Baía de Guanabara, de Ismael Nery
"Baía de Guanabara", de Ismael Nery, exposta em "Fluxos do Moderno" na Casa Roberto Marinho. Foto: Cortesia Casa Roberto Marinho

Muitas vezes celebrações de efemérides são mera formalidade. Mas no caso da Semana de Arte Moderna essa rememoração é incontornável. Afinal, se continuamos mirando para aquele passado depois de tanto tempo, é porque algo dele sobrevive e nos faz pensar não apenas sobre nossas raízes, mas sobre como elas ajudam a definir nosso futuro. Há nestes festejos em torno dos 100 anos do evento algo de singular, um desejo de entender melhor seu significado. E há também uma espécie de ansiedade, de desejo de reavivar uma fagulha que nos ajude a iluminar o presente, encontrando algum alento que nos auxilie a enfrentar a angústia e a paralisia contemporâneas – buscando com um misto de nostalgia e cansaço entender e defender projetos transformadores, que desafiaram as regras e se propuseram a abandonar os ranços passadistas em busca de novos modelos de pensamento e produção.

A lista de encontros, exposições, lançamentos de livros e revistas que giram em torno do encontro de três dias realizado no Theatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922, que com o tempo foi se transformando no mito fundador da modernidade nacional, é enorme. E só faz crescer. São inúmeros os enfoques adotados e é um alívio que neste centenário haja pouco espaço para olhares congelados e meramente laudatórios. É verdade que tal profusão de estudos e apresentações deixam margem tanto para debates de fôlego como para briguinhas bairristas que há muito estão ultrapassadas, mas que funcionam como iscas de clicadas e likes nesse nosso mundo de belicismos digitais.

O contraste entre o volume de pensamento contido nas mostras, catálogos e antologias e o aspecto raso com que a grande mídia vem tratando a efeméride é gritante, pois o pouco que se viu na imprensa sobre o tema é eivado de erros históricos, chamados usualmente de fake news, que perpetuam equívocos largamente repetidos como a suposta participação de Tarsila do Amaral na Semana (ela estava em Paris e só se aproximou do grupo posteriormente) ou então a conspiratória ideia de que as vaias ouvidas durante as apresentações no Municipal teriam sido claques contratadas pelos próprios artistas para valorizar suas performances, algo que lembra as manipulações cotidianas dos tempos contemporâneos e que foi desmentido com veemência por Oswald de Andrade em Diário Confessional, obra reeditada pela Cia. das Letras junto com outras obras de sua autoria.

Apesar das acusações de excessivo paulistocentrismo e de um certo esforço de apontar para uma série de lacunas e contradições presentes naquele grupo, é cada vez mais consensual entre os pesquisadores a ideia de que a importância da Semana é mais simbólica do que real. Também não é mais novidade o fato de que muitos dos autores participantes só futuramente consolidaram sua modernidade e que é preciso expandir o olhar para além de São Paulo, para fora dos marcos de 1922 e para segmentos sociais ignorados pelos modernistas no período. Isso não tira a importância emblemática da Semana, enquanto momento de condensação de um processo lento e mais abrangente de modernização no país. Talvez haja nessa observação mais atenta e diversa a confirmação de que algo premonitório havia na resposta dada por Manuel Bandeira a um repórter em 1952. Disse o poeta, cujo poema Os Sapos, lido durante a semana, foi alvo de vaias: “Acho perfeitamente dispensável comemorar o trigésimo aniversário da Semana. Que esperem o centenário. Se no ano 2022 ainda se lembrarem disso, então sim”.

Capas dos livros Semana de 22
Capas dos livros “Semana de 22: Antes do Começo, depois do fim”, “O guarda roupa modernista” e “Modernismos 1922-2022”. Fotos: Reprodução
Visões que se transformam

O pontapé inicial para as reflexões acerca dos desdobramentos da semana teve início no ano passado, com uma série de encontros patrocinados por um consórcio de instituições culturais paulistas: Pinacoteca do Estado, Museu de Arte Contemporânea de São Paulo e Instituto Moreira Salles. Iluminar pontos cegos, situar a Semana num contexto menos mítico e mais real, inserindo-a em um processo de formação da cultura nacional mais plural, foram alguns dos objetivos do evento, que se desdobrou em 10 encontros entre março e dezembro, com dezenas de convidados e que podem ser vistos no Youtube dos organizadores. Também foi em 2021 que muitos museus (MAM-SP, MAC-USP e Pinacoteca, entre eles) preferiram realizar suas exposições em torno do modernismo, desvinculando-se da obrigatoriedade de participar do calendário celebratório e optando por uma ótica menos nuclear. O Museu de Arte Moderna destacou-se com a mostra e o catálogo Moderno onde? Moderno quando?, com curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, e que não por acaso adotou como intertítulo a frase: “A Semana de 22 como motivação”, evidenciando a importância da Semana como elemento fundamental, mas não necessariamente a locomotiva do processo de “aggiornamento” da arte brasileira, que se desdobrou de maneiras diversas no tempo e no território.

Aliás, os termos adotados nos títulos das inúmeras publicações já lançadas ou ainda no prelo sobre o tema são muito ilustrativos: Semana de 22: Antes do Começo, depois do fim (Estação Brasil), Modernidade em Branco e Preto e Modernismos 1922-2022 (Cia. das Letras) traduzem de forma bastante sintética algumas das questões fundamentais que constituem a coluna vertebral de como o movimento de São Paulo vem sendo pensado na atualidade.

Afinal, como 2022 vê 1922? E como essa visão foi sendo transformada ao longo do tempo, ajudando-nos a compreender mais sobre o momento histórico e também sobre o momento atual? Como escreve Ana Maria de Moraes Belluzzo em texto publicado no catálogo de Moderno onde? Moderno quando?, trata-se de um projeto coletivo de interpretação nacional, que nos coloca diante de diferentes modernismos. Ela lembra que não podemos esquecer que, para além da Semana de 22, temos outros momentos de grande densidade histórica que ajudaram a compor a nossa modernidade, como por exemplo o Salão Revolucionário de 1931, do qual participaram em intensidade ainda maior grandes nomes da arte nacional (como Cícero Dias, Ismael Nery, Guignard, Goeldi…). Como outros eventos de destaque no campo modernista é possível citar ainda o Congresso Regionalista, realizado em 1926 em Recife, além de uma série de publicações, revistas ou manifestos publicados em diferentes lugares do território brasileiro sem que a Semana fosse sequer mencionada. “O modernismo não pode ser visto como um cânone, mas sim como um momento de riqueza muito grande”, diz ela. “Não sei porque esse pessoal continua querendo saber onde começa. Não começa, pipoca”, ironiza ela. “Quem faz essa pergunta pensa que a história é um processo linear”, explica a pesquisadora, que organiza este ano o programa Modernismo Hoje, uma série de 11 episódios que discutem a emergência e desenvolvimento do modernismo, uma iniciativa da Academia Paulista de Letras.

Ninguém sabia direito o que era aquilo em 1922, explica Thiago Gil de Oliveira Virava, autor de Um Boxeur na Arena: Oswald de Andrade e as Artes Visuais no Brasil, a ser lançado esse ano pela Biblioteca Brasiliana e o Sesc, junto com outros trabalhos premiados que tratam da nossa dupla celebração do ano: o centenário da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência. Naquele momento, segundo ele, o que diferencia o movimento é que existe um grupo, que começou a se formar em torno da exposição de Anita Malfatti em 1917, cujos participantes se defendem uns aos outros e se preparam para essa ofensiva. Evidentemente havia uma articulação política e não à toa escolheram o ano de 1922 (chegaram a cogitar organizar a Semana em 1921, mas a coincidência com as celebrações do centenário da Independência os fez adiar a execução). O projeto vai se constituindo aos poucos, tendo como base tanto uma articulação com as vanguardas parisienses – com Tarsila e Oswald posteriormente, entre 1923 e 1928, atuando como espécies de embaixadores na capital francesa – e a tentativa de criar uma rede nacional de troca e interlocução. “O que não significa que eles estivessem determinando como seria o modernismo nesses lugares”, alerta.

Sem título, de Roberto Rodrigues (1926)
Sem título, de Roberto Rodrigues (1926), exposta em “Fluxos do Moderno “na Casa Roberto Marinho. Foto: Cortesia Casa Roberto Marinho
Um tema que não se esgota

“1922 é um marco do modernismo, se foi construído a posteriori, não importa” destaca Lauro Cavalcanti, diretor da Casa Roberto Marinho e curador da mostra Fluxos do Moderno, em cartaz no instituto carioca até junho. Reunindo obras de nomes incontornáveis da Semana e artistas menos conhecidos na atualidade, como Roberto Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues que foi assassinado aos 23 anos por uma jornalista – que se indignou com a publicação de uma charge aludindo uma suposta traição dela -, a mostra tem momentos de grande atualidade e defesa dos ideais modernistas. “Mais do que nunca no Brasil é necessário comemorar a modernidade. Estamos num período de trevas e essa resistência, esse momento de força de possibilidades, de abertura é fundamental”, conclui.

“Este é um tema que não se esgota”, afirma Gênese Andrade, organizadora da antologia Modernismos 1922-2022 e que define a Semana como a primeira performance de grande repercussão no país. “Como as performances costumam ser, foi muito pouco vista. Fala-se sobre uma cena sobre a qual há apenas uma memória turva, uma fama sem lastro muitas vezes”, afirma. Talvez seja por esses contornos tão fluidos que ela se preste tão bem ao papel de síntese de um processo díspar, espalhado, prolongado e desigual como foi a penetração do pensamento e da linguagem moderna no Brasil.

Um outro aspecto interessante desse centenário e que possivelmente venha a render frutos no futuro é o esforço de colocar em diálogo pensadores de diferentes formações, áreas de conhecimento, regiões do país e até mesmo de diferentes gerações. Memórias, reflexões, questionamentos compõem um panorama diverso, às vezes até mesmo contraditório, mas complementar, como é possível descobrir nas páginas da antologia. Ali estão reunidos desde estudos que ajudam a compreender a simbiose entre o projeto da Semana e um projeto maior de elevação de São Paulo à liderança política e econômica nacional. Felipe Chaimovich faz, por exemplo, uma interessante análise sobre as articulações da família Prado com as formas de ver e patrocinar as artes brasileiras. E Luiz Ruffato ilumina a experiência fundamental das revistas literárias que brotaram por toda a parte no Brasil na primeira metade do século 20. Também sobressaem-se em muitos desses textos críticas e reflexões sobre o caráter elitista e excludente do movimento (em termos raciais e de gênero, sobretudo na literatura), mas predomina o esforço coletivo de tentar entender como as interpretações em torno do movimento paulista foram tornando-se diferentes e mais complexas ao longo do tempo.

Dilui-se, portanto, a associação entre a Semana e a ideia de vanguarda. Para usar um outro termo militar, que não o de pelotão de frente (afinal, a modernidade foi importada da França, com anos de atraso, e adaptou-se de diferentes maneiras pelo país afora), pode-se adotar a metáfora do canhão, como instrumento que lança um projétil muito à frente, como uma arma de efeito prolongado.

Modernismos alternativos e cultura popular

Há, sobretudo em São Paulo, opções de todas as ordens para quem quiser mergulhar nesse universo. A exposição Era uma vez o Moderno, em cartaz no Centro Cultural Fiesp e organizada em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), vem sendo apontada como a maior mostra sobre o modernismo brasileiro já realizada, com mais de 300 obras e documentos que normalmente ficam preservados do público nas reservas técnicas da instituição da USP, que tem entre suas preciosidades os arquivos e a coleção de Mário de Andrade, material fartamente revisitado em publicações, estudos e teses.

Também com dimensões estonteantes há a exposição Raio-que-o-parta, que faz parte das celebrações do Sesc-SP em torno da Semana e que reúne um conjunto expressivo de mais de 600 trabalhos, realizados por 200 artistas de diferentes regiões, gerações e linguagens. A mostra dá espaço importante para formas de expressão mais populares como os impressos, a fotografia e a arte popular, usualmente menos valorizados pela elite letrada, mas que têm um papel fundamental na disseminação do moderno no país.

A força da cultura popular e o apagamento da questão racial também constituem elementos importantes do livro Modernidade em Preto e Branco, de autoria do pesquisador Rafael Cardoso. “Os nomes do nosso cânone derivam quase exclusivamente das esferas elitistas de literatura, arquitetura, arte e música eruditas, enquanto os modernismos alternativos que brotaram da cultura popular e de massa são esquecidos ou ignorados”, escreve o autor que analisa, dentre outros, os casos de Arthur Thimoteo da Costa e Lima Barreto, pintor e escultor negros, ambos mortos em 1922, cujo modernismo “alternativo” foi longamente ignorado. Mas como diz o próprio Cardoso, “o passado sempre dá um jeito de voltar a assombrar o presente”.

A questão racial, que nos últimos anos têm rendido algumas das mais inovadoras reinterpretações da história do país, também esteve presente de forma marcante no ciclo de eventos organizado pelo próprio Theatro Municipal, palco das ações de 100 anos atrás. Numa fala marcada por denúncia e reflexão, o poeta e pesquisador Allan da Rosa desconstruiu mitos e não apenas demarcou claramente o caráter elitista do evento, como descreveu o que ocorria na cidade de São Paulo enquanto a elite se digladiava nos palcos do teatro. Avesso à celebração do popular como explosão de alegria carnavalesca, Allan falou sobre urbanidade, exclusão, opacidade e esquecimentos. Segundo ele, apenas lembrar que a Semana foi feita sob o patrocínio da aristocracia cafeeira, aliada ao capital financeiro e ao capital comercial, é chover no molhado. É importante olhar para a cultura urbana, ignorada, presente nos cantos de trabalho, na cozinha, no cotidiano. É importante pensar naquelas pessoas que nem souberam da Semana, pois esta trazia “um olhar muito branco, tetricamente branco, apesar de louvar encontros carnavalizados”, conclui, lembrando que naquele início de século o projeto vigente desde o final do século 19 era o branqueamento da nação. E ele alerta: “Quando a gente troca um recalque imperial solene por outro recalque, não é um desrecalque”.

Mulheres modernistas

Nem só de Mários e Oswalds, Anitas e Tarsilas se faz o modernismo. Evidentemente, os Andrade, como muitos chamam os dois escritores maiores do modernismo e que fizeram sua aparição de primeira ordem com a Semana de 22, são incontornáveis. Afinal, desenvolveram ao longo de décadas alguns dos mais sólidos projetos de cultura para o país, bastando citar o Manifesto Antropofágico, formulado por Oswald em 1928, e todo o projeto de levantamento e preservação do patrimônio nacional capitaneado pelo autor de Macunaíma. Mário, aliás, é um dos poucos a ser lembrado nessas celebrações com uma exposição individual, em cartaz no Museu Afro Brasil.

No caso das duas pintoras, é interessante notar como elas foram ao mesmo tempo eleitas a um papel de destaque na arte brasileira a partir da proximidade com os ideários da Semana, mas ao mesmo tempo pagaram um preço por isso. Como demonstra Ana Paula Simioni em Mulheres Modernistas, seu envolvimento com o grupo acabou fazendo com que o olhar sobre suas produções se restringisse ao período inicial, com o resto de sua obra sendo por muito tempo vista como decadente ou inferior. Elas também acabam sendo enquadradas em modelos estreitos, Anita sendo eternamente enquadrada no papel de “mártir”, vítima dos ataques de Monteiro Lobato na crítica à sua exposição de 1917, e Tarsila no papel de “musa”, da mulher bela e sedutora.

Segundo Simioni, um dos efeitos positivos de celebrações como essa em torno da Semana seria uma recuperação do modernismo como tema de pesquisa, com destaque para estudos que buscam resgatar artistas ou fases menos estudadas, sobretudo entre artistas mulheres que foram longo tempo relegadas a um papel secundário ou inexistente na história da arte. Uma dessas figuras que segundo ela mereceria ser melhor conhecida é Nair de Teffé, primeira caricaturista do Brasil e possivelmente do mundo e que se casou com ninguém menos que o presidente Hermes da Fonseca. Dentre os vários méritos de Nair está o de ter levado O corta-jaca, composição popular de Chiquinha Gonzaga, para dentro do Palácio do Catete em 1914.

“Nos digladiamos pelo passado porque vivemos um presente de destruição”, diz Ana Paula, em sintonia com a ideia defendida por Lauro Cavalcanti de que mais do que nunca é necessário comemorar a modernidade, como forma de se contrapor a destruição de seu legado – basta ver o desmonte das estruturas culturais que vem sendo estrategicamente orquestrada pelo atual governo, como por exemplo desmantelamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), um dos mais importantes legados de Mário de Andrade e de sua geração – sem cair na armadilha de usar questões vitais da contemporaneidade para, anacronicamente, fazer cobranças aos agentes de antigamente. Afinal, é preciso ter consciência de que, como diz Thiago Virava, temos uma “modernidade incompleta, falha e cheia de buracos”.

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