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Fábrica de Arte Marcos Amaro inaugura exposição Aproximações

Almeida Júnior. Descanso da Modelo, 1885. Foto Hugo Curti

A partir do dia 13 de abril, a Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA), em Itu, recebe a mostra Aproximações – Breve introdução à arte brasileira do século XX, curada por Aracy Amaral. A exposição reúne 60 obras, entre pinturas, desenhos, gravuras, esculturas e fotografias que, justapostas, tornam possível a compreensão dos contextos sociais, políticos e, principalmente artísticos, em que foram produzidas. O recorte traz trabalhos de importantes nomes da arte brasileira, de Almeida Junior a Geraldo de Barros, passando ainda pelos mais célebres modernistas, entre os quais se destacam Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral.

No final do século XIX, os brasileiros tomavam como referência econômica e cultural a Europa e, em especial, a capital francesa, Paris. Por aqui, São Paulo começava a dar os primeiros passos rumo à industrialização, patrocinada pela elite cafeeira do interior do Estado, que nutria certa identificação com a cultura do velho continente. A incorporação de padrões europeus na arte não era algo novo, mas remetia ao ano de 1816, marcado pela vinda da Missão Artística Francesa ao Brasil e à fundação da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, pela coroa portuguesa.

Debate com Júlia Rebouças e Durval Muniz discute o sertão e a ideia de uma “arte sertão”

Com a participação de Júlia Rebouças, curadora, pesquisadora e crítica de arte, e do historiador Durval Muniz De Albuquerque Júnior, mestre e doutor em História Social pela Unicamp e professor dos programas de pós graduação da UFRN e da UFPE, aconteceu na última sexta-feira, dia 5, o debate “Sertão: experimentação e resistência”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). O evento, uma pareceria do MAM e da ARTE!Brasileiros, está ligado ao 36º Panorama da Arte Brasileira, que tem curadoria de Rebouças e abertura prevista para agosto deste ano. A mediação do debate foi feita por Patricia Rousseaux, publisher da ARTE!Brasileiros.

Com o tema “sertão”, que será o eixo curatorial desta edição, o 36o Panorama não procura retratar o que costumamos definir como sertão brasileiro, nem mesmo lidar com este conceito de modo fechado. Pelo contrário, como explicou a curadora em sua fala: “Eu não quero necessariamente ou exclusivamente tratar dos estados que compõem o Nordeste, nem da caatinga, nem do agreste ou do semiárido. Acho que com esse projeto eu quero pensar numa certa arte brasileira que tem como fundamentos resistência e experimentação. A partir disso eu faço uma licença poética, e também uma licença política, de chamar esta certa produção brasileira de uma ‘arte sertão’”.

Construção e desconstrução do sertão

Contextualizando e aprofundando a discussão, antes de Rebouças apresentar em detalhes seu projeto para a mostra, Durval Muniz falou sobre a construção histórica do conceito de sertão e sobre o imaginário nacional relacionado à região Nordeste. Autor dos livros A Invenção do Nordeste e outras Artes; História, a Arte de Inventar o Passado; e Preconceito Contra a Origem Geográfica e de Lugar: as Fronteiras da Discórdia, o professor destacou que a palavra sertão nos remete a um conjunto de imagens e temas que foram construídos ao longo do século 20 e que envolve diversos clichês e estereótipos.

“Há um conjunto de temáticas, acontecimentos e personagens que estão ligados à essa palavra. Quando ouvimos falar em sertão pensamos em seca, retirada, coronelismo, cangaço e movimentos religiosos”, falou o professor. Pensamos também, segundo ele, na região Nordeste, apesar de que a palavra sertão antecede em muito a própria definição do que é a região nordestina. Neste sentido, o historiador ressaltou que sertão já aparece no vocabulário português nos séculos 14, 15 e 16 e se refere “a um lugar desabitado, lugar do vazio, a um silêncio”. “E à medida que ele é esse vazio, pode-se atribuir a ele diversos significados”.

“Nordeste é um recorte regional que só surge no começo do século 20. Antes o Brasil se dividia em Norte e Sul. E o discurso regionalista nordestino foi muito eficiente em capturar o conceito de sertão”, disse Durval. Isso se deu seja através da produção sociológica, historiográfica ou artística, e foi marcante “a ponto de as outras regiões brasileiras não terem sertão, mas interior”.

Outro aspecto destacado pelo historiador foi a ideia de que o sertão se refere, em nosso imaginário, a um outro tempo, geralmente do passado, “um tempo anterior à civilização, ao progresso, à urbanização e ao desenvolvimento”. “É essa ideia de sertão como confins. O sertão é uma distância, uma lonjura física e temporal”, disse ele.

A construção desse imaginário sertanejo, associado também à pobreza, ao artesanal e à tradição, à violência e à masculinidade – a figura do “cabra macho” – está estreitamente relacionada à construção do imaginário nordestino, e tem a ver com uma série de aspectos políticos e culturais. Segundo Durval, “o Nordeste é uma invenção de uma elite que perdeu espaço a nível nacional. De elites que foram derrotadas no processo de implantação da sociedade urbana, industrial e burguesa capitalista no Brasil.” Nesse sentido, “o Nordeste é uma invenção reacionária a esse processo, que tenta conservar a sociedade estamental, patriarcal e aristocrática de quando a região foi o centro da política e economia brasileiras”.

Isso também envolve, de diferentes modos, escritores, cineastas, artistas de diferentes áreas, historiadores e cientistas sociais, não apenas as elites. Citando importantes nomes como Euclides da Cunha, Luiz Gonzaga, Cicero Dias e Glauber Rocha, entre outros, Durval prosseguiu: “O Nordeste existe porque foi inventado. E ele existe com muita força por causa da qualidade de seus inventores, da potência dos discursos”. “Por isso o Nordeste é uma construção tão difícil de desconstruir. E acho que são as artes que podem ajudar nesse sentido, mais do que a academia.”

Desconstruir, diz ele, porque “essa estereotipia em torno do sertão não permite que se veja sua complexidade e diversidade”. O sertão não deve ser visto apenas como lugar do atraso, da violência, da pobreza, da seca e assim por diante. “O sertão é uma experiência múltipla, embora tenda a ser narrada a partir de determinados clichês.” Ele hoje é diverso, moderno e pós-moderno, abriga grandes cidades, enormes contrastes dentro de si mesmo. “Ele é atravessado por todos os fluxos econômicos, culturais e simbólicos que atravessam qualquer espaço do mundo. O sertão é global, é globalizado. É complexo, múltiplo, ambíguo, conflituoso”, concluiu o historiador.

O Panorama da Arte Brasileira

Após a fala de Durval Muniz, Júlia Rebouças falou mais detidamente sobre o projeto curatorial do 36o Panorama e dos conceitos que o guiam. Ainda assim, segundo ela, por mais “amarrado” que esteja o projeto e a lista de artistas participantes, é apenas quando a mostra começa a tomar forma, ser montada e vivenciada que consegue-se perceber se o “projeto deu certo ou não, se um conceito é potente ou não e se ele dá conta da produção de um momento”. Mesmo que de algum modo precários, no entanto, os exercícios reflexivos anteriores são fundamentais para a construção de um corpo, disse a curadora.

“O projeto parte desse conceito sertão, que aqui eu tomo como um termo evocativo, que trás consigo afetos, formas, ideias e ficções. As imagens de sertão estão presentes por toda a cultura brasileira, ainda que nenhuma delas dê conta de tudo que pode significar sertão. Os elementos de uma certa geografia não são sertão, o semiárido não é suficientemente sertão, a caatinga, as ocupações humanas não são sertão. Também não são sertão apenas as forças telúricas. Não há um empreendimento, um monumento ou uma manifestação que consiga simbolizar inteiramente sertão, nem mesmo essas manifestações do sagrado e do festivo.”

Para a curadora, se de um lado o imaginário do senso comum trata o sertão como vazio, aridez, aspereza e infertilidade, de outro também surgem as acepções de vitalidade, força, resistência, experimentação e criação, “gestadas a partir de uma ordem de saberes e práticas que desafia o projeto colonial em suas reiteradas tentativas de submissão”.

Rebouças afirmou, nesse sentido, que existe aí uma condição muito rica para “contemplar uma produção de arte contemporânea que também possa existir fora dos cânones dos circuitos institucionais e mercadológicos estabelecidos, ainda que possa e deva infiltrá-los”. Para tratar sertão como modo de pensar e de agir, Rebouças também estabelece um diálogo com os debates sobre “epistemologias do Sul” e “orientalismos”, que fogem de uma visão de mundo ocidental hegemônica.

Sobre o processo que a levou ao conceito do Panorama, Rebouças disse também ter se inspirado no contato que teve com o ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro) – uma rede formada por associações, cooperativas, movimentos sociais, sindicatos rurais etc. O ASA propõe uma “convivência” com o semiárido, “em oposição à uma política econômica e social de origem colonial que explora e controla o povo do semiárido com projetos de combate: combate à seca, ao clima, à natureza. E com uma promessa de fartura que nunca retorna ao povo”, disse ela.

“E para mim tem sido muito instigante pensar a arte a partir deste vocabulário da agricultura e dos agricultores. Vem do campo e das experiências do campo grande parte dos debates mais interessantes da nossa relação com a natureza, sobre questões climáticas e ambientais, sobre alimentação, sobre os movimentos sociais que são das forças de resistência mais contundentes do debate político hoje”, defendeu a curadora. “Então acho que tem sido muito instigante pensar em sertão e em uma ‘arte sertão’ a partir de um léxico que encontra e parte desse debate sobre plantio, sobre agricultura, sobre essa relação do homem com a natureza nessa condição mais fundadora e fundamental da existência do homo sapiens.”

Para o 36o Panorama, portanto, o sertão é entendido “por meio da arte como um afeto, como um modelo, como uma qualidade de onde brotam criações poéticas, imagens detonadoras, rearticulação da linguagem, novos arranjos sociais, encontros de saberes oriundos de diferentes matrizes, manejo dos bens naturais, engajamento com o entorno, múltiplas manifestações do sagrado, capacidade de festejar”. Tratam-se, segundo a curadora, de especulações do que seria essa “epistemologia sertão”, vista a partir da produção de arte contemporânea, e de como essas características vão constituindo na prática de uma arte contra-colonial ou “decolonial”.

Por fim, numa linha semelhante à da fala de Durval Muniz, Rebouças citou a força do imaginário sobre o sertão nas artes, desde a música de Luiz Gonzaga, a escrita de Guimarães Rosa e o cinema de Glauber Rocha, entre tantos outros. “Há muitos exemplos das abordagens sobre sertão na cultura brasileira, mas o que eu estou pretendendo com esse projeto é, reconhecendo esse legado, acrescentar uma outra visada, de modo que essa abordagem aqui do 36o Panorama se distancie desse imaginário simbólico e se afaste dessa atração do folclórico e das representações de clichês regionalistas. Então o sertão aqui não deve ser entendido como um tema, mas como uma forma de enunciar. Não é sobre sertão, mas uma forma sertão de existir como arte”.

Para terminar, a curadora falou rapidamente sobre os 29 artistas escolhidos para compor a mostra: Ana Lira, Ana Pi, Ana Vaz, Antonio Obá, Coletivo Fulni-ô de Cinema, Cristiano Lenhardt, Dalton Paula, Daniel Albuquerque, Desali, Gabi Bresola e Mariana Berta, Gê Viana, Gervane de Paula, Lise Lobato, Luciana Magno, Mabe Bethônico, Maré de Matos, Maxim Malhado, Maxwell Alexandre, Michel Zózimo, Paul Setúbal, Radio Yandê, Randolpho Lamounier, Raphael Escobar, Raquel Versieux, Regina Parra, Rosa Luz, Santídio Pereira, Vânia Medeiros e Vulcanica PokaRopa. “Acho que são artistas que estão trabalhando a partir de um conjunto de conceitos, valores e afetos transformadores. Fazem essa ‘arte sertão’”.

A geografia na obra de Nicole Franchy

Nicole Franchy, Strange Fruit I, II, III, 2019

*por Alexia Tala

 

A arte contemporânea tem se apresentado como um espaço fértil para desmontar as formas pelas quais a representação absorve e expõe uma geografia, sendo um lugar propositivo ao lidar com a relação entre território e conhecimento. Entre essas coordenadas se situa o trabalho de Nicole Franchy, que trabalha através das formas históricas de tais representações, dando espaço para nos interrogar sobre as ideologias que estão por trás da construção do conhecimento.

Esse interesse pela dimensão ideológica das imagens históricas do território significa, nas obras de Franchy, um envolvimento absoluto nelas, refazendo-as a partir da coleta e uso de diferentes arquivos. Combinando fontes e tempos, a artista cria o que ela chama de “paisagens associativas” ou “geografias políticas”, fontes como cartões postais e livros científicos que vão da antropologia à astronomia.

São imagens recriadas a partir da ficção, paisagens cheias de enigma porque apesar de reconhecer tipografias, motivos de gravuras, lugares e conteúdo de texto, não podemos distinguir com exatidão a natureza do que vemos. São imagens que mesclam uma densidade histórica com toques apocalípticos, onde plantas, palmeiras ou prédios arquitetônicos são abundantes, e onde a artista coloca em diálogo passado, presente e futuro. O artista chega aos documentos através de uma busca dos sistemas de conhecimento hospedados, isto é, como depósitos de tempo: em cada imagem há uma maneira de ver e perceber o mundo.

Assim, a artista arma e desarma as imagens por meio da apropriação. A estratégia que une seus trabalhos é a colagem, que é apresentada tanto em formatos “instalativos” quanto bidimensionais. Em ambos, seja espacialmente ou por meio de uma única imagem, percebe-se a importância das camadas na montagem: a imagem vai se expandindo em camadas, privilegiando os fundos transparentes, que criam um efeito de integridade e profundidade. Nessas paisagens, apesar de serem o produto de múltiplos documentos ou fragmentos, isto é, de certa forma cumulativos, são calculados e configurados de maneira tão visual que é sempre integral.

Nas obras da exposição Vacío Tropical (2018), a artista apresenta instalações em painéis de couro ou vinil transparente sobre os quais dispõe o conteúdo de páginas de enciclopédias, um arquivo etnográfico mostrando como a Europa examinava o continente. A artista inclui as imagens das silhuetas de indígenas com os rostos cortados. Em Ocaso (2017), Franchy radicaliza o fictício da paisagem em suas colagens em larga escala, onde constrói imagens que misturam construções com espaços invertidos.

Nicole Franchy, Peculiar Arrangements, 2019

Mas a hierarquia anteriormente silenciosa de sua origem é desviada no trabalho através de estratégias visuais e materiais que são expostas, ao contrário, à abertura. Esta abertura tem a ver com um refazer que a desaponta, a secciona e a exibe desnaturalizada. Um desses materiais tem sido as enciclopédias, que abrigam esses problemas de natureza epistemológica, contendo a agência que distribuiu à sua maneira as formas de assimilar os territórios.

Assim, a geografia, as formas em que foram fixadas em outra época, é o caminho para ativar uma crítica pós-colonial que demonstra a dimensão construtiva dos imaginários culturais no Ocidente. O resultado mostra as tensões entre o natural e o artificial, por meio de uma paisagem imaginária, onde o local aparece perturbado pelos elementos europeus. Os tempos estrangeiros e as geografias perdidas são articulados através de composições que insistem na “repetição” dos arquivos, estes precisam ser reiterados para vislumbrar a presença do poder.

Enigmas Contemporâneos

Por Alexia Tala, curadora e crítica de arte

 

A arte contemporânea tem se apresentado como um espaço fértil para desmontar as formas pelas quais a representação absorve e expõe uma geografia, sendo um lugar propositivo ao lidar com a relação entre território e conhecimento. Entre essas coordenadas se situa o trabalho de Nicole Franchy, que trabalha através das formas históricas de tais representações, dando espaço para nos interrogar sobre as ideologias que estão por trás da construção do conhecimento.

Esse interesse pela dimensão ideológica das imagens históricas do território significa, nas obras de Franchy, um envolvimento absoluto nelas, refazendo-as a partir da coleta e uso de diferentes arquivos. Combinando fontes e tempos, a artista cria o que ela chama de “paisagens associativas” ou “geografias políticas”, fontes como cartões postais e livros científicos que vão da antropologia à astronomia.

São imagens recriadas a partir da ficção, paisagens cheias de enigma porque apesar de reconhecer tipografias, motivos de gravuras, lugares e conteúdo de texto, não podemos distinguir com exatidão a natureza do que vemos. São imagens que mesclam uma densidade histórica com toques apocalípticos, onde plantas, palmeiras ou prédios arquitetônicos são abundantes, e onde a artista coloca em diálogo passado, presente e futuro. O artista chega aos documentos através de uma busca dos sistemas de conhecimento hospedados, isto é, como depósitos de tempo: em cada imagem há uma maneira de ver e perceber o mundo.

Assim, a artista arma e desarma as imagens por meio da apropriação. A estratégia que une seus trabalhos é a colagem, que é apresentada tanto em instalações quanto formatos bidimensionais. Em ambos, seja espacialmente ou por meio de uma única imagem, percebe-se a importância das camadas na montagem: a imagem vai se expandindo em camadas, privilegiando os fundos transparentes, que criam um efeito de integridade e profundidade. Nessas paisagens, apesar de serem o produto de múltiplos documentos ou fragmentos, isto é, de certa forma cumulativos, são calculados e configurados de maneira tão visual que é sempre integral.

No trabalho Vacío Tropical (2018), a artista apresenta instalações em painéis de couro ou vinil transparente sobre os quais dispõe o conteúdo de páginas de enciclopédias, um arquivo etnográfico mostrando como a Europa examinava o continente. A artista inclui as imagens das silhuetas de indígenas com os rostos cortados. Em Ocaso (2017), Franchy radicaliza o fictício da paisagem em suas colagens em larga escala, onde constrói imagens que misturam construções com espaços invertidos.

Mas a hierarquia anteriormente silenciosa de sua origem é desviada no trabalho através de estratégias visuais e materiais que são expostas, ao contrário, à abertura. Esta abertura tem a ver com um refazer que a desaponta, a secciona e a exibe desnaturalizada. Um desses materiais tem sido as enciclopédias, que abrigam esses problemas de natureza epistemológica, contendo a agência que distribuiu à sua maneira as formas de assimilar os territórios.

Assim, a geografia, as formas em que foram fixadas em outra época, é o caminho para ativar uma crítica pós-colonial que demonstra a dimensão construtiva dos imaginários culturais no Ocidente. O resultado mostra as tensões entre o natural e o artificial, por meio de uma paisagem imaginária, onde o local aparece perturbado pelos elementos europeus. Os tempos estrangeiros e as geografias perdidas são articulados através de composições que insistem na “repetição” dos arquivos, estes precisam ser reiterados para vislumbrar a presença do poder.

 

Sergio Coimbra: Supernova

Conhecido por seu trabalho com alta gastronomia, Sergio Coimbra decide se dedicar agora à criação de obras de fine art. Depois de fotografar para dezenas de livros de renomados chefs ao redor do mundo e de colaborar para trabalhos de artistas como Ai Weiwei, Sergio cria sua primeira série para uma exposição individual em galeria: Supernova, que acontece até 28 de junho na Galeria ArtEEdições, em São Paulo.

Pensando na técnica de spin, Sergio teve a ideia de construir uma máquina que desempenhasse o meso tipo de rotação, mas com temperos e outros materiais culinários. Optou por fazer essa experimentação na cozinha do chef Massimiliano Alajmo de Padova, na Itália, e passou quase duas semanas numa espécie de laboratório.
O efeito criado com a espiralização de farinha, pimenta, líquidos e outros materiais fez com que Marcello Dantas, convidado pelo artista para fazer a curadoria da exposição, visse o raro fenômeno estelar da Supernova nas fotografias. Assim, surgiu a série Supernova, que foi acrescida de uma instalação, colocada em exibição na SP-Arte. Uma espécie de planetário com quatro projetores reproduz as fotografias de Sergio em um domo. As pessoas se deitam em um estofado e podem observar as supernovas criadas pelo artista. A experiência nessa obra, intitulada Supernova – Domo pode ser conferida até 7 de abril na feira.

Instalação de Edith Derdyk cria tramas, conexões e tessituras no Sesc Ipiranga

Parte da instalação "Moiras". FOTO: Rosa Antuna

Na mitologia grega, as Moiras, três irmãs filhas da noite, são as divindades que controlam os destinos e cursos das vidas humanas. A primeira é responsável por fiar, a segunda por tecer e a última por cortar o fio da vida dos mortais. Inspirada nestas personagens, a artista plástica Edith Derdyk apresenta, no Sesc Ipiranga, a instalação Moiras, um site specific composto de 485 hastes de ferro presas à uma parede nas quais se entrelaçam 70 mil metros de linhas brancas esticadas, em uma trama que percorre 17 metros de extensão e quase 2 de altura.

Apesar do título, o trabalho de Derdyk não estabelece com a história mitológica uma relação direta, discursiva, mas tem nela uma espécie de pano de fundo. “Comecei a pensar muito na linha dotada de sentidos, ligada à questão dos destinos: de onde vem e para onde vai; o tempo de saída e o tempo de chegada; a linha como elemento transitivo e transitante, que é da natureza dela”, explica. “E movida por tudo isso me veio a ideia das Moiras.”

Tendo como matriz, desde os anos 1980, o desenho – e consequentemente a linha –, Derdyk foi com o tempo expandindo sua compreensão deste conceito, passando a praticar um “desenho expandido” que pode se dar em instalações, fotografias, vídeos ou gravuras. “Desde 1997, quando fiz minha primeira instalação usando a linha no espaço, eu venho atuando no entendimento do desenho como essa extensão do corpo no espaço, que nasce da leitura do próprio espaço. A linha acaba virando um campo de acontecimentos”, conta.

Decorrem destes trabalhos questões sobre acúmulo, repetição, conectividade, encontros, colisões, estabilidade e instabilidade. Nas linhas que criam tramas, labirintos e tessituras, “eu começo a identificar padrões orgânicos que existem na natureza, mas também os modos das comunidades humanas se organizarem”, explica Derdyk.

Entra aí a história das Moiras, sobre o destino das vidas humanas, assim como o mito de Sísifo, personagem que dia após dia, repetidamente, tenta rolar uma grande pedra ao alto de uma montanha. “No livro do Albert Camus ele questiona: o que faz uma pessoa todo dia tentar levar uma pedra ao topo de uma montanha? É a esperança de um amanhã, de um futuro. E pensar nisso hoje em dia é muito forte”, diz Derdyk.

Em Moiras, que demorou cerca de duas semanas para ser construída e contou com uma equipe de colaboradores, a fiação surge como gesto repetitivo, mas que, ao mesmo, está sempre diferindo e criando novos campos de sentidos. A instalação é vinculada ao projeto FestA! – Festival de Aprender, do Sesc, que trabalha nesta edição com a ideia de conectividade e com a relação da arte com a ciência.

“A proposição da instalação visa construir uma espacialidade rizomática e conectiva, feita de combinatórias entre o caminho das linhas que se ligam de um ponto a outro, de maneira a tecer uma trama aérea, meio suspensa, como se esta trama tecida revelasse, através do caminho que cada linha traça, os infinitos destinos cruzados”, diz Derdyk.

As linhas, que ativam e ressignificam o espaço, nos falam também de horizontalidade e conectividade entre pessoas, ou seja, da possibilidade de diálogo e convivência. De um processo construtivo trabalhoso e cansativo – “meio aracnídeo”, diz a artista – resulta essa trama que aparenta também leveza e fluidez.

“É interessante pensar também que há uma certa inutilidade. Muito trabalho, muito esforço físico, muscular, muito tempo dispendido para um resultado que é quase um nada.” E que, ao fim, terá os fios rompidos, assim como faz a terceira das três Moiras ao cortar o fio da vida. Antes de desfeito, o trabalho está exposto no Sesc Ipiranga até o dia 26 de maio.

Moiras, de Edith Derdyk

No deck do Sesc Ipiranga – Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga, São Paulo

De 12/3 a 26/5

 

Em Verbier, líder indígena defende que arte não é para covardes

James Capper, AERO CAB Test Run. Foto: Frederik Jacobovits

Pode uma cidade altamente elitista, frequentada basicamente por bilionários do circuito internacional, onde nem mesmo o cidadão médio suíço tem acesso, ser sede de um encontro de arte contemporânea?

O desafio é encarado pelo Verbier Art Summit (VAS), que teve sua terceira edição realizada nos dias 2 e 3 de fevereiro passado. O evento foi criado por um grupo de moradores e proprietários de chalés da pequena cidade de três mil habitantes. O que não falta lá são milionários famosos, como a cantora Barbra Streisand, o empresário Richard Branson, o colecionador Dakis Joannou e o príncipe Andrew, da Inglaterra, que há três anos pagou nada menos que R$ 65 milhões por uma cabana de sete quartos. Exagero dá o tom do local, onde um drink pode chegar a custar R$ 25 mil nas festas VIP da cidade.

Desde 2017, o VAS, liderado pela advogada holandesa Anneliek Sijbrandij-Schachtschabel, consiste em um encontro de dois dias organizado por um curador convidado. A primeira foi Beatrix Ruf, então diretora do Museu Stedelijk, no ano passado Daniel Birnbaum, do Museu de Arte Moderna de Estocolmo, e agora Jochen Volz, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

O artista brasileiro Ernesto Neto falou com o público sobre humanismo e interconexões. Foto: Alpimages Fleur Gerritsen

Durante dois dias, às tardes, o time por ele escolhido se apresentou em um auditório com entrada franca para inscritos, enquanto pela manhã, nos sofisticados chalés de madeira dos organizadores, grupos selecionados debateram com os convidados, encontros onde jornalistas não eram permitidos. Também fez parte da programação a exibição do filme O Vermelho do Meio-Dia, realizado pelo artista suíço Tobias Madison em São Paulo, em colaboração com o Grupo Mexa, que chocou a plateia por retratar uma cidade bastante decadente, e o teste da escultura móvel do artista inglês James Capper em meio à estação de esqui.

Com o tema Somos muitos. Arte, o politico e múltiplas verdades e um time bastante radical, entre eles a artista cubana Tania Bruguera, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, a líder indígena brasileira Nadine Terena e a curadora sul-africana Gabi Ngcobo, Volz reposicionou o evento elitista de forma elegante. “Tive total liberdade para organizar as mesas, convidei pessoas que admiro muito”, contou Volz, em Verbier. Alguns dos artistas selecionados, como Bruguera, Grada Kilomba e Rirkrit Tiravanija farão parte da programação da Pinacoteca, agora em 2019. Em 22 de junho, o livro com todas as palestras do evento será lançado na Pinacoteca.

“Nós precisamos descer das montanhas para chegar na lama”, chegou a afirmar o curador alemão radicado no Brasil na abertura do evento, ainda sob o impacto do estouro da barragem em Brumadinho, ocorrido poucos dias antes da abertura do Summit. Foi uma fala poética e direta de como o debate sobre arte não deve ficar restrito a um mero encontro, mas merece provocar ações concretas.

Seguindo a deixa de Volz, muitos dos convidados buscaram reconfigurar o auditório onde o encontro ocorria, como a alterar estruturas de poder. Foi o que fez logo na primeira sessão Kilomba, que abandonou o pedestal selecionado para os palestrantes, preferindo falar sentada, de maneira mais informal. “Desaprender é também alterar espaços”, definiu a artista portuguesa, que participou da 32ª. Bienal de São Paulo, em 2016. Ela apresentou na Suíça cenas de seu mais recente trabalho, Illusions 2, uma desconstrução do mito de Édipo, criado para a 10ª Bienal de Berlim, no ano passado.

O tom geral seguiu em reflexões políticas, como fez Terena, que abordou as ameaças aos 800 mil índios que vivem no Brasil e começou sua fala parafraseando o presidente da escola de samba Sossego: “Arte não é para covardes”. Para ela, “a maior arte dos povos indígenas é se manter vivo, é resistência”.

Jochen Volz com Naine Terena, à esquerda, e Anneliek Sijbrandij, à direita. Foto: Frederik Jacobovits

Resistência também foi tema da fala de Ngcobo, sobre experiências de movimentos anti-apartheid na África do Sul, nos anos 1970, e como jovens artistas atualizam, atualmente, as questões daquele período.

Já Santos, no segundo dia, em uma fala que abordou questões vinculados à defesa dos direitos humanos, declarou estar participando de movimentos contra o uso indiscriminado de agrotóxicos no Brasil. “Há muito mais pessoas com câncer no interior de São Paulo por conta dos venenos espalhados pelo agronegócio”, provocou.

Figura frequente em Verbier, por conta de um festival de música que ocorre na cidade, a cantora lírica Barbara Hendricks, embaixadora da Acnur (Alto Comissário da ONU para Refugiados) fez uma defesa da arte como elemento empoderador.

Finalmente, o artista tailandês Tiravanija repensou o espaço do encontro de forma radical: desceu para a plateia e sugeriu que cada um alterasse a organização das cadeiras, deixando de estarem todas voltadas para o palco. Sob penumbra, ele pediu ao público que observasse sua própria respiração por dez minutos. Ao final, pediu que cada um falasse algo a partir das experiências dos dois dias em Verbier, gerando certa tensão, afinal foi um palestrante que preferiu não falar. Houve quem, após participações tão políticas, propusesse que o grupo deveria ter alguma ação concreta, enquanto outros, como Gabi Ngcobo, ao invés de falar, tocou a canção “We don’t need another hero”, famosa na voz de Tina Turner, que foi o título da Bienal de Berlim, por ela organizada no ano passado.

Nesse ambiente um tanto irônico, o silêncio de um artista como Tiravanija é uma atitude bem coerente com um evento para discutir arte em uma cidade como Verbier. Arte, de fato, não é para covardes.


*Fabio Cypriano, viajou a convite do Verbier Art Summit

Sob as lentes de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca

Still de "Rise" (2018)

Entre o primeiro trabalho realizado conjuntamente e os dias atuais passaram-se apenas seis anos. Neste período prolífico, Bárbara Wagner, 38, e Benjamin de Burca, 43, realizaram cerca de dez grandes projetos – entre séries fotográficas, videoinstalações e curtas-metragens musicais – e com eles estiveram presentes em uma série de bienais, exposições e festivais ao redor do mundo. Percorreram espaços dos universos da arte e do cinema e, neste 2019, foram premiados no Festival de Berlim com o curta RISE (2018). Agora, se preparam para representar o Brasil na 58ª Bienal de Veneza com o inédito Swinguerra, filmado em Recife.

Em uma sequência produtiva quase sem respiros desde 2013, a dupla desenvolveu uma linha de pesquisa coerente e sólida tanto nas temáticas tratadas quanto na criação de uma linguagem e estética autorais – mesmo com as nuances e peculiaridades de cada projeto. Mas, segundo eles mesmos, poucas vezes pararam para analisar este conjunto da obra. “Tenho começado a pensar nisso só recentemente. Até pouco tempo a gente não conseguia ver um corpo, porque produzimos muita coisa em pouco tempo. Agora que acumulamos alguns trabalhos a gente consegue olhar para trás e perceber mais claramente as relações entre eles”, diz Wagner, que ao lado de De Burca conversou por mais de uma hora com a ARTE!Brasileiros.

Especialmente nos projetos filmicos, que agora chegam a sete, a dupla apresenta obras audiovisuais concebidas em conjunto com seus protagonistas, que misturam documentário e ficção, realidade e imaginação, e que levantam debates sobre o uso do corpo, a indústria musical, os diálogos e conflitos entre cultura pop e manifestações tradicionais e sobre as ideias de bom e mau gosto. Temáticas tratadas de modo multidisciplinar em trabalhos que retratam personagens de universos marginalizados e como eles próprios se autorrepresentam e se apresentam ao mundo – dos músicos de brega e dançarinos de frevo de Recife aos rappers de Toronto; dos cantores do schlager de Münster aos oradores evangélicos da Zona da Mata pernambucana.

Still de “Swinguerra” (2019)

“Por um lado, são manifestações que parecem marginais, mas na vida real elas são muito centrais na cultura. O schlager é o gênero mais consumido na Alemanha, o hip hop é um fenômeno mundial e o brega é muito popular aqui no Nordeste”, afirma De Burca. “Acho que a gente procura entender esses fenômenos que parecem marginalizados, mas que na verdade têm um nervo central na nossa experiência de cultura”, completa Wagner. “Eles bebem o tempo inteiro dessa produção cultural central, ao mesmo tempo não precisam dela, não são dependentes do mainstream e dos meios de comunicação convencionais. São grupos que encontram saídas para sua própria existência, dentro desse universo de trocas entre centro e periferia”.

Neste sentido, Wagner e De Burca questionam a noção, em voga em setores do ativismo político e em áreas das ciências sociais, de “dar voz” às minorias e aos marginalizados. Para a dupla, esses grupos têm voz própria, “sabem muito bem como se apresentar”, e o trabalho trata muito mais de ouvir essas vozes ou, ainda, criar juntos outras vozes possíveis. “Então a gente sempre se pergunta qual pode ser a nossa contribuição. O registro que a gente faz em audiovisual tem que ir para um outro lugar, que vem do encontro, do diálogo entre as nossas vontades de observar, de compreender e de questionar e a vontade artística deles, das pessoas com quem a gente colabora”, diz Wagner.

O que resulta, portanto, vem de um fazer compartilhado que chega a algo novo. De algum modo remete a filmes etnoficcionais de Jean Rouch, que criava narrativas junto aos protagonistas, ao mesmo tempo que transparece menos improvisação que os trabalhos do francês. Para a dupla, o trabalho conjunto começa no planejamento e no roteiro, segue na filmagem, e continua, posteriormente, em toda a carreira da obra. “A gente mantém contato com todo mundo que a gente trabalhou desde o primeiro filme até hoje, e eles sempre sabem onde os filmes estão circulando”.

Da Europa para o Brasil

Wagner e De Burca já desenvolviam trabalhos autorais quando se conheceram na Europa, no fim de 2009, na época em que a artista realizava seu mestrado em Artes Visuais na Holanda. Wagner, nascida em Brasília e formada em jornalismo em Recife, aprofundava uma pesquisa principalmente fotográfica, já centrada em questões do corpo e nos campos da cultura pop e da tradição. Benjamin, nascido em Munique (Alemanha), com graduação e pós-graduação em Artes concluídas em Glasgow (Escócia) e Belfast (Irlanda do Norte), tinha um trabalho focado principalmente em colagens, fotografias e pintura.

A dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. FOTO: Chico Barros/ Divulgação

A primeira obra feita em parceria começou a ganhar forma quando os dois se mudaram para a capital pernambucana no fim de 2012, em “um período muito interessante para se observar o que era a representação de uma nova classe média no Brasil”. Edifício Recife (2013), uma série fotográfica acompanhada de pequenas entrevistas, analisa “a relação entre as esculturas de prédios nobres de Recife e os porteiros destes edifícios”. Apesar de não ser centrada em questões musicais ou do corpo, o trabalho já apresentava várias das temáticas desenvolvidas posteriormente pela dupla, como o contraste entre classes sociais e o uso do espaço urbano.

No mesmo ano surgiu a primeira obra audiovisual, Cinéma Casino (2013), uma investigação sobre o gênero musical maloya entre as novas gerações na Ilha da Reunião. Comissionado para a 4a Bienal do Oceano Índico, o trabalho foi filmado no departamento ultramarino francês, localizado próximo à África, e coloca em perspectiva sonoridades e danças locais – tanto vertentes tradicionais ligadas à cultura crioula e à resistência anticolonial quanto manifestações contemporâneas alinhadas à indústria de consumo. “A gente estava interessado em entender como é que os corpos desses jovens, bastantes influenciados pela cultura pop, transitam entre a tradição e o contemporâneo”, comenta a artista.

Still de “Faz que Vai” (2015)

Foi essa mesma linha de pesquisa, transportada para outro território e contexto, que resultou no curta Faz que Vai (2015), trabalho feito em Recife após a produção de dois outros projetos: Desenho Canteiro (2014), uma vídeo-colagem sobre o mercado imobiliário; e Como se Fosse Verdade (2015), um híbrido de série fotográfica e instalação realizado no terminal de ônibus de Cidade Tiradentes, em São Paulo. Faz que Vai, filmado com quatro dançarinos de frevo, levanta também questões de gênero, que percorrem outros trabalhos da dupla.

“No caso dos filmes a gente entendeu que a música é o elemento que constitui uma espécie de fundamento para as práticas que pesquisamos. Seja de dança, dos videoclipes, da canção. É a performance de forma geral ligada às indústrias da música que estão no limite entre a tradição e o pop”, diz Wagner. “São jovens que têm pela primeira vez a possibilidade de trabalhar com arte, e o corpo é um elemento central nisso. Ele é o instrumento de trabalho nessa cultura do espetáculo”.

Democratização e mundo da arte

Convidados para a 32a Bienal de São Paulo, com curadoria de Jochen Volz, a dupla produziu Estás Vendo Coisas (2016) também em Recife, deslocando-se do universo do frevo para o dos jovens cantores de brega em boates e nas gravações de videoclipes. Considerando que passaram 900 mil pessoas pela Bienal, foi ali que se deu o momento de maior visibilidade para o trabalho dos artistas. Wagner confessa: “Foi muito emocionante ver como as pessoas se relacionam com o trabalho. Pessoas com idades e repertórios diferentes, com compreensões distintas do que é um trabalho artístico”.

Still de “Estás Vendo Coisas” (2016)

Segundo ela, foi um momento interessante também para ver como o trabalho repercutia no próprio mundo da arte, com educadores, com o circuito comercial, com curadores independentes ou com a direção de instituições. “A gente está sempre testando, porque cada instância dessas tem suas especificidades. E por ter esse trabalho híbrido, é muito bom poder mostrar o RISE, por exemplo, tanto em uma galeria privada de São Paulo (Fortes D’Aloia & Gabriel) quanto no festival de Berlim. É interessante testar os cruzamentos dessas esferas, os pontos de interseção”.

O curta feito no ano após a bienal, Bye Bye Deutschland! (2017), realizado para o festival Skulptur Projekte de Münster, acompanha um casal de cantores de schlager, gênero musical popular na Alemanha e em países do norte europeu marcado por letras e melodias sentimentais. “E também tinha muito a ver com essa questão de bom gosto e mau gosto. Artistas alemães contemporâneos torcem o nariz para o schlager, então a gente querer falar sobre esse gênero foi uma surpresa, até mesmo para o Skulptur Projekte. Mas, para nós, era o único caminho possível. Um trabalho em Münster tinha que ser sobre isso”, explica Wagner.

Essa surpresa de que fala a artista levanta também um estranhamento quando se pensa no grande reconhecimento que a dupla alcançou em meios onde os gêneros musicais de que tratam são normalmente considerados ruins. “Os circuitos da arte e do cinema são muito elitistas. Mas o que eu sinto é que de algum modo os nossos trabalhos comunicam algo, até para além da nossa intenção, que interessa as pessoas. Mas é difícil explicar, nós mesmo estamos sempre tentando entender.”

Still de “Bye Bye Deutschland!” (2017)

A reação mais polêmica veio com o curta Terremoto Santo, de 2017 – ano em que Wagner foi vencedora do Prêmio PIPA –, que apresenta o universo evangélico da Zona da Mata pernambucana a partir de uma gravadora de música gospel da cidade de Palmares. Ao criar no filme uma atmosfera ao mesmo tempo real e fantasiosa, em que, em dado momento, a câmera treme simulando um terremoto – em diálogo com a música que está sendo cantada –, a dupla incomodou parte da comunidade artística. “Até hoje a recepção é dividida. Tem gente que acha que o filme é propaganda conservadora dos evangélicos, outros acham que a gente pode ter até debochado deles”, ela comenta. O curioso, segundo De Burca, é que os trechos que soam mais ficcionais nos filmes são sempre concebidos nos processos de criação com os próprios personagens, a partir de coisas que existem em suas vidas.

“Na prática artística desses grupos, sejam cantores, dançarinos, produtores musicais do brega, do schlager, do gospel ou da swingueira, essa fantasia é muito presente. Não há limites entre ficção e realidade. Entrar e sair do espetáculo é uma prática que eles manejam muito bem, e o limite entre uma coisa e outra fica muito fluido”, diz Wagner. “Acho que o cinema permite o manejo entre essas narrativas e, para nós, borrar esses limites é importante até mesmo para suspender o julgamento sobre o que se está vendo.” Fazer a câmera tremer no momento do “terremoto”, seria como “fazer tremer” qualquer tipo de leitura fácil sobre o trabalho da dupla. “A gente não tem nenhum pudor em levar às últimas consequências essa ideia de que um filme pode falar da realidade, mas ao mesmo tempo ser completamente fantasioso. Queremos criar fissuras”.

RISE (2018), curta que venceu o Audi Short Film Award na Berlinale deste ano, dá continuidade à essa ideia. Filmado em uma estação de metrô recém-inaugurada na periferia de Toronto, o trabalho foi realizado com integrantes do grupo Reaching Intelligent Souls Everywhere, que reúne jovens rappers, poetas e cantores afrodescendentes da cidade. O curta, que foi comissionado pela AGYU (Art Gallery of York University), chama atenção, talvez de modo ainda mais acentuado que outros filmes, para o extremo cuidado técnico e estético que percorre a produção da dupla – que sempre trabalha com o diretor de fotografia Pedro Sotero (parceiro de filmes de Kleber Mendonça).  “Acho que se não fosse esse rigor do cinema, com alta qualidade de som e imagem, a gente perderia todo o nosso esforço em promover uma relação empática com o conteúdo do trabalho”, afirma Wagner.

Still de “Terremoto Santo” (2017)

Swinguerra, que está em fase de pós-produção, é o trabalho que representará o Brasil na 58a Bienal de Veneza, comissionado para tal a partir da escolha de Gabriel Pérez-Barreiro. O novo filme apresenta três grupos: os de swingueira, que se reúnem em quadras de escolas públicas de Recife e preparam coreografias para socializar e competir entre si; os dançarinos de brega funk, que derivam da swingueira, mas trabalham comercialmente em palcos de boates e em shows de MC’s; e os do chamado passinho do maloka, adolescentes que criam danças e coreografias para se divertir e divulgar no Instagram: “Da quadra, para o palco, para o Instagram. No filme nós cruzamos essas expressões, seus códigos, corpos e gestos”.

Em uma prática multidisciplinar, que mistura cinema, artes visuais, performance, música, dança e antropologia, no qual o fazer é compartilhado e onde surgem questões de gênero, raça, classe e indústria cultural, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca têm consciência da responsabilidade política de seus trabalhos, especialmente no contexto atual brasileiro. “Esse lugar em que ao invés de ‘dar voz’ procura-se ouvir, ou falar junto, é possivelmente um lugar de resistência. Porque isso mostra como esses grupos que a gente encontra, esses artistas, criam suas próprias saídas para resistir no mundo. E trabalhar junto com eles é, portanto, participar da construção destas formas de resistência”.

 

Havana capta tensões atuais do mundo

Raquel Valdes Camejo, Blue Cube, 2015. Foto: Leonor Amarante

Com o tema A Construção do Possível e um discurso amplo, afinado com as preocupações sócio-político-ambientais do momento, a 13ª Bienal de Havana abre suas portas, em 12 de abril, com uma versão evolutiva de seu trabalho ao longo desses anos. Coloca em pauta linhas temáticas vinculadas à arquitetura, à cidade e seu entorno, à ecologia e aos temas de gênero e migrações. Uma das novidades dessa edição é que ela se estende a outras cidades da Ilha:  Pinar del Río, Matanzas, Cienfuegos, Sancti Spíritus y Camagüey.

A Bienal, como estratégia, vai investigar a percepção do mundo atual, procedimentos poéticos e da natureza que envolvem memória, sociedade, história, pertencimento, uma topografia viva tendo em conta “as condições de um mundo que tem intensificado as ameaças nucleares e belicistas, a fobia, o racismo, os deslocamentos forçados, as tendências fascistas, o uso sistemático da mentira e a crise meio ambiental que ameaça a sobrevivência da espécie humana”. O grupo de curadores, liderado pelos críticos cubanos Nelson Herrera Ysla e Jorge Noceda Sánchez, espera que a arte assinale novos caminhos de raciocínio coletivo. São cerca de 170 artistas, vindos de 45 países, alguns deles com obras que captam as tensões silenciosas. Entre os artistas convidados estão Sara Ramo, Lais Myrrha e Ruy Cézar Campos (Brasil). Tania Candiani (México); Pedro Cabrita Reis (Portugal); Abdoulaye Konaté (Mali), Guy Wouet (Camarões); René Francisco Rodríguez,  José Manuel Fors, Juan Carlos Alom, Kadir López, Dania González e Ruslan Torres (Cuba).

A regionalização da Art Basel

José Patrício, Espirais Cromáticas VI, 2018. FOTO: Robson Lemos

Com aproximadamente 83 mil visitantes entre os cinco dias que a Art Basel Miami Beach ficou aberta para visitação no último dezembro, a feira recolheu números animadores em relação às vendas promovidas pelas galerias participantes. Boas notícias também para a arte latino-americana, que sempre se destaca na feira.

A organização da feira anunciou que as vendas foram fortes em todos os níveis do mercado. Porém, cada vez se torna mais evidente a força dos compradores de países próximos. A regionalização das edições da feira tem sido algo constatado por muitos nos últimos anos.  Por ter edições em vários continentes, a Art Basel tem visto alguns de seus frequentadores preferirem esperar a edição mais próxima a atravessar o oceano para comprar obras de arte. Ainda assim, visitas de colecionadores e de representantes de instituições como o Centre Pompidou, de Paris, e a Serpentine Galleries, de Londres, não decepcionam.

No evento de 2018, algo chamou a atenção das galerias que participavam: a vontade dos compradores em quererem inserir em suas coleções obras de artistas negros, latinos e de mulheres artistas. Esse desejo revela de alguma forma a força das reivindicações de movimentos que lutam contra o apagamento da produção artística feita por esses grupos sociais.

As galerias brasileiras reportaram certo êxito em suas vendas. Dentre as 14 brasileiras, a Galeria Nara Roesler, com sede em São Paulo, Rio de Janeiro e Nova Iorque, vendeu obras de nomes como Vik Muniz, Tomie Ohtake, Julio LeParc e Artur Lescher. Já a Bergamin & Gomide negociou trabalhos de Ivan Serpa e de Leonílson.

As duas são as únicas casas do Brasil que também participam da edição da feira em Hong Kong, entre os dias 29 e 31 de março. A Nara Roesler apresentará trabalhos de alguns dos artistas que fizeram sucesso em Miami Beach, mas também integra ao time obras de Xavier Veilhan, Hélio Oiticica e José Patrício. A paulistana Bergamin & Gomide irá apostar em obras de Jac Leirner, Rivane Neuenschwander, Jim Hodges, Lorenzato e Mira Schendel.

Participando do setor Discoveries com a galeria Commonwealth and Council, de Los Angeles, a brasileira Clarissa Tossin, representada no Brasil pela Galeria Luisa Strina, apresentará alguns trabalhos que desenvolveu recentemente (Leia entrevista com Clarissa clicando aqui). Partindo de ideias levantadas pela escritora Octavia E. Butler na triologia Xenogenesis (1989), Tossin traz à luz “uma materialidade pós-apocalíptica”  que envolve as questões ecológicas do planeta, considerando “as tradições estéticas das pessoas nativas da Amazônia em relação à cultura contemporânea de mercadorias”. Destaque também para o artista Rirkrit Tiravanija, nascido na Argentina, que estará exibindo uma obra sem título, de 2018, feita de folha de ouro escrita em caracteres chineses, que pode ser traduzido como “Estamos sonhando sob a mesmo céu”, colado em um jornal.

O evento em Hong Kong terá a participação de 242 galerias, de 35 países. Num movimento que também demonstra um pouco dessa regionalização das edições da feira, o setor Kabinnet terá foco em artistas da Ásia, apresentando tanto nomes já consagrados quanto artistas em ascensão. Serão, ao todo, 21 apresentações conceituais em espaço delimitado e com curadoria especial dentro dos estandes. Destaques para Simon Starling no The Modern Institute e Joan Miró, na Galeria Lelong.

No setor Film, o artista multimídia e produtor de filmes Li Zhenhua separou 27 obras de cinema e vídeo que abordam o contexto sociopolítico atualmente, incluindo trabalhos que foram exibidos em grandes festivais, como Spring Fever, de Lou Ye, que chegou ganhar o prêmio de melhor roteiro em Cannes em 2009 e Dong, de Jia Zhangke, exibido no Venice International Film Festival e no Toronto International Film Festival em 2006. Em Conversations, o destaque fica por conta da conversa entre diversos curadores que produziram exposições com base na geografia asiática “discutindo o formato de exposição como um modo de fazer mapas que buscam novas compreensões, perspectivas e des/conexões em uma região composta de muitas regiões”.