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Carta da Editora: pela liberdade

Escrevo este editorial num momento crítico da história recente do Brasil.
Nos dias 22 e 23 de setembro, apresentamos, em parceria com o Sesc, o Seminário Cultura, Democracia e Reparação, na unidade da Vila Mariana, em São Paulo.

Esta edição traz algumas das questões centrais colocadas pelos palestrantes (o Seminário, gravado na sua íntegra, poderá ser assistido gratuitamente nos canais digitais de arte!brasileiros e do Sesc) e pelos colaboradores. Quando for lançada a revista, ainda não saberemos o resultado das eleições presidenciais em segundo turno no país.

Quem nos conhece, sabe que entendemos a cultura e a arte como algo totalmente relacionado à natureza, não em contraponto a ela. A arte como reflexo de nosso tempo, quando apenas a contemplação não é mais suficiente. Agora, temos a obrigação de pensar a arte e a cultura imbricadas na defesa de um ideal democrático de convivência e refletir como podemos contribuir, a partir do nosso pequeno espaço, para a derrocada do obscurantismo e do atraso. É impossível declamar sobre estética e ética, imaginando que podemos nos omitir de maneira alienada.

A arte!brasileiros apoia publicamente a votação para a frente ampla democrática formada por diferentes coligações e movimentos da força popular, contra a candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro, cujo governo nos assolou durante estes últimos quatro anos com propostas que bem conhecemos e que, com o maior cinismo, passa por baixo do pano leis que retiram investimentos da ciência, da educação, da cultura, da saúde e do meio ambiente, colocando-os a serviço da reeleição.

Afinal, que democracia estamos defendendo?

Não bastassem séculos de desigualdade social, de negação do racismo estrutural, de violência indiscriminada contra povos originários inteiros, dos anos 1980 para cá o neoliberalismo deu lugar a um novo tipo de concentração de poder, não apenas econômico, mas também de ordem cultural. Ofertas crescentes de soluções para garantir privilégios pipocaram. Bairros fechados em condomínios, licenças para usos privativos em locais com perfil comunitário, rejeição ao outro e ataques a quem pensa diferente, entre alguns exemplos, acabaram por criar um ambiente hostil ao espaço público, que acaba sendo visto não como a base para uma sociedade civilizada, mas sim a exceção.

Nestes anos estimulou-se a vocação para o individualismo: na forma de morar, de consumir, de conviver, de criar. A construção de grupos sociais cada vez mais fechados, que se retroalimentam pelo funcionamento e controle de algoritmos que determinam quem é quem, quem vale o quê.

Nessa toada, a arte também foi capturada. Obras viraram mercadorias e, numa verdadeira dança de cadeiras, vários dos profissionais que hoje vemos dirigindo instituições culturais são provenientes do mercado financeiro ou do setor empresarial, com a desculpa ou a necessidade de garantir que seus privilégios continuem existindo. Dessa forma, um circuito perverso coloca nas mãos da compra e da venda algo que deveria estar a serviço de todos. Nos últimos quatro anos, em que o Estado cortou investimentos, as instituições tiveram que optar por parar com parte das iniciativas participativas, cortar equipes curatoriais, programas educativos, conferências e performances.

Chegamos a um novo impasse, cíclico.

É necessário criar mecanismos de incentivo à pluralidade na cultura, precisamos de conselhos profissionais isentos das necessidades do mercado. Os acadêmicos precisam aprender gestão, para dirigir seus esforços de modo que as instituições consigam um equilíbrio entre os patrocínios públicos e privados. E os profissionais de mercado precisam captar verbas para que isso aconteça, com regras claras.

Cito aqui o filósofo Jacques Rancière em Òdio à Democracia, escrito em 2005:
As leis e as instituições da democracia formal são as aparências por trás das quais e os instrumentos com os quais se exerce o poder da classe burguesa. A luta contra essas aparências tornou-se então a via para uma democracia ‘real’, uma democracia em que a liberdade e a igualdade não seriam mais representadas nas instituições da lei e do Estado, mas seriam encarnadas nas próprias formas da vida material e da experiência sensível”.
“O novo ódio à democracia pode ser resumido então em uma tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática”.

Um dos nossos convidados para o Seminário, o filósofo e escritor Hal Foster, que não pôde viajar e estar conosco, desenvolveu, no seu livro O que vem depois da farsa, a ideia de que esse ato, esse ardil, quase cômico e burlesco no qual estamos imersos, poderia ser interpretado como um interlúdio, um interregno, que poderia nos dar a esperança de que outro tempo chegará. Nas palavras dele, “nada está garantido, tudo é luta.”

Temos a oportunidade, em um momento de convulsão política como o que vivemos, de encontrar brechas na ordem social pelas quais seja possível resistir e reelaborar as regras com que estamos convivendo. Temos a possibilidade de acreditar que cuidar do outro é uma atitude criativa, assim como construir um projeto curatorial coletivo ou incentivar obras coletivas como as apresentadas na documenta quinze, em Kassel. Lá, por meio do conceito de lumbung, grupos coletivos de trabalho carregaram a intenção de denunciar o fascismo, defendendo a natureza, as diferenças e a amizade. Essa é a tarefa que, mais do que nunca, nos cabe agora.

Arte e cultura estão imbricadas em uma democracia

Vista do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação
Vista do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação. Foto: Anderson Rodrigues / Cortesia Sesc Vila Mariana

Em sua sétima edição, o Seminário Internacional realizado pela arte!brasileiros marcou mais um capítulo de nossa luta pela cultura e educação. Com o título Cultura, Democracia e Reparação, temas urgentes nos cenários sociopolíticos brasileiro e mundial, o encontro de 2022 teve sua primeira edição presencial após dois anos, devido às restrições sanitárias da pandemia. Com a parceria do Sesc SP, o seminário contou, entre os dias 22 e 23 de setembro, na unidade da Vila Mariana, com um público cativo, recorrente em nossos eventos, formado, em sua maioria, por estudantes e acadêmicos, além de representantes das mais importantes instituições culturais de São Paulo, como Jochen Volz (diretor-geral da Pinacoteca), Cauê Alves (curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo), entre outros.

Em sua fala de abertura, Danilo Santos de Miranda – filósofo, sociólogo e Diretor do Departamento Regional do Sesc SP – salientou as parcerias feitas com as instituições no campo da cultura e do interesse público, que possibilitam iniciativas e eventos como o VII Seminário Internacional. Em seguida, Patricia Rousseaux, diretora da revista e plataforma arte!brasileiros, ressaltou que “não estamos mais em condições de exercer apenas a contemplação: arte e cultura estão imbricadas em uma democracia.”
O tema da mesa do primeiro dia foi O Abismo e a Costura, uma referência ao poço sem fundo em que o Brasil parece ter caído nos últimos (quase) dez anos, desde quando ocorreram as chamadas Jornadas de Junho, em 2013. A vilanização da política, a tomada do poder por parte da extrema direita e o recrudescimento dos ataques ao meio ambiente e a minorias – negros, povos originários, a comunidade LGBTQ+ – marcaram os últimos quatro anos, tudo agravado pela pandemia.

Ao mesmo tempo, partiram, justamente desses alvos, algumas iniciativas que têm por princípio a solidariedade, a empatia e o respeito, que vêm costurando formas de resistência, criando novas práticas culturais, novas utopias para o presente. Para discutir essas cisões e as potenciais suturas, foram convidados o professor e psicanalista Christian Dunker e a pesquisadora e curadora Sandra Benites, membro da comissão artística do Museu das Culturas Indígenas. A introdução da mesa foi feita por Paula Macedo Weiss, doutora em Direito pela Universidade de Tübingen e Presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt, na Alemanha. Weiss leu trechos de seu livro Democracia em Movimento.

No segundo dia, a mesa teve como tema A Farsa e a Comunidade. Seu objetivo foi repensar a primazia do indivíduo sobre a coletividade, um movimento exacerbado pelo neoliberalismo, e apontar que ações de resistência vêm sendo elaboradas, dentro e fora do Brasil, como contraponto. Para isso, reuniu importantes figuras de hoje a fim de aprofundar a reflexão. Para falar de suas experiências, estiveram presentes o artista, curador e membro da comissão de arte do MAM SP, Claudinei Roberto da Silva; o artista indonésio Farid Rakun, membro do coletivo ruangrupa, responsável pela concepção e execução da documenta quinze, e a artista e educadora Graziela Kunsch, brasileira convidada a participar da mostra ocorrida até setembro em Kassel, na Alemanha. A abertura ficou a cargo da professora Ligia Fonseca Ferreira, que apresentou um case sobre a representação e a visualidade do corpo negro na História da Arte, a partir do livro Uma Africana no Louvre, de Anne Lafont, que Ferreira acabou de traduzir para o português.

Os encontros tiveram tradução simultânea e foram acessíveis em Libras. O Seminário será disponibilizado online nas plataformas digitais da arte!brasileiros e do Sesc SP. Leia, nas próximas páginas, a cobertura do VII Seminário Internacional.

Democracia em movimento

Nascida em 1969, no auge da ditadura civil-militar, filha de um político da oposição, Paula Macedo Weiss pôde vivenciar muito de perto o processo de redemocratização e de retomada da democracia plena no Brasil com o advento da Constituição de 1988. Hoje, defende: “A democracia não é apenas um regime político, mas sim uma forma de vida.”

Foi com essa fala que Weiss deu o tom à abertura do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação, promovido pela arte!brasileiros e pelo Sesc São Paulo nos dias 22 e 23 de setembro. Doutora em direito pela Universidade de Tübingen, presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt e membro do Conselho Consultivo Internacional da Bienal de São Paulo, Weiss vem se engajando em projetos em prol da democracia por diferentes formatos, por meio da literatura, de projetos culturais e, mais recentemente, como cofundadora do Netzwerk Paulskirche, um grupo da sociedade civil alemã que visa incentivar a participação política e criar práticas e experiências democráticas positivas no cotidiano.

Convidada para o evento, fez a leitura de um ensaio de seu livro Democracia em Movimento, lançado pela Folhas de Relva Edições em 2022. A publicação reúne textos curtos, que misturam crônicas literárias e ensaios jornalísticos, nos quais Weiss parte de suas experiências pessoais para comentar e refletir sobre aspectos da vida contemporânea. O ensaio As Regras do Jogo não é diferente: a escritora se debruça sobre sua própria experiência de compreender o Estado Democrático de Direito durante sua passagem pela faculdade, poucos anos após o fim da ditadura, e destaca: “Uma sociedade não pode viver em paz se cada grupo jogar só por seus interesses individuais, deixando os demais participantes abandonados”. Transcrevemos aqui o ensaio na íntegra:

Sabe aquela pessoa que cruza seu caminho e se torna determinante para você ver o mundo de outra maneira? Essa experiência tem um poder exponencial se você ainda está numa fase da vida na qual, como Paulo Leminski precisamente descreve, “o sabor da carne / ainda não foi estragado / pela salmoura do dia a dia”.

O meu marco divisor foi um professor de Teoria Geral do Direito. Ele acabava de voltar de um pós-doutorado em Direito Constitucional da Alemanha. Idealista, tinha a ambição de formar uma nova geração de juristas holísticos, interessados no bem comum, num momento significativo na sociedade brasileira: o da retomada da democracia através de nossa nova Constituição cidadã, detentora de todos os direitos fundamentais e necessários para a construção de um Estado e uma sociedade justos e igualitários; uma frátria, na voz de Caetano Veloso. Esse professor conseguiu flamejar a imaginação do nosso grupo e nos cativar para a beleza e a complexidade da estrutura e do funcionamento do Estado ocidental moderno: o Estado Democrático de Direito.

Ao destrinchar o conceito de Estado Democrático de Direito, meu caro professor entregava-nos esse bem maior, a recém-adquirida democracia, como um neonato, nas nossas mãos. A Terra Brasilis encontrava-se ainda na sua mais tenra infância democrática; essa práxis política era ainda inexperiente e passível de traumas e desequilíbrios, porém robusta constitucionalmente, e vinha desde o seu nascimento mostrando sua capacidade de desenvolvimento e aprendizado. Entender esse recém-nascido com toda sua complexidade era conditio sino qua non para a superação dos traumas sociais e falácias impostos por 21 anos de ditadura e a oportunidade real e legal de um futuro digno, plural e promissor. A nós cidadãos cabiam a obrigação e o direito de nos imiscuir nessa árdua tarefa de estancar as inúmeras feridas abertas que ainda latejavam na nossa sociedade brasileira. Com a retomada da democracia resgatamos também a nossa cidadania plena e com ela a premissa de que todos nós participávamos do mesmo jogo democrático.

Havia aí, porém, alguns senões. Considerando que somos todos iguais perante a lei, temos nós, cidadãos, de fato os mesmos direitos, se declinarmos estes em igualdade de chances e participação? Existem outros mecanismos que influenciam as regras desse jogo democrático? José Saramago considerava que a “verdadeira democracia” não existe, porque os governos responderiam aos interesses do poder econômico. O filósofo Ortega y Gasset, apesar de conservador, tinha uma visão dinâmica do indivíduo. A sua célebre frase “o homem é o homem e sua circunstância” nos revela que não é possível considerar o ser humano como sujeito ativo, sem levar em conta simultaneamente tudo que o circunda, a começar pelo próprio corpo e o contexto histórico, político e social em que se insere. Aquele que nunca teve a oportunidade de participar ou aquele que desistiu ou foi excluído do jogo por questões adversas à sua vontade terão as mesmas chances e cartas na mão que aquele que foi sempre privilegiado por sua classe social, sua etnia, seu fenótipo, sua crença? Diante dessas contingências, será que jogamos todos o mesmo jogo com as mesmas regras?

"Democracia em Movimento", de Paula Macedo Weiss, publicado pela Folhas de Relva Edições em 2022. Foto: Cortesia Folhas de Relva Edições
“Democracia em Movimento”, de Paula Macedo Weiss, publicado pela Folhas de Relva Edições em 2022. Foto: Cortesia Folhas de Relva Edições

Lembrei-me do cultuado e complexo filme de Jean Renoir, A Regra do Jogo. O filme é um jogo coletivo, com várias narrativas e claras regras. Percebe-se que a obra se relaciona com a ideia de Corte/Estado, traz uma série de interações humanas, além de pincelar indagações sobre a democracia e o jogo político no prelúdio da Segunda Guerra Mundial. Assim como o ser humano, a sociedade não é algo estático e insuscetível de mudanças. Diante dessas transformações estruturais do mundo pós-moderno, a arte é um importante meio de se entender casos multifacetados, nos quais é preciso fazer uma análise mais ampla e crítica para que haja soluções mais justas e democráticas no plano político. 

A política tem que modelar e balancear permanentemente distúrbios de afetividade – fruto da disputa de concepções de mundo e de existência social – nas sociedades contemporâneas. O reconhecimento virou moeda de câmbio e a rejeição, um tema de extrema relevância nesse jogo político. A melhora de um determinado grupo não pode significar a desvalorização material e cultural do próximo. As perdas econômicas, o medo de declínio, a sensação de não ter lugar e nenhum valor na sociedade são pontos nevrálgicos nesse tabuleiro. Temas como esperança, confiança, medo, liberdade, igualdade, justiça, segurança determinam a partida.

Uma sociedade não pode viver em paz se cada grupo jogar só por seus interesses individuais, deixando os demais participantes abandonados nos seus anseios e impotências, pois isso cria um dilema político estrutural. O característico e promissor do jogo político é que este nunca termina e as regras podem, dentro do princípio da legalidade, ser sempre adaptadas aos novos desenvolvimentos sociais, às diversas narrativas que estão sendo construídas ao mesmo tempo agora. E se o jogo não fosse competitivo, mas cumulativo? Venceríamos se compreendêssemos que somos um, que somos todos. Como diria Vicente Mateus, o lendário presidente do Corinthians, “o jogo só acaba quando termina”.

Em uma democracia – em movimento – nem sempre ganhamos, mas quando perdemos, temos na próxima eleição uma nova possibilidade de lutar por nossas convicções e vencer. Esse é o maravilhoso e sóbrio jogo da democracia. Essa é a minha deixa: temos a chance real de determinarmos uma nova narrativa para o nosso país através do exercício do direito de sufrágio. Portanto, cidadãos brasileiros, avante!

E, para o caminho, uma frase do patrono da educação brasileira, Paulo Freire, odiado pela extrema-direita no poder: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho – os homens se libertam em comunhão”.

O abismo e a costura

A fala de Paulo Freire reverberou na apresentação de Sandra Benites. A curadora, educadora e doutoranda em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ trouxe à mesa O Abismo e a Costura mais do que sua experiência individual. Como mulher indígena guarani nhandewa, partilhou sua caminhada coletiva: “O que carrego com maior força é a minha coletividade, onde está a minha sabedoria ancestral. Se não escutasse essas memórias dos nossos antepassados, não estaria aqui hoje falando sobre a minha resistência”.

Trazer essas memórias passa também por um histórico de silenciamento iniciado na colonização brasileira e ainda hoje presente. Segundo o IBGE, existem atualmente no Brasil 305 etnias indígenas e cerca de 274 idiomas. Como coloca Benites, porém, esse número já foi maior. “Muitos perderam as suas palavras faladas, a língua materna. Hoje algumas estão sendo retomadas depois de vários processos que proibiram pessoas indígenas de falarem as suas próprias línguas, porque elas não eram tão importantes para aquele sistema que foi imposto.” A invisibilização vai além do caráter linguístico: “Hoje, nós [indígenas] somos chamados de invasores, e isso é muito revoltante. Meus parentes foram massacrados, literalmente, porque o governo atual fala que nós somos invasores. Parentes foram assassinados, lideranças foram assassinadas, crianças foram assassinadas. Isso não foi divulgado”, declara Benites.

A curadora se refere aos crimes ocorridos com as comunidades guaranis, mas a isso podemos somar o fato de que os assassinatos de pessoas indígenas aumentaram mais de 60% no primeiro ano da pandemia, segundo o relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Entre os dias 3 e 13 de setembro de 2022, logo antes do Seminário Internacional, ocorreram seis assassinatos entre os povos guajajara, guarani-kaiowá e pataxó. Em abril de 2022, o Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Júnior Hekurari, denunciou que a Terra Indígena Aracaçá, em Roraima, foi totalmente incendiada, após a acusação de um estupro e assassinato de uma menina indígena de 12 anos por garimpeiros. Em 2021, 32 líderes indígenas e quatro servidores públicos que trabalham com as comunidades receberam ameaças de morte, segundo um relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

“Aí eu pergunto: onde está a democracia? Onde está a reparação?”, indaga Benites. Para a curadora, a fim de se discutir a temática central do seminário — cultura, democracia e reparação — é preciso compreender como lidamos com a “fronteira” que existe entre o eu e o outro. “Como a gente vai discutir democracia se não existe escuta?.” Em contraponto a esse cenário, ela traz a perspectiva guarani: “A política se desenvolve a partir do encontro, da escuta e do entendimento do outro. Nós temos as nossas desavenças, dificuldades e desafios, mas não tentamos apagar o outro por conta dessa diferença”.

Benites costura, então, essa falta de escuta ao cenário artístico, a partir de sua experiência pessoal. No dia 17 de maio, após o Masp decretar a suspensão de um dos núcleos da coletiva Histórias Brasileiras, por conta da declarada impossibilidade de exibir uma série de fotos sobre o Movimento Sem Terra (MST), Benites pediu demissão do museu, onde até então era curadora adjunta. O núcleo, intitulado Retomadas, foi curado por ela e Clarissa Diniz, e após uma série de manifestações de ambas e de outras figuras do mundo artístico, a decisão do Masp foi revogada e o núcleo, reintegrado (saiba mais sobre as discussões em torno da mostra e da postura do Masp).

“A partir do momento em que a gente ocupa um espaço com diferentes corpos, a gente soma, a gente amplia. Mas essas ampliações requerem muito escuta”, afirma Benites. “Quando decidi sair, acho que o meu silenciamento foi também minha resistência. Esse lugar onde não posso somar, não posso ficar.” Com esse exemplo, a curadora mergulha nas ideias de democracia e reparação, o que nos mostra que apenas o convite aos espaços e cargos, sem uma real escuta e abertura para a cultura do outro, não adianta, não leva a uma legítima ocupação por corpos diferentes, mas a uma tentativa de moldá-los ao sistema. “Muitas das vezes a gente não cabe nesses espaços.”

O psicanalista, autor e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, deu seguimento a essa fala de Benites quando expressou que a democracia pode se estender em razão de incluir aqueles que estavam excluídos por ela em um determinado momento, mas também pode se contrair. Para ele, são nesses momentos em que percebemos que a democracia não é de graça, “episódios de ruptura que, de certa forma, representam todo o processo pela negação do processo” e nos quais surge a imagem do abismo. “A alegoria do abismo, ou do precipício, surge espontaneamente quando pensamos na história da democracia no Brasil, como um índice da desigualdade, da diferença, da intransponibilidade entre raças, classes, gêneros, fruto de uma colonização marcada por uma relação em abismo, em que a passagem de um lado para o outro se encontra interditada”, propõe Dunker.

Mas, afinal, do que falamos quando falamos de democracia? Em artigo publicado na edição 58 da arte!brasileiros, o psicanalista expande a questão: “Alguns dirão que a ideia de democracia originada na antiguidade realizou-se em instituições da modernidade. Outros argumentarão que esta é uma realização incompleta, pois a democracia permanece como ideal, ou seja, a ideia de uma comunidade por vir, capaz de ser-para-todos e a todos incluir. Outros ainda consideram que a aplicação da ideia de democracia a pessoas e ideias é uma falsificação do termo. Democracia nunca existiu, logo nunca existirá. É só um nome que damos a certos regimes políticos não autocráticos. O Brasil dos anos 2013-2020 tem sido descrito como um país em democracia regressiva, ou seja, marcado pela precarização do funcionamento institucional, retração do uso livre da palavra e violação de direitos humanos”. Nesse sentido, Dunker agrega à experiência da democracia uma constante tarefa de “recordar, repetir e elaborar”, mas não só, para ele é preciso ainda reparar.

“Então se a gente quer pensar um Brasil capaz de se reparar e reinventar, num sentido não só de perdoar, transpor, mas de compartilhar algo, é preciso olhar para o abismo e enxergar nele mais do que mera negatividade, mais do que mero hiato intransponível, mas enxergar nesse abismo um comum por vir, que pode nos aproximar”, declara o psicanalista. Para ele, “há artistas, como Anselm Kiefer, Alfredo Jaar, Nazareth Pacheco e Itamar Vieira Júnior que se dedicaram especificamente ao trabalho de luto e reparação, assim como há testemunhas éticas de desastres inomináveis, como Sojourner Truth, Primo Levi ou a compilação de sonhos feita por Charlotte Bernhardt, mas sua mensagem torna-se realmente um compromisso com o futuro quando nos implica uma espécie de trato entre viventes, morrentes e seres vindouros”.

A farsa e a comunidade

Foi explorando um desses esforços de reparação e compromisso com o futuro que Ligia Fonseca Ferreira, professora associada do Departamento de Letras da UNIFESP e doutora pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne, iniciou as reflexões do segundo e último dia do VII Seminário Internacional arte!brasileiros, mais especificamente a exposição O Modelo Negro de Géricault a Matisse, que aconteceu no Museu d’Orsay em 2019. A mostra contou com obras feitas desde a abolição da escravatura na França (1794) até os dias modernos e, de acordo com o Museu d’Orsay, foi concebida para “fornecer uma perspectiva de longo prazo” e “centra-se sobretudo na questão dos modelos e no diálogo entre o artista que pinta, esculpe, grava ou fotografa e o modelo que posa. Explora notavelmente o modo como evoluiu a representação de sujeitos negros em grandes obras de Théodore Géricault, Charles Cordier, Jean-Baptiste Carpeaux, Edouard Manet, Paul Cézanne e Henri Matisse, bem como as fotografias de Nadar e Carjat”.

Com curadoria de Cécile Debray, Stéphane Guégan, Denise Murrell e Isolde Pludermacher, a exposição, “além da sua beleza proposta, pôs em destaque o valor e o papel determinante das pesquisas acerca da representação e da representatividade de negras e negros na arte ocidental”, afirma Ferreira. Entre tais pesquisas está a própria tese de doutorado de Denise Murrell, intitulada Seeing Laure: Race and Modernity From Manet’s Olympia to Matisse, Bearden and Beyond e defendida em 2013 na Universidade de Columbia, nos EUA.

Em um caso objetivo de reparação, a professora ressalta que alguns dos modelos foram identificados por meio das pesquisas e “muitos deles passaram de simples figurantes a indivíduos. Conseguiu-se, inclusive, resgatar a biografia de alguns deles. [Com isso] o Museu d’Orsay finalmente dá o nome às esquecidas e aos esquecidos pela História da Arte, e abre uma reflexão sobre conflitos sempre atuais de representação”. Não apenas isso, mas algumas obras também tiveram seus títulos revisitados para eliminar expressões pejorativas e racistas. A exemplo disso, Ferreira assinala o caso de Retrato de uma Mulher Negra (1800), de Marie-Guillemine Benoist, reformulado para Retrato de Madeleine. Ela também traz ao debate o trabalho de Anne Lafont, professora da École des hautes études en sciences sociales, em Paris, cujo livro Uma Africana no Louvre foi traduzido por Ferreira e será lançado pela editora Bazar do Tempo ainda este ano. Por fim, transportando as questões para o cenário nacional, a professora lembrou da obra Onde Estão os Negros?, criada pela Frente 3 de Fevereiro e exibida como uma intervenção na fachada do Masp na ocasião da mostra Histórias Afro-Atlânticas.

O professor, curador e artista visual Claudinei Roberto da Silva parece ecoar tal questionamento. Atual membro da comissão de arte do MAM São Paulo e cocurador do 37o Panorama da Arte Brasileira promovido pela instituição, o participante da mesa escreveu em artigo para a edição 53 de arte!brasileiros: “Num Brasil profundamente comprometido com seu passado escravagista e, portanto, com o racismo estrutural e as práticas que ele entroniza, do que falamos quando falamos de arte afro-brasileira?”. No mesmo texto, ele sugere que falemos “da necessidade de construção de um novo desenho de história, inclusive de arte, que na sua constituição se alicerce no antirracismo e imponha um debate sobre a branquitude”.

No VII Seminário Internacional, Silva reafirmou: “A ideia que nós temos de democracia não pode prescindir de cultura e não pode prescindir de reparação. Em especial em um país que como o nosso tem uma história de violência e de exclusão”, pontuou Silva. Nesse sentido, o curador extrapola a ideia discursiva para destacar a importância de ações práticas e de um direcionamento das políticas de nosso país: “A defesa da nossa incipiente democracia passa obrigatoriamente pela defesa das instituições de cultura, ensino e arte”. Na sequência, retomou Mário de Andrade: “A cultura é mais importante que o pão, porque sem a cultura sequer fazemos o pão”.

Na opinião do artista, porém, isso envolveria uma reformulação do próprio ambiente cultural e artístico. “É preciso criar um léxico qualquer e uma ética também para lidar com essa realidade incontornável, dessa emergência de uma produção intelectual e simbólica periférica”. Faz a proposta ao lembrar da constante criminalização dos movimentos populares: “É preciso admitir que o nosso capitalismo é um capitalismo de senzala, que ainda não qualifica os seus consumidores, que não quer que as populações periféricas frequentem os shoppings, é um capitalismo que interdita o rolezinho, que criminaliza os movimentos populares.”

Para o curador, no entanto, longe de favorecer a reparação, o momento sociopolítico atual traz preocupação, a exemplo das frequentes trocas no Ministério da Educação nos últimos quatro anos: “Vivemos um ataque tremendo”..

documenta quinze

Complementares, as participações de Farid Rakun e Graziela Kunsch iluminaram os fundamentos curatoriais da documenta quinze, encerrada em setembro. Artista, Rakun é também membro do ruangrupa, coletivo indonésio de Jakarta, que esteve à frente da conceituação e montagem da mostra. Artista, mãe e educadora, Kunsch representou o Brasil no projeto em Kassel, na Alemanha, com sua Creche Parental Pública.

No começo de sua fala, Rakun mostrou, no telão, um dos primeiros pontos de encontro do ruangrupa. Criado e atuante entre os anos de 2016 e 2017, esse espaço que ele denominou de ecossistema, em que ele e seus companheiros começaram a lidar com a noção de lumbung em si, de ser um coletivo composto de coletivos, onde um dos objetivos era o compartilhamento de recursos diversos.

“Quando fomos convidados para a documenta, decidimos que não queríamos que o projeto fosse extraído de Jakarta e levado a Kassel. Não queríamos fazer coisas que não estivessem de acordo com a nossa pauta. E a pauta europeia é ocidental. A documenta queria fazer parte da trajetória que temos seguido ao longo de quase 20 anos, nós então devolvemos o convite à documenta, para mostrar, lá, o que temos feito na Indonésia, que é, indiscutivelmente, o produto de um Estado falido”, disse o curador.

Rakun afirmou que seu país não conseguiu fornecer infraestruturas para as artes e a cultura, ou ao menos o tipo de arte e cultura em que eles de fato estão interessados. Argumentou que não são um grupo alternativo, porque sequer existe algo tido como mainstream na Indonésia, algo para o grande público.

“O que estamos fazendo na verdade é construir, antes e acima de tudo, infraestruturas. E a partir delas tentar entender se o que criamos coletivamente pode originar não apenas uma soma de partes, mas algo que de fato tenha resultados artísticos e estéticos”, afirmou.

O curador também salientou que o trabalho feito na documenta quinze não partia de um tema — lumbung, lembrou ele, significa literalmente celeiro de arroz, em sua língua —, mas de um conjunto de práticas em aberto, ilimitadas. “Não procuramos artistas que ilustrassem um conceito. Era muito mais algo ligado a uma maneira de fazer coisas”, explicou.

Em seguida, Rakun disse que a curadoria da documenta quinze tentou não seguir a lógica de uma direção de arte clássica, numa posição de jogo de poder, optando por delegar decisões às pessoas. E antes mesmo do início da mostra, o ruangrupa buscou agrupar artistas, fazer com que antes de sua abertura eles se conhecessem e construíssem afinidades, adquirissem confiança e, essa era a esperança, pudessem participar de modo a fazer projetos colaborativos também.

O curador elencou alguns dos pontos altos da edição de 2022 da documenta, entre eles a ausência de competitividade entre os participantes — Graziela, afirmou ele em sua fala, poderia ser um exemplo de alguém que, apesar de tomada por certa “febre lumbung”, devido ao entusiasmo com seu projeto, jamais buscou holofotes. Outro fruto da documenta quinze é a lumbung gallery, um dos muitos desdobramentos de sua experiência que devem vir a seguir. Ele lembrou que cerca de 95% dos colaboradores — algo em torno de 1500 nomes — que convidou não são representados por galerias.

“Estamos tentando pensar numa forma de galeria, por falta de palavra melhor, mais conectada com os nossos valores. A precificação, por exemplo, é algo em que temos pensado muito. Como adquirir como colecionador, como colecionar coletivamente, como colecionar trabalhos que não sejam concebidos como objetos”, explica. “Não se trata apenas de comprar, mas pensar contratos que incluam um compromisso político ou ideológico, do comprador em relação ao artista.”

Um dos projetos mais comentados da documenta quinze, uma estrutura comunitária dinâmica que traduziu bem a proposta de lumbung do ruangrupa, foi a Creche Parental Pública, da mãe, educadora e artista brasileira Graziela Kunsch, que encerrou o VII Seminário Internacional. Em sua apresentação, Kunsch recordou como nasceu seu projeto. Numa carta endereçada ao ruangrupa, ele falava sobre o “Chão da Manu”, ou o projeto de uma creche parental, que então seria tão somente um pedaço de chão (ou um enorme tapete de pano), com materiais abertos de brincar sobre ele.”

“Esse chão hoje existe e foi montado algumas vezes no Goetheanlage, meu parque preferido na cidade. Mas o projeto original cresceu — para ocupar uma sala do Fridericianum — e esteve, desde o início, fortemente enraizado na cidade de Kassel. A partir da minha pesquisa local, conheci Elke Avenarius, que se tornou uma grande parceira de trabalho. Juntas, desenhamos o espaço que ocupa aproximadamente 200 metros quadrados, no térreo do museu”, contou Kunsch, em leitura de sua carta.

Segundo Kunsch, o espaço por ela concebido para a documenta quinze era dividido em salas de ver e ler e uma creche parental, com entrada gratuita pelos fundos do museu. A área da creche possuía espaços de cuidado — como trocadores de fralda, uma cozinha, poltronas de amamentação e uma sala de dormir, onde os adultos cuidam dos bebês. E a creche possuía espaços de brincar, onde os bebês eram capazes, como diria a pediatra húngara Emmi Pikler (1902-1984), de cuidar de si mesmos. Adultos estavam ali, presentes, explica a artista, mas não precisavam ensinar as crianças como brincar ou como movimentar seus corpos.

Após o término da documenta quinze, explicou Kunsch, seu desejo era remontar a creche parental em São Paulo, enviando móveis e materiais de brincar por contêiner. “Mas muitas famílias começaram a me procurar, defendendo a permanência do projeto em Kassel. Perguntaram-me se havia algo que elas poderiam fazer, para o projeto continuar na cidade. Eu me limitei a responder que elas poderiam se auto-organizar. Bem, elas se auto-organizaram”, contou a artista, no texto que leu durante sua apresentação.

Segundo Kunsch, diversas famílias enviaram cartas para políticos locais, e a demanda que ela recebeu do grupo foi listar tudo o que comporia o trabalho, no caso de sua compra pela prefeitura de Kassel, por meio da lumbung gallery.

“Estou preparando um pequeno dossiê sobre o trabalho, mas, em linhas gerais, a minha proposta, e da minha parceira Elke Avenarius, é que a prefeitura possa designar um novo espaço para a creche ser instalada, que assuma uma reforma básica do espaço (caso isso seja necessário para o espaço ser habitado — por exemplo, um banheiro e cuidados com elétrica e hidráulica), e nós duas cuidaremos de adequar o projeto à nova situação, usando parte do valor da venda para essa produção/construção”, prosseguiu a artista. “É claro que essas propostas levantam o maior desafio da continuidade do projeto, que é: quem cuida de tudo isso?”.

Para responder essa pergunta, continuou Kunsch, ela contou como gosta de trabalhar como artista: “No lugar de pensar e decidir tudo sozinha, sempre busco deixar a ideia inicial o mais aberta possível e envolver pessoas de fora do contexto da arte nessa construção. O próprio sentido de arte é construído coletivamente, ampliando os entendimentos do que é arte e a própria noção de arte”.

Para encerrar, Kunsch afirmou que a continuidade da proposta poderia implicar em uma mudança no título em alemão: “No lugar de Eltern und Kleinkinder Krippe [creche de pais e bebês], passar a chamá-la de Öffentliche Elterliche Krippe [Creche Parental Pública], marcando a transformação do projeto artístico em política pública que, como semente — para usar o vocabulário lumbung —, ou como as árvores de Beuys, poderá se espalhar e abrir novas paisagens. Tanto para a vida, como para a arte”, concluiu.

Laboratório de história

Vista do Museu do Ipiranga. Foto: Heloísa Bortz

O mais novo museu da cidade de São Paulo condensa de forma instigante passado e presente. Instalado num prédio eclético, que começou a ser construído ainda no século 19 e que foi inteiramente restaurado a partir de uma concepção bastante atual de museologia e inclusão, o Museu do Ipiranga tem dois pilares estruturantes – o estímulo à pesquisa e a formação de um público amplo – e um objeto central: a cultura material. Apresenta-se como um “laboratório de história”, em contraposição direta a uma visão arcaica e fetichizada da história, na qual corações inchados de formol de ex-monarcas e símbolos e datas nacionais são sequestrados com o objetivo de perpetuar as estruturas de poder construídas pelas gerações passadas.

Transformar o local erigido para ser um memorial de sustentação de um discurso de protagonismo de São Paulo na construção da nação e da heroica figura do bandeirante, em um espaço de investigação no qual os objetos, documentos e outros vestígios materiais tornam-se protagonistas, não é uma tarefa fácil. Sobretudo se levarmos em consideração a existência de uma série de restrições decorrentes dos tombamentos do edifício como patrimônio arquitetônico e imaterial pelas três instâncias de preservação.
Uma das soluções encontradas foi o uso massivo de recursos audiovisuais no novo projeto museológico. Logo na abertura, oficializada em 6 de setembro na esteira das celebrações do bicentenário, frustradas pelo uso político da data, 56 produções audiovisuais complementavam as vitrines, mostruários e obras de arte espalhados pelo prédio. A previsão é de que nos próximos meses outras venham a se somar, totalizando 70 peças digitais, dialogando com a estrutura estável e problematizando assim o discurso oficial que impregna o projeto ideológico do museu.

O desenho curatorial também aplicou fortemente recursos táteis, permitindo que o visitante – e não apenas aquele que tem alguma limitação visual – toque em diversas obras e objetos que compõem as várias exposições, diminuindo assim a distância entre sua existência real e simbólica. São mais de 300 recursos do gênero, que o público timidamente vem descobrindo, indo de um jacaré taxidermizado (representando o período em que o museu também abrigava coleções de arqueologia e etnologia, transferidas para outras instituições da USP na década de 80) a réplicas em relevo de peças do acervo, como o retrato de Maria Quitéria ou uma sala de descanso na qual é possível experimentar de forma concreta os vários modos de sentar na história do mobiliário brasileiro.

A reforma física, que vem atraindo o interesse de um público ávido por novidades, mais do que dobrou o espaço dedicado às exposições e circulação dos visitantes. Ela também atualizou e recontextualizou o espaço, tornando possível essa expansão e a inclusão de novos olhares e interpretações sobre o acervo, a arquitetura do prédio e o entorno, observado agora a partir do mezanino instalado no topo do edifício.

Saíram excessos como as dourações nas colunas e volutas, a cor foi harmonizada e padronizada num suave tom de amarelo originário (as paredes do prédio foram submetidas a uma verdadeira pesquisa arqueológica a fim de encontrar a tonalidade de origem). As salas foram integradas, os andares superiores foram incorporados ao museu e as atividades (como acervo, restauro, pesquisa etc.) ali exercidas foram transferidas para outras casas alugadas nas redondezas do bairro do Ipiranga.

Obras fundamentais da coleção, como a célebre tela Independência ou Morte, de Pedro Américo, que recriou e mitificou a encenação do grito do Ipiranga muitas décadas depois do gesto simbólico da Independência (a tela é de 1888), ou a pintura Partida das Monções, de Almeida Júnior, foram restauradas e ganharam nova vitalidade e novo significado.

Reafirmando seu papel como museu universitário, no qual a pesquisa tem importância fundamental, a equipe curatorial da instituição se apoiou nesse processo de renovação para trazer a público algumas de suas linhas de investigação, organizando a experiência de visita em 11 diferentes mostras de longa duração, articuladas em dois eixos bastante didáticos, intitulados Para Entender o Museu e Para Entender a Sociedade, que ficarão em exibição por um período de cinco anos. Além disso, está prevista para novembro a inauguração de uma exposição temporária. Memórias da Independência reunirá um conjunto expressivo de elementos sobre os vários movimentos de libertação, ampliando a questão para além de São Paulo e do mito do Ipiranga.

É uma imersão intensa num conjunto extremamente amplo e diverso e que corresponde a apenas uma pequena ponta desse grande universo museológico, já que apenas 3,8 mil dos mais de 450 mil itens conservados pelo museu fazem parte da exposição.

Em todo o conjunto, há uma clara tentativa de encontrar no ordinário, no cotidiano, os nexos que nos permitem compreender melhor diferentes aspectos de nossa cultura, resgatada por meio de objetos e histórias cativantes, como a coleção de brinquedos de diferentes idades, materiais e formas – usada no núcleo dedicado a falar sobre o trabalho de conservação exercido pelo museu (ao lado de outras funções primordiais como a comunicação, a catalogação e a coleta) –, um magnífico conjunto de enxadas utilizadas pela imigração japonesa ou ainda a tocante vitrine intitulada “as coisas de meu pai”. Ali estão reunidos os pertences, memórias e afetos guardados cuidadosamente por Enedino Vieira Telles, até sua morte, aos 88 anos de idade, formando um pequeno museu afetivo, ativado para testemunhar sobre a relação entre os homens e os objetos de seu cotidiano.

O direito de matar

América-Látex
Marina Camargo, "América-Látex (Pós-Extrativismo)", exposta no 37° Panorama da Arte Brasileira – Sob as Cinzas, Brasa, no MAM São Paulo. Foto: Tiffany Danielle Elliott

Necropolítica, de Achille Mbembe, ensaio publicado originalmente em inglês em 2003, e no Brasil em 2018, começa de forma contundente, lembrando os termos pelos quais Michel Foucault definiu o biopoder nas últimas aulas de Em defesa da sociedade, curso proferido no Collège de France, em 1975-1976: “Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder”. O que Mbembe então pergunta a partir dessa primeira constatação é acerca das condições práticas que tornaram possível esse poder de matar, de deixar viver e de expor à morte. E, mais ainda, se essa concepção de biopoder ainda poderia ajudar no entendimento das formas contemporâneas do exercício da política, cujo objetivo primeiro seria agora o assassinato do inimigo.

Lembremos então, que Necropolítica foi escrito, não por acaso, à sombra dos ataques às torres gêmeas, em Nova York, ocorrido dois anos antes. A semântica da “guerra”, em especial da “guerra ao terror”, utilizada à exaustão para justificar e legitimar todos os meios possíveis, independentemente do grau de violência e crueldade, para defender, proteger e preservar os valores do Ocidente cristão, assim como o das democracias liberais, ensejou a Mbembe uma reflexão a propósito da política como uma forma de guerra (retomando o conhecido princípio de Clausewitz, de que “a política é a guerra por outros meios”), para perguntar qual o lugar, nessa guerra, concedido à vida, à morte e ao corpo.

Enfim, em que medida vida, morte e corpo se articulam com modos de exercício do poder.
Reunindo Foucault, Carl Schmitt e Giorgio Agamben, Mbembe vai operar um primeiro deslocamento na concepção foucaultiana de biopoder ao pensar a indissolubilidade entre biopoder, soberania, estado de sítio e estado de exceção. Este último aspecto, como sabemos, tornou-se uma espécie de concepção diretriz para o entendimento do nazismo, do totalitarismo, dos campos de concentração e extermínio.

Aos olhos de diversos filósofos importantes de nossa época, como Adorno, Hannah Arendt, Agamben e o próprio Foucault, o campo de concentração se tornou uma espécie de “metáfora central” para entendermos a que ponto pode chegar a combinação entre violência soberana e destruição, o que seria uma espécie de “último sinal do poder absoluto do negativo”.

Os campos de extermínio da Segunda Grande Guerra representariam, assim, seja o horror que ultrapassa qualquer imaginação (Arendt) ou ainda o lugar da mais absoluta desumanização já ocorrida em nossa história (Agamben). Nessa perspectiva, o estado de exceção, como o diz Agamben, deixa de ser a suspensão provisória do Estado de Direito, diante de situações emergenciais, para se tornar o próprio paradigma do governo constituindo, dessa maneira, uma espécie de “zona incerta”, de uma “terra de ninguém”, habitadas entretanto, no caso do processo de colonização, pelo “desejo de inimigo”, pelo “desejo de apartheid”, pela “fantasia do extermínio”, como dirá Mbembe, muitos anos depois, em Políticas da inimizade.

A singularidade de Mbembe nesse debate não é a de desconhecer ou a de subvalorizar o extermínio dos judeus. Mas, é a de produzir um outro deslocamento nos termos do debate, qual seja, o de mostrar que as condições do campo de concentração foram dadas por um acontecimento que antecede o dispositivo biopolítico do século 19, qual seja, a colonização e, por consequência, a experiência da escravidão: “Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica”, escreve ele, em Necropolítica.

A forma da plantation, por si só, já mostra bem o quanto o regime de escravidão constitui um permanente estado de exceção. Nela, o escravo é desumanizado a tal ponto que só aparece como uma “sombra personificada”, desumanização que corresponde a uma tripla perda: a do seu “lar”, a dos direitos sobre o seu corpo e a dos seus direitos como “cidadão”.

Sem fala e sem pensamento, o escravo é um objeto, uma coisa, uma mercadoria, que pertence ao senhor. Entretanto, a esse processo crescente e avassalador de desumanização, o escravo responde, resiste, por meio de uma reapropriação de si, em especial por meio da música e de seu próprio corpo. Surge aí, em meio a esses paradoxos fundados na figura desumanizada do humano, uma espécie específica de terror, que torna o caminho entre a senzala e a plantation propriamente dita, uma experiência que tangencia, o tempo todo, a da morte. A colônia é assim um lugar do permanente exercício de um poder à margem da lei e onde a “paz” nada mais é do que o rosto sinistro de uma “guerra sem fim”.

Cabe a nós perguntarmos em que medida a análise de Mbembe pode nos ajudar a entender a nossa própria história, marcada pela escravidão e pelo racismo. Sem esquecermos que a escravidão atingiu também as populações indígenas e que o trabalho escravo é uma prática ainda existente no País. Parece que um passo necessário a ser dado de antemão é o reconhecimento que ainda vivemos, em diversos aspectos, num estado de coisas marcado pelas experiências do terror e da morte iniciadas na experimentação biopolítica que foi a colonização.

Depois de tudo

Germana Monte-Mór
Germana Monte-Mór, sem título, 2020 Fotos: João Liberato / Cortesia Galeria Estação

Os primeiros desenhos de Germana Monte-Mór — realizados no fim dos anos 1980 e começo dos 1990 — pareciam verdadeiros hematomas. A artista evitava a presença explícita de um fazer que ordenasse o asfalto sobre a superfície de papel. Tudo se passava como se a uma pancada inicial se seguissem movimentos que independiam da sua vontade. Assim, seus desenhos também tinham o aspecto de algo feito de dentro para fora.

Por mais que a matéria com que desenhava tivesse uma consistência rude e ostensiva, seu tratamento conduzia mais a uma revelação da capilaridade do papel do que à construção de figuras que estabilizassem a área em que surgiam. As formas que víamos eram a configuração precária de um movimento que tendia a uma expansão continuada.

Posteriormente, seus desenhos foram adquirindo maior definição e incorporando áreas de cor. As áreas de asfalto encorparam e passaram a se diferenciar, mais intensamente, das demais regiões do desenho. No entanto, muito daquela instabilidade formal permaneceu, de par com o contraponto com as regiões de cor e relevos. A presença ainda mais acintosa do asfalto se via acentuada pela irregularidade de seus contornos, pelo aspecto orgânico de sua configuração. Com sua inconstância, eles não se revelavam aptos para conter a massa que circunscreviam. Criava-se então uma espécie de tensão superficial prestes a ceder. Esse movimento se intensificou nos desenhos expostos em 1998, pois então passou a haver também, num mesmo trabalho, uma relação entre manchas negras e luminosas que, num jogo de atração, aumentava a expansão das áreas negras.

O mundo que surgia nesses desenhos tinha uma constituição meio violenta e traumática. E, a partir dos anos 2000, como ocorre na vida, introduziu-se a alegria das áreas e relevos de cores luminosas. Para mostrar-se com força, o mundo precisava tornar-se desmedido. A intensidade das superfícies negras advinha da capacidade de extravasar seus limites, mais do que de uma saturação ou de extrema concentração. E decorria disso o caráter traumático dos trabalhos: para afirmar-se, as regiões negras deveriam incessantemente mover-se para além de si e entrechocar-se entre as regiões coloridas, colocando no horizonte uma identidade que jamais poderia ser alcançada. Penso ser essa também a razão de uma espécie de sensualidade dolorida que permeia todos os desenhos de Germana Monte-Mór. O movimento em direção ao que está além de nós — a busca de uma continuidade com o outro implicada no erotismo — revela-se como uma condenação ao degredo, como desassossego e dor. Sem nunca perder a serenidade.

Justamente porque está para além de nós, porque aí a vontade não reina, ainda que prometamos a cada vez não mais bater nessa porta. E ela agora chega aqui novamente. Manteve sua experiência de base e saiu enriquecida. A alegria é também a prova dos nove. Como dizia o poeta levantino, toscamente traduzido por mim: “Não é a água que passa/ que mata a sede/ é a que se bebe / é preciso subir aos céus/ descer aos infernos/ para conhecer uns poucosTenho a impressão de que o reencontro de Germana com a obra de Hans Arp trouxe na bagagem a crítica a seus contemporâneos modernos com seu viés dadaísta, que ironizava a forma marcada que vem de Cézanne. Penso que o ceticismo dos trabalhos de Germana com asfalto – muito bons por sinal – ao cruzar com Arp, produz uma improvável tangência com nossa tradição, com Amílcar de Castro, sobretudo.

Além disso a dimensão vitalista, orgânica de Germana Monte-Mór renovou a escultura de Maria Martins ou de Lygia Clark. Sem a mania pós-modernista de citar momentos importantes da história da arte, a artista mantém com a tradição moderna, uma conversa bem-humorada.

Ancestralidade, território e ciência

Rosana Paulino
Rosana Paulino, detalhe de Parede da Memória, 1995-2015. Foto: Isabella Matheus / Cortesia da Artista e da Mendes Wood Dm

O carnaval está no imaginário de Rosana Paulino, 55, desde a sua infância. Atrás da casa de sua avó, em São Paulo, havia uma fábrica de adereços e, na adolescência, ela assistia às escolas de samba na companhia de uma tia e de suas irmãs. Na década de 1980, uma dessas apresentações marcou bastante a futura artista: o último desfile de uma tríade da Mocidade Alegre, sobre a cultura afro, foi dedicado a artistas negros e reverenciava nomes como Heitor dos Prazeres.

“Pela primeira vez eu vi a figura do negro retratada de maneira digna dentro da História. E eu me dei conta de que a arte negra existia porque, até então, no meu universo de criança, havia somente o que vinha da Europa, ou alguém como Portinari, no Brasil. De modo geral, eu só conhecia os chamados gênios da pintura”, recorda-se. “Então, foi uma experiência estética e política muito importante, para a construção de minha identidade.”

Em abril deste ano, Rosana voltou ao universo do carnaval, desta vez como uma das 30 personalidades negras homenageadas pela Beija-Flor de Nilópolis. No Sambódromo carioca, ela representou as artes visuais, sob o enredo Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor, num tributo que incluía ainda Conceição Evaristo e Abdias Nascimento, entre outros. As fantasias da Ala das Baianas – que, segundo ela, são “a alma de uma escola, seu fundamento” – tinham patuás, inspirados em trabalhos seus. “Já quando eu vi o croqui da fantasia, eu chorei, fiquei emocionada, perdi a fala”, conta.

O desfile foi um dos momentos marcantes de sua carreira em 2022, um ano particularmente agitado do ponto de vista profissional. Prestes a completar 30 anos de trajetória artística, Rosana também foi convidada a participar da 59ª Bienal de Veneza, onde até novembro exibe 25 trabalhos, de três séries: Jatobás, Senhora das plantas e Tecelãs. As obras partem de uma investigação da artista, uma leitora atenta das obras do psicanalista e psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, acerca de arquétipos femininos.

“Dentro da psicologia tradicional, há uma inundação de Heras, Vênus, Atenas etc., que não conversam com as mulheres negras daqui. Quando eu olho o meu perfil, por exemplo, dentro dessa psicologia calcada numa mitologia europeia, não me encaixo de maneira alguma. Eu sou filha de Ogum com Iansã”, diz. “A construção da psique feminina não contempla as mulheres negras, como eu. Não aparece sequer uma deusa negra, africana. É como se a mulher de origem africana não tivesse psique, não tivesse individualidade. É cruel e absurdo. Parece que não temos direito nem à subjetividade.”

Suas criações apresentadas em Veneza tentam refundar ou mesmo sugerir novos mitos, a partir de novos arquétipos. A série Senhora das plantas, ela afirma, refere-se às mulheres na faixa etária de 30 a 50 anos, ao passo que as Jatobás são as grandes árvores, as mulheres em sua maturidade. “Elas remetem às grandes mães de santo, que conseguiram manter a comunidade negra unida ao longo da História, são as detentoras e mantenedoras do conhecimento, são as nossas avós, na realidade”, afirma.

A ancestralidade, como se vê, está intrinsecamente ligada à produção de Rosana Paulino. Paulistana, nasceu e cresceu na Freguesia do Ó, de onde se mudou há dez anos, para Pirituba, um bairro vizinho. Foi na casa da família, na Freguesia, que aprendeu com a mãe a costurar, habilidade que levou para seu ofício, algo visto em trabalhos emblemáticos seus, como Parede da memória (1994), que ela considera como obra inaugural de sua carreira. Ali, aparecem fotografias de familiares da artista, impressas em patuás, amuletos de religiões de matriz africana.

Em 1997, a costura voltou em Bastidores (1997), em que retratava mulheres sobre tecidos, esticados sobre a estrutura de madeira que dá nome à série e é usada para tecer bordados. Nessas obras, as figuras femininas apareciam com riscos, rabiscos, suturas que representam o silenciamento delas na sociedade.

Ainda no ambiente familiar, Rosana e suas irmãs também foram estimuladas pela mãe a criarem seus próprios brinquedos com barro, a desenharem personagens, recursos que também permaneceram na atuação como artista que o futuro lhe reservara.

“Desde muito cedo esta coisa da manualidade, e até mesmo o senso estético, foram sendo desenvolvidos no dia a dia. No entanto, sempre tive também um fascínio pela biologia, principalmente por morar numa casa de periferia, com um quintal grande de frente, outro quintal grande ao fundo. Apareciam bichos selvagens, sapos, rãs, abelhas etc.”, lembra.
De início, contudo, Rosana se sentia, ela ressalta, dividida entre a biologia e as artes plásticas. Já na universidade, não pensava em ser artista. “Entrei porque gosto muito de museus e pesquisa. Eu tinha uma inclinação científica”, conta Rosana, que foi assistente de restauro e conservação no MAC USP, no início dos anos 1990. “Essa inclinação continua até hoje, tanto que me considero uma artista muito técnica, que pesquisa áreas que não estavam presentes na construção da visualidade, da representação negra e da produção brasileira. Eu então comecei a trilhar um caminho diferente, pensando a questão da negritude.”

Educadora, doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Rosana é especialista em gravura pelo London Print Studio, de Londres e bacharel em gravura, também pela ECA-USP. Foi também bolsista do Programa Bolsa da Fundação Ford, de 2006 a 2008, e CAPES, de 2008 a 2011. Em 2014, ela recebeu a bolsa para residência no Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, em Bellagio, Itália. Atualmente além da participação em Veneza, está presente em exposições em Austin e Chicago, nos EUA, e em Wolfsburg, na Alemanha.

¿História Natural?, de Rosana Paulino
Rosana Paulino, trabalho série “¿História Natural?”, 2016. Foto: Isabella Matheus / Cortesia da artista e da Mendes Wood DM

O interesse pela biologia – por meio de livros sobre “as formas de cognição, como se elabora o pensamento, essa área ligada ao pensar e ao cérebro” – não apenas prosseguiu ao longo dos anos, como também informa a sua produção artística. Não à toa, afirma Rosana, ela pesquisa e desenvolve em seu trabalho a questão da pseudociência e do racismo científico.

“Naturalmente fui me interessando pela ideia da visualidade e da visibilidade negra, da representação, em especial pela fotografia. E aí entra também a documentação dos artistas viajantes, por exemplo. Minha série ¿História Natural?, por exemplo, o nome já diz tudo. Nada menos natural do que a classificação do outro, dos seres, da fauna e flora. A gente tem que olhar para essa construção que foi feita e que inclusive ainda é usada para justificar uma falsa inferioridade da população negra. E não temos como pensar o país sem levar isso conta, varrendo para debaixo do tapete.”

Há também um elemento da História da Arte no Brasil que lhe causa incômodo: a ideia de uma vocação para a geometria, que ela considera imposta ao país por um ambiente internacional, sem levar em conta as dimensões continentais que temos, com tantas variantes.

“Eu não tenho nada com isso”, reclama Rosana, autora de uma série ironicamente batizada de Geometria à brasileira. “Esta dita vocação geométrica é algo limitado a um grupo muito pequeno de artistas, em sua maioria do Rio e de São Paulo. E os artistas negros brasileiros estão começando a rever isso, desafiando, questionando essa concepção de história da arte do país”, diz.

Outro elemento caro à produção de Rosana Paulino é a territorialidade. Ela considera, por exemplo, que praticamente nenhum outro artista negro influenciou a sua carreira, não apenas pela falta de circulação de conhecimento a respeito deles. “Eu sabia algo sobre Rubem Valentim, Emanoel Araújo, mas desde cedo eu sabia que não dava para seguir essas trilhas porque eu não era baiana”, pondera.

A artista afirma que “troca muito com seu ambiente.” Quando ela estava na universidade, por exemplo, as questões que lhe interessavam era o que significava ser mulher, negra, na periferia de uma cidade como São Paulo, ouvindo Racionais MC’s.

“Então as minhas trocas estão muito mais ligadas a observar este ambiente do que olhar para outros artistas. Logo de cara eu olhei que aquele não era o meu universo. Lembro que uma vez até tentei fazer um desenho relacionado a orixás, mas foi uma coisa absolutamente pavorosa. Eu não fui criada dentro desse mundo. E então comecei a procurar o meu caminho”, conclui.

Diante da crescente onda reacionária da extrema-direita, no Brasil e mundo afora, que ataca negros e povos originários, entre outros grupos minoritários, Rosana acredita que a resistência por parte de artistas, em especial, ainda está muito no começo. Ela salienta que as artes visuais, num país como o Brasil, ainda são um nicho muito restrito. Mas que a internet tenha sido de grande valia.

“Há muitos canais que estão ampliando a questão da visualidade, as reivindicações do povo negro. O que eu recebo de contato de alunos e professores é impressionante. E é uma tendência crescente. As pessoas querem se ver representadas, como constituintes da história, querem saber quem veio antes delas. A onda reacionária é esperada, especialmente aqui, onde a repressão é brutal. Mas é extremamente saudável esta produção de artistas negros que resgata a ancestralidade”, conclui.

Espírito Santo reforça sua cultura

Obra de Elvys Chaves e Carlo Schiavini exposta no Parque Cultural Casa do Governador, no Espírito Santo
Elvys Chaves e Carlo Schiavini, Geoescultura Cybernética. Foto: Leandro Pereira

Existe um crescimento no ambiente cultural de certos estados do Brasil, como Ceará e Espírito Santo, com o surgimento de novos equipamentos públicos como o Complexo Cultural Estação das Artes e o Museu da Imagem e do Som, ambos no Ceará, e o Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha, no Espírito Santo, todos inaugurados em 2022.
Em Vila Velha, o novo parque ocupa a antiga residência de praia do governador, uma casa modernista em frente a uma praia particular. A vista lá é invejável e, com o parque de esculturas, o local lembra um dos espaços de arte na Europa celebrado por sua inserção na natureza, o Museu de Arte Moderna de Louisiana, na Dinamarca.

Aberto em maio passado, por enquanto apenas com visitas agendadas, o lugar conta com 21 esculturas realizadas como site specific, sendo dez temporárias e 11 permanentes, a um custo de R$ 2 milhões. As obras foram selecionadas após um edital nacional, que contou com a inscrição de 234 propostas. Há uma mistura entre artistas locais, como Geisa Silva e Natan Dias, e de outros estados, como Estela Sokol, de São Paulo, e a mineira Marilá Dardot, que vive no México.

A obra de Marilá é das mais poéticas. Ela instalou placas que, ao invés de conterem típicas frases informativas, reúnem citações de livros de autores e autoras com ampla diversidade, sejam LGBTQiA+, negras, negros e indígenas, publicados ou reeditados no Brasil nos últimos 20 anos, como Djamila Ribeiro, Ailton Krenak e Audre Lorde.

A ideia para o parque de esculturas veio da Secretaria de Cultura, que tem à frente o artista e gestor cultural Fabricio Noronha. Ele tem sido responsável por uma equipe com projetos dinâmicos. Essas iniciativas vêm ocupando os espaços culturais do estado com parcerias, como a realizada no Museu de Arte do Espírito Santo, que sediou a mostra Reviravolta, com acervo da Associação Cultural Videobrasil, realizada também na galeria Homero Massena, que em breve passa a ter nova sede.

Em entrevista à arte!brasileiros, Fabricio conta, a seguir, os princípios que nortearam sua gestão dos últimos quatro anos e a importância das novas leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo, para a descentralização das verbas públicas no Brasil.

ARTE!✱ – Enquanto o governo federal fez uma batalha contra a cultura nestes últimos quatro anos, o Espírito Santo atuou com políticas públicas exemplares, como criar o Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha. Como foi a orientação para a cultura neste governo que se encerra?

Fabricio Noronha – A orientação do governador Renato Casagrande, minha primeira grande experiência na gestão pública – eu, que venho da iniciativa privada, da organização e produção de eventos e curadoria de mostras –, foi o desafio de trabalhar uma política de cultura de forma transversal, entendendo a centralidade da cultura em nossa vida, seus potenciais de desenvolvimento econômico assim como do senso de pertencimento do capixaba. Tudo isso com uma liberdade de criação e de trabalho muito grande. Em quatro anos construímos muitas coisas. O governador sancionou uma lei de incentivo de ICMS, que era um desejo de décadas do setor cultural do Espírito Santo, e um mecanismo de transferência de recursos do fundo estadual para fundos municipais, e com isso conseguimos crescer em quatro vezes o número de fundos e leis municipais de cultura.
Junto a isso veio a ideia dele e da primeira-dama, Maria Virgínia, de transformar a casa de praia do governador em um parque. A Secretaria entrou com o concurso de esculturas que ancora esse parque cultural.

ARTE!✱ – Entre as inovações desta gestão está realmente a criação do parque com esculturas realizadas especialmente para o local. Qual foi a concepção geral deste projeto?

A concepção veio do próprio governador de abrir a residência e um parque para visitação misturando arte, meio ambiente e tecnologia. Criamos um grupo interdisciplinar de várias secretarias e nós entramos com a proposição do parque de esculturas, que hoje totaliza dez obras temporárias e 11 permanentes, um investimento total de R$ 2 milhões. Essa concepção passa pela própria relação da casa e seu significado histórico e político, assim como o local onde ela existe para a criação de obras site specific. Nós recebemos 234 propostas de artistas do Brasil inteiro, foi o primeiro concurso nacional do Fundo Estadual de Cultura, e selecionamos 21 obras. Como dez são temporárias, teremos um novo ciclo para seleção de novas obras, criando assim uma dinâmica para esse parque. Por enquanto, as visitas são agendadas, mas temos eventos quinzenais que misturam música, teatro, poesia e dança, várias linguagens artísticas aos domingos.

ARTE!✱ – A galeria Homero Massena, onde esteve a mostra do Videobrasil, também tem mudança de sede prevista. Para quando se espera o novo espaço e o que se pretende com a mudança?

Estamos trabalhando em uma nova sede para ela, que, por enquanto, está na fase de projeto. Em breve devemos contratar essa obra. Ela fica em frente à atual sede, onde era o antigo Arquivo Público, tombado pelo Patrimônio do Estado. Ela deverá ter uma galeria com o dobro do tamanho atual, uma área de oficina, ateliê para residências, um miniauditório, reserva técnica adequada para todo acervo da galeria, que é o espaço de arte mais antigo do Espírito Santo, que vem dos anos 1970, e tem um acervo muito interessante.

ARTE!✱ – Você liderou, pelo Fórum de Secretários da Cultura, as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, a derrubada dos vetos do presidente, mesmo assim a liberação dos cerca de R$ 6 bilhões foi postergada até outubro, e é possível ainda novo adiamento. Qual o significado disso?

Estamos diante de dois avanços históricos do setor cultural, sobretudo a Lei Aldir Blanc 2, que é um recurso permanente de R$ 3 bilhões que, junto com o possível retorno do Ministério da Cultura, dá uma perspectiva muito boa para o setor cultural. São leis que trabalham a partir do pacto federativo, da descentralização de recursos para estados e municípios, fortalecendo a institucionalidade da cultura nesses lugares, fortalecendo os conselhos de cultura e as cenas locais. As duas leis trabalham dentro de uma lógica pelos fundos de participação dos municípios, dos estados e a população de cada local. Assim, dessa maneira, consegue-se um equilíbrio na distribuição de recursos, diferentemente de outros mecanismos, como a própria Lei Rouanet, que concentra muito em Rio, São Paulo e Minas. Essas leis conseguem equilibrar, pulverizar e chegar no pequeno. Um estudo do Observatório da Economia Criativa da Bahia mostrou que 63% dos beneficiados pela lei Aldir Blanc 1, muito parecida com a 2, nunca tinham recebido recursos públicos. Isso demonstra o alcance e a capilaridade dessas leis. E esse processo foi construído pelo Congresso Nacional, pela bancada da cultura, a lei Paulo Gustavo, pelo senador Paulo Rocha, a lei Aldir Blanc 2, pela deputada Jandira Feghali, e estamos muito envolvidos enquanto fórum de secretários. É um movimento bonito que é além do setor cultural, tão coletivo.

Guerra cultural

No Hallenbad Ost, trabalhos de Taring Padi, coletivo que teve um de seus painéis, exposto na Friederichplatz, retirado da documenta quinze após críticas - explicadas no texto. Foto: Patricia Rousseaux
No Hallenbad Ost, trabalhos de Taring Padi, coletivo que teve um de seus painéis, exposto na Friederichplatz, retirado da documenta quinze após críticas - explicadas no texto. Foto: Patricia Rousseaux

As discussões que polarizaram os 100 dias da documenta quinze, em Kassel, encerrada no fim de setembro passado, precisam ser observadas em um contexto mais amplo, dentro de um conceito criado, em 1991, pelo sociólogo James Davison Hunter no livro Cultural Wars, lançado nos EUA, e inédito no Brasil.

Lá, ele aponta como fundamentalistas evangélicos, judeus e católicos conservadores se reuniram em uma batalha pelo controle da cultura secular norte-americana, como ocorreu contra a exposição dedicada ao fotógrafo Robert Mapplethorpe, na Corcoran Gallery of Art de Washington, em 1989, censurada após denúncias de pedofilia.

De certa forma, tiveram início aí batalhas em torno de narrativas que descontextualizam as obras de arte para, por meio de um discurso apelativo, criar a impressão de que a cultura estaria a serviço de desconstruir padrões morais, em sua maioria contra a noção tradicional de família e nação.

Desde então, as ações dentro do que passou a se chamar “guerra cultural” foram ganhando força, inclusive aqui no Brasil, em ocasiões às vezes isoladas, como o cancelamento da mostra de Nan Goldin, no Oi Futuro, no Rio, em 2011, ou a censura à obra Desenhando com terços, da artista Márcia X, na mostra Erótica – os sentidos da arte, no Centro Cultural Banco do Brasil carioca, em 2006.

Já em 2017, essa guerra ganhou contornos mais organizados, especialmente por conta do grupo MBL (Movimento Brasil Livre), que criou nas redes sociais uma onda contra a exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, no Santander Cultural de Porto Alegre, encerrada quase um mês antes do prazo previsto, por conta de denúncias de apologia à pedofilia e zoofilia. Ainda em 2017, outra exposição sofreu uma avalanche de protestos: o 35º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, por conta da performance La Bête, de Wagner Schwartz, apresentada na sua abertura.

Nestes dois casos, as mostras sofreram ataques deliberados para se desmoralizar, por meio de acusações exageradamente falsas e descontextualizadas, a cultura em geral, por ser um campo identificado como de esquerda.

Não por acaso, essa onda conservadora foi fundamental para as eleições de 2018 e, agora, de 2022, no Brasil, e seguiu como plataforma do atual governo federal, que tratou a cultura com descaso – acabando inclusive com o Ministério da Cultura – além de reduzir em muito a abrangência da Lei Rouanet.

O que essa questão tem a ver com o debate antissemita na documenta quinze? Tudo. Desde antes da abertura da mostra, em junho, grupos da direita alemã já se manifestavam em Kassel ameaçando artistas que defendiam a Palestina. Contudo, foi na própria abertura que o tema ganhou dimensão por conta do imenso mural Justiça do Povo.

Exibido sem traumas, em 2002, na Austrália, agora ele fora instalado próximo à tradicional sede da documenta, o Fridericianum. Com 12 metros de largura, o painel contém, entre dezenas de imagens, dois judeus, um com chapéu da polícia nazista e outro como integrante do Mossad, o serviço secreto israelense. Os artistas do coletivo Taring Padi, autores do trabalho, disseram se tratar de uma obra contra a violência da ditadura militar de Suharto, na Indonésia.

Tokyo Reels
Latas de filmes da coleção Tokyo Reels, 2018, presentes na mostra Subversive Film, da documenta quinze.
Foto: Cortesia Subversive Film

Importante lembrar que eles têm a mesma origem do ruangrupa, coletivo responsável pela direção artística da documenta quinze. No entanto, no contexto alemão, tão sensível a questões judaicas após o Holocausto, essas imagens causaram revolta e a obra foi recolhida.

“Não há intenção de relacioná-lo, de forma alguma, com o antissemitismo. Estamos tristes que detalhes sejam compreendidos de modo diferente de seu propósito original”, afirmou o Taring Padi em nota, em que também pediam desculpas.

No entanto, já estava criado um ambiente para a polarização, que favoreceu aqueles que viram a possibilidade de guerra cultural em torno da mostra, seja por meio dos veículos de comunicação, que insistiam em questionar a exposição como um todo, e até da própria instituição: primeiro, Sabine Schormann, diretora-geral da documenta quinze, deixou o cargo em julho, e, no mês seguinte, quando continuavam ainda os ataques, foi criado um Comitê de Apoio Científico, para tratar da questão.

Seguindo a linha de acusações infundadas e exageradas das guerras culturais, o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung afirmou que um coletivo judeu de São Paulo teria sido convidado e depois desconvidado. A Casa do Povo, em São Paulo, que durante a organização da mostra serviu como ponto de encontro do ruangrupa com grupos brasileiros, chegou a se manifestar a respeito, desmentindo o jornal alemão e dando apoio à documenta.

Em nota, divulgada pelo e-flux, eles lembram que Graziela Kunsch, única brasileira na documenta [leia sobre a participação da artista VII Seminário Internacional promovido pela arte!brasileiros], baseia-se em conceitos de uma pedagoga judia-húngara, Emmi Pikler (1902-1984), além de apresentar fotos de uma artista também judia-húngara, Marian Reissmann (1911-1991), que documentam a prática de sua conterrânea. Veemente, o texto ainda aponta possíveis motivações para os ataques: “A denúncia justa de imagens antissemitas está sendo instrumentalizada para deslegitimar toda a exposição, atacar uma agenda decolonial e se opor ao pensamento crítico.”

Já o Comitê Científico caiu na armadilha de buscar identificar outros trabalhos com a mesma conotação, reforçando, assim, uma generalização. Em uma declaração pública, em setembro, eles pediram que filmes do coletivo Subversive Film não fossem mais exibidos: “O que há de altamente problemático neste trabalho não são apenas os documentos fílmicos, que contêm peças antissemitas e antissionistas, mas também os comentários dos artistas inseridos entre os filmes, nos quais legitimam o ódio a Israel e a glorificação do terrorismo em o material de origem através de sua discussão acrítica.”

Taring Padi
No Hallenbad Ost, trabalhos de Taring Padi, coletivo que teve um de seus painéis, exposto na Friederichplatz, retirado da documenta quinze após críticas – explicadas no texto.
Foto: Patricia Rousseaux

A programação que cita esta nota é o Tokyo Reels Film Festival, assim chamado porque exibia uma série de filmes recentemente restaurados, que estavam sob a guarda do diretor japonês Masao Adachi, dando visibilidade a um arquivo praticamente desconhecido de uma ação solidária e anti-imperialista entre Japão e Palestina.

Contra essa proposta de censura do Comitê, levantaram-se os artistas da própria documenta em nota divulgada pelo e-flux intitulada Estamos bravos, estamos tristes, estamos cansados, estamos unidos – carta da comunidade lumbung.

Além de se opor a todo tipo de censura, a carta explicita a estratégia de guerra cultural: “É óbvio para nós que o mesmo mecanismo de passar a bola de cyberbullies e blogueiros racistas para os principais meios de comunicação, para atacantes racistas no terreno, para políticos e até para acadêmicos, está sendo reproduzido em cada situação”.

Para o conjunto dos artistas, a acusação de antissemitismo merece ser vista sobre outra ótica: “É no contexto da documenta quinze, e nas especificidades do contexto alemão, que vemos que o posicionamento de artistas palestinos é o ponto em que nossas lutas anticoloniais se encontram e se tornaram um foco de ataque. Racismo anti-muçulmano, anti-palestino, anti-queer, transfobia, anticiganismo, capacitismo, castismo, antinegro, xenofobia e outras formas de racismo são racismos com os quais a sociedade alemã deve lidar além do antissemitismo”.

A questão que essa polêmica toda em torno do antissemitismo reforça é como a falta de diálogo acabou impondo uma lógica punitivista, que começou com o encobrimento do painel, seguiu com a saída da diretora-geral e depois com as propostas do Comitê Científico, de forma a acabar encobrindo todo o debate do conteúdo da mostra. Há hoje quem defenda na Alemanha que a documenta não deve mais ser realizada. É a lógica da guerra cultural, onde é preciso eliminar o divergente, no caso, práticas artísticas que condenam as políticas xenófobas do Estado de Israel.

Omah Kendeng Community
Workshop com Omah Kendeng Community em Java, Indonesia, 2021.
Foto: Reprodução do Catálogo da Documenta Quinze, maio de 2022

A carta dos artistas teve apoio do Comitê de Seleção da documenta, composto por um time internacional de curadores de grande respeitabilidade, composto por Amar Kanwar, Charles Esche, Elvira Dyangani Ose, Frances Morris, Gabi Ngcobo, Jochen Volz, Philippe Pirotte e Ute Meta Bauer. A nota de apoio, que também se contrapunha a que obras fossem censuradas, foi divulgada no próprio site da mostra. O grupo também apontou para a questão de fundo: “Rejeitamos tanto o veneno do antissemitismo quanto sua instrumentalização atual, que está sendo feita para desviar as críticas ao Estado de Israel, no século 21, e sua ocupação do território palestino”.

Como em toda tática de guerra, aquela que foi empregada nesta documenta buscou apagar qualquer discussão que apontasse para suas qualidades. Muita gente, inclusive, que sequer viu a mostra, passou a afirmar que não havia arte na mostra, como se leu em textos rasteiros que circularam por aí. Trata-se de um evidente equívoco para quem passou por lá.
Primeiro, porque esse debate de falta de arte é totalmente equivocado. Desde a antológica mostra Live in your head: when attitudes become form, organizada por Harald Szeemann, em 1969, a materialidade não é uma questão de fato, mas a vida na cabeça, sim. E, nesse sentido, a mostra tinha uma vitalidade como poucas que vi.

Esta edição da documenta merece ser comemorada como uma de suas edições mais complexas, que teve a coragem de ignorar solenemente o mercado de arte, que deu visibilidade a uma imensa quantidade de artistas pouco conhecidos, especialmente do sul global, e que criou, com o lumbung, uma nova chave para se pensar a arte contemporânea.

Não por acaso, o curador Charles Esche aponta que essa edição será lembrada como uma das primeiras mostras do século 21 que “aceita que o capitalismo se tornou simplesmente destrutivo e não tenta reformar ele”. E completa: “Ela aponta como a vida pode sobreviver e prosperar em face à hostilidade de um sistema mundial econômico e social catastrófico.”

Um tributo a José Claudio

José Cláudio, "Viva Zé Pereira", 1971
José Cláudio, "Viva Zé Pereira", 1971. Foto: Flavio Freire / Cortesia Galeria Nara Roesler

Olhando pelo retrovisor, o repertório artístico de José Claudio da Silva impõe-se pelas conquistas obtidas ao longo de mais de sete décadas. Aos 90 anos, o artista expõe cerca de 150 obras entre pinturas, desenhos, carimbos, que ocupam toda a Galeria Nara Roesler, em São Paulo. A extensa mostra, realizada com releituras tenazes e encontros disciplinados, consegue o feito de reunir três amigos de longa data, e tudo começa quando a crítica e historiadora de arte Aracy Amaral passa o réveillon no Recife e vai à casa do artista, como faz sempre que está na cidade. “Gosto de estar com José Claudio, ouvir suas histórias de vida”, diz. Ao voltar a São Paulo, ela recebe o convite de Nara Roesler para assumir a curadoria.

Um prodígio de energia e método, Aracy, com idade próxima à de José Claudio, arregaça as mangas e sai a campo. Garimpa obras em museus, coleções particulares, galerias, dentro do um arco temporal entre os anos de 1950 e 1990. Curar uma exposição faz do crítico intermediário transformado em autor, pelo processo de seleção das obras e analogia entre elas. A lógica de Aracy é a lógica do saber acumulado. Sem tropeços, encontra achados como a expressiva série Aventura da Linha (1955), trabalhada com nanquim sobre papel, pertencente ao acervo do MAM SP; Simetria (1982), dança erótica/sensual desenvolvida no solo, com toques matisseanos, e a releitura de obras de Almeida Júnior, entre tantas outras.

O percurso de José Claudio é feito pela paixão por seu território, a mesma paixão do “homem situado” nomeado por Gilberto Freyre, isso exemplifica sua participação no Ateliê Coletivo, dirigido por Abelardo da Hora, e que levava em conta a luta do povo oprimido, destacando as atividades rurais e urbanas a partir do cotidiano do trabalhador. Ele sabia que estava pisando em campo minado por conhecer a famosa frase do modernismo Pernambuco: “regional como opção, regional como prisão”. 

A obra do muralista mexicano Rivera também era inspiração para o grupo que já começa a fazer arte pública. Para Aracy, José Claudio nasce para a pintura no Ateliê Coletivo, quando era um jovem e entusiasta da atmosfera artística do local. Como o artista já repetiu em várias entrevistas, ele considera o Ateliê como divisor de águas na história da pintura pernambucana. 

Motivado por um impulso renovador, José Claudio estava ansioso pela vida de artista e, ao fixar-se em Salvador, de 1953 a 1954, e conhecer Mario Cravo Júnior, Jenner Augusto, Carybé e suas obras, ele muda sua vida. Espírito inquieto, o artista segue depois para São Paulo onde trabalha como assistente de Di Cavalcanti e frequenta a Escola de Artesanato do MAM SP, sob orientação de Lívio Abramo. 

A relação de José Cláudio com a capital paulista vem de longe. Aracy destaca o período em que ele colabora com o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, sob a orientação de Arnaldo Pedroso D’Horta. A obra do jovem José Claudio, naquele momento, encontra-se ao mesmo tempo na fronteira de alguns movimentos de arte que ele não ignora e na técnica desenvolvida por ele com gestos originais. 

Nessa época desponta o desenhista delicado, atento à linha do nanquim que, segundo Aracy, surpreende na disciplina assumida em sua múltipla observação de exposições e bienais. Nos trabalhos transparece certa influência da obra de Lívio Abramo, Grassmann, ou da abstração linear, quase abstrata, de Pedroso d’Horta. 

Por insistência de amigos, o artista inscreve-se e é aceito na Bienal de São Paulo, em 1957, recebe o Prêmio de Aquisição, além da bolsa da Fundação Rotellini, na Itália, onde vive por um ano e viaja a vários países. Essa foi a primeira de uma sequência de participações dele no evento paulista, em que esteve na 5ª, 6ª, 7ª e 18ª edições.

José Cláudio, sem título, 1968; nanquim sobre papel a partir de carimbos
José Cláudio, sem título, 1968; nanquim sobre papel a partir de carimbos. Foto: Flavio Freire / Cortesia Galeria Nara Roesler

Nos anos 1960, entre várias experimentações poéticas, nasce a série de carimbos em nanquim sobre papel. “Essas composições abstratas com diversidade rica de pura poesia gráfica perduram de 1968 a 1969”, comenta Aracy. No livro Carimbos – José Cláudio está citada a correspondência entre o artista e Walter Zanini sobre os conceitos dessa experiência e o elogio do crítico paulista ao seu trabalho. 

Na virada dos anos 1970, José Claudio faz a série Histórias de um Carimbo e desenvolve um “livro de artista” instigante, no qual mistura seu processo de trabalho, carimbos, desenhos, recortes de revistas, pinturas, colagens e textos. Uma obra que incomoda por criar um pacto com o leitor, suprimindo interlocutores.

Prosseguindo no feito de chegar a uma obra múltipla e singular, em 1975 José Claudio aceita o convite do amigo cientista e compositor musical Paulo Vanzolini, diretor do Museu de Zoologia da USP, para fazer uma viagem de Manaus a Porto Velho, a bordo do Garbe, um barco-laboratório. Para essa empreitada, mais uma vez tem o apoio de Renato Magalhães Gouveia, galerista e amigo de sempre, que lhe dá um rolo com dezenas de metros de tela. 

Essa expedição resultou numa coleta de 170 mil espécies para a coleção do museu paulista e, para as artes, cerca de 100 telas inspiradas na vegetação, fauna, nos personagens ribeirinhas e tudo o mais que ele conseguiu captar em cada dia de viagem, inclusive os pratos com peixes que experimentaram. José Claudio foi incumbido por Vanzolini de escrever um diário que resultou em relatório detalhado, transformado no livro José Claudio da Silva – 100 Telas, 60 Dias & um Diário de Viagem: Amazonas (1975).

Quando retorna ao Recife, seu trabalho se inunda de cores e luz do sol que banha a cidade, com algumas telas exibindo flagrantes do carnaval. Nesse momento de liberdade tonal surge a obra Zé Pereira, alusão ao bloco que arrasta os foliões pelas ruas da cidade, com seu enorme boneco que completa 100 anos. 

Nu é um gênero de pintura que nasce na academia. José Claudio faz uma série com mulheres desnudas que conheceu em bordeis da cidade. Aracy diz que o objetivo dessas visitas era pintar as personagens que ali trabalhavam, e cada um desses quadros leva o nome da moça retratada. Ainda desse período, ele homenageia a esposa com a pintura Retrato de Leonice (1971), e oito anos depois eterniza sua amiga galerista na tela Nara (1979). 

Nos anos 1980, José Claudio mergulha no universo de Almeida Júnior, faz releitura dos quadros O importuno (1898), Descanso da modelo (1882) e Saudade (1899), em que retrata uma moça vestida de preto lendo uma carta. Na versão de Zé Claudio, a mulher está nua igualmente lendo a carta. Nessas obras, o artista pernambucano praticamente elimina a profundidade do plano pictórico e simplifica as formas com tendência geométrica.

Tantas curiosidades permeiam essa exposição motivada pelo respeito que Nara Roesler tem pelo artista. “Devo meu trabalho como galerista a José Cláudio. Sua obra me tocou profundamente e despertou em mim o desejo de ser como uma tradutora do artista”, afirma Nara.

Com ele, a galerista diz ter aprendido a olhar as coisas simples do cotidiano popular. Ver a beleza das roupas coloridas que as lavadeiras colocavam para secar nas margens dos riachos, os raios de sol entre as folhas e a dança dos coqueirais. O sabor da manga madura e o cheiro do caju, os céus do entardecer em Olinda e toda a beleza contida na vida. “Assim, essa exposição é uma homenagem aos 90 anos de meu mestre, esse talentoso artista que tanto me ensinou”, finaliza Nara.

Lenora de Barros: Síntese de uma produção plural

Lenora de Barros FOGO NO OLHO, exposta na Pinacoteca
Lenora de Barros "Fogo no Olho", 1994. Foto: Ciro Coelho

Corpo e experimentalismo são marcos existenciais na produção dos artistas que performam. Os 40 trabalhos que constituem a exposição Minha língua: Lenora de Barros, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, enfatizam a combinação múltipla de linguagens ativadas pela artista ao longo de quatro décadas. De forma espiralada, cognitiva, o conjunto revela as afinidades da produção da artista desde os anos de 1970 até a videoperformance A Cara. A Língua. O Ventre. (2022), nascida durante o processo da mostra, curada por Pollyanna Quintella e comissionada pela Pinacoteca. Como raros artistas, Lenora retira a argila de seu destino utilitário e decorativo e a coloca no centro de um discurso experimental, conceitual, fazendo uma leitura da matéria onde ancora as imagens. A Cara. A Língua. O Ventre. decanta e desvia a sensualidade em várias direções. As três partes que compõem a obra são estratégias para ela experimentar movimentos sensuais da argila no seu corpo. 

Instalada no centro de grande sala, a obra instiga e envolve o espectador, mas permite que ele faça a própria “viagem”. O movimento lento das mãos amassando a argila, na tentativa de “esculpir” uma enorme língua, é sensual. A ideia é que o espectador alcance outra visibilidade, privilegiando fenômenos invisíveis aos olhos e “veja” o objeto saindo de sua boca. Para atingir o ilusionismo, Lenora conta com olhares de parceiros que acompanham a filmagem. Como ela comenta, “executar isso é bem diferente do que fazer uma performance ao vivo”. Há tempos a artista investiga a relação com a língua e com a palavra língua, ao mesmo tempo ideia de idioma, de órgão e de linguagem. Essa definição foi reiterada por ela na Flip deste ano, na mesa O Corpo da Imagem. O pioneirismo da abordagem conceitual da palavra e do corpo nas artes visuais, pela importância simbólica dos elementos escolhidos, transforma alguns de seus trabalhos em contraescrita imagética.

O abdômen também mantém a sensualidade na videoperformance e parte de uma definição do poeta concretista Décio Pignatari. “A mulher tem o relógio da história no umbigo”. Lenora comenta a proximidade do conceito com a obra Por Si, em que uma bolinha de pingue-pongue desliza na mesma área do abdômen. A cara de espanto, um dos fios condutores da obra de Lenora, aparece discreta na videoperformance. 

Os trabalhos gravitam em torno da obra central e mantêm conexões conceituais como a série Não Quero Nem Ver (2005), formada por quatro vídeos projetados em pequenos monitores: Tato do olho, Ela não quer ver, Já vi tudo, Há mulheres. Em Já vi tudo, Lenora é filmada encapuçada por malha tricotada, fechada sobre sua cabeça. Nesse trabalho ela optou por usar o tricô, “uma atividade estigmatizada, por ser uma feminina, eu mesma já fiz tricô”. Mesmo escondida sob um capuz, ela atua numa experiência que se move numa dupla essência: visual e verbal. Os mesmos dedos, anelar e indicador, que perfuram a argila na videoperformance, em Já vi tudo tentam criar orifício na malha de lã tricotada. A sonorização ecoa a linguagem poética sussurrada que chega a murmúrios. Já no vídeo Há mulheres, nascido de texto publicado de 1993 a 1996, na coluna Umas, assinada por Lenora no Jornal da Tarde, a filiação com a videoperformance se dá mais pela experiência estética. O poema Há mulheres é recitado em voz baixa, no mesmo ritmo cadenciado dos demais trabalhos desta série, em que seus jogos de linguagem estão sempre presentes.

A consciência do corpo como percepção poética chega mais forte para Lenora quando participa da exposição Mulheres radicais (2016), na Pinacoteca, com curadoria de Andrea Giunta e Cecilia Fajardo-Hill. A coletiva reunia cerca de 100 artistas com obras produzidas entre 1975 e 1985. “Todas se manifestavam a partir do corpo, corpo suporte de expressão, corpo ideal a partir do corpo”, como define a artista, que se identificou fortemente com elas.

A ludicidade envolve a série A Máscara de Mão (2017), composta por objetos nascidos quando ela frequenta, por acaso, um estúdio nos Estados Unidos. “Eu não tinha a menor intenção de trabalhar com argila, porque até aquele momento eu pensei, não tenho nada a ver com isso”. No entanto, um dia, ao pegar um bloco de barro, foi trabalhando pelo avesso, por trás. Chega aos movimentos de criar orifícios que foram repetidos e fizeram surgir A Máscara de Mão, para ser calçada como luvas, supostamente individual, mas que, ao se sociabilizar performaticamente, ganha chancela libertadora. Com esse trabalho Lenora reafirma a máxima de que qualquer objeto pode falar uma língua secreta.

O conceito que compõe o inventário de Lenora, ora real ora imaginário, traz um repertório de indagações que perpassam de uma obra a outra e coloca o olhar atento em outros registros cognitivos. A artista altera a percepção da arte com questionamentos que se comunicam por meio da centralização do corpo e do eu. A série Procuro-me (2003) surgiu naturalmente quando ela passava diante de um quiosque instalado em frente a um cabelereiro, no Shopping Iguatemi, onde as pessoas podiam ser fotografadas com cabeleiras. “Eu achei aquela situação insólita, engraçada, curiosa e resolvi fazer”. A fotoperformance foi publicada no caderno Mais!, da Folha de S.Paulo, e evoluiu para outros desdobramentos. 

Quando acontece o ataque às Torres Gêmeas, ela assiste pela TV pessoas desesperadas procurando umas às outras. Com isso, inventa diferentes autorretratos que lembram cartazes de pessoas desaparecidas, colados em lugares públicos. As fotos são diferentes entre si e não revelam a verdadeira Lenora. Essas imagens incomodam. Em 2002, alguns cartazes de Procuro-me, colocados na fachada do Centro Universitário Maria Antônia, foram vandalizados pelo grupo Art-Attack, que confessou o estrago. Agora, essa obra assume um protagonismo positivo no processo de implantação da nova montagem do acervo da Pinacoteca. Procuro-me, entre outros trabalhos, está exposta permanentemente em alguns locais do museu. 

Para além da expressividade e do desafio de interpretar a obra de Lenora de Barros, que em cada mostra provoca novas interpretações de acordo com a situação temporal, a exposição se abre para reflexões atualizadas sobre um novo começar. 

SERVIÇO

Lenora de Barros: minha língua
Edifício Pinacoteca Luz: Praça da Luz, 2, São Paulo, SP, 2º andar
8 de outubro de 2022 a 9 de abril de 2023
Visitação: quarta a segunda, das 10h às 18h.
Ingressos: R$ 20,00 (inteira), R$ 10,00 (meia-entrada), gratuitos aos sábados