municipal de São Paulo, “apresentando” ao público obras e de Malfatti, Brecheret e Emiliano Di Cavalcanti, entre outros. A exposição – como todo o evento – teria sido recebida com escândalo;

1924 – Manifesto Pau-Brasil;

1924 – Primeira exposição individual de Tarsila em Paris;

1928 – Lançamento do Movimento Antropofágico em São Paulo;

1929 – Primeira exposição individual de Tarsila no Brasil (Rio de Janeiro);

1932 – Criação da Sociedade Pró-Arte Moderna e do Clube dos Artistas Modernos, em São Paulo.

Seria possível continuar acrescentando datas a essa lista até desaguarmos numa espécie de apoteose, na criação dos museus de arte na cidade de São Paulo, o Masp, em 1947 e o MAM-SP, em 1948, sendo que, em seguida, poderíamos acrescentar 1951, data da inauguração da I Bienal Internacional do Museu de Arte Moderna de São Paulo[1].

Se na história da literatura modernista a supremacia do modernismo foi inúmeras vezes questionada, no caso das artes visuais ela há décadas se cristalizou como uma narrativa nascida a partir de uma inquietação apenas individual – leia-se Anita Malfatti –, até transformar-se em uma necessidade e ação coletivas – a criação dos museus de arte em São Paulo. Esse relato triunfante teve um arquiteto: o intelectual Paulo Mendes de Almeida, autor da obra De Anita ao Museu que, antes de ser lançado em forma de livro, foi publicado como uma série de artigos na imprensa paulistana, durante os anos 1950[2].

É claro que De Anita ao Museu não foi o único elemento a contribuir para a construção dessa visão – hoje naturalizada – de que, no campo das artes visuais, o modernismo teria se desenvolvido sem fissuras. Embora considere que o livro de Almeida se tornou a espinha dorsal desse processo de mitificação do modernismo, outros fatores também contribuíram para a construção do mito.

Assim, interessaria atentar para certos momentos daquela história ideal em que ela se chocou com situações concretas que – caso tivessem sido levadas em conta –, teriam retirado qualquer possibilidade de pensarmos que as artes visuais, de Anita aos museus, desenvolveram-se em São Paulo sem rachaduras, em um processo coeso, bem articulado e jamais interrompido.

Talvez o fato que mais comprometa essa visão tão idealizada encontre-se ainda perdido em alguma publicação obscura ou em um livro de memórias mal divulgado, ou mesmo num diário esquecido em uma gaveta qualquer. Porém, é quase inacreditável que um dos principais testemunhos de cisões dentro do modernismo de São Paulo encontra-se documentado em uma das mais importantes publicações do período, a Revista de Antropofagia, lançada em São Paulo em 1928 e que circulou até meados do ano seguinte.

De fato, ninguém parece ter dado a devida atenção para o que demonstra aquela publicação em relação às artes visuais em São Paulo.

Foi nas páginas da Revista de Antropofagia em que saiu publicado um artigo dividido em cinco partes de autoria do intelectual Oswaldo Costa.

***

"Cartão-Postal", Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Coleção Particular RJ
“Cartão-Postal”, Tarsila do Amaral, 1929. Foto: Coleção Particular RJ

Hoje um nome praticamente esquecido no debate cultural, Oswaldo Costa foi um dos profissionais importantes da crítica cultural e da crítica de arte da segunda metade da década de 1920, em São Paulo.

Nascido no Pará em 1900, foi para o Rio de Janeiro no início dos anos 1920 para estudar advocacia e, no final da década, encontrava-se em São Paulo trabalhando no Correio Paulistano e, mais tarde, também na Revista de Antropofagia. No jornal, em alguns de seus textos, assinava com o pseudônimo Antônio Raposo (que também usava na Revista), curiosamente um nome que fazia referência a Antônio Raposo Tavares, um bandeirante ativo no Brasil entre os séculos 16 e 17.

Foi no Correio que Costa publicou artigos sobre alguns modernistas, entre eles Gregori Warchavchik[3] e Tarsila do Amaral. Sobre essa última, Costa, ao que se sabe, publicaria dois textos: o primeiro, no dia 21 de setembro de 1929, o autor não assina o artigo; no dia seguinte, no entanto, usando os mesmos argumentos e assinando como Antônio Raposo, o crítico situa Tarsila como o nome mais significativo da pintura brasileira da época, e Cartão-postal, como sua principal obra[4].

Alguns de seus textos publicados na Revista de Antropofagia, deixam claro que, para os antropófagos, o modernismo de 1922 havia soçobrado num mar de compadrismo e de falta de criatividade. E isso, não apenas no terreno da literatura, mas igualmente – ou sobretudo – no âmbito das artes visuais.

***

Antes de trazer alguns dados para a questão, importa não esquecer que Oswaldo Costa não passou despercebido, nem pela crítica e pesquisadora Aracy Amaral e nem pelo intelectual e poeta Augusto de Campos. A autora, no livro que publicou sobre Tarsila do Amaral[5], atenta para o posicionamento crítico de Oswaldo Costa em relação a Tarsila, visíveis nos dois artigos citados. Porém, Amaral não deixa pistas para que o leitor se familiarize com a escrita de Costa, descobrindo que, para ele, a pintura moderna no Brasil teria começado com Tarsila (e não com Anita, ou Di ou Lasar Segall ou qualquer outro artista ligado à Semana de 1922).

Augusto de Campos, na introdução da edição facsimilar da Revista de Antropofagia[6], salienta a importância do intelectual no âmbito do Movimento Antropofágico. Embora, de maneira discutível, trate Costa como um “doublé de Oswald (até no nome)”. De qualquer maneira, o poeta o considera o único intelectual que, na Revista, se “identificava plenamente com as ideias revolucionárias do Manifesto” concebido por Oswald de Andrade, e publicado no primeiro número da Revista.

Embora Campos saliente que, para os antropófagos, o modernismo de São Paulo teria sido “uma fase de transição, uma simples operação de reconhecimento e mais nada”, o autor não aprofunda o clima de cisão que existia nos textos de Oswaldo Costa que, a certa altura, chega a perguntar: “em sete anos que resultou para nós da Semana de Arte Moderna?”[7]

Creio que aqui caberia a pergunta: por que Aracy Amaral e Augusto de Campos, intelectuais tão argutos, não aprofundaram os elementos de cisão em relação ao modernismo de 22, explicitado no texto de Costa? Se Amaral nada pronuncia a esse respeito, o máximo a que Campos se permite é a seguinte consideração:

Se não se preocupam exclusivamente com literatura, não deixam os “antropófagos” de fazer a crítica interna do modernismo e o corpo de delito de todos quantos, seguidores de primeira hora do movimento, derivaram para uma atitude moderada ou reacionária. Disso se encarrega sistematicamente Oswaldo Costa…[8]

A crítica que Oswaldo Costa fazia ao Modernismo não era “interna”. Ao opinar sobre o modernismo supostamente acanhado de Mario de Andrade e outros, Costa se colocava fora daquele movimento, entendendo a si e aos demais “antropófagos” como a superação do Modernismo de 22, e não a sua continuidade.

***

Fotografia do casamento de Pagu e Oswald de Andrade; da esq. para dir., Oswald, Pagu, Leonor e seu esposo Oswaldo Costa. Foto Arquivo MIS Reprodução
Fotografia do casamento de Pagu e Oswald de Andrade; da esq. para dir., Oswald, Pagu, Leonor e seu esposo Oswaldo Costa. Foto: Arquivo MIS / Reprodução

Mas essa maneira de pensar o modernismo paulista como uma árvore que, após a Semana de Arte Moderna, teria dado muitos e diversos frutos, como se sabe, não se encontra apenas em Augusto de Campos. Outros autores e autoras persistiram e persistem nessa compreensão grandiosa do modernismo de São Paulo e sua influência hegemônica sobre a arte e a cultura do país.

Ao ler o recém-lançado diário de Oswald de Andrade – Diário confessional[9] – fica nítido como, mesmo para o principal nome do Movimento Antropofágico era difícil pensar 1928, data do Manifesto Antropófago, como uma cisão fundamental com o Modernismo de 1922.

Em determinado trecho de suas anotações sobre os 30 anos da Semana de Arte Moderna, até então inéditas, ele parece que vai se posicionar como um partidário da ruptura do Movimento Antropófago com o Modernismo: “[…] Já em 28, dava-se o estouro e a compromissão [sic] política em que se forjaria o Brasil novo. Foi aí o divisor das águas brotadas em 22. A Antropofagia, pela sua revista, congregou os que iriam comigo, mais tarde, para o marxismo e para a cadeia.”[10]  Mas para ele, a divisão também não significava rompimento. Tanto é verdade que, mais adiante, ele continua sua reflexão sobre o Movimento Antropofágico como “divisor das águas brotadas em 22”:

[…] O divisor de águas de 28 provocara uma manifestação de conteúdo que separava os modernistas em quatro grupo, obrigando-os a exibir, afinal, uma identificação política.

Em 22, houvera uma unidade proclamada pela liderança de São Paulo […] mas, com as transformações do mundo na década de 20, urgente fora que cada um vestisse a sua camisa ideológica.[11]

Embora esse trecho possa fazer supor que Oswald entendeu que, em 1928, essa divisão de águas poderia significar um rompimento efetivo com o passado modernista, pouco mais tarde ele se exprime, sem cerimônia, sobre a “maturidade da Semana”, demonstrando, então, que para ele não teria havido ruptura entre 1922 e 1928 (para permanecermos nessas datas simbólicas):

A maturidade da Semana já produziu três figuras de excepcional segurança e relevo: uma desconhecida, a do jovem crítico paulista Mário da Silva Brito […] As duas outras são as do romancista Gustavo Corção e do poeta Cassiano Ricardo. São três derivados da Semana e neles se estabelece o triunfo de nossas inquietações e pesquisas de 22[12].

Outro dado a enfatizar é que nesse balanço, Andrade demonstrará mais preocupação ainda com a literatura e a poesia do Brasil, pouco se dedicando às artes visuais. De qualquer maneira, ele reconhece a importância de artistas do Modernismo “histórico”, como Di Cavalcanti e Victor Brecheret[13].

Em determinado parágrafo, inclusive, Oswald demonstra uma inequívoca satisfação em reconhecer como o Modernismo se institucionalizava junto às elites paulista e carioca, recebendo a adesão do próprio presidente da República:

Hoje, quando a gente mais civilizada do Brasil, Ciccillo e Yolanda Matarazzo, em São Paulo, Niomar e Paulo Bittencourt, no Rio, dirigem a avançada triunfal do modernismo, quando a visão do sr. Getúlio Vargas oficializa a Semana, obrigando conhecidos paquidermes a pronunciar publicamente confusas besteiras adesistas, bem como a Academia Brasileira a dobrar o joelho reumático diante de nós, quando é levado ao governo de Minas Juscelino Kubitschek, o homem que muitos anos atrás chamou Oscar Niemeyer e Guignard para darem continuidade estética à grande Minas dos Inconfidentes e do Aleijadinho, difícil é ser passadista.[14]

Interessante como, nessa visão triunfalista de Oswald sobre o fenômeno artístico e cultural do País, de 1917 a 1952, ele está mais próximo de Paulo Mendes de Almeida, do que seu parceiro antropófago, Oswaldo Costa.

***

Interessa saber e refletir sobre como Oswaldo Costa se referia, tanto à produção de Victor Brecheret quanto àquela de Anita Malfatti.

Em Moquem II – Hors doeuvre, atentando para a crescente decadência do Modernismo, Costa explicita seu ponto de vista sobre a carreira de Brecheret:

… Por isso é que o Brecheret de Eva, capaz de nos dar uma obra interessante – apenas interessante, na minha opinião, porque eu não creio no sr. Brecheret – foi trocado pelo Brecheret insuportavelmente medíocre dos pastiches de Mestrovic, arte falsa, decadente, sem nenhuma expressão, superficial, chata e burguesa[15]

“Eva”, Victor Brecheret. Foto: Creative Commons

Por esse comentário que desqualificava a trajetória do escultor após seu primeiro estágio europeu, percebe-se que o crítico possuía alguma intimidade com a produção do escultor, e que estava atento à adesão do então jovem artista às formulações de Ivan Mestrovic, escultor croata com importante presença no restante da Europa, engajado na constituição de um corpus escultórico ao mesmo tempo distanciado dos cânones da escultura verista – tão forte na Itália do início do século passado –, e comprometido com uma linguagem moderadamente sintética, com uma adesão comedida à modernidade do período.

***

Na edição de 24 de abril da Revista, continuando o artigo, Oswaldo Costa desbanca Mário de Andrade como intelectual e crítico (a única produção de Andrade que Costa parecia respeitar era Macunaíma). Ele volta a desbancar Brecheret e, com a intenção de continuar o ataque a Mário de Andrade, envolve um trabalho de Anita Malfatti, mais especificamente uma pintura que a artista havia produzido em Paris e que contara com o apoio de Mário de Andrade para que o Estado de São Paulo o comprasse: a Ressureição de Lázaro: “Ora, quem se baba diante dos pastiches cretinos de Brecheret – arte de Saint Sulpice, como disse muito bem Fosca. Quem destaca na exposição de Anita, o que nela havia de ruim, o Lázaro”.[16]

***

Em março de 1929, Helios (pseudônimo de um dos modernistas de 1922, Menotti Del Picchia), publica no Correio Paulistano, na seção “Crônica Social”, o artigo “Crise no Modernismo”[17]. O poeta inicia o texto afirmando que o “modernismo estético” de São Paulo vivia uma crise da qual, talvez, não conseguisse escapar. Irônico, afirma que, talvez a Antropofagia “do Oswald d´Andrade” tivesse despertado nos “artistas de vanguarda”[18], uma gula que faria com que se comessem uns aos outros.

Menotti se explica:

O fato é que Brecheret – o formidável escultor de Eva, que com Anita Malfatti representou na arte plástica, o grito de renovação – começa a ser considerado passadista… Para mim, o criador ciclópico de tantas coisas admiráveis, apesar de se ter metido por um beco de arte perigoso, intelectualizado e amaneirado, continua a ser um dos maiores artistas nascidos no Brasil[19]

Sobre Anita Malfatti, Helios afirma:

Anita vai pela mesma rampa, no conceito dos que precipitam a arte pela ladeira abismal de todos os “ismos” … Anita também, como Brecheret, precisa fazer u´a marcha-a-ré e voltar àquelas expressões sadias e fortes da arte pessoal e admirável que já soube documentar com belíssimas telas. Mas Anita é ainda, como Brecheret, santo do meu mais alto culto. Grande talento, grande sensibilidade, grande cultura[20].

Como visto, o autor reforça a impressão de que a pintura de Malfatti havia regredido em qualidade, mas não deixa de registar que ela, como Brecheret, estava em alta conta em seu altar.

Essas declarações sobre os dois artistas – diga-se de passagem – retratam bem o quanto Menotti Del Picchia se esforçava, em seus artigos e crônicas, em atenuar as críticas que poderia ter em relação à produção de um artista ou literato, buscando um equilíbrio entre o apreciar e o não apreciar, entre o respeito à individualidade do autor (ou autora) e a adesão a determinadas escolas etc.[21].

O artigo segue salientando que o verdamarelismo[22] também tinha sido atacado, assim como o “macunaísmo”, ou seja, Mário de Andrade.

Caminhando para o final do artigo, Helios chama a atenção para um fato para ele fundamental: enquanto se desencadeava a crise a que aludira no início, “o passadismo entra na idade do ouro”. Diante de tal perigo, ele termina o texto, de forma conciliadora, exortando os modernistas a reverem suas posições:

Diante de tão grave crise, proponho um armistício geral na ala da frente: uma reação solidária, fraterna, formando uma fronte única. Sus! Na estacada, os verdamarelos, antropófagos, macunaimos, livre atiradores, frondistas de todas as cores, rebeldes de todos os credos!

Sus! Agi antes que nas nossas praças articulem algum outro monstro de bronze e nossas galerias se inflamem com algum outro cromo, parecido com o cartaz das pastilhas do dr. Richard […][23]

***

Alguns dias depois, Helios publicaria o artigo Carta aos antropófagos, em que, não sem ironia, descreve o almoço que os responsáveis pela Revista fizeram em homenagem ao palhaço Piolim.[24] O autor chama a atenção para o caráter previsível da refeição. Ele parecia esperar um encontro mais original, tratando-se de um evento formulado por antropófagos!

Ali, Helios atenta também para algo que vem reforçar a dimensão de ruptura entre os antropófagos e os líderes de outras vertentes atuantes em São Paulo. Nota a ausência, no almoço, do “grupo Macunaíma” – leia-se Mário de Andrade e seguidores. Para o cronista, Piolim parecia estar acima de qualquer rixa entre grupos. Ele também chama a atenção para a ausência dos verdamarelos Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, Candido Motta Filho e Alfredo Ellis Jr[25]. Ao se perguntar o porquê da ausência desses seus companheiros, menciona Oswaldo Costa pela primeira e única vez:

Por quê? Já foram acaso comidos pelos antropófagos? O Bopp terá devorado Plínio? O Oswald d’Andrade teria moqueado Cassiano? E o Motta magruço, nervoso, osso e músculo quem teria ousado papá-lo? E o Ellis […] estaria, como Jonas, debatendo-se no ventre do Oswaldo Costa?

Mistérios… O fato é que as tribos andam em guerra[26]

Menotti termina o artigo pesaroso com a situação de esfriamento entre os grupos, dirigindo-se aos antropófagos também de maneira conciliatória:

Eu sou pela paz. À margem, quieto, anotando, arrasto a tristeza de um pai velhusco que vê a família desunida…

Meus caros Cunhambebes: eu vos saúdo do fundo do coração e apresto meu cachimbo para sempre trocarmos as baforadas do fumo da amizade.

Vosso sempre para novos ágapes.

***

Apesar das propostas de armistício de Menotti Del Picchia, as cisões entre os antropófagos de São Paulo e seus ex-companheiros tenderão a se agravar ainda mais. Daquele final de década em diante, cada um daqueles grupos (e, de certo modo, cada um dos indivíduos que os formavam) começará a caminhar separadamente, solitários, ou em grupos mais reduzidos, em direções opostas.

Assim, o mito de um modernismo triunfante, como já mencionado, apenas seria constituído com a criação dos Museu de Arte de São Paulo e do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que transformaram a Semana de Arte Moderna de 1922, em berço esplêndido da arte moderna não apenas de São Paulo, mas de todo Brasil.

________________________________________________________________ 
[1] – Sobre as relações entre o modernismo paulista e a criação dos museus de arte no final dos anos 1940, consultar: – CHIARELLI, Tadeu. “Arte em São Paulo e o núcleo modernista da Coleção”. IN MILIET, Maria Alice (ed.). Coleção Nemirovsky. Rio de Janeiro: MAM, 2003. E, do mesmo autor: “Que pena Oswald não ter nascido no Rio, né?”. Conversa de bar(r) Plataforma digital da revista ARTEBrasileiros! 7 de fevereiro de 2022. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/modernismo-ruy-castro/
[2] – ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976 (Segunda edição: São Paulo, Terceiro Nome, 2014).
[3] – Segundo herdeiros do arquiteto Gregori Warchavchik, Oswaldo Costa teria publicado o seguinte texto sobre a “Casa Modernista” projetada pelo arquiteto, em São Paulo: “A primeira realização da arquitetura moderna em São Paulo”. São Paulo. Correio Paulistano. 8 de julho de 1928, p.3. Os dois artigos sobre Tarsila foram republicados em AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1975. Pág. 463 e segs., vol. I.
[4] – “EXPOSIÇÃO Tarsila do Amaral”. Correio Paulistano. São Paulo, 21 de setembro de 1929 p. 5; “Tarsila”. RAPOSO, Antonio. “Tarsila”. Correio Paulistano. São Paulo, 22 de setembro de 1929, p.2.
[5] – AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1975. Pág. 267, vol. I.
[6] – “Revistas re-vistas: os antropófagos”. Augusto de Campos. IN Revista de Antropofagia. Reedição da Revista Literária Publicada em S. Paulo – 1ª. e 2ª. dentições, 1928/29. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
[7] – Idem.
[8] – Idem.
[9] – ANDRADE, Oswald. Diário Confessional. Organização Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
[10] – ANDRADE, Oswald. Op.cit. p. 564.
[11] – Idem, pág.566 e 567.
[12] – Idem, pág. 569.
[13] – Embora se refira sempre de maneira pouco elogiosa a este último.
[14] – ANDRADE, Oswald. Op. Cit. Pág. 563.
[15] – “Moquen II – Hors d’oeuvre”. Oswaldo Costa (Como Tamandaré). Revista de Antropofagia. 14. 04, 1929
[16] – “Moquem III – Entradas”. Oswaldo Costa (como Tamandaré), Revista de Antropofagia24. 4. 1929. Aqui, Costa faz referência à pintura Ressureição de Lázaro, de Malfatti (hoje no acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo), obra de qualidade discutível, dentro do conjunto de pinturas da artista, e que Andrade elogiou, visando interferir na decisão do Governo em comprar a peça. Em carta do crítico para a pintora, Mário afirma que pela amizade entre ambos, ele mentira publicamente sobre a obra, fornecendo-lhe qualidades que ela não possuía. Sobre o assunto, ler: ANDRADE, Mário. Mário de Andrade. Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
[17] – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Crônica Social. Correio Paulistano. 20 de março de 1929, pág. 5.
[18] – É importante frisar que Helios deixa clara a divisão que faz da arte moderna: de um lado, os modernistas, “artistas de vanguarda”. Do outro o “novo espírito estético, que esse é um estado de consciência, logo uma vitória universal”. O autor se colocava nessa segunda vertente mais comedia. Sobre o assunto, ler: “”Sou moderno, mas não sou maluco”. Menotti Del Picchia e a arte”. No prelo.
[19] – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.
[20] – Idem.
[21] – Haveria nessa atitude o surgimento de algum tipo de ressentimento por parte do crítico, em relação aos dois artistas? Mais estudos poderão responder à pergunta.
[22] – “Verdamarelismo”, era a vertente modernista criada por Menotti, Plinio Salgado e Cassiano Ricardo, da qual também participavam, Raul Bopp (que depois migraria para a Antropofagia), Candido Motta Filho e Alfredo Ellis Jr.
[23]  – “Crise no Modernismo”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.
[24] – “Carta aos antropófagos”. Helios (Menotti Del Picchia). Crônica Social. Correio Paulistano. São Paulo, 17 de abril de 1929, p. 4.
[25] – Importante reparar que pelo que Helios afirma, parece que apenas ele, Menotti, teria ido ao evento organizado pelos antropófagos. Sua postura conciliadora teria sido mais forte do que a atitude de Mário e seus companheiros, e de seus colegas do movimento Verdamarelo. Menotti ser o único “não antropófago” no banquete, diz muito sobre a personalidade do intelectual, mas diz também bastante sobre como as relações entre os artistas e literatos da cidade estavam esgarçadas.
[26] – “Carta aos antropófagos”. Helios (Menotti Del Picchia). Op. cit.

Modernismo na América Hispânica

Xul Solar, Grafia antica, 1939. Modernismo na América Hispânica
Xul Solar, Grafia antica, 1939. Foto: Coleção Malba

Na América Latina a modernidade chega tardiamente sob a pressão do novo e com desejo de afirmação de uma nova estética. Na Europa o moderno exalta a cidade, o fenômeno da solidão, quase como uma celebração de um outro tempo. Jorge Luis Borges em Anatomia do Meu Ultra, ressalta que a estética é o arcabouço dos argumentos edificados a posteriori para legitimar os juízos que nossa intuição faz a respeito das manifestações de arte.

Em todas as latitudes, a modernidade coloca seus tentáculos sobre um pensamento que rejeita a tradição; no entanto, o arquitetoa e teórico Roberto Segre lembra: “Mesmo que os espanhóis tenham apagado as pegadas das primitivas civilizações americanas, ao destruir templos, palácios, estradas, eles adequam a grade urbana do novo tempo ao traçado original de Tenochtitlán, capital dos maias e Cuzco, capital inca. Com o tempo, algumas cidades quase estáticas por séculos começam a transformar-se sob a pressão da modernidade.” Os artistas latino-americanos repudiam os cânones tradicionais e, também como os europeus, exaltam a cidade. Essa inquietação espalha centelhas para além das artes plásticas e chega à literatura, poesia, arquitetura, música. O cotidiano das grandes cidades, nos anos 1920, é registrado pelos modernistas ora numa linguagem figurativa ora abstrata influenciada pelo modernismo dos centros artísticos europeus, passando pelo expressionismo ou, a partir de 1923, pelo cubismo e surrealismo. Alguns artistas recebem apoio financeiro da família, viajam para Europa, deixam-se influenciar pelo que vivenciam.

Em seu livro Modernidade Periférica, Buenos Aires 1920 e 1930, Beatriz Sarlo, a expressiva intelectual argentina, contrasta autores portenhos, sem dissociar vida e obra. No texto de abertura: Buenos Aires, Cidade Moderna, tenta desvendar o mundo multifacetado das pinturas de Xul Solar, ícone da arte argentina e muito próximo de Borges. “Sempre vi os quadros de Xul como quebra-cabeças de Buenos Aires. Mais do que sua intenção esotérica ou liberdade estética, impressionavam-me sua obsessão semiótica, sua paixão hierárquica e geometrizante”. Para ela, Buenos Aires, nas décadas de 20 e 30, era o ancoradouro urbano de fantasias astrais. Sarlo descreve a vanguarda portenha como filhos de endinheirados, quase em debacle econômico e de imigrantes como o pintor Emílio Pettoruti, considerado um dos fundadores do modernismo argentino. Em sua autobiografia Um pintor Ante o Espelho, o artista revela que sempre quis conhecer a terra de seus antepassados, e assim vai para Itália, onde reside em Florença, Roma e Milão, tem contato com os futuristas Carlo Carrà e Giacomo Balla. Inspirado pela Commedia dell´Arte Italiana, pinta arlequins e dedica parte de sua vida às naturezas mortas. Antes de voltar a Buenos Aires expõe em Berlim, na galeria Der Sturm, e ainda vive seis meses em Paris. Quando volta à Argentina, Pettoruti influencia artistas e ensina o público a ver territórios ainda inexplorados naquela época. Em 1971, ano de sua morte, ele é homenageado com sala especial na 11ª Bienal Internacional de São Paulo.

Para a crítica argentina Marta Traba, o processo de modernidade em países da América Latina deve ser observado como áreas abertas e áreas fechadas; para o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, como povos testemunhos, povos novos, povos transplantados. Ou simplesmente, como teoriza Aracy Amaral, a partir do reconhecimento da existência de duas América Latinas: a das áreas ancestrais mexicanas, maias e andinas e, de outro lado, a desprovida de uma sólida cultura remota, como os países da área Atlântida, em particular Venezuela, Brasil, Uruguai, Argentina e parte do Chile.

Décadas antes do modernismo, a teoria da arte era algo que enriquecia as conversas sobre questões culturais, mas no seu auge é uma necessidade. No México nos anos 1920 os artistas tentam descobrir o ser nacional e individual. O muralismo e a gráfica aderem ao projeto nacional de reivindicação revolucionária que lentamente se institucionalizam. Jorge Schwartz, no livro Vanguardas Latino-Americanas, lembra que, enquanto Oswald de Andrade sonha com o matriarcado Pindorama, um grupo mexicano tem como utopia a fundação de Estridentópolis, um devaneio nascido de um movimento artístico de vanguarda, o estridentismo, que surge em Jalapa, Veracruz, em 1921.

Nada sonhador, o mexicano Diego Rivera dá relevo aos temas sociais e políticos com os quais está comprometido. Casa-se com Frida Kahlo na época em que intensifica os murais com temas que refletem o mundo à sua volta. Viaja a Paris e lá conhece intelectuais como Breton e Picasso, que se interessa pela sua obra. Desmond Rochfort, em seu livro Pintura Mural Mexicana, entende que nos anos em que Rivera pinta sua versão sobre a história do México, o enigma a ser resolvido é o da nação mexicana no momento em que a Revolução está no poder. Para o crítico, as visões do mundo moderno criadas pelos três grandes muralistas: Rivera, Orozco e Siqueiros, entre 1930 e 1940, situam-se no contexto de realidades contrastantes. “Para Siqueiros constituíam as bases de uma leitura profundamente parcial do mundo moderno. No caso de Orozco, os contrastes criam interrogação valorativa do conflito entre o ideal e a realidade. Na obra de Rivera, as dualidades do mundo moderno são tratadas com combinação de posições contraditórias, seja numa visão acrítica e mitificada da modernidade norte-americana ou por meio da retórica de seu socialismo revolucionário.”  No início do século 20, quando surge o Movimento de Pintura Mural, o muralismo coloca como ponto central a elaboração de nova história que inclui o povo como ator principal, como etnia e classe. O movimento tem um viés pedagógico, uma vez que grande parte da população é analfabeta.

Joaquin Torres-García, New York Street Scene
Joaquin Torres-García, New York Street Scene, c. 1920. Foto: Estate of Joaquín Torres-García / Catalogue Raisonné no. 1920.07

O Uruguai contribui para o movimento com um artista verdadeiramente internacional, Joaquin Torres-García, que desempenha um papel ativo tanto no movimento modernista de Barcelona entre 1892 e 1920, quanto em Paris de 1926 a 1932, além de seu protagonismo em Montevidéu. Como é inevitável, os artistas que se deslocam entram em contato com outros grupos locais que influenciam suas obras. Torres-García chega a Nova York em 1920, onde fica por dois anos. O impacto que a cidade mais moderna e dinâmica da época causa em sua obra é visceral, como ele relata no seu livro New York. Encantado com o que vê, regista nas telas letreiros luminosos, propagandas, casas vermelhas, amarelas, cinzas, letras flutuando. É o momento radical de sua produção que transborda e se notabiliza pela dinâmica única.

O modernismo alimenta forças antagônicas entre o atualizar e o interiorizar, entre a ruptura e a continuidade. O cubano Wifredo Lam, assim como Torres-García e Rivera, emprega rituais afros e mitos para criar um modernismo dinâmico. Rita Eder, historiadora de arte, observa que Lam se relaciona com Breton e Frida Kahlo reafirmando o poder das cosmologias pré-colombianas, por uma parte, e da África, por outra. As descobertas e os experimentos modernistas, especialmente na América Latina, são formas de os artistas reafirmarem uma nova maneira de ver, o que o resto da sociedade não consegue compreender.

Colaboradores da edição #59

EDUARDO SIMÕES é jornalista de cultura, com passagens por O Globo e Folha de S.Paulo, na cobertura das editorias de cinema e literatura. Foi ainda editor da arte!brasileiros, em 2015, e de diversos títulos de lifestyle. Também colaborador do Valor Econômico, ele assina a edição de textos neste número.


FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor-adjunto da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Nesta edição, fez as análises das bienais de Berlim e Veneza e da Documenta. Também participou da entrevista com Kader Attia.

LINE LEMOS é artista visual, quadrinista e zineira de BH. Mestre em História pela UFMG e estudante de Artes Plásticas na Escola Guignard, publicou, entre outros, os quadrinhos Artistas Brasileiras (Miguilim, 2018), que recebeu um Prêmio HQ MIX. É autora da ilustração da matéria Arte como respiro.



MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, fez a reportagem sobre o abandono no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, e a crítica sobre a exposição de Arthur Bispo do Rosário, no Itaú Cultural.


JOTABÊ MEDEIROS é repórter e escritor, biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, editor-assistente da Veja SP, editor na TV Gazeta e da Carta Capital. É editor-chefe do site Farofafá. Neste número, escreve sobre a crise da censura de obras no Masp.

Tadeu Chiarelli é curador e crítico de arte. É professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Também já atuou como curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). É colunista no site da ARTE!BRASILEIROS.



Fotos: arquivo pessoal

Primeira edição do Festival Imaginária leva fotolivros ao centro histórico de São Paulo

Equipe do Festival Imaginária: Daniela Moura, José Fujocka, Luciana Molisani, Daniele Queiroz Éder Ribeiro, Nathália Bertazi. Foto: Keiny Andrade
Equipe do Festival Imaginária: Daniela Moura, José Fujocka, Luciana Molisani, Daniele Queiroz Éder Ribeiro, Nathália Bertazi. Foto: Keiny Andrade

De amanhã (14) até domingo (17), acontece em São Paulo a primeira edição presencial do Festival Imaginária, evento que vai reunir mais de 30 expositores, entre editoras e autopublicadores de fotolivros do Brasil, da Argentina, de Hong Kong e outros países, em quatro andares do Edifício Vera, no Centro Histórico de São Paulo. A organização é da Lovely House, editora fundada em 2018 por Luciana Molisani e José Fujocka, que se dedica à pesquisa,  publicação e divulgação de livros de arte, com ênfase na fotografia e em livros de artista, nacionais e estrangeiros.

Os expositores vão apresentar cerca de 400 títulos, de autores brasileiros e internacionais. Entre os destaques estão Asphalt Flower, de Claudia Jaguaribe; A Mesma Luta, de Rosa Galditano; Rio Baile Funk, de Vincent Rosenblatt; Atlas Drag, de Regis Amora, e Curso y Discurso, de Ricardo Báez, Gonzalo Golpe e Alejandro Marote.

A programação também vai abrigar mostras internacionais, como Constelações Latinas, com curadoria de Luciana Molisani e Daniele Queiróz; exposições de títulos do Hong Kong Photobook Festival de 2021 e do Prêmio Internacional FELIFA de 2021; e o Prêmio Lovely 2022, um concurso de maquete de livro fotográfico, dividido em duas categorias, Fotolivro e Fotozine, ambos com projetos inéditos.

O festival terá ainda um ciclo de conversas, com curadoria de Daniela Moura e da Lovely House. Em foco, reflexões sobre a publicação impressa como suporte indispensável da fotografia contemporânea. Ele acontecerá de forma presencial, no Edifício Vera, mas também haverá transmissões por meio de um aplicativo de videoconferência. Para saber mais detalhes dessa programação, acesse festivalimaginaria.com.br.

Todas as atividades são gratuitas, com exceção das oficinas. Entre elas, a do Clube do Fotolivro. Uma iniciativa de Andressa Ce, o Clube vai receber no domingo (17) dez  participantes no festival, para apresentar seus protótipos de uma publicação em processo. Após a apresentação, haverá uma discussão coletiva entre os participantes, e outras pessoas interessadas, sobre esta etapa da produção de um livro. As vagas serão preenchidas por ordem de inscrição. Para se inscrever, basta preencher o formulário disponível no site do festival. Os selecionados serão avisados por e-mail.

SERVIÇO

Festival Imaginária

De 14/7 a 17/7

Edifício Vera – Rua Álvares Penteado, 87, centro histórico de São Paulo

Horários: de quinta-feira a sábado, das 14h às 19h; domingo, das 13h às 18h