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Um jovem que fugiu à ditadura do tempo

Santídio Pereira, Sem título

Santídio Pereira tem 23 anos, nasceu em Curral Cumprido, bairro rural de um pequeno município piauiense de Isaías Coelho, onde passou toda sua
primeira infância. A vinda para São Paulo, não obstante, não interrompeu
sua relação com o tempo.

Sua segunda exposição na Galeria Estação, em São Paulo, Um olhar da memória, apresenta xilogravuras, técnica antiga que requer um tipo de relação diferente e mais demorada com a matéria, que sangra a madeira, e que coincide com a maneira com que Santidio enxerga seu passado. Camadas de memória aparecem na sua obra. Caburés, garrinchas, lambus, juritis, pássaros e plantas da caatinga, se misturam em tons que tornam seu trabalho menos figurativo.

Luisa Duarte, curadora da exposição, lembra em seu texto para o catálogo, que para o artista há uma clara diferença entre ver e enxergar: “O ver estaria relacionado a um olhar apressado, próprio de um ritmo contemporâneo marcado por uma atenção distraída, enquanto que o enxergar seria aquilo que suas gravuras demandam, ou seja, uma mirada capaz de se demorar em um mesmo objeto, pacientemente.”

Santidio não se contaminou com a aceleração do tempo do capital e da capital. E parece ter se mantido fiel as suas raízes, tanto do ponto de vista da sua percepção
como das suas marcas mnêmicas, como da sua memória inconsciente. Freud comentava, em cartas a Wilhelm Fliess, bem no comecinho de sua obra, que estes três fatores juntos não seriam nem mais nem menos que o necessário para criar: criar a vida como uma obra psíquica.

Você sonha com o quê?

Gabriel Sierra, CCCC, 2018. FOTO: Edouard Fraipont

A natureza dinâmica e fragmentária da arte se abre a todo tipo de delírios e pode neutralizar simplificações e mesmices. A galeria Luisa Strina dá um sopro poético no congestionado circuito de arte deste mês com a mostra Você sonha com o quê?,  uma indagação de como a arrogância do mundo pode ser questionada com devaneios e imaginação. A curadora mexicana Magali Arriola monta um jogo a partir da obra A Flor Mohole, do filipino David Medalla e Espaços Virtuais do brasileiro Cildo Meireles. No utópico Projeto Mohole, 1957/1966, o artista imagina plantar uma flor no centro da Terra para fazer ressurgi-la “com pétalas, rolando na crista de uma onda chegando à costa”, em diferentes formas e locais.  Já Espaços Virtuais de Cildo, da década de 1960, questiona como nos aproximamos do espaço e de que como a geometria pode modificar nossa relação com ele, centrada na obra A Penteadeira, de 1967.

A coletiva utópica e orgânica que toca nos conceitos de dentro/fora, cima e embaixo, reúne obras de Marcel Duchamp, Pierre Huyghe, Laura Lima e Zé Carlos Garcia, Marie Lund, David Medalla, Cildo Meireles, Theo Michael e Gabriel Sierra. O conjunto revela os limiares de percepção que conectam luz e sombra, explora dramaticidade e poesia como a que se desprende de Pássaro, 2015/2018, escultura de Laura Lina e de José Carlos Garcia.  No MMMMM… Manifesto, 1965, Medalla sonha com esculturas que “migrem, em massa, para o Polo Norte”.  Laura Lima fala do Pássaro, inserida no desejo de fazer uma obra pública. “Percebi como a arquitetura está muito presente em meu trabalho e, quando coloquei esse pássaro agigantado, pensei mais como escultura e não como uma performance”.

David Medalla, ‘A Flor Mohole’.

Laura imaginou situação de cataclismo em relação ao povo, como se colocasse um pássaro sobre um pequeno bonsai. “Pensei num pássaro caído no meio da cidade e imediatamente elegi José Carlos Garcia, para trabalhar comigo. Ele   faz esculturas com asas, pássaros, é um grande escultor. Garcia diz que esse projeto revela por onde o pássaro entrou, onde ele bateu e morreu. Para ele, esse cenário é uma grande paisagem que cada espectador vai fazer na sua cabeça. “Cada um aponta para um lugar, para achar sua paisagem onírica”, comenta.

Devaneios giram também em torno da obra do colombiano Gabriel Sierra, que se vale de matéria orgânica para reinventar planetas, um trabalho que funciona como um experimento. “Me interessa como vemos o espaço em que habitamos. Para expandir criatividade e ideias, as pessoas buscam mais espaço, como metáfora da suposta falta de espaço, como se o planeta Terra fosse insuficiente para a criatividade”. Com o curioso título CCCC (chispa, corpo, casa, cosmo) ele faz uma alusão ao espírito que habita esses territórios. Está em jogo a liberdade de pensar sem fronteiras. “É uma forma de escapar do território que conhecemos na Terra”. De cada obsessão de Medalla e observação de Cildo fica um trabalho, uma experiência, um modo de vivenciar o espaço. Seja real, onírico, distante ou profundo.

Movimento independente lança “Manifesto da Literatura pela Democracia”

Imagem: Divulgação

O escritor, crítico literário, e tradutor de diversos títulos – alguns presentes nas indicações da categoria “Imperdíveis“, Julián Fuks, publicou em suas redes sociais o “Manifesto da Literatura pela Democracia”, por ele escrito.

O texto posiciona a classe literária assinante frente à fragilidade democrática instaurada pelo cenário político do país, que aproxima-se do 2º turno eleitoral.

“Diante do descalabro que parece iminente nestas eleições, me pediram que escrevesse este ‘Manifesto da Literatura pela Democracia’, a ser subscrito por escritores e escritoras e demais profissionais do livro”, escreveu Julián.

Nomes como Raduan Nassar, Chico Buarque, Lygia Fagundes Telles, Luis Fernando Veríssimo, Roberto Schwarz, Diamela Eltit, Mia Couto, Bernardo Kucinski, Gregorio Duvivier, Alberto Martins,  Maria Betânia Amoroso, Mirna Queiroz, entre muitos outros, assinaram o Manifesto. Para assinar, acesse o link.

Fuks chama também para um ato na Tapera Taperá, em São Paulo, no dia 26/10, às 19h. “Para reunirmos forças e palavras, e para enfrentarmos juntos esse horror que nos afronta. Cedo ou tarde, a democracia, a liberdade, a empatia, hão de se impor”, finaliza.

Confira o texto na íntegra:

 Manifesto da Literatura pela Democracia

“Se o país não estivesse imerso em tanta fúria, tanto ódio, tanto grito, se por um instante se instalasse algum silêncio, talvez todos ouvissem o sinal de alarme: algo está em perigo. Funcionam os hospitais, os tribunais, as delegacias, abrem-se as repartições, mas não há nenhuma normalidade em nossos dias, nenhuma tranquilidade é possível. Em pouco tempo caminharemos às urnas com as mãos desarmadas, exerceremos com liberdade o ofício do voto, e ainda assim o alarme soará por toda parte: a democracia está em perigo.

A democracia não se resume à possibilidade de depositar um voto na urna; supõe, antes disso, o direito de todos e todas, pleno e absoluto, à existência. O candidato Jair Bolsonaro fere a democracia porque defende o desaparecimento de muitos: de seus adversários, que anseia por banir da política; dos ativistas, que quer extirpar do país; de quilombolas e índios, que pretende privar de suas terras; da comunidade LGBT, intimidada a conter em público seu afeto; dos jornalistas críticos, constantemente ameaçados por ele próprio ou por seus seguidores.

A democracia não sobrevive apenas com um respeito momentâneo às normas; sua preservação requer um compromisso constante com o Estado de Direito. Bolsonaro vem ferindo a democracia há décadas, em seu louvor às opressões da ditadura, em sua defesa insistente da tortura e do extermínio. Ameaçou a democracia no passado, e sua candidatura a ameaça no futuro, com o aceno a medidas autoritárias. A cada declaração ou insinuação, o sinal de alarme soa mais alto.

A cultura ele também quer abater, mas a cultura não se abate. A literatura ele quer calar, mas a literatura não se cala. Contra a censura, contra o desprezo, contra o desdém, contra a imposição de falsas verdades e de equívocas certezas, escritores e escritoras sempre souberam se erguer. Eis o ativismo da literatura, o ativismo que ele não poderá extirpar: a literatura será sempre um dos grandes antídotos para a desumanidade e a indiferença.

Por isso aqui nos erguemos, escritores e escritoras, críticos e críticas, editores e editoras, exercendo nosso ofício da palavra, ouvindo como outros o ruído das sirenes. Por isso clamamos por uma união de todos e todas que prezem pela democracia, que valorizem a existência da diversidade e do dissenso. A literatura, afinal, tem como ideal e como fim a aproximação ao outro, a compreensão de suas aflições, de seus suplícios, o encontro entre diferentes. E ainda que resista às circunstâncias mais adversas, como resistimos e resistiremos, a liberdade há de ser sempre o seu maior instrumento.”

 

Caixa Cultural apresenta concretismo e sincretismo da obra de Rubem Valentim

Rubem Valentim, Variação 1. FOTO: Divulgação

Inaugurada no início de outubro na Caixa Cultural São Paulo, a exposição “Rubem Valentim – Construção e Fé” apresenta cerca de 70 obras do artista baiano, considerado um dos mais importantes nomes do concretismo brasileiro, até o dia 6 de dezembro.

Pintor, escultor, gravurista e professor, Valentim (1922-1991) trabalhou durante sua trajetória com elementos da cultura afro, utilizando-se de traços geométricos e cores fortes para tratar de tradições populares, da simbologia do Candomblé e do Umbanda.

Para o curador da mostra, Marcus Lontra, a ideia é mostrar o lado combativo e contestador de Valentim, escancarando também uma violência que permanece até os dias de hoje na sociedade brasileira.

Ainda este ano, no dia 13 de novembro, o MASP inaugura outra exposição de Valentim, intitulada “Construções Afro-Atlânticas”, que fica em cartaz até março de 2019. A mostra reúne cerca de 90 obras produzidas pelo artista entre 1955 e 1978.

RUBEM VALENTIM: CONSTRUÇÃO E FÉ
Quando: até 6 de dezembro
Onde: Caixa Cultural - Praça da Sé, 111
Preço:  Grátis
Classificação Livre

Destaques literários

Autoimperialismo, Benjamin Moser

Confira os destaques literários da Série Imperdíveis. Os títulos passam por ficção, filosofia, críticas e análise a aspectos autoritários do projeto de Brasília, a confusão simbólica e visual de São Paulo e a conquista predatória do Brasil pelos próprios brasileiros.

Por Vivian Mocellin

O Caso Meursault

Kamel Daoud, Tradução de Bernardo Ajzenberg, Biblioteca Azul, 168 páginas

História de O Estrangeiro contada de outro ponto de vista. Aqui, o árabe morto sem motivo por Mersault numa praia da Argélia colonial ganha carne, osso, identidade, nacionalidade, infância, sonhos e ambições, ao contrário da figura quase abstrata descrita por Camus em seu clássico.

TRECHO

“Depois de perder a mãe, esse homem, o assassino, deixa de ter um país e cai no ócio e no absurdo. É um Robinson que acredita poder mudar o destino matando o seu Sexta-Feira, mas que, ao se ver preso em uma ilha, se põe a discursar, com talento, feito um papagaio complacente consigo mesmo.”

AUTOR

O argelino Daoud, de 46 anos, ex-jornalista, ganhou o prêmio Goncourt com este seu primeiro romance, que teve os direitos vendidos para mais de 20 países.


Autoimperialismo

Benjamin Moser, Tradução de Eduardo Heck de Sá, Planeta, 128 páginas

Em três ensaios – Cemitério da Esperança, A Pornografia dos Bandeirantes Autoimperialismo -, o autor se dedica a criticar os aspectos autoritários do projeto de Brasília, a confusão simbólica e visual de São Paulo e a conquista predatória do Brasil pelos próprios brasileiros.

TRECHO

O que comove na arquitetura monumental é a forma desajeitada como ela trai seus próprios propósitos. Enquanto procura transpirar permanência, já se encontra em decadência. Na tentativa de se mostrar majestosa, revela sua vaidade (…)”

AUTOR Publicou Clarice, biografia de Clarice Lispector, e traduziu e editou obras da escritora, tornando-a mais conhecida e admirada nos EUA e Grã-Bretanha. No momento prepara biografia de Susan Sontag.

 

Velázquez

José Ortega y Gasset, Tradução e organização de Célia Euvaldo, WMF Martins Fontes, 216 páginas

Reunião dos principais ensaios do filósofo sobre o pintor Velázquez (1599-1660), parte deles tirada de Papeles sobre Velázquez y Goya (1950). Há também a transcrição de uma aula ministrada em 1947, além de reproduções de alguns quadros, como Las Meninas e o retrato de Inocêncio X.

TRECHO 

“Até Velázquez, a pintura queria fugir do temporal e simular na tela um mundo alheio e imune ao tempo, fauna de eternidade. Nosso pintor tenta o contrário: pinta o próprio tempo, que é o instante, que é o ser enquanto condenado a deixar de ser, a transcorrer-se a corromper-se.”

AUTOR

O espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) foi um dos grandes pensadores do século XX. Filósofo, foi também educador, político e editor.


O Direito à Preguiça

Paul Lafargue, Tradução, apresentação e notas de Alain François, Edipro, 96 páginas

Escrito na prisão e publicado em 1855, esse manifesto bastante irreverente, mas não menos procedente, exalta a importância do ócio e do prazer em contraposição à febre do trabalho, “contraída” depois da Revolução Industrial e disseminada pelos donos do capital.

TRECHO

 “(…) quando Villermé visitou a Alsácia, o minotauro moderno, a oficina capitalista, já havia conquistado a região; na sua bulimia de trabalho humano tinha arrancado os operários de seus lares para melhor espremê-los e extrair o trabalho que continham.”

AUTOR

Casado com Laura, filha de Marx, Lafargue (1845-1911) foi um importante difusor das ideias do sogro e também um militante socialista de peso, tendo fundado o pioneiro Partido Operário.


O Conto Zero e Outras Histórias

Sérgio Sant’Anna, Companhia das Letras, 174 páginas

Todo novo livro de contos de Sérgio Sant’Anna é algo a celebrar, e aqui ele não decepciona. Trabalho mais pessoal, combina memória e ficção para tratar do amor, da solidão, do ofício de escrever e também de momentos singulares, como o primeiro cigarro ou a residência artística nos EUA.

TRECHO

 “Não seria propriamente um conto, ficaria dias e mais dias rondando a sua cabeça, você não escrevia uma única frase, uma palavra que fosse, pois ela o comprometeria com um seguimento, um desfecho, e o que você queria era uma prosa solta, que não precisasse ser escrita e concluída”

AUTOR

 Um dos grandes da literatura contemporânea brasileira, recebeu quatro vezes o prêmio Jabuti e outros prêmios, e teve textos adaptados para o cinema.

Os Farsantes

Graham Greene, Tradução de Ana Maria Capovilla, Biblioteca Azul, 360 páginas

Décimo romance do autor britânico, relata, numa combinação de fatos reais e ficção, o encontro de personagens conflitantes no Haiti do tirano Papa Doc. O narrador é dono de um hotel decadente. Belas mulheres, vigaristas, idealistas e os sangrentos tonton macoutes completam o elenco.

TRECHO

“Tinha cortado os pulsos e depois a garganta, para ter certeza. (…) Não devia estar morto havia mais que alguns minutos. Meus primeiros pensamentos foram egoístas: eu não poderia ser culpado por um homem se matar em minha piscina.”

AUTOR

 Greene (1904-1991) dividia seus romances entre “sérios” e “de entretenimento”. Os Farsantes, assim como O Americano Tranquilo (lançado pela mesma editora), está no primeiro caso.

Censores em Ação

Robert Darnton, Tradução de Rubens Figueiredo, Companhia das Letras, 376 páginas

Estudo sobre a censura, dividido em três casos: a França dos Bourbon, a Índia durante a ocupação inglesa e a Alemanha Oriental comunista. Em comum, a erudição dos censores e o controle do Estado sobre a produção intelectual e a expressão literária em particular.

TRECHO

“Levei certo tempo para formar uma imagem clara da organização da burocracia (…) A ficção na Alemanha Oriental era a porta número 215, quarenta porta adiante, 
seguindo por um corredor mostarda que parecia não ter fim enquanto fazia curvas e contornava um pátio.”

AUTOR

 Professor e diretor da biblioteca em Harvard, Darnton é autor de O Grande Massacre dos GatosO Beijo de Lamourette e, entre outros, O Diabo na Água Benta.

Conversando com Varejeiras Azuis

Edward Lear, Tradução de Dirce Waltrick do Amarante, Iluminuras, 128 páginas

Quatro crianças viajam pelo mundo num barco com uma gatinha, o estranho Manha-Artimanha e uma enorme chaleira, que serve de cozinha e dormitório. Receitas absurdas, plantas inimagináveis, um poema indiano e uma série de limericks completam esse livro nada “escruvioso”.

TRECHO

“Durante o dia, Violeta se ocupava, sobretudo, em colocar água salgada num latão; enquanto seus três irmãos a mexiam violentamente, na esperança de que 
ela se transformasse em manteiga, o que raramente, se não nunca, acontecia.”

AUTOR Precursor de Lewis Carroll na literatura nonsense, Lear (1812-1888) começou como desenhista e pintor. Viajou muito por conta de doenças respiratórias e produziu vários livros de poemas curtos e de viagens.

 

 

 

A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens

[Elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, este é o primeiro texto de uma serie de 7(sete) que publicaremos, a partir da segunda feira 10 de Setembro, semanalmente.

Resumo 

Pretendo mostrar como as práticas de mediação convidam ao encontro com a obra como experiência de leitura reconstrutiva. Este processo pode ser entendido como experiência ética de reconhecimento, envolvendo forma estética e contradição social. A função ética do discurso, concentrada na noção de letra determina modos de relação com a obra que são também modelos de relação intersubjetiva com o outro. Apresento este tema a partir de sete desafios éticos para os museus contemporâneo

1 Curadoria como Escuta de Sistemas Simbólicos em Conflito

 

Cheguei a esta discussão sobre museus e artes visuais em função de minhas pesquisas sobre a origem dos fazeres que constituíram historicamente a psicanálise. A versão oficial é que nossa prática tinha sido uma derivação do método clínico da medicina, nascido em fins do século XVIII. Freud teria subvertido este método ao deslocar seu centro do olhar para a escuta, da fala do médico para a associação livre do paciente. Mas além de uma clínica a psicanálise é também uma terapêutica, ou seja, uma espécie de técnica ou de arte para reduzir o sofrimento psíquico. Mas o que realmente me surpreendeu foi descobrir que além de uma clínica e de uma terapêutica a psicanálise era também uma espécie de cura.

Cura não é nem um conceito primitivamente médico nem religioso, mas filosófico.

Cura (epimeléia heateau), para os gregos, ou cura sui, para os latinos, é uma experiência transformativa, geralmente envolvendo o diálogo entre um mestre, cujo protótipo é Sócrates e um discípulo, cujo exemplo clássico é Alcebíades. A cura é um trajeto ético, no qual se analisa a posição do sujeito diante do outro e do mundo, mas principalmente a posição de poder de alguém tematizada desde o início, pela demanda a um mestre, suposto saber bem governar. Examinar seus próprios sonhos, meditar sobre seus medos fundamentais, examinar a origem e a função das ideias que nos assediam, analisar nossos laços de amizade ou de inimizade, adquirir algum domínio erótico sob si, escrever sobre a unidade de nossa vida, ponderar sobre a inclinação para certos afetos, como o ódio e a emulação, são exemplos de práticas que compunham o cuidado de si. Característico da experiência ética da cura é o exame prudente (sophrosine) de como a enunciação da verdade sobre nosso próprio desejo, por meio da fala franca (parhesia), ou sobre nosso próprio destino, no caso da tragédia, transforma aquele que a enuncia.

Curar é cuidar da experiência ao longo do tempo, manter o processo, sustentar uma política para o desejo dos envolvidos, não é voltar ao estado de harmonia e remover os sintomas, normalizando a pessoa.

Este novo e antigo sentido para a experiência da cura aproximou-se imediatamente de uma prática museológica importante que é a curadoria. As mudanças relativamente recentes no âmbito do sistema das artes, notadamente associadas com uma mudança do lugar social do museu questionam o papel tradicional do curador. Este papel combina o sentido jurídico, daquele que trata dos bens ou negócios daqueles que se encontram incapacitados, quanto o sentido artístico que cuida ou supervisiona  montagem de uma exposição, selecionando peças e ordenando o roteiro e a execução de um espaço de arte.

Combinando as coisas podemos dizer que o curador tem uma função dupla: ele tutela, administra e educa, mas também cuida, ampara e escuta. Cuidar e educar não são portanto práticas idênticas, e a diferença reside principalmente na posição de poder envolvida. Mas do que o curador cuida?

 

  1. Das obras, que ele pesquisa escolhe e conserva

  2. Do diálogo entre artistas e público,

  3. Do patrimônio de um país ou de uma fundação,

  4. Da diversidade cultural,

  5. Da relação entre a coisa pública e os interesses privados

  6. Das pessoas que se enriquecem com o acesso aos bens simbólico

Ora, se retemos o sentido antigo da noção de cura, o que o curador faz é cuidar do processo e das relações nele envolvidas, daí a sua função ser sintetizada pela noção de mediação. Mas aqui podemos situar a mudança particular ocorrida na museologia contemporânea. Ela não se orienta mais para a eleição de um cânone, com o qual o público manterá uma posição vertical de submissão e até reverência. A nova curadoria reconhece que os sistemas simbólicos dos quais ela cuida estão em conflito e que, o ato de cura envolve uma tomada de posição neste universo de conflitos. Um ato cuja característica primeira é determinar qual é o conflito e em qual linguagem, ou em qual forma estética, ele será posto.

Pela noção de “posto” (stellen) devemos entender, sobretudo, o gesto de trazer e inscrever uma obra no espaço público. Este é o ato museológico fundamental: tornar público, tornar lembrável, tornar de interesse público, uma determinada objetalidade ou eventualidade. Para tanto é preciso antes de tudo escutar o conflito e ser afetado por ele.

Ora, se retemos o sentido antigo da noção de cura, o que o curador faz é cuidar do processo e das relações nele envolvidas, daí a sua função ser sintetizada pela noção de mediação. Mas aqui podemos situar a mudança particular ocorrida na museologia contemporânea. Ela não se orienta mais para a eleição de um cânone, com o qual o público manterá uma posição vertical de submissão e até reverência. A nova curadoria reconhece que os sistemas simbólicos dos quais ela cuida estão em conflito e que, o ato de cura envolve uma tomada de posição neste universo de conflitos. Um ato cuja característica primeira é determinar qual é o conflito e em qual linguagem, ou em qual forma estética, ele será posto.

Por exemplo, na 33 Bienal de São Paulo, as obras de Vânia Mignone e Lucia Nogueira, são igualmente acolhidas. A primeira trabalha com frases e mensagens bem delineadas sobre a paradoxalidade da experiência, tais como “Você podia ter me dito uma mentira” ou, a legenda “seus limites”, recobrindo alguém que estende uma corda de equilibrista entre duas frágeis escadas. A segunda compõe-se de traços verticais de coloração viva ou de figuras estreliformes flutuantes, suscitando certa ingenuidade representativa. Duas obras que aparentemente pertencem a séries simbólicas distintas, apesar de serem autores contemporâneos entre si, são postas (ex-postas) em um mesmo espaço comum.

Este e o sentido primeiro da noção de mediação.

 

Recomendações de leitura

Foe  J.M.Coetzee Tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 144 páginas

 

A Biografia de Elizabeth I, contos e ficção compõem as recomendações de leitura da Série Imperdíveis. Confira.

Recomendações de leitura

Fim da História

Lydia Davis, Tradução de Julián Fuks, José Olympio, 210 páginas

Uma mulher tenta escrever um livro ao mesmo tempo que junta pedaços de memória do amado, também escritor, 12 anos mais novo, que conhecera na faculdade em que dava aulas. A dificuldade em pôr fim à sua obsessão coincide com a dificuldade em terminar o livro.

O Fim da História, Lydia Davis, Tradução de Julián Fuks, José Olympio, 210 páginas

TRECHO 
“Eu não era com ele a mesma que era com outras pessoas. Tentava não ser tão determinada, tão ocupada, tão apressada quanto eu era sozinha e com amigos Tentava ser gentil e silenciosa, mas era difícil, e isso me confundia. Também me exauria.”

A AUTORA
Vencedora do Man Booker International Prize 2013, a norte-americana Davis é uma das melhores contistas de nossa época. Publicou seis livros de narrativas breves. Este é seu único romance. Ela também é tradutora de Proust e Flaubert.

A Definição do Amor

Jorge Reis-Sá, Tordesilhas, 253 páginas

Ligada a uma máquina no leito de hospital após sofrer um AVC, Suzana está grávida de 12 semanas. Francisco, seu marido, decide não interromper a gestação e escreve um diário de luto enquanto espera o nascimento do bebê. Num estilo poético e fragmentado, lembra da vida de casado e tenta imaginar o futuro sem a amada.

TRECHO 

A Definição do Amor
Jorge Reis-Sá, Tordesilhas, 253 páginas

“Nego o lado vazio da cama. Olho-o e não o vejo. Pego em almofadas do armário e, colocando-as por debaixo dos lençóis, tapando-lhes a cabeça como tantas vezes ela se fez depois de pousar a leitura, mantenho a luz acesa para a saber ao meu lado, impedindo-me de dormir.”

O AUTOR
O português Jorge Reis-Sá tem formação em biologia. Lançou os poemas de Instituto de Antropologia, o livro de contos Terra e os romances Todos os Dias e O Dom.

 

Foe 

J.M.Coetzee, Tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 144 páginas

Após um motim que a obriga a abandonar o navio, Susan Barton consegue chegar a uma ilha, onde encontra um homem chamado Cruso e seu escravo Sexta-Feira. De volta à Inglaterra, busca o escritor Daniel Foe para que ele conte, em livro, sua história. Só que Foe, para sua aflição, não tem muito apego aos fatos.

Foe 
J.M.Coetzee
Tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 144 páginas

TRECHO 
“Digo a mim mesma que converso com Sexta-Feira para educá-lo, para que saia do escuro e do silêncio. Mas será verdade? Há momentos em que a benevolência me abandona e uso palavras apenas como o meio mais curto para sujeitá-lo à minha vontade.”

O AUTOR
Vencedor do Nobel de Literatura em 2003, o sul-africano Coetzee, de 76 anos, ainda ganhou dois Man Booker Prize. Publicou mais de 20 livros, entre romances, ensaios, crítica literária e memórias.

 

 

Elizabeth I: Uma Biografia
Lisa Hilton, Tradução de Paulo Geiger, Zahar, 399 páginas

TRECHO 

Elizabeth I: Uma Biografia
Lisa Hilton, Tradução de Paulo Geiger, Zahar, 399 páginas

“Quando a princesa infanta Elizabeth acordou no berçário, toda a paisagem de sua infância tinha mudado de forma imperceptível, mas irrevogável. Sua mãe, a rainha Ana, morrera na manhã anterior (…), a cabeça arrancada do corpo pela lâmina oscilante de um espadachim francês”

A AUTORA
A inglesa Hilton estudou História da Arte em Florença e Paris. Tem vários livros publicados e colabora para The New Yorker, The TimesVogue e BBC History Magazine.

O ovo da serpente e a reascensão da extrema-direita

Plínio Salgado, o chefe integralista, fala a seguidores no Rio de Janeiro. Foto: Arquivo Público e Histórico de Rio Claro

Eles começaram a ser chamados de “galinhas verdes” pela cor da camisa e a rapidez com a qual se dispersaram de um confronto com integrantes da Frente Única Antifascista na Praça da Sé, em São Paulo, em outubro de 1934. Eram seguidores do paulista Plínio Salgado, criador da organização inspirada no fascismo italiano, a Ação Integralista Brasileira. O conflito, conhecido como Revoada dos Galinhas Verdes, deixou um rastro de sangue. Morreram seis guardas civis e o estudante de Direito Décio Pinto de Oliveira, da Juventude Comunista. Não é, portanto, a primeira vez que a extrema-direita assombra o Brasil.

O legado da extrema-direita

Naquele tempo, o país contava 40 milhões de habitantes. Estima-se que um milhão tenha aderido às fileiras do integralismo, sob o lema “Deus, Pátria e Família.” Apropriaram-se de símbolos nacionais, como a bandeira verde e amarela. Além disso, a inscrição do sigma, letra grega que representa soma, em outra bandeira e na manga esquerda da camisa verde. A saudação integralista remetia ao movimento fascista crescente na Europa: com o braço direito levantado e a mão espalmada, bradavam a expressão Anuaê! Do tupi, “Você é um irmão!”

Lançado dois anos antes do conflito da Praça da Sé, o movimento ganhou adesões de peso, como o jurista Miguel Reale. Seu filho, Miguel Reale Júnior, foi um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Oito décadas atrás, a família já circulava no entorno dos poderosos. O plano do chefe dos integralistas era ser presidente da República e suceder a Getúlio Vargas no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Em campanha, defendia o nacionalismo, o corporativismo e o combate às organizações sociais baseadas no socialismo.

Candidato às eleições previstas para 1938, Plínio Salgado soube nos bastidores da política que Getúlio preparava um golpe para continuar no poder. De olho em um posto de ministro no futuro governo, promoveu um desfile de milhares de integralistas diante do Palácio do Catete. A intenção era demonstrar força e apoio ao presidente. De uma janela do 2º andar do palácio, Getúlio distribuiu sorrisos e acenos, em 1º de novembro de 1937. Nove dias depois, decretou o Estado Novo e colocou o integralismo na ilegalidade. Mais seis meses e um comando armado integralista atacou o palácio, com a intenção de depor Getúlio na marra. Não deu certo. Plínio Salgado passou um tempo escondido e depois partiu para o exílio em Portugal. Naquela ocasião, o fascismo foi barrado pelo golpe do Estado Novo. Agora pode ser impedido nas urnas.

 

Museu Bispo do Rosário garante sua existência

Manto de Arthur Bispo do Rosário é colocado em bolha para desinfestação em método para dedetizar sua obra. FOTO: Divulgação

Localizado em Jacarepaguá na zona Oeste do Rio de Janeiro, o Museu Arthur Bispo do Rosário Arte Contemporânea, anteriormente nomeado Nise da Silveira, hoje é uma referência para a arte contemporânea. Ele ocupa um espaço dentro de do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, antigamente conhecido como Colônia Juliano Moreira.

Conhecida historicamente como um local que abrigou pessoas consideradas “desviadas” da sociedade, a instituição recebia internos com problemas psiquiátricos, além de alcoólatras e dependentes químicos. Marginalizadas pela sociedade e negligenciadas com o preconceito que sofriam no século XX, essas pessoas eram levadas para lá, onde ficavam isoladas do mundo externo.

No início da década de 50, foi criado um núcleo para abrigar as produções artísticas dos internos da Colônia. Muitos passavam parte do tempo se dedicando às atividades oferecidas pelo segmento de arteterapia.

Um dos pacientes da Colônia foi Arthur Bispo do Rosário, portador de esquizofrenia paranoide (segundo sua primeira ficha de internação), que dedicou-se com prazer a seu fazer artístico. Desde então, muito aconteceu em torno de sua figura. Teve seus trabalhos registrados em reportagens e documentários, mas só em 1982 teve peças expostas fora da Colônia, no MAM do Rio, com curadoria de Frederico Morais.

Após sua morte, em 1989, realizam-se várias mostras com obras do artista, dentro e fora do Brasil. Arthur, inclusive, representa o Brasil na 46ª Bienal de Veneza. E, em 2002, o espaço museológico dentro da Colônia passa a ter seu nome. Em 2012, se torna um dos principais artistas convidados da 30a Edição da Bienal de São Paulo, com cerca de 300 peças espalhadas em 300 m2.

 

Bispo tornou-se um dos grandes símbolos da reforma psiquiátrica e da luta anti-manicomial no Brasil, pela integridade e defesa dos pacientes com transtornos.

Curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea desde 2014, Ricardo Resende encontrou, com muito entusiasmo, um desafio pela frente ao assumir o cargo: “O meu trabalho tem sido de uma conscientização da instituição de uma necessidade e da importância de preservarmos e conservarmos o trabalho do Bispo”. Por conta dos materiais usado pelo artista, a obra é de caráter bastante vulnerável. Ricardo já teve, durante a carreira, experiências com instituições que se encontravam em estado precário, como o Museu de Arte Contemporânea, quando funcionava no prédio da Bienal, e o MAM-SP, antes de ser presidido por Milú Vilella.

O curador conta que desde que a obra foi trazida da cela de Bispo, em 1989, para uma exposição, nunca houve uma intervenção que cuidasse de sua preservação com tal intensidade como essa realizada desde 2017. De uns anos para cá, a equipe começa um trabalho de readequação da reserva técnica, onde ficam guardados os trabalhos, para que existissem condições ideais de conservação dos objetos. Ricardo ressalta o total apoio e condições dados por Raquel Fernandes, diretora do museu desde 2013, para que todo o trabalho começasse a ser realizado.

A obra do Bispo reúne centenas de objetos feitos de madeira, tecidos, plásticos e fios, que deram lugar a uma quantidade insetos. A desinfestação e higienização da obra começou em 2016, passando por um processo de construção de uma bolha hermeticamente fechada, na qual se mantém apenas o hidrogênio, tirando o oxigênio. “O processo consiste em asfixiar todos os seres viventes que possam existir na obra. Isso levou um ano”, conta Resende. Todas as 804 obras de Bispo, que constituem o acervo, passaram por essa técnica de desinfetação e higienização.

Ao mesmo tempo, aproveitou-se para iniciar um trabalho de catalogação de todo o acervo, feita pela própria equipe do museu, com coordenação de Christina Penna, que foi também responsável pela catalogação de Portinari. No momento, comenta Ricardo, o acervo consolidado já foi catalogado, mas ainda falta um material residual, que era desconhecido, e também estava na reserva técnica do museu. Além disso, toda a obra de Bispo foi fotografada por Rafael Adorján.

Patrocinadores

Esta sucessão de processos dará origem ao catálogo raisonné de Arthur Bispo do Rosário, que será impresso graças ao apoio dado pela Galeria Almeida e Dale  ao museu. “Eles nos proporcionaram à verba necessária para garantir o processo de catalogação e também assumiram o compromisso de imprimir o catálogo para nós”, diz o curador.

Além da novidade do catálogo raisonné, o museu que vinha tendo o apoio da Fundação Marcos Amaro na readequação da reserva técnica, com o objetivo de chegar a um padrão ideal de preservação e conservação e na renovação museográfica das salas expositivas, recebe hoje um novo patrocínio necessário para a reforma do Pavilhão Ulisses Viana, onde encontra-se a cela que Bispo viveu e desenvolveu grande parte de sua obra.

“Marcos Amaro agora está nos dando o aporte para que façamos a recuperação do pavilhão onde se encontra a cela do Bispo do Rosário, onde ele produziu grande parte de sua obra. Recentemente, descobrimos que a cela onde ele viveu foi toda  desenhada”, comenta Resende. Com esta descoberta, o local precisará passar por um processo de restauração retirando camadas de tinta pra revelação das obras.

As paredes da cela onde Bispo era mantido durante a internação guardam vestígios de sua passagem por lá. FOTO: Divulgação

O prédio terá reforma desde o telhado até a parte elétrica, tornando-se visitável para ser aberto ao público. O curador ainda conta que, com a recuperação do pavilhão onde Arthur foi mantido, existe um desejo de que o museu seja transferido para lá, dando uma ambientação melhor para a obra. [Com relação a importância desta iniciativa leia texto do Professor Dunker]

Firmando um histórico de colaborações a instituições e artistas, a Fundação Marcos Amaro (FMA) já apoiou também, este ano, a artista Brígida Baltar com o Prêmio de Arte Marcos Amaro, na SP-Arte. A artista da Galeria Nara Roesler recebeu 25 mil reais e teve a obra Venho do Mar (2017) adquirida pela instituição. No final de setembro, a FMA decidiu não apoiar apenas um artista com o prêmio aquisição em parceria com a ArtRio, mas sim um projeto. A contemplada foi a coletiva AMIGO EAV 2018.2, com curadoria de Bernardo Mosqueira, da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.

O apoio ao museu Bispo do Rosário é o primeiro grande apoio da FMA a uma instituição, conta a diretora geral Raquel Fayad. Ela classifica a iniciativa de ajudar com o aporte necessário como algo “primordial”, considerando a grandeza de Bispo. Ela também destaca que esse é um dos papeis que a FMA procura cumprir: “Nós entendemos que não somos apenas nós que estamos desenvolvendo, mas que também precisamos criar uma rede de museus que necessitam de recursos para atingirem as condições ideais museológicas e museográficas de funcionamento”, ressalta.

Tombamento

Para manter a equipe do museu, a instituição conta com verba pública vinda da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Além disso, após ter dois pedidos de tombamentos negados (pelo INEPAC e pelo Iphan do RJ), o museu finalmente conseguiu que o acervo fosse tombado, agora pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan Nacional), em setembro passado.

 

Arquitetura e Espaço: a Soberania da Imagem

Reconstituição das Celas

[Este é o quarto texto de uma serie de sete, elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, que estamos publicando semanalmente. Sobe o título A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens –  Desafios Éticos para os Museus“, já abordamos

1] Curadoria como sistemas simbólicos em conflito,
2] Forma estética e contradição social 
3] Formalização e Temporalidade

Resumo

Pretendo mostrar como as práticas de mediação convidam ao encontro com a obra como experiência de leitura reconstrutiva. Este processo pode ser entendido como experiência ética de reconhecimento, envolvendo forma estética e contradição social. A função ética do discurso, concentrada na noção de letra determina modos de relação com a obra que são também modelos de relação intersubjetiva com o outro. Apresento este tema a partir de sete desafios éticos para os museus contemporâneos.

4. Arquitetura e Espaço: a Soberania da Imagem

 Oimpacto da vida digital tem uma relação sincrônica e contemporânea com a reformulação do lugar social dos museus. Mais do que nunca é preciso pensamento museológico para mostrar que o contemporâneo não é transparente e imediato a nós mesmos. O contemporâneo só se obtém pelo trabalho de recriação do passado, como um passado possível para um futuro contingente. É este trabalho, que cria o contemporâneo como não idêntico a si mesmo e não redutível ao “isso tudo que está aí”, como totalidade coerente e harmônica ou desarmônica, tanto faz.

 A experiência digital não acontece toda de uma vez, em todos as posições, assim como o capitalismo não é o mesmo em todos os lugares. O relógio da história não marca a mesma hora em todos os seus quadrantes.

Neste “novo tempo” convém lembrar que museu não é só curadoria, ele se torna mais do que nunca arquitetura e ambiência.

Isso acontece, talvez, pelo alto nível de profanação da imagem que as novas telas impuseram à nossa relação com a imagem. Virtualmente todo conteúdo de todos os museus está “disponível” em escala reduzida e miniaturizada das telas de computadores, telefones e assemelhados. Isso não é só uma questão de escala, mas também de experiência do espaço, e de compartilhamento intersubjetivo, da relação com a imagem. Posso apreciar o Louvre sentando em meu vaso sanitário, ou melhor, diante de uma réplica perfeita do urinol de Duchamp. Posso ter todo Gugenheim ou Moma em meu próprio banco do parque, que não é Giverny. Posso decidir inclusive que aquela experiência acabou, simplesmente fechando a tela: ”Sou o senhor do meu tempo e o soberano doador de meu olhar, na duração que melhor me aprouver, sem que ninguém tenha o direito de perturbar esta experiência solitária”. Parodiando Primo Lévi: “É isto um museu?”.

Andando pelo Carré des Arts (1993), da pequena cidade francesa de Niemes, projetado por Norman Foster, em frente a um templo grego, percorrendo a arquitetura de Renzo Peano para o Instituto de Arte de Chicago (2009) ou o Museu Gugenheim de Bilbau (1992), de Frank Ghery, percebe-se uma consciência de que a experiência com a imagem precisa ser reinventada como experiência de circulação, como espaço público que modifica a concepção tradicional de enquadre. Lembremos a tese de John Berger em “Modos de Ver”, a forma pintura a óleo nasce como uma espécie de reapossamento de si, como retrato, como reapossamento da experiência da natureza perdida, ou da história ancestral e mítica, que define a tela como a moldura de um cofre. Os modos modernos de ver tem relação direta com os modos de possuir. Por isso os novos espaços museológicos precisam inventar novos modos de possuir e no limite criticar as formas estéticas pelas quais nos achamos senhores e possuidores da imagem, quando a verdade de alienação, articulada pela gramática de nossa fantasia, é que são as imagens que nos possuem. Essa teria sido a tese de Lacan e também de Foucault, em suas leituras divergentes sobre “As Meninas de Velásquez”.

Ainda não se entende muito bem porque no Brasil, a experiência do Museu da Resistência permanece tão excepcional, e o museu da escravidão não sai do papel. Sincrônico com o fato de sermos o último país latino americano a ter instituído uma comissão da verdade para investigar os crimes da ditadura civil-militar.

Fachada do Museu da Resistência em São Paulo
Reconstituição das Celas

Não seria a emergência de uma cultura de ódio no passado recente brasileiro, também derivada da carência de recursos de memória e de reconstrução de experiências traumáticas, que, como sabemos uma vez não elaboradas tendem a retornar com efeitos de repetição e violência piores e mais devastadores, porque desgarrados no tempo. É a intrusão do passado no presente sem a mediação do futuro. É a repetição do passado da violência de Estado com a mesma sanção e tolerância, mas agora dirigido ao assassinato de jovens negros de periferia, por exemplo.

Temos aqui dois exemplos importantes: o Museu do Holocausto de Berlim, que procura reconstruir a experiência sombria dos campos de concentração, com sua arquitetura vertical e opressiva, com suas rampas desequilibradoras, mas também no diálogo desta ambiência com a máquina que re-escreve automática e interminavelmente a Torá hebraica.  Assim a obra separa e contempla esta contradição que é o tratamento do humano como coisa, como máquina e sua recuperação, que pode se também mecânica, reproduzindo na forma o que o conteúdo quer esquecer.

Outra estratégia para o problema da recolocação da imagem é o museu do Apartheid em Johanesburg, África do Sul. Um museu que proíbe fotos de qualquer área interior. Logo na bilheteria somos sorteados: “brancos” ou “não-brancos”. E a entrada é bífida para cada qual, gradeada e inacessível para quem está do outro lado, somos levados ao desconforto imediato de que “estamos perdendo algo”, concomitante com a realização de que o  outro também está perdendo algo simplesmente por estar no outro corredor.

O museu não é todo assim, mas esta preparação, reduzida a uma breve experiência com a discriminação educa o olhar e introduz uma leitura de tudo que se seguirá pela sua apropriação corporal, movida pelo instante de desempatia radical.