Frequentes Conclusões Falsas 40, 2019. Acrílica, spray e lápis sobre tela, 150 x 200 cm
Característica marcante da obra de David Magila, a simultaneidade parece ter efeito também sobre seu calendário. Com três exposições inaugurando uma após a outra no mês de maio de 2019, o artista faz uma entrada impactante na cena paulistana. São três espaços diferentes e com vocações distintas, nos quais expõe um leque amplo de trabalhos, quase todos inéditos, que conjuntamente compõem um panorama bastante abrangente das principais questões que o motivam.
“Foi fruto do acaso”, explica ele, enfatizando que cada um dessas mostras têm uma história própria, mas sem negar a existência de nexos importantes entre os diferentes núcleos expositivos. O primeiro desses projetos aconteceu no jardim do casarão ocupado pela Fundação Ema Klabin. Ele foi concebido no contexto do Festival Labas, iniciativa da comunidade lituana em São Paulo, e levou o artista a mergulhar na história de sua família, na memória afetiva e simbólica ligada à serralheria montada pelo avô, que refugiou-se no Brasil nos anos 1930, e onde ele aprendeu o ofício, soldando lixeiras.
A segunda mostra, inaugurada no Centro Cultural Britânico, teve como mote um diálogo com a obra do artista britânico Hurvin Anderson. Contempla, não apenas pinturas – linguagem que o artista vem explorando com mais afinco nos últimos tempos –, mas também esculturas, desenhos e vídeos. Trabalhos recentes de sua autoria também foram expostos em mostra individual na Galeria Janaina Torres. Esses dois últimos núcleos de obras revelam, por meio de um sutil porém intenso diálogo, o caráter ao mesmo tempo fluído e coerente de sua poética.
Nas obras de Magila parece sempre haver um ponto de partida mais longínquo, mais remoto, do que indicam as primeiras aparências. Sua pintura, apesar do caráter etéreo, não é uma construção inventada. Os objetos e cenas inanimadas que imantam essas construções derivam sempre de cenas da realidade, que o artista coleta como um explorador, normalmente em locais decadentes e abandonados, e registra por meio de fotografias ou desenhos de observação.
Esse registro atento das paisagens e dos detalhes faz parte de seu processo. Formado em artes pela Unesp no início dos anos 2000 e muitas vezes apontado como um dos destaques da jovem pintura brasileira, Magila tem uma trajetória bastante diversificada, marcada por momentos de dedicação exclusiva ao design gráfico e pela busca de uma associação entre diferentes formas de expressão artística.
Cadeiras vazias, escombros de bares, guarda-sóis não apenas povoam suas telas criando uma cena um tanto nostálgica, como servem de estrutura para toda a composição. “Não pinto o objeto, pinto em volta dele”, explica. A arquitetura vazia, os ambientes desertos são seu tema. Neles nunca se vêm vestígios humanos, mas sabemos que eles estiveram por lá. Magila confessa interesse por lugares que têm a marca de uma certa vivência, lugares que alimentam uma série de trabalhos. É o caso, por exemplo, de uma praia, em Iguape, que está sendo comida pelo mar e que é fonte de vários dos trabalhos mostrados no Centro Britânico. Em diversas visitas ao local ele coletou não apenas cenas, mas objetos tragados pelo mar (qualquer relação com um impulso de denúncia ecológica não seria mera coincidência), posteriormente transformando esses despojos numa grande instalação.
Apesar da potência cromática das telas, é sempre a partir do desenho que a imagem se estrutura, numa série de releituras até a forma final. A mescla de técnicas, a influência de suas formações em desenho técnico (pelo Liceu de Artes e Ofícios) e a experiência como artista gráfico – área em que trabalhou por longo tempo – deixam suas marcas na obra. E contribuem para criar essa sensação de uma composição que não busca necessariamente uma harmonia definitiva, mas sim promover a convivência, um tanto ambígua, de elementos apenas aparentemente díspares. Suas pinturas seduzem e desafiam os sentidos ao mesmo tempo.
Melania Olcina Yuguero, "Homo". FOTO: Juan Carlos Toledo
Quando foi criada pela galeria Vermelho, em 2005, a Verbo: Mostra de Performance e Arte surgiu muito mais como resposta à uma demanda dos artistas da casa do que como proposta de ser uma grande plataforma para as artes performáticas no Brasil. “A galeria tinha apenas três anos, com muitos jovens artistas saídos de cursos de arte como o da FAAP, e a performance era para eles uma das ferramentas de experimentação e de exercício”, explica Marcos Gallon, diretor artístico da mostra. “Como a coabitação entre a performance e uma exposição tradicional de artes visuais é um pouco complicada, a Verbo surgiu para proporcionar esse espaço de experimentação e de apresentação pública das ações.”
O fato é que ao longo de 15 anos de existência a Verbo expandiu sua atuação, criou parcerias institucionais, estabeleceu um sistema de chamada aberta para artistas, recebeu centenas de participantes de diversos países e se consolidou como evento de grande relevância na agenda artística do país. Em sua 15a edição, que acontece entre os dias 9 e 18 de julho em São Paulo e em São Luís do Maranhão, a Verbo apresenta 41 projetos de artistas de 11 países, com ações ao vivo, vídeos e filmes.
Na verdade, mesmo surgindo “de dentro para fora”, como afirma Gallon, como necessidade interna da galeria, a Verbo não deixava de estar conectada com um movimento mais amplo de iniciativas de investigação da expressão corporal, como a bienal PERFORMA e a mostra Seven Easy Pieces, de Marina Abramovic, ambas realizadas na mesma época em Nova York. Atenta às transformações nas linguagens artísticas e à crescente multidisciplinariedade nas artes visuais, a Verbo buscou imprimir em suas trajetória um “alargamento do conceito de performance em relação ao que tínhamos nos anos 1960 e 1970”, como explica Gallon.
“Trouxemos para dentro da plataforma a dinâmica da dança, a questão da reencenação – não apenas a performance que acontece somente uma vez –, o vídeo, produções de literatura e livros de artista”, conta o diretor. No recorte da atual edição, que teve projetos selecionados por Gallon e pela curadora Samantha Moreira, estão trabalhos com diferentes linguagens, muitos deles com temáticas referentes à questões de gênero ou raciais (veja a programação completa aqui).
Lolo y Lauti & Rodrigo Moraes, “Carmem”. FOTO: Divulgação
Para Gallon, é perceptível ainda um reflexo da edição de 2018, que em resposta ao conturbado contexto político vivido no Brasil foi a única até hoje com temáticas pré-estabelecidas, com projetos criados a partir de palavras-chave como censura, corrupção endêmica, desobediência civil, ditadura, Estado de direito e Estado de exceção, extremismo religioso, pós-feminismo, gênero LGBTQI, manipulação da notícia, polícia, pós-verdade e racismo.
Nesta edição de 2019, a primeira da Verbo sob um governo de extrema direita – que já travou diversos embates com a classe artística –, “surgem questões que refletem o momento atual, mas guardam uma característica de afeto”, como explica Gallon. “Acho que tudo que está acontecendo é muito perverso porque parece querer congelar as pessoas e deixa-las presas dentro de casa, olhando para o computador. E o que eu vejo nesse projeto é essa necessidade de colaboração, de participação. Também uma necessidade de se proteger, porque quando estamos juntos a gente está mais forte. E acho que dá para perceber que as pessoas precisam se encontrar, fazer coisas juntas.”
Como explica o diretor, sendo uma das linguagens artísticas menos incorporadas aos circuitos institucionais e mercadológicos – até mesmo por certa dificuldade de ser inserida em exposições e coleções –, a performance mantém uma potência política que muito pode incomodar os “defensores da moral e dos bons costumes”, como ficou claro com as reações violentas aos trabalhos de Dora Smék, na 13a Verbo, e de Wagner Schwartz, no MAM, ambos em 2017.
“O corpo é subversivo, e todo corpo público é político. E é isso que esses caras não querem, não querem tornar esse corpo público. Quando o cara sai de casa e cria uma ação, ele deixa a passividade privada, isolada, e passa a ser esse corpo político. E é isso que não querem quando criticam o Wagner Schwartz e outros artistas”, diz ele.
Realizada em três espaços na cidade de São Paulo – Galeria Vermelho entre os dias 9 e 13; CCSP nos dias 12 e 13; e Contemporão SP no dia 13 – a Verbo tem como grande novidade a realização de um braço do evento na cidade de São Luís, em um desenvolvimento de parceria iniciada em 2018 com o espaço Chão SLZ. “São Luís tem um sistema de arte ainda bastante frágil e a performance que vem de lá tem um vigor, uma energia ancestral que é de uma potência muito grande. Acho que essa parceria vai contribuir muito também para trazer novos elementos para a Verbo daqui, vai transformar a Verbo de São Paulo”, conclui Gallon.
O colecionador João Carlos de Figueiredo Ferraz com o prêmio do MuBE. FOTO: Iara Morselli
O empresário e colecionador de arte João Carlos de Figueiredo Ferraz, 66, é um defensor determinado da aproximação entre museus e acervos privados. De um lado, por considerar que as coleções particulares devem ser vistas pelo máximo de pessoas o possível – “a arte é uma coisa que tem que ser compartilhada”, diz ele. De outro, porque essa aproximação possibilita que os museus diminuam o foco na formação de acervos e aumentem os investimentos em seus espaços e estruturas técnicas – algo essencial em muitas instituições brasileiras hoje.
Neste sentido, o colecionador se diz muito feliz com o convite feito pelo Museu Brasileiro da Escultura (MuBE) para realizar uma mostra com obras de seu acervo, como parte de uma série de exposições que o museu pretende apresentar em parceria com coleções privadas. Intitulada Construções e Geometrias, a mostra, com curadoria de Cauê Alves, traz um recorte de quase 60 obras da coleção de Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz, colocadas em diálogo com a arquitetura do edifício projetado por Paulo Mendes da Rocha.
Entre os artistas expostos estão nomes de diferentes gerações, como Adriana Varejão, Amilcar de Castro, Carlos Garaicoa, Carmela Gross, Cildo Meireles, Edgard de Souza, Ernesto Neto, Nelson Leirner, Laura Vinci, Nuno Ramos e Waltércio Caldas, que representam apenas uma pequena parcela da coleção Figueiredo Ferraz – hoje com cerca de 1000 obras de 382 artistas (sendo 308 brasileiros) e que segue em expansão. “Atualmente existe uma quantidade muito grande de novos artistas e novas galerias, e é praticamente impossível acompanhar tudo, mas tento manter os olhos abertos para as coisas novas e para acompanhar os artistas que já conheço faz tempo”, afirma.
A relação do colecionador com as artes visuais, que começou na primeira metade dos anos 1980, resultou, entre outras coisas, na criação do Instituto Figueiredo Ferraz, em 2011, na cidade de Ribeirão Preto; no convite para assumir a presidência da Bienal de São Paulo, com gestão no biênio 2017-2018; e, em junho deste ano, no recebimento do Prêmio MuBE Colecionismo e Apoio à Arte.
Sem título, 1999, obra de Laura Vinci que está na mostra no MuBE. FOTO: Mauricio Froldi
Em entrevista à ARTE!Brasileiros, o colecionador falou sobre sua trajetória e sobre a situação política e cultural no Brasil atualmente, vista por ele com certa preocupação. Para além de um barulho desnecessário e excessivo feito pelo governo federal em torno das mudanças na Lei Rouanet, Figueiredo Ferraz diz ser preocupante a situação do patrimônio cultural brasileiro. Em referência ao incêndio no Museu Nacional, ele afirma: “Do jeito que está, outros museus vão queimar também. Nossos acervos estão sendo perdidos em meio à umidade, cupins e salas de exposições caindo. Recuperar isso é obrigação do governo”. Leia abaixo a entrevista na íntegra.
ARTE!Brasileiros – Você poderia contar um pouco sobre como surgiu o seu interesse pelas artes plásticas e como se deu o início de sua trajetória como colecionador, nos anos 1980? João Carlos de Figueiredo Ferraz – O gosto pelas artes plásticas vem de muito cedo, desde que sou criança. Agora, a coisa de colecionar começou quando eu me mudei de São Paulo para Ribeirão Preto, em meados dos anos 1980. A casa era grande e eu quis comprar um quadro para colocar na parede, para decorar a casa. E um amigo meu, primo da galerista Luisa Strina, me levou lá, onde eu comprei o meu primeiro quadro. Assim começou. E fui me envolvendo, conhecendo os galeristas, os artistas, os críticos. E quando eu percebi não tinha mais paredes, não tinha mais espaço, e eu estava colocando quadro embaixo da cama.
Como e quando você percebeu que tinha em mãos mais do que um conjunto de obras (um acervo particular), mas uma coleção de vocação pública? Frequentando galerias e ateliês, eu fui comprando mais obras ao longo do tempo. E, sem espaço para abrigar tudo, muita coisa foi ficando guardada. E em 1999, a Maria Stella Teixeira de Barros, visitando minha casa, me convidou para fazer uma exposição no MAM de São Paulo (O Espírito de Nossa Época, 2001). E eu achei ótimo, porque eu mesmo estava curioso para tirar as coisas das caixas e também para ver como estava se comportando o andamento do meu olhar, que é algo que ao longo do tempo nós vamos aprimorando, adquirindo outros gostos. E eu queria ver se se aquelas coisas juntas tinham uma lógica, um fio condutor.
E você percebeu que tinha? Sim, quando a exposição foi montada fiquei supercontente, e impressionado, porque ao longo do tempo eu mantive essa coerência do olhar. Isso me deixou animado, e a partir desse momento eu coloquei na cabeça que um dia eu ainda teria um lugar onde eu pudesse expor essas obras.
E o que você diria que é essa coerência? Isso é curioso, porque na verdade a arte nesse período é de uma diversidade imensa. Você tem todo tipo de produção, dos concretos aos abstratos, fotos, instalações… E eu fui comprando de tudo. E apesar dessa variedade imensa, essas obras conversavam entre si, havia um diálogo. E eu vi que ali se formava um núcleo que era representativo da época.
Daí até a abertura do instituto, como foi o processo? Demorou ainda uns dez anos. A exposição no MAM foi em 2001, e a partir daí eu comecei a procurar ou outras instituições que eventualmente se interessassem em ir para Ribeirão Preto ou algum espaço, algum lugar onde eu pudesse montar o instituto. E foi muito difícil. Até que em um determinado momento surgiu a oportunidade de comprar um terreno, em um lugar muito privilegiado, e aí resolvemos construir o instituto.
“Fontana”, 2016, de Waltércio Caldas, obra que está na mostra do MuBE. FOTO: Mauricio Froldi
Como você avalia essa trajetória de quase oito anos do Instituto Figueiredo Ferraz e qual o impacto que percebe da atuação do instituto na cidade de Ribeirão Preto? Acho que essas coisas andam juntas. O instituto evoluiu na medida em que ele foi impactando a cidade. Nós começamos logo no segundo ano um programa educativo muito intenso, fizemos um convênio com as secretarias de Educação de Ribeirão Preto e do Estado de São Paulo e passamos a receber todas as escolas municipais da cidade e da região. E acho que isso fez uma grande diferença, e continua fazendo, porque são crianças que muitas vezes nunca tiveram a oportunidade de ver uma obra de arte, e ali eles têm um acompanhamento, desenvolvem um raciocínio poético. Acho que isso faz uma grande diferença e cria um legado que o instituto vai deixar.
Você considera que ainda o Brasil ainda carece de mais iniciativas deste tipo? Ou seja, mais pessoas que, independentemente de governos ou do Estado, percebam a necessidade de criar iniciativas culturais públicas e abertas? Sim, acho que sim. Acho que o primeiro passo monumental nesse sentido foi Inhotim, aquele espaço maravilhoso. Agora acho que outras iniciativas também estão surgindo, como a FAMA em Itu, mas ainda são poucas. Acho que poderia ter algum tipo de incentivo que fizesse com que as pessoas abrissem mais suas coleções. Porque acho que a arte é uma coisa que te que ser compartilhada, porque ela é um patrimônio nacional. É importante que as pessoas tenham acesso. Mas é preciso que haja um estímulo, uma política de cultura do Estado. Nós temos uma série de decretos, regras e coisas que mudam a cada governo, e isso acaba contaminando, porque gera insegurança. Se tivesse garantias mais claras, tudo seria mais fácil.
E o que pensa para o futuro da instituição? De certa forma, eu tenho novamente um problema equivalente ao que eu tinha no início, quando eu queria tirar as obras das caixas. Porque o instituto, apesar de ter um tamanho bastante generoso, já ficou pequeno para o número de obras. Então o que eu faço é a cada ano convidar um curador para que ele faça uma leitura da coleção e um recorte, para montar uma exposição. E isso é superinteressante porque eu vejo as obras se aproximarem umas das outras com um outro olhar, provocando outros diálogos, outras tensões. E temos também uma sala de mostras temporárias, onde fazemos umas quatro ou cinco exposições por ano, com artistas convidados ou outras coleções.
A atual exposição no MuBE traz um recorte da coleção feita pelo curador Cauê Alves, com grande enfoque na arte construtiva e geométrica. Como você vê essa exposição? Eu fiquei muito contente de poder trazer para São Paulo esse recorte. Ele fez uma seleção a partir de um olhar sobre a arquitetura do Paulo Mendes da Rocha. Uma seleção de obras mais concretas e neoconcretas, e que não tem muita preocupação com data. Tem coisas mais antigas ou mais recentes. Além disso, o museu está iniciando um projeto que eu acho muito importante. Porque nós sabemos que as instituições brasileiras, tanto públicas quanto privadas, vivem com grande dificuldade, tentando arrecadar fundos, fazendo clube de patronos… E elas tem a função de criar sua qualidade técnica, trabalhar a manutenção dos espaços, se aparelhar com equipamentos modernos, porque a arte hoje demanda essa tecnologia. E muitas vezes elas não conseguem fazer isso porque estão preocupadas em formar acervo. Então eu acho que há instituições que poderiam fazer uma aproximação com as coleções particulares, criar parcerias com elas, e pegar suas verbas para melhorar a qualidade técnica de seus espaços. E essa iniciativa do MuBE em fazer essa aproximação é muito importante, e é uma maneira de a população poder ver obras que muitas vezes estão guardadas.
Mudando um pouco de assunto, como avalia seu período como presidente da Fundação Bienal, nos anos de 2017 e 2018? Esses dois anos que eu estive à frente da Bienal foram seguramente os anos mais difíceis da minha vida e provavelmente também os mais ricos. Os mais difíceis porque logo no terceiro mês depois que eu assumi o cargo eu tive que fazer um transplante de medula, por conta de um câncer. Então foi muito difícil acompanhar tudo, porque a presidência da Bienal demanda muita presença, muitos compromissos, contatos. E eu fiquei, entre entrar e sair de hospital, uns seis ou sete meses. Agora, foi muito rico porque eu tive a sorte de escolher o Gabriel Pérez-Barreiro como curador, um profissional da maior qualidade, superpreparado e inteligente, fácil de trabalhar junto. E a gente trocou muito, conversou muito sobre o projeto dele, que eu achei muito bonito. E isso, de certa forma, também me ajudava a sair um pouco dessa tensão do meu tratamento do câncer.
“Globo”, 2012, obra de Carlos Garaicoa que está na mostra do MuBE. FOTO: Edouard Fraipont.
O Brasil vive, já há alguns anos, um momento político e econômico conturbado, com uma grande polarização nos discursos e com uma crise que ainda parece longe de acabar. Como você percebe esse momento, considerando sua experiência na área cultural? Acho que na nossa área, das artes visuais, das artes plásticas, esse novo governo fez uma tempestade em copo d’água. Muito barulho político. Por exemplo, todo esse escândalo que foi feito em relação à Lei Rouanet não era necessário. Podia mudar algumas coisas sem todo esse barulho. E no fim o que se fez foi mudar o limite de captação, mas criar uma regra de exceção que engloba todo mundo. Quer dizer, não mudou quase nada. E com relação à acusação que se fez de mau uso do dinheiro público, de gastos indevidos, isso era função do Ministério da Cultura fiscalizar. Todos os projetos tinham que prestar contas, mas o que acontecia era que muitas vezes o Minc não analisava. Então não era um problema da Lei Rouanet, mas um problema político dentro do ministério. Por isso digo que o novo governo fez todo esse estrondo, essa tempestade, em uma coisa que não precisava.
Para agradar um certo público, um eleitorado… Claro, para agradar eleitores. Escolheram a Lei Rouanet como alvo. Agora, para além das artes plásticas, em relação à outras áreas como cinema e teatro, acho que algumas decisões que o governo Bolsonaro tomou são muito preocupantes. Ele proibir estatais e empresas de economia mista a fornecerem recursos para a Lei Rouanet, através de seus resultados, está tirando do mercado um volume de dinheiro muito grande, que vai fazer muita falta. Isso é uma coisa precisa ser discutida com mais serenidade, para ficar claro que é importante a manutenção desses apoios. E se por acaso não quiserem colocar esses recursos dessas empresas em Lei Rouanet, que usem pelo menos para recuperar o patrimônio cultural brasileiro, para não acontecer como aconteceu no Museu Nacional no Rio de Janeiro. Porque do jeito que está outros museus vão queimar também. Nossos acervos estão sendo perdidos em meio à umidade, cupins, salas de exposições caindo. Recuperar isso é obrigação do governo.
Nesse sentido, muita gente que trabalha nas áreas cultural e educacional – e pode-se dizer que este é o seu caso, com o instituto – tem se sentido bastante acuada com as políticas do governo. Você sente isso? Acha que há uma certa incompreensão dos atuais governantes do papel da cultura e da educação na construção de uma sociedade melhor? Eu acho que sim. Mas também, para ser justo, acho que não temos bons parâmetros de referência. Porque a falta de uma política cultural de Estado é um problema de todos os últimos governos, não só desse. Falta uma política de Estado, não de partidos políticos. Agora, esse discurso mais agressivo que temos ouvido é mesmo lamentável.
Serviço: Construções e Geometrias MuBE – R. Alemanha, 221 – Jardim Europa, São Paulo
Até 18 de agosto
Entrada gratuita
Vista da exposição Recuperemos la imaginación para cambiar la historia, no Centro de Expresiones Contemporáneas de Rosario
O Projeto NUM é um grupo de artistas feministas, gestores e escritores que compilaram um livro documental sobre os impulsos criativos gerados em torno das mobilizações nacionais lideradas originalmente pelo movimento #NiUnaMenos.O projeto ocupa o Centro de Expresiones Contemporáneas, em Rosário, na Argentina, como parte da BIENALSUR.
A mostra, intitulada Recuperemos la imaginación para cambiar la historia, se propõe a ser “um arquivo vivo, em constante movimento, que relaciona obras muito contemporâneas, criadas no calor da ação feminista, que não apenas denunciam a cisheteronorma (matriz de nosso sistema), mas possibilitam alternativas e releituras”. Uma outra proposta que também destaca o empoderamentofeminino foi inaugurada em Tucumán no último fim de semana de maio, a mostra Heroínas, com obras que incluem fotografias históricas das Mães da Plaza de Mayo.
A seguir confira entrevista com Mai Lumi, integrante do coletivo que realiza o Projeto NUM:
Quando o projeto começou? Como se organizam?
O Project NUM é um arquivo coletivo e documental que captura os impulsos criativos gerados e continua gerando os primeiros #NiUnaMenos, em 3 de junho de 2015. Somos Nina Kunan, Lucia Reissig, Laura Harness, Eugenia Salama e Mai Lumi, e trabalhamos no projeto desde meados 2015. Nos autoconvocamos com a idéia específica de captar este conteúdo em um livro, para dar espaço para as criações nascidas da nossa subjetividades neste contexto.
De onde surgiu a ideia de trabalhar artisticamente as questões do movimento NiUnaMenos?
Percebemos que o contexto de urgência sociopolítica nos desafiava individual e coletivamente e que as manifestações surgiram para além da própria militância. Era inevitável não ver como as ruas e as redes sociais estavam cheias de conteúdo. Nossa missão era condensar e arquivar esses trabalhos sem hierarquias. O movimento Ni Una Menos constitui politicamente uma experiência muito mais vasta do que a que realizamos no Proyecto NUM.
A ideia de trabalhar com a problemática feminista surge, no início, a partir do que vivia nos momentos anteriores ao primeiro dia 3 de junho. Neste contexto, com uma pulsão amorosa, criativa e rebelde que foi gerada nos meses antes e após os primeiros #NiUnaMenos apareceram fora do museu – na rua, na praça, nas salas de aula e nas redes sociais – imagens e narrativas que trouxeram à tona questões relacionadas à sexualidade, gênero e violência sexista. O Projeto NUM procurou juntar essas coisas, motivado pela crença de que a imaginação tem o poder de mudar a História, pela certeza de que, em cartazes, murais, curtas, reflexões, performances urbanas, intervenções em marchas há um grande potencial transformador e desestabilizador não apenas do cânone literário e artístico, mas da tradição heterossexista e patriarcal.
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Azul Cooper, Ambigua, de la serie 'Fragmentadas'. Fotografías y pinturas clásicas - 2014. Obra na mostra que terá curadoria do movimento Ni Una Menos.
Fátima Pecci Carou, Algún día saldré de aquí. FOTO: Bienalsur
Quando surgiu a proposta de trabalhar com a bienal?
Enviamos a proposta para a chamada da BIENALSUR e fomos selecionadas. Nós sempre trabalhamos de autogestão. Na verdade, o livro foi financiado coletivamente com um Ideame [plataforma de financiamento coletivo]. Sempre quisemos reunir fisicamente os trabalhos em uma grande exposição e estávamos procurando uma ligação que pudesse atender às nossas necessidades. Mas a produção deixou muito a desejar e, desde o projeto, acabamos pedindo muitos recursos materiais e econômicos.
Quais são os temas relevantes nos trabalhos do projeto? E quais os formatos?
Há artes visuais, registro de desempenho, fotos, literatura, vídeo e instalações. O trabalho é feito por artistas e não artistas. Isso é importante: o projeto NUM nasceu do desejo de expressar impulsos criativos em resposta a um momento específico. Nesse sentido, este projeto tem uma carga muito forte em sua diversidade: pulsa o desejo de imaginar e refletir a partir da arte. Somos muitos e muito diferentes, mas esse desejo desafia todos nós, e é disso que trabalhamos. Tanto a arte quanto o feminismo são infinitos em sua subjetividade, não pretendemos representar um movimento inteiro ou manifestar uma mensagem especial, apenas possibilitar um espaço. Portanto, há artistas de trajetória como Ana Gallardo ou Fátima Pecci Carou e também professores de artes plásticas, trabalhadores da arte, da cultura, jornalistas, ativistas, estudantes, etc. As obras são coletivas e individuais.
Laura Vinci, No Ar, exposta no Mube em 2017, será adaptada para a Flip deste ano - foto Nelson Kon/ Divulgação
A tradicionalíssima Festa Literária Internacional de Paraty, no estado do Rio de Janeiro, que este ano ocorre entre os dias 10 e 14 de julho, nunca deixou de se reinventar e de explorar novidades para compor suas estruturas. Esta será a 17a edição do evento e tem curadoria da jornalista e editora Fernanda Diamant, uma das criadoras da revista Quatro Cinco Um, especializada em literatura. O homenageado da vez é o escritor e jornalista carioca Euclides da Cunha (1866-1909), autor do aclamado livro Os Sertões, considerado por muitos uma obra que inicia o jornalismo literário no país, muito antes do termo existir.
Dentre as transições e as novidades, a organização da Flip, que tem direção geral de Mauro Munhoz, anunciou um desejo de fomentar o desenvolvimento de atividades ligadas às artes visuais no itinerário do evento, para além daquilo que já acontece espontaneamente pela cidade. É desta forma que foi apresentado o projeto Terra Nova, um módulo de artes visuais que pretende realizar intervenções que se integrem de certa forma à Paraty: “Desde o começo, a Flip tem a intersecção entre as artes em seu DNA. Ano após ano, fomos construindo uma aproximação entre diferentes experiências artísticas, inclusive as artes visuais. Agora, sentimos a necessidade de fazer essa relação se manifestar de maneira mais visível. O Terra Nova é um dispositivo artístico para iluminar questões que permeiam o território da cidade, seus moradores e seus visitantes. Uma das missões da Flip é investigar como a arte pode ajudar a qualificar o olhar das pessoas para as relações humanas produzidas em espaços públicos, e o Terra Nova vai propor mecanismos de percepção deste território e de suas complexidades através da arte”, disse Mauro à ARTE!Brasileiros.
O projeto foi lançado no início de junho durante evento na Casa do Parque, em São Paulo, onde foi apresentado o programa de patronos especialmente desenvolvido para essa iniciativa. O plano de mecenato é voltado a pessoas físicas e é a forma principal e exclusiva de viabilizar essa ideia. As pessoas que desejarem contribuir com o projeto terão alguns benefícios como ingressos, acesso preferencial à programação principal da Flip que ocorre no Auditório da Matriz, convites para outros eventos realizados pela organização da feira e obras exclusivas de Laura Vinci, artista confirmada para participar da primeira intervenção do Terra Nova.
Convidada pela curadora, Vinci irá apresentar a sua instalação No Ar, apresentada pela última vez em 2017, no MuBE, em São Paulo, e que já passou por diversos lugares, inclusive por alguns países na Europa. Outras intervenções ainda estão sendo discutidas por questões de viabilização orçamentária, até mesmo por isso a apresentação do programa de patronos foi crucial para que tudo começasse a ser estabelecido.
A escolha de No Ar para integrar a estreia do projeto foi discutida entre a artista e a curadora: “É um trabalho que tem essa caraterística de se adaptar muito, ele se reinventa no lugar. Ele é um trabalho que é bruma, é só vapor. Então ele se adere fácil à situação espacial. Tem trabalhos que exigem espacialidades específicas e o No Ar não, ele só precisa de água”, conta a artista. A fluidez do vapor na obra de Laura faz com que o público possa descobrir formas diversas nas variações que a fumaça cria no espaço, além da característica do trabalho em si transformar o local onde está.
Sobre a interdisciplinaridade que permeia a Flip e a proposta de inserir as artes de maneira mais pontual, Laura não tem dúvidas de que é o país vive um momento em que colaboração entre as áreas é algo necessário: “Isso é uma coisa muito importante para nós, ampliar isso e fortificar essas relações”, ela diz. Para ela, existem algumas áreas que se vinculam de forma mais pontual e forte com a literatura, como o cinema. “Nas artes visuais isso não é tão claro, mas acho que a gente pode começar a achar esses encontros”, ela comenta ao citar como exemplo dessa confluência a sua obra Máquina do Mundo, que se debruça sobre um poema de Carlos Drummond de Andrade.
O poema também é ponto de partida para outra intervenção que será realizada na Flip: Máquinas do Mundo, uma performance do núcleo de arte da mundana companhia de teatro, do qual Laura faz parte junto a Roberto Audio, Flora Belloti, Yghor Boy, Guilherme Calzavara, Beatriz Camelo, Diogo Costa, Alessandra Domingues, Wellington Duarte, Ivan Garro, Luah Guimarães, Flora Kountouriotis, Cesar Lopes, Renato Mangolin, Rafael Matede, Mariano Mattos Martins, Diego Moschkovich, Rogério Pinto, Joana Porto, Tarina Quelho, Roberta Schioppa, Marília Teixeira e José Miguel Wisnik. A iniciativa tem como proposta “diminuir a distância entre narrativa e arte visual, entre a instalação e a ação de atores”.
Artes visuais no Auditório da Matriz
Na programação mais disputada da Flip, que acontece em um auditório montado dentro da Igreja Matriz da cidade de Paraty, as artes visuais também estarão presentes em diversos formatos. Na quinta, 11 de julho, a fotógrafa Maureen Bissiliat será entrevistada por Miguel de Castillo e Rita Palmeira na mesa 6, intitulada Serra Grande.Afotógrafa inglesa radicada no Brasil dedicou-se ao encontro entre a palavra, a imagem e a geografia ao longo de sua trajetória, conhecida especialmente por seus trabalhos com os povos do Xingu.
Na mesa 12, Mata de Corda,a artista Grada Kilomba é interrogada por Kalaf Epalanga e Lilia Schwarcz sobre as questões que rondam seu livro Memórias da Plantação, a ser lançado durante o evento pela editora Cobogó. Nele, a artista discute temas como raça, classe, gênero e pós-colonialismo, já muito presentes em sua obra. Em seguida, na mesa 13, Ailton Krenak e José Celso Martinez Correa conversam sobre a valorização da cultura, terras férteis para a arte e a diversidade, com mediação de Camila Mota. As atividades ocorrem no dia 12 de julho e, no dia seguinte, mesas com Ismail Xavier, Miguel Gomes, Grace Passô, Marina Person e José Miguel Wisnik também trarão as artes visuais à feira em suas discussões em torno de cinema, dramaturgia, arte e literatura.
Vista de parte da exposição que está em cartaz no SESC 24 de Maio.
*Por Aracy Amaral
Uma curadoria não é tarefa fácil de ser concebida. Sobretudo se o número de participantes for extenso, o espaço difícil, e grande a relutância em deixar de lado tudo o que poderia ser selecionado. Em especial quando se enfoca uma exposição como À Nordeste, atualmente no SESC 24 de maio. Região vasta em criatividade, o anseio, percebe-se, foi incluir tudo! Mesmo se com dificuldade de apreensão pelos visitantes daquilo que está exposto. A ideia que passa é que nada deveria poder escapar aos curadores, mesmo se não digerível pelo visitante. Que se sente envolvido num redemoinho que lhe empurra olhos e ouvidos abaixo todas as expressões de criadores nordestinos não distinguindo nenhum em particular. Assim, expressões populares, cordel, pintura figurativa, pintura concreta, arte conceitual, vídeo, em todos os níveis e dimensões envolvem violentamente o visitante. Que se sente física e visualmente tragado pela dificuldade do espaço atravancado em tentar – em vão – privilegiar um ou outro criador com olhar que se perde pela montagem labiríntica que nos é proposta.
O sistema de display acumulativo é preferência de alguns curadores – mas não de todos. E temos dúvidas sobre o acerto desse ponto de vista. A boa visibilidade de uma obra incluída deveria ser uma preocupação. Assim, descobrir subitamente, em meio a uma exposição como esta do Sesc 24 de Maio, os Retirantes de Portinari, da coleção do MASP, é uma surpresa. Assim como ver um pequeno Sérvulo Esmeraldo ao mesmo tempo em que confessamos a dificuldade em localizar Brennand, João Câmara, ou Miguel dos Santos.
E de repente encontramos Montez Magno, entre uma multidão de criadores diversificados inesperados, sem qualquer lógica de apresentação no espaço. O oposto ao didatismo aguardado de exposição que atrai uma multidão de visitantes heterogêneos que mereceriam uma orientação clara para sair com uma noção sobre a expressão artística em região tão extensa e ampla em sua criatividade. Talvez esta mostra se configure antes como não se deve fazer uma exposição (e não poderia ter sido dividida em etapas de acordo com a diversidade de linguagens?). Para quem deseja se aprofundar na reflexão curatorial ou desenvolver um trabalho acadêmico sobre o tema, vale considerar a opção de ghostwriter wien.
Na verdade, uma curadoria não é tarefa fácil de ser concebida.
Sun&Sea (Marina), opera-performance por Rugile Barzdziukaite, Vaiva Grainyte e Lina Lapelyte no pavilhão da Lituânia na Bienal de Veneza 2019, Foto: Andrej Vasilenko
Pela primeira vez, a Bienal de Veneza, criada nos modelos das exposições universais, ou seja, onde cada país mostra o que tem de melhor, apresenta um pavilhão para artistas refugiados. Neverland, do artista turco Halil Altindere, seria esse espaço, mas ele é apenas uma fachada, que se torna uma metáfora nos tempos das fake news, um dos temas de May you live in interesting times (que você viva em tempos interessantes), título da 58ª Bienal de Veneza.
Altindere já trabalhou com esse tipo de crítica social em Wonderland (2013), um clipe de hip hop que abordava os processos de gentrificação em Istambul, premonitório por ser feito pouco antes das manifestações contra a destruição da praça Taksim, na capital turca. O trabalho se tornou uma febre nas mostras de arte contemporânea, incluindo as bienais de Istambul, em 2013, e São Paulo, em 2014.
Teresa Margolles. Muro Ciudad Juárez, 2010
Agora em Veneza, contudo, Altindere parece reafirmar o óbvio: mentira e disparidade social são chaves do tempo presente, não há inclusão viável nas sociedades do século 21 e seu trabalho é um mero comentário estetizante dessa catástrofe.
Neverland estaria inserida em uma das temáticas desta edição da Bienal, as fake news, definidas por seu curador, o norte-americano Ralph Ruggof. O nome da bienal já aponta isso, pois “que você viva em tempos interessantes” seria uma expressão citada como um provérbio chinês por figuras como Hillary Clinton, mas, segundo ele, é dessas traduções culturais que não se confirmam. Que tédio.
Se a frase em si já é sem graça, a Bienal cai em simplificações rasteiras, como a mais famosa e comentada desta edição que é, sem dúvida, Barca Nostra, do suíço Christoph Büchel. Ele levou à Veneza um navio naufragado, em 2015, que transportava quase mil refugiados e apenas 28 sobreviveram. Segundo um texto no site egípcio Mada, escrito por Alexandra Stock, o custo total para transportar o navio para a mostra chegou a imorais 33 milhões de euros.
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Neverland, do artista turco Halil Altindere
Neverland, do artista turco Halil Altindere
Com trabalhos que carregam esse tipo de contradição, onde para se tratar de um assunto premente gastam-se valores absurdos e a formalização reduz o conteúdo à mera ilustração, esta bienal já parte de um nível baixo. Mesmo uma artista com uma obra contundente, como a mexicana Teresa Margolles, acabou nessa mesma toada, ao exibir partes de um muro de concreto cheio de balas, transportado de Ciudad Juarez, metrópole que faz divisa com os Estados Unidos. A obra, de 2010, já falava dos muros muito antes do governo Trump, mas em Veneza perde força ao se tornar uma ilustração das propostas atrasadas do presidente norte-americano.
Doppelgänger
Além das fake news, outra temática dessa edição de Veneza, são os duplos, o que significa tratar de com questões como cópia e clonagem. Nesse sentido, um dos bons trabalhos da mostra é o novo vídeo de Stan Douglas, Doppelgänger, sobre a astronauta Alice que é teletransportada para uma nave espacial, mas não age como sua figura original, em uma encenação futurista.
Stan Douglas, Doppelganger, 2019
A ideia de duplo se materializa também no conceito curatorial no espelhamento dos dois grandes espaços da mostra, Arsenale e Pavilhão Central, no Giardini, ambos com os mesmos artistas. A dupla projeção Doppelgänger, por exemplo, está no Pavilhão Central, enquanto no Arsenale Douglas é visto com fotos encenadas da série Scenes from the Blackout. A cenografia exagerada do Arsenale, aliás, com imensas chapas de madeira aparente, escondendo a grandiosidade do local, é outro ponto baixo da mostra.
Representações nacionais
Em anos de mostra principal fraca, as representações nacionais costumam compensar. Não foi o caso agora em 2019, salva raras exceções, entre elas o Brasil e o pavilhão vencedor da Lituânia, uma ópera que se passa em uma praia falsa, ao longo de oito horas, mas que dura uma hora. Sun et Sea (marina), de Rugilé Barzdziukaité, Vaiva Grainyté e Lina Lapelyté, é uma performance sobre a simplicidade de estar à beira do mar, desde passar protetor solar até reclamar de não conseguir relaxar. Basicamente ela é sobre o nada, mas cantado como se tudo fosse importante.
Ao transitar de forma delicada entre o espetacular e a simplicidade, a performance ganhou merecidamente Leão de Ouro, misturando quinze cantores com outros vinte e poucos figurantes, entre eles diversas crianças, em uma ação que segue um roteiro, mas está repleta de improvisações.
Já Bárbara Wagner & Benjamin de Burca, com Swinguerra, empoderam um Brasil marginal a partir da cultura popular do nordeste do país, especificamente de um movimento chamado swingueira. O vídeo apresenta várias narrativas, criadas em parceria com os integrantes desse grupo, misturando sonho e realidade, mostrando como esses espaços da música e da dança são locais que contradizem todo o atual discurso oficial do país de exclusão e preconceito.A arte no pavilhão do Brasil não é ilustração, mas uma experiência vital de resistência e compreensão do humano, tudo o que faltou na mostra principal.
“Os peixes não sobrevivem em águas limpas”. A máxima de Mao Tsé Tung lembra o navegar turbulento da Bienal de Havana ao longo de 30 anos, com dificuldades financeiras e burocráticas, mas não suficientes para naufragá-la. O tema da 13ª edição, O Desafio do possível sintetiza a luta que toca no imaginário e tenta dar rosto ao impossível. O evento segue na busca de maiores correspondências entre a criação e as práticas de vida, ou a pontos convergentes. Com um ano de atraso, por conta do furacão Irma, a mostra coincide com as comemorações dos 500 anos da fundação de Havana e os quase 30 da Bienal.
Qual é a transcendência do maior evento cultural da Ilha? Há muitas mediações sobrepostas na Bienal de Havana desde a sua fundação em 1984:arquitetura do lugar, carga histórica, crise financeira local e a dos países participantes, fricções ideológicas variadas, críticas dentro e fora de Cuba, achaque de galeristas e colecionadores vorazes que chegam à Ilha a procura de arte de qualidade a preços muito abaixo do mercado internacional.
Se comparada às edições anteriores a 13ª Bienal não está entre as melhores. O mesmo sucede às últimas bienais de São Paulo, Veneza e à Documenta de Kassel. Em Havana, a curadoria é assinada por sete curadores cubanos capitaneados pelo crítico e intelectual Nelson Herrera Ysla, além dos 21 estrangeiros convidados.
O momento é de reflexão, transição, desconforto e mudanças, com alguns curadores assumindo cargos em outras instituições culturais ou simplesmente partindo para uma carreira solo. As bienais fazem história desfazendo as realizações e significações anteriores. Mas, que singularidades ainda podem provocar surpresas em meio ao acúmulo excessivo de bienais, feiras, festivais, residências? As obras distribuídas por toda Havana, além de Matanzas, Sancti Spiritus, Cienfuegos e Camagüey estão aplainadas pelo momento internacional.
Manaf Halbouni, Uprooted, 2014. Carroceria de automóvel, livros e outros objetos
Na sede da Bienal, a performance Tejido Colectivo de Alexia Miranda polariza as atenções e ocupa o átrio do Centro Wifredo Lam. Com a ideia de responder ao presente, com possíveis noções de futuro, alerta para a urgência de transformações sociais. Os círculos trançados coletivamente, em vários padrões e ritmos, são ferramentas na tentativa de restaurar momentos de paz no violento El Salvador. A gentrificação das grandes metrópoles chegou a Dresden, cidade alemã onde mora Manaf Halbouni, artista sírio, de 34 anos. Como seu sonho de morar em uma casa nunca se concretizou, ele transforma o carro em residência-ateliê, “onde resolvo tudo”, exposto na Bienal de Havana como arte.
O país também está na pauta de Lais Myrrha com Cronografia dos Desmanches, obra in progress quedesenvolve desde 2012. “O trabalho surge quando percebo o boom da especulação imobiliária ao andar pelas ruas e me deparar com cinco casas destruídas de uma única vez ”. São imagens de demolições, locais abandonados, bustos, portos, algumas não identificadas”.
A Bienal de Havana aposta nos jovens artistas. Nesse contexto se encontra Ruy Cézar Campos, cearense que trabalha diferentes temporalidades em três vídeos: Circunvizinhas, A Chegada de Monet e Pontos Terminais Emaranhados. Todos integrantes da série A Rede Vem do Mar, pesquisa de um ano entre Brasil, Angola e Colômbia.“Tento estabelecer vínculo fenomenológico entre a infraestrutura dos cabos submarinos e as plataformas de desembarque dos mesmos. Fortaleza é a cidade mais importante na rede do Atlântico Sul com as quais está conectada, Sangano, em Angola e Barranquila, na Colômbia”. Operando entre tecnologia e estética, o artista se expressa entre performance, documentário e ficção, com viés político social.
Em Matanzas, novo território da Bienal, Marilá Dardot faz valer a utopia de diluição da arte na vida cotidiana. “Meu trabalho é um segmento da residência que fiz no México, em 2015, no momento do episódio dos estudantes desaparecidos. Escolhia manchetes de jornais e diariamente intervinha com escritos executados com água sobre um muro de concreto. À medida em que os escrevia iam se apagando”. Em Matanzas, optou pela performance Volver,em que escreve repetidamente com água a frase A la esperanza vuelvo em uma parede na rua. O trabalho de Marilá mudou nos últimos anos, “passando de uma visão otimista ligada à literatura, poesia, ficção e natureza, para uma visão mais pessimista diante de fatos políticos do Brasil. “Houve um despertar político em minha geração, assim como em mim mesma”.
Haver, Sem Horizonte, 2019. Chapas de alumínio
Por último, três artistas cubanos com carreiras estabelecidas e poéticas identificáveis, reunidos na mostra Museus Interiores, no Museu Nacional de Bellas Artes.Kcho (Alexys Leyva Machado), Carlos Garaicoa e Los Carpinteros. O vôo internacional de Kcho começa com Regata, instalação de 1993, feita aos 23 anos, um ano antes de entrar para o acervo do Museu Reina Sofia, em Madri, do MoMa e do elenco da galeria Barbara Gladstone, de Nova York. Barco, símbolo do imaginário coletivo dos cubanos, aparece em desenhos gestuais, esculturas ou instalações com objetos que se nutrem de várias poéticas.
Como afirmou o geógrafo Milton Santos, a arte de rua, naturalmente urbana e pública, traz forte carga política por ocupar espaços fora dos campos institucionalizados da arte e por tocar as realidades sociais de perto. Partitura, instalação de Carlos Garaicoa, desenvolvida por dez anos, sintetiza esse pensamento. A obra tem a participação de 70 músicos de rua, de Madri e Bilbao. Trata-se de uma orquestra com 35 vídeos de músicos de rua executando peças diferentes. A partitura final, do músico cubano Esteban Puela, enfeixa as variadas sonoridades e é transmitida para a grande tela digital que assume a direção da orquestra. Los Carpinteros, em uma de suas últimas atuações como dupla, coloca em Alacenas, de 2016, crítica sobre a devastação das tormentas que invadem o Caribe. Os sons emitidos pelos furacões são gravados, reproduzidos e colocados em velhos armários de cozinha que emitem o barulho aterrador do fenômeno.
Esses artistas formam um núcleo lógico e de consenso, mas vale lembrar que há pelo menos duas dezenas de outros, igualmente respeitados profissionalmente, que gravitam em mostras internacionais.
Poucos artistas conseguem atualizar a radicalidade da produção artística brasileira, onde o corpo fazia parte da obra, nos anos 1960 e 1970, como Ernesto Neto. É o que se pode comprovar na mostra Sopro, em cartaz na Pinacoteca do Estado até 15 de julho.
Em suas obras e de forma original, Neto consegue reunir tanto as propostas de vivências coletivas de Hélio Oiticica (1937 – 1990) em seus Penetráveis, quando buscava criar espaços de convivência, quanto às ativações do corpo por meio de experiências com diferentes materiais, como propunha Lygia Clark (1920 – 1988) em seus Objetos Relacionais.
Contudo, enquanto há 50 anos essas práticas buscavam reformular as bases da arte, Neto, já livre deste fardo, vem trabalhando em uma agenda mais atual e necessária: um “projeto de indigenização da vida”, na definição de Els Lagrou, antropóloga e professora da UFRJ, no catálogo da mostra.
Na Pinacoteca, essa prática se consubstancia na instalação do octógono, Cura Bra Cura Té, que acolhe cinco ativações participativas abertos ao público ao longo do período expositivo. As próximas ocorrem no próximo sábado, dia 1 de junho, e depois nos dias 29 de junho e 13 de julho.
A relação do artista com a questão indígena vem sendo tema de debates, nos últimos anos, especialmente quando de sua participação na Bienal de Veneza, há dois anos. As polêmicas se resumem na questão: Qual a legitimidade de um artista branco apropriar-se do discurso de outras povos e culturas? Entender o lugar de fala é, atualmente, um dos desafios de qualquer tipo de discurso que busca “representar” o outro.
Sem dúvida é um tanto estranho quavndo artistas se autorretratam como índios e vendem ou expõem essas pinturas sem qualquer compromisso maior com a questão. Estamos aí no terreno da mera representação, e foi exatamente contra esse tipo de postura que Oiticica e Clark se rebelaram.
Desde 2013, contudo, Neto tem se envolvido com o povo huni kuin, no Acre, de forma engajada, participando de seus rituais e os incorporando a suas mostras, no Brasil e no exterior, como ocorreu em Veneza.
Em Sopro essa participação ocorre no octógono, nas ativações em torno de um grande tronco “que precisa ser curado” e, para tanto, vai sendo engolido por um imenso pingente.
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Cura Bra Cura Té, de 2019 Foto: Levi Fanan
Cura Bra Cura Té, de 2019
Flying Group Nave, 1999
Foto: Levi Fanan
“Somos filhos de três continentes, mas sabemos de um, só nos ensinam um, só valorizamos um”, escreve Neto nas paredes da mostra, explicitando o deslumbre com a cultura europeia dos “toscos brasileiros”, como brilhantemente definiu Christian Dunker em texto para ARTE!Brasileiros.
“Chegou a hora de ouvir a espiritualidade de nossa terra, de nossas plantas, rios e árvores, chegou a vez de ouvir”, defende o artista. É aqui que se explicita o tal projeto de indigenização, já que os chamados povos das florestas buscam a qualidade intrinsicamente relacional de todo ser, humano e não humano, o que Lagrou define como “estética relacional ameríndia”.
“Chegou a hora de ouvir pajés, babalorixás, yalorixas”, prega Neto, e a programação das ativações abrange essas vozes silenciadas na história do Brasil, mas que nas últimas décadas vem conquistando espaço. Estarem agora na Pinacoteca é não só uma proposição do artista, mas consequência da luta que esses povos vêm empreitando.
Sopro, no entanto, vai muito além do octógono e, nos diversos espaços onde ela ocorre, revela-se como faz sentido na carreira de Neto a poética que ele defende agora.
Essa sintonia com uma cosmogonia indigenista, onde humano e não humano são vistos como parte de um todo, afinal é central em suas diversas instalações, que pedem a presença do outro, que contaminam o ambiente com odores, que propiciam o encontro, que tocam, acariciam e envolvem.
O plasticismo que se vê nas obras dos anos dos anos 1980 à primeira década do século 21 é deslumbrante: nas formas, nos materiais, nos volumes e nas dimensões. Há uma estruturação orgânica em sua linguagem confortável a todos sentidos, o que é até raro em arte contemporânea. Mas a potência máxima chega agora nesse “projeto indigenista”, politizando de vez o que era discreto, e transformando Ernesto Neto em uma espécie de xamã nos tempos da cólera.
Ernesto Neto: Sopro
30 de março a 15 de julho de 2019
Pinacoteca de São Paulo
Praça da Luz 2, São Paulo, SP pinacoteca.org.br
O assassinato de Piersanti Mattarella, Governador da Sicília, em 1980. Foto: Letizia Battaglia
No Instituto Moreira Salles de São Paulo, duas exposições dedicadas a importantes fotógrafos estrangeiros: a italiana Letizia Battaglia (1935) e o chileno Sergio Larrain (1931-2012).
A mostra Letizia Battaglia: Palermo reúne cerca de 90 imagens, publicações e filmes, com foco especial na atuação da fotógrafa no jornal L´Ora. Ela começou seu trabalho como fotógrafa, em 1971, em Milão, ao mesmo tempo em que escrevia, como freelancer, para várias publicações, como o Le Ore, um jornal sensacionalista e o ABC, uma publicação intelectual.Foi convidada pelo L’Ora para voltar para Palermo, onde havia nascido, e foi lá, durante quatro décadas, que documentou a guerra da máfia, especialmente nos anos 1970 e 1980. Isso sem ignorar o cotidiano da cidade e seus habitantes.
Nas palavras da fotógrafa, “com a máquina fotográfica a tiracolo, me tornei testemunha de todo o mal que estava ocorrendo. Foram anos de guerra civil: sicilianos contra sicilianos. Foram assassinados os melhores juízes, os jornalistas mais corajosos, os políticos avessos à corrupção”. Com curadoria de Paolo Falcone, a exposição já passou por Palermo, Roma e pelo IMS do Rio antes de chegar a São Paulo.
A mostra Sergio Larrain: um retângulo na mão, por sua vez, traça um panorama da obra do chileno, que atuou como correspondente da agência Magnum durante a década de 1960. A exposição apresenta mais de 140 fotografias, um vídeo e publicações, contemplando os períodos de produção de Larrain em Santiago, o trabalho como correspondente na Europa e América do Sul e a sua volta à terra natal. Com curadoria de Agnès Sire, a mostra já passou por Arles, na França, por diversas cidades chilenas, por Buenos Aires e pelo IMS do Rio.
Nesta versão que está no IMS, foi acrescentado o trabalho que Larrain fez, na segunda metade da década de 1950,para a revista brasileira Cruzeiro Internacional, de Assis Chateaubriand. Dono da revista Cruzeiro — publicação de sucesso e responsável pela implantação do fotojornalismo por aqui com fotógrafos como José Medeiros, Pierre Verger, Luiz Carlos Barreto, Marcel Gautherot —, Chateaubriand ao lançar sua versão internacional queria concorrer com americana Life e com a francesa Paris Match.
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Rua Principal de Corleone, Sicília, Itália, 1959
Ilha De Chiloé, Chile, 1954-1955;
As Filhas do Pescador, Los Horcones, Chile, 1956
Fotos: Sergio Larrain/Magnum Photo
A revista foi lançada em 1957, Larrain produziu para ela pouco mais de uma dezena de reportagens entre 1957 e 1959. Foi, então, convidado por Cartier-Bresson para trabalhar na Magnum, em Paris. A Cruzeiro Internacional acabou fechando em 1965 por falta de anunciantes.
Na França, Sergio Larrain, que era amigo de Julio Cortázar, um dia revelando os filmes que tinha feito pelas ruas de Paris viu, ao fundo em uma foto, um casal. Ampliou o negativo e viu que o casal fazia amor, encostado em um muro. Encontrou-se, mais tarde, com o escritor argentino e mostrou-lhe a ampliação. A foto serviu como inspiração para o conto Las babas del diablo, um dos cinco publicados em 1959 no livro Las armas secretas. O conto, por sua vez, inspirou o diretor italiano Michelangelo Antonioni que fez o hoje clássico e inspirador Blow-Up.
Nas palavras de Sire, a curadora da mostra, que trabalhou na Magnum desde 1982 e é diretora e uma das fundadoras da Fundação Cartier-Bresson, “para Larrain a fotografia erapoesia, não era de modo algum uma questão documental.”
Em uma carta que escreveu a um sobrinho em 1982, Sergio Larrain disse: “Siga o seu gosto e mais nada, acredite apenas no seu gosto… Quando tiver algumas fotos realmente boas, amplie e faça uma pequena exposição — ou um livrinho. Mande encadernar. E, com isso, vá firmando um chão. Ao mostrá-las, você se dá conta do que são, ao vê-las diante dos outros — é aí que você as sente. Fazer uma exposição é dar algo, é como dar de comer, é bom para os outros mostrar-lhes algo feito com trabalho e gosto. Não é se exibir, faça bem feito é saudável para todos”.
Letizia Battaglia: Palermo
Até 22 de setembro Sergio Larrain: um retângulo na mão
Até 25 de agosto
Instituto Moreira Salles – av. Paulista, 2424
Entrada gratuita