Prédio da Fundação Prada em Veneza foi completamente transformado pela instalação do artista Christoph Büchel
Das imensas contradições existentes na cena da arte contemporânea, a exposição Monte di Pietà, na Fundação Prada, em Veneza, é uma das maiores já vistas. Afinal, como uma grande marca de elite é capaz de patrocinar uma mostra tão radical que não só descontrói um palácio barroco do século 17, transformado em um imenso brechó decadente, como ainda faz a crítica às raízes do capitalismo.
Tudo isso é organizado pelo artista suíço Christoph Büchel, especializado em polêmicas, entre elas trazer para a Bienal de Veneza de 2019 um navio que havia sido afundado com centenas de migrantes líbios na costa italiana, em 2015. Apenas 28 teriam sido resgatadas. Barca Nostra, o nome da obra exposta na edição organizada por Ralph Rugoff, foi vista por uns como um monumento ao drama da imigração, por outros como oportunismo. Em 2015, Büchel chegou a transformar uma igreja veneziana em uma mesquita, mas alegando razões de segurança, a obra foi fechada em duas semanas.
Agora, o artista suíço revê a história do palácio Ca’ Corner della Regina, que tem tal nome por ter sido construído na área que pertenceu à família da rainha de Chipre, Caterina Cornaro, no século 15. Desde 2011, o imponente edifício é ocupado pela Prada, mas entre 1834 e 1969, ele funcionou como uma casa de penhores, o Monte di Pietá, onde a população pobre de Veneza buscava recursos para quitar suas dívidas.
É sobre ganância e dívida, dois pilares do capitalismo e da própria história humana, que a instalação do polêmico artista suíço, na Fundação Prada, se debruça. Todos os três pavimentos do palácio estão atulhados de todo tipo de material de uso humano, roupas, bolsas de luxo falsas (isso na Prada é bem irônico), bijuterias, móveis, cadeiras de roda, discos, e obras de arte – a parte mais divertida de se encontrar, já que elas não estão identificadas como tal, mas praticamente escondidas em meio a toda essa arqueologia do que poderia ainda ter algum valor de troca.
Os ambientes da Fundação foram convertidos em diferentes cômodos, organizados num cenários de a...
1 de 12
Estão lá uma valise de Marcel Duchamp, um conjunto com seis latas de merda de artista de Piero Manzoni, uma lousa de Joseph Beuys, gravuras de Marcel Broodthaers, uma caixa com cartas de Andy Warhol, um conjunto de caixas de Robert Filliou, um díptico de Ed Kienholz e um vídeo de Chris Burden, entre os contemporâneos que consegui identificar com a ajuda de uma monitora com boa vontade. A orientação não é para apontar o que é obra de arte.
Só esse grupo de obras já é uma exposição em si sobre a questão do valor na arte, mas só encontra esses trabalhos quem realmente se dedica. Agora, nenhuma deles chega perto do Retrato de Caterina Cornaro (1454-1510), a rainha (regina, em italiano) que dá nome ao prédio, realizada postumamente, em 1542, por ninguém menos que Tiziano Vecellio e que pertence à Galeria Uffizi, em Florença. A pintura tampouco está identificada e parece estar lá em um espaço de forma desleixada.
Diamantes
Mesmo o nome do próprio artista não aparece em nenhum momento da mostra e essa intervenção radical, mais do que propriamente uma instalação, faz com que o visitante de fato se sinta no que seria o acervo de uma casa de penhores falida. O espaço foi dividido em seções e, para dar a sensação do que seria um livro de registros de toda essa tralha, o artista conseguiu uma biblioteca de livros imensos e empoeirados, por serem seculares, da biblioteca de uma cidade do sul da Itália, que possuíam função semelhante. Curiosamente, entre 1975 e 2010, o palácio serviu como arquivo da Bienal de Veneza.
Não faltam objetos como grilhões reais, usados de fato durante o período que a Itália teve um papel colonial na Somália, trazendo assim o debate escravocrata como parte da construção do poder econômico e cultural a partir do capital. Esse tipo de sarcasmo, expor utensílios de violência de forma quase banal, faz parte das estratégias polêmicas de Büchel, como Barca Nostra.
Mas olhar para a história de Veneza e todo seu contexto é um dos trunfos importantes desta intervenção, já que a cidade sempre foi uma encruzilhada de misturas e intercâmbios comerciais e artísticos, o que fica patente na mostra.
Nessa bagunça toda, ainda está a obra The Diamond Maker, que Büchel concebeu como uma mala contendo diamantes feitos em laboratório. Os diamantes são o resultado de um processo de destruição e transformação de muitas obras em poder do artista, incluindo as criadas durante a sua infância e juventude e que contém seu DNA.
O palácio ainda tem áreas que simulam um quarto de controle, com dezenas de vídeos, uma sala de profissionais do sexo, outra para jogos online. Tudo, ou quase tudo, que diz respeito à troca de valores e dívidas está mapeado nesta delirante, envolvente, misteriosa, divertida, estranha e suja ocupação na Fundação Prada, Monte di Pietà. Adjetivos não faltam para definir Monte di Pietá. Nenhum deles jamais dará conta de descrever de fato o que é percorrer os três andares do Ca’ Corner Della Regina. ✱
Há anos que defendemos a relação com o “mundo que nos rodeia”, que o “homem e a natureza são uma coisa só” e ressaltamos “a importância que a natureza tinha para nós”. Ainda assim, desde a revolução industrial isto foi negligenciado, fazendo com que os recursos naturais estejam absolutamente em perigo. O descuido com as crises sanitárias e ecológicas trariam uma conta difícil de pagar.
Na década de 1990, o antropólogo, sociólogo e filósofo francês Edgard Morin, hoje com 102 anos, lançou um dos seus livros mais famosos Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Suas colocações revolucionaram sistemas de ensino, teorias pedagógicas e currículos escolares.
Em síntese, Morin postulou a necessidade de acabar com a concepção que estudava o mundo compartimentando o conhecimento em disciplinas estanques. Física, química, biologia, geografia, história, filosofia, arte. Morria aí a ideia de que se pudesse lidar da mesma forma com homens e mulheres do Tocantins, da Amazônia ou do sudeste brasileiro.
Na verdade, cada uma dessas coletividades pertence a biomas completamente diferentes, ecossistemas onde o ser humano, o clima, a flora, a fauna e os rios se relacionam em total interdependência. Além das diferenças de linguagem, que expressam saberes de cada região, estes grupos utilizam códigos e referências próprias, de histórias ancestrais.
A ideia do Pensamento Complexo começava a reverberar cada vez mais em diferentes circuitos do pensamento e ajudava a alertar para a importância de olhar nosso mundo como um todo. Mas isto estava longe de ser apenas uma reflexão filosófica.
O antropólogo francês Bruno Latour proferiu, a partir do ano 2000, uma série de conferências internacionais, compiladas no livro Diante de Gaia, Oito Conferências sobre a Natureza e o Antropoceno, dedicadas a debater e entender as enormes dificuldades que o homem tinha para tomar decisões internacionais e se organizar científica e politicamente perante as grandes mudanças que se estavam produzindo no planeta desde a Revolução Industrial.
O debate se centrou sobre a questão de estarmos ou não numa nova era geológica, o Antropoceno, um conceito em torno do qual ainda não há unanimidade entre os cientistas. Embora poucos deles duvidem do impacto da presença dos seres humanos sobre o planeta, da importância de se considerar o debate sobre o Sistema Terra, a comunidade geológica continua dividida. As mudanças climáticas e geológicas que vemos acontecer são suficientes para determinar que estaríamos numa nova era? E como nos comportar frente a isso?
Como parte dos seus esforços de trazer à tona estes debates, Latour fundou em 2009 o Médialab, laboratório interdisciplinar que une ciências, arte, política e tecnologia e chegou a ser convidado como um dos curadores da Bienal de Taipei em 2010.
Obviamente esta edição de arte!brasileiros foi perpassada pelas brutais enchentes que assolaram o sul do Brasil nos últimos meses, assim como os desmatamentos e as secas decorrentes do calor extremo vivenciado no país e em diferentes partes do planeta. O momento é de grandes incertezas e de muita fragilidade.
“Estamos mais perto [do colapso], mas não sabemos o quão mais perto”, disse, à agência Reuters, o oceanógrafo René van Westen, que faz pós-doutorado na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos. A entrevista de van Westen é destaque de um artigo segundo o qual o enfraquecimento da Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico (Amoc), nome técnico do sistema, poderá provocar fortes anomalias no atual regime de chuvas e no padrão das temperaturas até o final do século.” (Revista Pesquisa Fapesp, junho de 2024)
Esta edição traz opiniões, reflexões diversas sobre como lidar com as ameaças que nos rodeiam.
Em entrevista a Maria Hirszman, o professor Luiz Marques, historiador da arte, que chegou a ser curador do Masp e hoje se dedica a pesquisar os fenômenos contemporâneos, comenta seu primeiro livro de 2015, Capitalismo e Colapso Ambiental e O Decênio Decisivo – Propostas para uma política de Sobrevivência, no qual desdobra suas investigações de forma ainda mais propositiva, sublinhando mais uma vez que “o tempo é nosso maior inimigo”.
A artista-cientista Leticia Ramos estuda os diferentes movimentos do planeta e cria obras de extrema singularidade.
Christian Dunker analisa as diferentes concepções do que entendemos por catástrofe, tragédia e desastre, no caso como categoria clínica e estética.
Raphael Fonseca, curador da Bienal do Mercosul de 2024, que foi adiada pela catástrofe que viveu a cidade de Porto Alegre sustenta que, como forma de reação a tudo isto, “esta não será a bienal da enchente”.
A Bienal de Veneza não nos comoveu, mas a retomamos em reportagem de Leonor Amarante sobre várias obras importantes, pavilhões dignos de destaque. Já o professor Fabio Cypriano faz uma dura crítica à forma com que foi encarada a curadoria. Ao longo do trimestre ainda, até seu encerramento, voltaremos a abordar o assunto.
A importância da preservação da memória vem à tona em dois momentos na edição: no texto de Carlos Lemos acerca do livro Imaginária Brasileira na Coleção Orandi Momesso e na fala do crítico e curador paraguaio Ticio Escobar, que aponta: a experiência artística indígena, a exemplo do ishir Ogwa, tem um papel fundamental na salvaguarda das cosmogonias dos povos originários, por meio das representações que fazem de seus mitos e rituais.
Por fim, tentando ser coerentes com nossa forma de impulsionar a arte e os artistas, lembramos o que escreveu a maravilhosa professora e crítica da arte Aracy Amaral, em um dos seus primeiros livros, Arte para quê?: “O artista de nosso continente passa, cada vez mais, a se indagar sobre a função social de sua produção, seu público e como colocar sua obra a serviço das alterações da estrutura de uma sociedade injusta”. Boa Leitura! ✱
Dentre as centenas de obras que vi durante a temporada que passei para ver a Bienal de Veneza e as mostras paralelas, que não são poucas e muitas de fato espetaculares, uma delas me sensibilizou de forma muito especial. Foi o trabalho da dupla de palestinos Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme: Until we became fire and fire us (até nos tornarmos fogo e nos despedirmos – em uma tradução bem literal). Em setembro, eles estarão em São Paulo em uma exposição individual no espaço da Coleção Moraes-Barbosa.
Conheci os dois em 2014, quando da Bienal de São Paulo organizada pelo grupo de que Charles Esche era um dos integrantes. Naquela edição, como já em um prenúncio do que se vive hoje na cena da arte contemporânea, a logomarca do Estado de Israel foi questionada por diversos artistas, entre eles Basel e Ruanne, provocando uma fenda nunca resolvida entre direção da Fundação Bienal e curadoria.
Nunca é demais lembrar que, por conta disso, Charles e equipe, que em seu contrato tinham por missão curar o pavilhão brasileiro em Veneza, foram desincumbidos da função como simples punição, o que vem ocorrendo com muitos artistas e curadores que façam qualquer crítica a Israel, atualmente.
Desenhos feitos pelo pai da artista Ruanne Abou-Rahme, morto recentemente. O conjunto foi realizado em Jerusalém, nos anos 1970 e 1980, e aborda formas passadas e atuais de desapropriação e apagamento na Palestina
Com esse contexto em mente vejo que a mostra recupera desenhos feitos pelo pai de Ruanne em Jerusalém, nos anos 1970 e 1980, que tratam de maneira um tanto expressionista as formas passadas e atuais de desapropriação e apagamento na Palestina.
O pai faleceu recentemente.
Até nos tornarmos fogo está na mostra Nebula, organizada pela Fondazione In Between Art Film, que comissionou oito trabalhos, entre eles um dos brasileiros Cinthia Marcelle e Tiago Machado. Ela ocorre em um antigo hospital para pessoas carentes em Veneza, denominado Complesso dell’Ospedaletto. Antigo na Itália, é bom lembrar, representa sempre algo com três ou quatro séculos, como é o caso aqui. Uma forte cenografia delimita os espaços de cada obra, em geral apagando o que seriam as marcas da antiga função do edifício.
Contudo, nas seis salas onde estão as projeções e os objetos de Basel e Ruanne, a dupla preferiu manter transparências, deixando explícita a antiga função de hospital, como a lembrar que, na Palestina, hospitais se tornaram prisões para os sobreviventes e são permanentemente bombardeados.
Vista da instalação da dupla de artistas palestinos Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme chamada Until we became fire and fire us
Apesar do conteúdo dramático e avassalador, não é uma mostra triste. Nos vídeos, há muita dança. Dentro e fora de uma série de salas, arranjos de palavras, sons, imagens e luzes acumulam-se e dissipam-se progressivamente. A frase “Aqueles que cantam não morrem” aparece em um momento, como a lembrar da resistência possível pela arte.
Contundente, no entanto, é um pequeno texto, que acho importante reproduzir, pois ele sintetiza o significado da catástrofe da guerra:
Gaza, repetidamente, o genocídio destrói cada parte de nós. Hospital após hospital, é bombardeado, sitiado. Pais, mães, irmãs, irmãos, filhas, filhos, entes queridos são enterrados nos terrenos dos hospitais. O hospital se torna um cemitério. O hospital está sitiado, entes queridos morrendo por falta de oxigênio, falta de remédios, falta de comida e água. Dina Abu Mehsen é a única sobrevivente de sua família morta no hospital Nasser, onde estava sendo tratada quando uma bomba foi lançada na ala das crianças. O hospital está sob fogo de atiradores, as pessoas que estavam abrigadas no hospital têm que rastejar para fora, um homem rasteja o dia inteiro, um menino testemunha seu pai e irmão serem mortos por atiradores, consegue escapar, deixando seu coração com seu irmão e o pai foi martirizado fora do hospital Al-Shifa. O hospital se torna uma prisão. Pacientes demasiado doentes, deficientes ou idosos para sair ficam presos lá dentro, e alguns médicos que não foram detidos ou mortos permanecem com eles. Eles não têm água nem comida, o hospital está sitiado, eles estão presos em um quarto. O hospital é palco de um massacre, centenas de pessoas foram mortas, mutiladas e esmagadas sob tanques. Estas palavras são um fracasso total, não há palavras para compreender este horror insuportável e inimaginável. ✱
Anita Malfatti, Mulher de Cabelos Verdes, 1915-16 e Eliseu Visconti, Autorretrato, 1902. Fotos: Patricia Rousseaux
“Esta é a primeira vez que o trabalho de Mataaho Collective é apresentado na Biennale Arte”. A afirmação consta da legenda sobre a obra do grupo neozelandês, logo na entrada do Arsenale na 60ª Bienal de Arte de Veneza, com curadoria do brasileiro Adriano Pedrosa.
Essa informação, “a primeira vez em Veneza”, se repete na legenda da imensa maioria dos trabalhos dos 300 artistas selecionados por Pedrosa. É o tipo de comentário que deveria ser feito por terceiros, não pelo autor. Por isso mesmo, o que pode querer ser uma elegia à inclusão soa mais um autoelogio à própria curadoria.
Essa é a perversão cínica dos tempos neoliberais, onde o que deveria ser uma ação a favor dos artistas se torna, em verdade, puro marketing. Não é a primeira vez que a Bienal de Veneza é organizada por curadores de instituições e coleções, mas nunca ficou tão explícito o quanto um curador se vale do museu onde trabalha, no caso o Museu de Arte de São Paulo (Masp), para alavancar seu próprio desempenho.
1 de 3
Cavaletes de vidro, Lina Bo Bardi, Arsenale, Bienal de Veneza 2024
No núcleo histórico, Ione Saldanha, Bambus, 1960/70
Artistas e curadora do Pavilhão de Israel se negaram a abrir o Pavilhão enquanto não houvesse cessar fogo à Faixa de Gaza
Os cavaletes de vidro do Masp fazem parte da mostra, há coleções inteiras do museu, como os desenhos de Joseca Mokahesi Yanomami, e até mesmo uma obra em vídeo, do italiano afrodescendente Fred Kuwornu, que exemplifica pelos catálogos do Masp novas narrativas decoloniais, um elogio que acaba até suspeito, já que quem organiza a mostra é que está sendo glorificado.
Esses gestos egocêntricos poderiam ser minimizados se, do ponto de vista conceitual, a mostra de fato apontasse para o estado da arte atual, que é o que se espera de qualquer bienal de arte contemporânea. Contudo, com a pretensão de rever a história da arte pelo Núcleo Histórico, onde estão 189 dos 300 artistas, fica evidente que esta edição de Veneza acabou basicamente revendo um paradigma da tradicional exposição: fazer do mercado secundário seu principal parceiro.
Historicamente, a Bienal de Veneza tem grande dependência de galerias de arte, já que são elas que viabilizam boa parte da exposição que não conta com um orçamento significativo. Isso sempre foi o oposto do que sempre ocorreu na Documenta de Kassel, razão pela qual suas obras sempre foram caracterizadas por uma marca experimental. E é esse impulso que, sabemos, é o que dá oxigênio à arte contemporânea.
No entanto, o que caracteriza esta edição de Veneza é dar um passo atrás, ao expor uma imensa quantidade de trabalhos realizados no século passado, em boa parte em países do chamado Sul Global. Essas obras são, então, encaixadas na narrativa modernista, como se a inserção nesta história fosse de fato um conquista significativa.
O Núcleo Histórico, por exemplo, está dividido em três seções: Retratos (112 artistas), Abstrações (37) e Italianos em toda parte (40). Os selecionados em todas essas seções não estariam criando alternativas à chamada história oficial, mas suas inserções em gêneros e movimentos definidos pelos padrões ocidentais, acabam se tornando apenas uma lista de pinturas com vontade de participar do clube oficial. É caso dos brasileiros Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Candido Portinari e Di Cavalcanti, para citar apenas quatro. As obras escolhidas, respectivamente Estudo (1923), Figura Decomposta (1927), Cabeça de Mulato (1934) e Três Mulatas (1922) trazem pouca fricção à narrativa corrente.
Não se pode esquecer, é importante lembrar, que Pedrosa participou da histórica 24ª Bienal de São Paulo de 1998, que teve à frente Paulo Herkenhoff também com um Núcleo Histórico. A mostra teve sua importância justamente por fazer com que a história da arte fosse revista por meio de um conceito brasileiro, a Antropofagia de Oswald de Andrade. Agora, o Núcleo Histórico de Veneza apenas reduz poéticas de lugares tão distantes em benefício do cânone oficial.
Além do mais, ao expor estes trabalhos, especialmente aqueles no grande salão do Pavilhão Central, como um grande mosaico de trabalhos, parece mais uma instalação do que uma estratégia adequada para se observar cada trabalho com cuidado. Não seria esse gesto, novamente, apenas mais uma valorização do curador.
Quem ganha de fato é o mercado secundário, que agora vai atrás de fazer valer o carimbo de Veneza em suas obras nas feiras.
A título de exemplificação, esse carimbo é tão significativo que esculturas como a da paraguaia Julia Isidrez, essa no Núcleo Contemporâneo da Bienal, comercializadas em 2017 no Brasil por cerca de R$ 5 mil, estavam à venda em Art Basel 2024 por R$ 196 mil! Isidrez, não custa lembrar, já havia participado da Documenta de Kassel em 2012, que teve curadoria de Carolyn Christov-Bakargiev.
Estrangeiros em todo lugar
Além de tomar emprestada a ideia de Núcleo Histórico usada na Bienal de São Paulo, Pedrosa copiou o título de Veneza de outra mostra, o 31º Panorama da Arte Brasileira de 2009, organizado por ele mesmo. Mamõyguara opá mamõ pupé, a tradução para o tupi antigo da expressão foreigners everywhere, já havia sido apropriada da obra de mesmo nome do coletivo Claire Fontaine.
No Panorama, Pedrosa questionou o próprio sentido da tradicional exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo, até então voltada apenas a artistas brasileiros, para incluir oito estrangeiros que produziram obras no país. O debate sobre o que é ser brasileiro acabou sendo polêmico, mas foi uma fricção necessária e importante para rever o sentido do próprio Panorama.
Agora em Veneza, Estrangeiros em todo lugar, especialmente em seu Núcleo Contemporâneo com 110 artistas, evita o debate político, em um momento candente de imigração no mundo, particularmente polarizado, como é o caso da própria Itália, sob o governo da extrema-direitista Giorgia Meloni.
O curador dividiu o núcleo em quatro temas, criando quatro categorias para o artista: queer, “outsider”, autodidata e indígena. Existe de fato uma prática nas mostras organizadas por Pedrosa no Masp em simplificar o mundo em categorias: Histórias Feministas, Histórias da Loucura, Histórias Afro-Atlânticas. Essa operação sempre acaba reduzindo a leitura dos trabalhos a uma única ótica e essa estratégia se repete em Veneza.
O que compromete de fato esse tipo de curadoria é seu oportunismo, afinal é absolutamente relevante tratar de questões queer, indígenas ou de figuras à margem do sistema, e o sistema da arte vem sendo fortemente pressionado a estar atento a todas elas. Mas o que Veneza faz agora é cumprir um exercício formalista de inclusão, ao não contextualizar toda a problemática de cada um dos temas escolhidos, ao ficar na superfície do debate.
1 de 6
É um archivo multifrase, em movimento e em evolução composto por vídeos focados na relação entre práticas artísticas e ações políticas. O Arquivo foi apresentado mais de 15 vezes em diferentes países, comunidades e escolas. Na Bienal de Veneza o Arquivo da Desobediência, incorpora um Zoetrope – a máquina pré-filme que anima a imagem. A arquitetura dá origem a um espaço centrífugo que foi alimentado nesta ocasião por mais duas novas macro seções incluindo 40 filmes da Diaspora Ativism, que lida com processos de migração transnacional no contexto do neo-liberalismo hegemônico, como uma luta que impulsiona novas formas de habitar o mundo. Alguns deles são apresentados como uma ruptura do binarismo heterossexual.
O caso de Claudia Andujar, uma das artistas que “nunca participou de Veneza” é um caso exemplar. Suas fotos são exibidas junto aos desenhos de André Taniki Yanomami e Joseca Mokahesi Yanomami, em uma seleção de imagens internas das habitações, relegando o genocídio em prática há décadas na terra yanomami a um linha na legenda.
Um dos poucos momentos em que a política ganha espaço efetivo está no Arquivo da Desobediência (The Disobedience Archive), um projeto de Marco Scotini, desenvolvido desde 2005, com trabalhos em vídeo de 39 artistas, realizados entre 1975 e 2023. São obras potentes, mas que por estarem reunidos em um pequeno espaço, com muito interferência externa e alguns de longa duração, tem sua visibilidade absolutamente comprometida.
Nesse sentido, Estrangeiros em todo lugar se torna uma mais metáfora rasa da própria cidade de Veneza, afinal o que mais se vê são turistas em todo lugar, e do próprio significado de estrangeiro, nos termos do que afirma o curador no catálogo: “Não importa onde você se encontre, você é sempre verdadeiramente, e no fundo, um estrangeiro.”
Ora, essa é uma visão bastante individualista – olha aí o neoliberalismo – e oposta ao que apontava a Documenta, em 2022, ao se voltar para os coletivos como uma forma atual e necessária para se realizar uma nova sociedade.
Por isso, trata-se de uma edição um tanto melancólica, já que assim como busca reescrever a história da arte pelo acréscimo e não pela fricção, também trata de questões atuais por saídas que afirmam o gesto artístico como uma atitude isolada, já que mesmo artistas radicais como Claudia Andujar tiveram seu engajamento político obliterado.
Outra exceção na curadoria é o Museu da Antiga Colônia, do porto-riquenho Pablo Delano, uma complexa instalação que revê todo o passado de violência da ilha caribenha, a partir de imagens reais e da reencenação de situações que abordam o racismo e a exploração imperialista no limite entre o ficcional e o documental. Mais trabalhos desse porte teriam proporcionado uma consistência bem mais ampla à Veneza. ✱
Há quase duas décadas, Luiz Marques trocou aquele que foi seu principal campo de pesquisa – a história da arte e, mais especificamente, a arte italiana da Renascença – para abraçar um tema urgente e complexo: a crise ambiental avassaladora, que se configura como o grande desafio existencial do nosso tempo. Seu primeiro livro sobre o tema, Capitalismo e Colapso Ambiental (2015), faz um alentado balanço da situação, compila e destrincha uma quantidade avassaladora de dados e demonstra com clareza a conexão inexorável entre um modo de vida insustentável e seus efeitos absolutamente deletérios sobre a natureza. A obra, que já está em terceira edição e foi mais recentemente traduzida para o inglês, ataca o que Marques define como três ilusões concêntricas: o mito do capitalismo sustentável, a crença de que quanto mais excedente temos, mais segura é nossa existência e, por fim, a ilusão antropocêntrica, uma falsa presunção de superioridade da espécie humana.
Em entrevista à revista, o ex-curador do Masp e professor aposentado da Unicamp fala sobre as crises convergentes e aceleradas que colocam a humanidade diante da necessidade de uma profunda transformação, não sucumbindo a uma paralisia que se assemelha ao pânico.”
Há poucos meses, Marques lançou O Decênio Decisivo – Propostas para uma Política de Sobrevivência, no qual desdobra suas investigações de forma ainda mais propositiva, sublinhando mais uma vez que “o tempo é nosso maior inimigo”. E prepara-se para escrever uma terceira obra, em que pretende abordar as instabilidades mais recentes, o que vê como uma nova fase não prevista pelos modelos climáticos, precipitada pelas guerras.
Em entrevista à revista, o ex-curador do Masp e professor aposentado da Unicamp fala sobre as crises convergentes e aceleradas que colocam a humanidade diante da necessidade de uma profunda transformação, não sucumbindo a uma paralisia que se assemelha ao pânico, e sobre as possibilidades e limites de ação da cultura nessa questão. Afinal, como diz Antonio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas e citado na orelha de O Decênio Decisivo: estamos andando sobre gelo fino.
arte!✱ – Uma primeira curiosidade: o que o levou a fazer essa guinada no seu assunto de interesse, passando da história da arte para a nossa tragédia ambiental?
Já perguntaram muitas vezes isso, acho que é um processo mais ou menos lento. No começo não sabia responder, inventei uma narrativa da qual desisti, porque acho que ela não é muito real. Sei lá, as pessoas mudam. Responderia que não sei porque as outras pessoas não mudaram ainda. É uma situação de tal maneira avassaladora… Você é de tal maneira bombardeado com isso que, ou enterra a cabeça na areia, ou toma alguma atitude.
arte!✱ – Em seu primeiro livro você enfrenta logo dois grandes monstros: a crise ambiental e o capitalismo.
Porque não há dúvida nenhuma de que um sistema como o capitalismo, muito globalizado e expansivo, muito belicoso, é muito destrutivo. Ele se choca contra os limites do planeta. Seja do ponto de vista de recursos, seja do ponto de vista do equilíbrio do planeta. Os sistemas da biosfera têm equilíbrios que são dados. No holoceno você tinha um sistema climático bastante estável, relativamente previsível, com quatro estações ao ano, desde o final do último degelo. Esse sistema permitiu a agricultura, o sediamento de populações cada vez maiores em seus territórios. Ele foi sempre considerado como uma espécie de moldura, um dado das civilizações. Podiam ocorrer alguns eventos climáticos extremos, que às vezes destruíram uma civilização ou outra, mas não era um fenômeno global. Pelo contrário, o sistema climático era benigno para as culturas.
E aí você tem um sistema industrial como esse, que é excepcionalmente expansivo. Peguemos o carvão, por exemplo. Entre meados do século 18 até 1913 – às vésperas da Primeira Guerra Mundial –, a Inglaterra tinha aumentado sua produção 192 vezes. Isso nunca tinha acontecido na história da humanidade. Nunca nenhum sistema foi capaz de crescer a uma taxa exponencial dessas. Estamos já no cheque especial, roubando recursos do futuro. Agora há também a chamada transição para a eletrificação do transporte, levando a uma exploração brutal de todos os insumos para criar baterias.
arte!✱ – É uma falácia a ideia de crescimento sustentável?
Claro. Você tem uma enorme exploração do cobalto, de lítio, em alguns países muito pobres. No caso do cobalto, o acaso quis que grande parte do cobalto mais concentrado esteja na República Democrática do Congo, que está sendo brutalmente espoliada por causa disso. Você tem ainda as últimas fronteiras de recursos no mar e está claramente diminuindo a disponibilidade de recursos.
arte!✱ – Você diz que, quando as pessoas questionam a possibilidade de acabar com o capitalismo, responde: “O que seria mais irrealista: acabar com o capitalismo ou permanecer nele?”.
Exato. É fato que, de uma forma geral, a mentalidade que prevalece é a de que o capitalismo é um sistema dado e sem alternativa possível. Isso se explica em parte pelo fato de que a experiência socialista no século 20 foi muito malsucedida, gerou distorções enormes, crises, massacres. Com o fim da União Soviética e a conversão muito forte da China para o capitalismo, você perde referências históricas importantes ligadas à questão do socialismo. E isso só reforçou uma percepção muito triunfalista do capitalismo. Essa ideia da inevitabilidade do capitalismo tem ainda muito prestígio. Qualquer possibilidade de contestar esse sistema não é considerado exatamente realista, mas infantil, pueril.
arte!✱ – Como um destino manifesto. Você procura desconstruir essa ideia e menciona a existência de três ilusões concêntricas a serem superadas para que pensemos novos cenários.
Basicamente, o que percebemos é que todas as tentativas de corrigir esse rumo, os tratados internacionais da diplomacia, as pressões contra a destruição da biodiversidade, a luta contra a desertificação, tudo isso fracassou. Muito pelo contrário, estamos hoje mais distantes dessas metas do que quando esses tratados foram confirmados. É um fracasso. O que mais caracteriza os nossos dias é a aceleração. Eu diria mesmo que em alguns casos a precipitação, o caos mesmo. O Rio Grande do Sul é um dos exemplos. Se olharmos um pouco mais à volta, para além do Brasil, veremos que acontece exatamente as mesmas coisas em vários lugares do mundo. Os picos de calor hoje são cada vez mais letais. O serviço metrológico norte-americano considera temperaturas acima de 39,4 °C como especialmente ameaçadoras para o organismo humano, uma vez a pessoa exposta a elas por muito tempo. O Washington Post fez agora um artigo bacana sobre isso, mostrando uma série de países e o número de dias em que essas populações ficaram expostas a temperaturas iguais ou superiores a 39°C. E é muito difícil você definir que alguém morreu por hipertermia. Evidentemente a pessoa morre por outras razões, por outras causas que são determinadas em última instância por essa exposição a ondas de calor muito grande, mas a causa mortis não fica bem identificada. Em todo o caso, em 2022 os serviços meteorológicos na Europa – que conta com dados com maior acuidade e transparência – mostrou que 61 mil pessoas morreram no verão de 2022 em decorrência direta de pico de calor.
…não há dúvida nenhuma de que um sistema como o capitalismo, muito globalizado e expansivo, muito belicoso, é muito destrutivo. Ele se choca contra os limites do planeta. Seja do ponto de vista de recursos, seja do ponto de vista do equilíbrio do planeta. Os sistemas da biosfera têm equilíbrios que são dados.
arte!✱ – É uma guerra…
É uma guerra. E é claro que os países com menos recursos vão sofrer mais e antes. Mas acho que é uma grande ilusão achar que os países ricos estão ao abrigo dessas questões, sobretudo se você pegar todos os países do norte do Mediterrâneo, Estados Unidos, Sudoeste americano…
arte!✱ – O que poderia mudar essa consciência? Você falou dessa questão do calor, e me veio à mente algumas imagens recentes dos macaquinhos caindo das árvores do México. Uma imagem terrível. Você acha que o recurso ao apelo visual, pode ajudar as pessoas a adquirirem maior consciência do problema?
Está acontecendo muito isso no Kuwait já há algum tempo, onde muitas espécies – sobretudo as espécies domésticas, gatos, cachorros etc. – não conseguem proteção no verão e morrem de calor. Quanto à questão da imagem, acho que sim. Veja, nunca estudei arte contemporânea, estudava a história da arte num período mais recuado. Portanto meu conhecimento de arte contemporânea é o de um consumidor qualquer, não estou muito enfronhado neste assunto. Minha percepção é que a arte contemporânea só muito recentemente começou a ser atraída por essa questão de uma maneira um pouco mais metódica, um pouco mais generalizada. Claro que você pode dizer que existe o exemplo X, Y, Z. Mas quando você vai numa Bienal, por exemplo, essa questão começa aflorar agora nas últimas edições. Mas mesmo assim são manifestações de muito pouco alcance.
Filmes como esse Não Olhe para Cima ou Wall-E talvez tenham um impacto muito maior do que todos as elaborações estéticas da arte contemporânea. Esse tipo de elaboração tem uma capacidade de impactar, de uma maneira que não é necessariamente deprimente, tem um poder muito grande ação de mostrar a situação.
arte!✱ – Outro exemplo que me ocorre não sei se você viu, mas eu acho que é fascinante, é Caverna dos Sonhos Esquecidos, sobre as cavernas de Chauvet, na França, ao lado de uma usina nuclear, com aquela floresta tropical no meio da França. Aquilo é um retrato perfeito disso que estamos tratando, não?
É um filme super bonito, bem-feito. Eu gostei bastante desse filme também. Mas estamos descobrindo aqui e ali algum filme, não um gênero. O que nós temos hoje, que é de grande audiência, é um gênero pós-apocalíptico. Você tem filmes de distopia do futuro, em que a Terra está completamente detonada. O Preço do Amanhã, por exemplo, é um filme em que as pessoas vendem o seu tempo de vida. É um mundo destruído, essa estética do Cyberpunk. Basicamente uma sociedade de alta técnica e de baixo nível de vida, como Blade Runner, por exemplo. Um filme de 1982 que inaugura efetivamente uma fase importante, uma nova fase em que o futuro é imaginado de uma maneira muito negativa. Por outro lado, a série que talvez tenha feito o maior sucesso na televisão de todos os tempos, é Star Trek (1966), cuja tripulação era composta de várias nacionalidades, tinha um russo, um japonês, um escocês, uma negra, e assim por diante, todos eles liderados pelo Capitão Kirk, que era um americano branquinho e loiro. Tinha até um cara que era semi-humano, o Capitão Spock. Era esse o mundo do pós-guerra, um mundo em que a guerra tinha sido superada, havia um Congresso mundial que havia designado a missão do foguete para ir levar a humanidade para novos limites. Isso fez um sucesso extraordinário e é um dos últimos exemplos de um futuro imaginado positivamente. A partir de Blade Runner temos, ao contrário, uma reversão desse imaginário, que começa a ser pensado sempre cada vez mais de uma maneira mais negativa. E isso virou um novo gênero, muito associado à crise ambiental.
Inundação no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, Porto Alegre, Brazil
arte!✱ – E que corresponde à percepção geral, não? Se levantarmos os termos usados temos emergência, colapso, hecatombe, falência… A ficção científica está virando realismo?
Então, acho que como ela é muito fortemente produzida por Hollywood, pelo cinema americano – que permanece o cinema mais popular –, ela jamais coloca em questão aquilo sobre o qual nós estamos falando: esse binômio capitalismo x colapso. Não é necessariamente que eles saibam e ignorem. É que eles não pensam assim. A indústria cultural americana tem um limite que é muito claro: a ideia que você tem uma situação de injustiça, que pode ser corrigida no horizonte da democracia americana. E isso faz parte do mundo deles.
arte!✱ – Pode ser oportunista ou pode ser só essa paralisia semelhante ao pânico, que você menciona?
Isso se dá muitas vezes no âmbito do indivíduo ou de um grupo muito restrito de pessoas, que reage a uma situação maior. O que está em jogo é sempre uma tensão entre o indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos e um sistema de forma geral. Sempre aparece um cientista, que alerta para um problema, e governantes não levam em consideração o que ele diz. Mas ele tinha razão. E daí acontece então a catástrofe. Quando ela acontece você tem a mobilização da sociedade americana, que de alguma maneira leva à resolução do problema. Esse sistema é o que temos hoje na indústria cultural e ele é muito aquém de qualquer pretensão à uma análise mais estrutural da situação contemporânea. Essa produção pode ser muito melhorada, mas eu acho que ela tem limites também. E, de outro lado, uma produção mais analítica, mais reflexiva, não tem – ou raramente tem – um alcance, uma audiência de massa.
arte!✱ – Com um papel limitado, portanto?
Eu acho que isso faz parte de uma questão que me é muito cara, que marca muito uma divergência minha com muitos amigos e colegas, que têm um grande apreço pela arte contemporânea. Que é a ideia de que a arte, como fenômeno social, se transformou em algo muito menos relevante do que ela era no século 19 e para trás. Quando você pega uma figura como Nietzsche, por exemplo, que briga de morte com Wagner quando ele faz Parsifal, porque era um tema religioso, um tema cristão, aquilo era muito importante. Era ideologicamente, existencialmente muito importante. Imagine se agora alguém vai fazer uma briga, se um grande filósofo vai brigar com um grande artista por causa do tema que ele escolheu para fazer uma ópera. Você percebe que essa grande abertura, a permissividade, o culto à transgressão do limite, que é típico das artes de vanguarda, da tradição das vanguardas – o termo é um pouco paradoxal, mas é uma tradição – levou a que, de alguma maneira, a transgressão se banalizasse. Você tem, portanto, uma homogeneização de transgressões, e aquilo que é o modelo propriamente dito de uma exposição de arte contemporânea é um monte de estandes em que cada um transgride da sua maneira. Aquilo não é mais transgressivo, porque se você só transgride quando há uma norma. Não estou criticando, nem lamentando…
arte!✱ – Você está analisando essa contradição e os limites de alcance da produção contemporânea?
Peguemos a Divina Comédia, de Dante. É um poema nacional, popular, que as pessoas da geração dos meus pais sabiam de cor. Aquilo é uma arte erudita, é uma arte popular? É os dois ao mesmo tempo. Uma fachada de uma igreja gótica, é uma arte erudita, é uma arte popular? É algo com uma enorme capacidade de criar um senso de identificação, um senso de comunidade naquelas pessoas. Quando as pessoas entravam em guerra, elas iam e queimavam a igreja do outro. Queimar a igreja do outro é fundamental, para afirmar sua própria igreja… Esse tipo de relação entre o imaginário e a energia social é alguma coisa que hoje em dia não temos mais. Temos um entretenimento, que é muito legal, que é muito interessante, mas que não tem mais essa função, essa capacidade de dizer o que a sociedade pensa de si mesma, com a força que aquilo tinha, com a capacidade de levar à guerra. Acho que a arte perdeu essa centralidade. Paciência, aconteceu. Posso estar enganado, posso não estar vendo uma dimensão que talvez recupere isso.
É um fracasso. O que mais caracteriza os nossos dias é a aceleração. Eu diria mesmo que em alguns casos a precipitação, o caos mesmo. O Rio Grande do Sul é um dos exemplos. Se olharmos um pouco mais à volta, para além do Brasil, veremos que acontece exatamente as mesmas coisas em vários lugares do mundo. Os picos de calor hoje são cada vez mais letais. O serviço metrológico norte-americano considera temperaturas acima de 39,4 °C como especialmente ameaçadoras para o organismo humano, uma vez a pessoa exposta a elas por muito tempo. ”
arte!✱ – Talvez ela tenha sido deslocada, pelos conservadores, para o campo a ser combatido? Algo a ser aceito ou descartado de forma unívoca?
In totum! Você está falando aí no caso mais extremo do fascismo, da extrema-direita. Algo como o que Goebbels falava: “Quando eu ouço a palavra cultura, saco meu revólver”. É um pouco essa ideia. No caso da Alemanha dos anos 1930 era um pouco a reação àquilo que eles chamavam de “excesso de cultura”, porque a Alemanha naquele momento era um país fantasticamente embebido em arte, música, literatura, happenings… E o nazismo vai aparecer, portanto, como um destrutor. Mas eles vão fazer também a exposição de Arte Degenerada para mostrar que aquela arte era ruim, mas tinha uma arte boa, da tradição alemã. Ainda assim havia uma reivindicação importante de que a arte como um elemento importante. Na Exposição Universal de 1937, o estande da Alemanha nazista tinha esse lado épico, figuras muito musculosas, heroicas – aliás parecido com o realismo socialista. Acho que essa importância que a arte tinha nos anos 1930 ela já não tem mais. Se você pegar uma feira internacional qualquer, essa questão não está fortemente presente. Os caras vão mostrar o último computador que eles fizeram, a inteligência artificial, performances tecnológicas, basicamente. O imaginário artístico perdeu a sua linguagem. Mas acho que aquilo que você falou, a questão visual é muito importante.
arte!✱ – Sim, pensemos a imagem num sentido mais amplo…
Antigamente era quase a mesma coisa. Agora não é mais. Hoje artes visuais – nome atual do curso de artes plásticas – é um conceito mais amplo, É resultado do fim da academia, uma instituição que definia “até aqui é arte, além daqui não é mais”. Agora não tem mais isso, certo?
arte!✱ – Uma das ilusões que você diz ser fundamental questionar é a ideia do antropocentrismo, que está muito vinculada a essa discussão sobre arte. Faz parte do mesmo processo?
Isso faz parte de um processo que fez com que a antropologia começasse a ser uma disciplina na universidade que englobasse as demais. E a antropologia, que coloca muito fortemente a questão da relatividade entre as culturas, de que não existe uma cultura que a superior às outras, abre a porta para dizer que não existe uma espécie que é superior às outras. E a gente hoje percebe muito claramente. A ciência nos diz hoje que a diferença entre os humanos e as outras espécies, do ponto de vista da capacidade de simbolização, é uma diferença de grau, não é uma diferença de qualidade. Tudo bem, a gente é capaz de fazer uma equação complicada ou de compor uma sinfonia, e a minha gatinha não consegue. Mas a capacidade que as espécies têm de encontrar uma expressão no imaginário está se mostrando cada vez maior. Aliás, saiu no jornal outro dia que os elefantes são capazes de se chamar pelo nome. Eles têm autoconsciência. Temos a famosa declaração de Cambridge que mostrou recentemente a autoconsciência de um conjunto muito grande de espécies, portanto a concepção de ser um indivíduo, de se reconhecer no espelho e assim por diante. A questão do antropocentrismo está sendo cada vez mais identificada com a crise da própria civilização.
arte!✱ – O antropocentrismo também está conectado com essa ideia de arte de que falávamos.
A gente sempre teve uma espécie de sucessão, uma galeria de características que nos distinguiam das demais espécies. A característica mais importante, eu falo isso no livro, é que nós sabemos que vamos morrer. Eu acho que a minha gata não sabe que ela vai morrer. Isso te dá um traço muito distintivo. Outro é a linguagem, óbvio. Essas duas coisas estão muito próximas. E a gente produz lixo. As outras espécies não produzem lixo e sim nutrientes para outras espécies. E a gente produz plástico, produz substâncias químicas que são muito estáveis e, portanto, não são suscetíveis de serem integradas no ciclo de degradação e renascimento. Isso é um traço muito característico nosso. As outras características são compartidas: a gente faz guerra, os outros animais também fazem; a gente tem uma capacidade de simbolização incrível, eles também têm, algumas vezes fantasticamente. Às vezes você vê um peixinho que faz todo um desenho na areia para atrair a fêmea e ela olha para aquilo, não acha bacana e vai procurar outro macho. Ninhos de alguns passarinhos têm uma característica claramente estética… O que estamos percebendo hoje é que tivemos uma enorme ilusão, de que nós éramos uma espécie qualitativamente distinta das outras espécies. E, portanto, o planeta virou um recurso nosso. Temos o direito de dispor do planeta como um meio para o seu fim. Nós somos a finalidade, e isso é claro que é uma ilusão.
arte!✱ – Daí a importância da importância de discursos de quem não está contaminado por essa lógica, como os povos originários?
Acho que um dos grandes elementos que mostram um avanço grande – não tivemos apenas regressão – é a presença do discurso indígena na política brasileira. Dez, 15 anos atrás era motivo discussão entre três antropólogos. Hoje eles têm uma presença, não diria no centro da política brasileira, mas não dá mais para eles serem ignorados. Têm uma voz firme e crescente, a meu ver. Não só os indígenas, mas também os negros, também as mulheres, os LGBT… Você tem um monte de comunidades que são cada vez mais presentes. Minha única reserva é que isso não deveria nos fazer perder de vista uma certa universalidade da espécie. É bacana que você tenha um grito de identidade e que ela se faça ouvir, que a diferença seja considerada uma coisa positiva, mas a diferença não significa necessariamente que você desreconheça o outro como parte de alguma coisa.
arte!✱ – Uma coisa que me intriga bastante é a questão dos “Verdes”. Não há uma certa hipocrisia em apoiar a guerra, o que aparentemente contribuiu para derrota deles nas eleições para o Parlamento Europeu? Será possível assistirmos nesse próximo decênio – que você diz ser decisivo – uma onda nova de renovação?
A gente não sabe. Tem que lutar por isso, tem que apostar no princípio de que isso pode acontecer. Tem alguns sintomas interessantes, como a presença dos indígenas sobre a qual estávamos falando agora, dos quilombolas, em suma, desses segmentos da sociedade que eram considerados marginais e que hoje reivindicam, com razão, uma centralidade e de alguma maneira conseguem se impor. E isso é uma lufada de oxigênio para a gente. Mas vamos conseguir dar um salto? É muito difícil que a gente consiga, embora seja importante apostar nisso. Porque até o século 20 era uma questão de encontrar um modo de vida alternativa ao capitalismo. Claro que isso permanece completamente verdadeiro. Mas há uma questão mais abrangente. O ponto é que somos uma civilização que deve tudo aos combustíveis fósseis. Para sairmos disso é preciso uma mutação civilizacional que é ainda muito maior do que contestar o capitalismo.
arte!✱ – Não é só uma batalha contra o “greenwashing” de grandes conglomerados. É muito mais profundo que isso?
Muito mais profundo. Contestar o capitalismo é uma das estações desse trajeto. Mas não é o ponto final. Porque você pode ter uma sociedade muito mais igual, com maior governança global etc., mas que ainda acredita que pode viver com os níveis atuais de consumo energético. E a gente não pode. E uma sociedade em que aqueles que não têm esse consumo têm que perder a expectativa de ter o consumo dos ricos. Quando a gente fala que a China acabou com 800 milhões de pessoas na extrema pobreza, como não bater palmas para isso? Mas qual é a expectativa do padrão de consumo? É ser todo mundo igualzinho à classe média americana? Não tem planeta para isso! Mas qual é o nível de consumo, o teto que a humanidade pode ter? Falamos muito em renda mínima. É fundamental, tem que ser muito maior do que essa que nós temos aqui. Mas é mais difícil falar na renda máxima. É preciso ter um teto muito mais baixo do que temos atualmente. Você tem que ter um imposto, que hoje o neoliberalismo chama de expropriatório, e que nos anos 1960, 1970 era um imposto normal nos países escandinavos. O Estado ficava com 80% do teu rendimento. Não estou dizendo qual é o número, mas é basicamente essa ideia de que você tem que ter uma sociedade na qual ninguém pode ganhar tanto, porque se esse cara ganha tanto ele tem um poder que é completamente assimétrico em relação a qualquer pretensão de democracia. Considerando uma situação como o Brasil em que você tem cinco ou seis pessoas que ganham mais do que os 50% mais pobres da sociedade brasileira, isso é de uma demência. E nos Estados Unidos é pior. Esse valor tem que desaparecer. Uma civilização na qual você tem mais do que aquilo que você precisa, isso é uma vergonha. Não é um mérito.
arte!✱ – O colapso não é só ambiental. Ele vem casado com o colapso social…
Um colapso da pirâmide de valores, um colapso ideológico. Uma questão que a gente vai ter que pensar, no meu entender, é que, com ou sem religião (não importa a religião, para mim isso é uma questão de convicção pessoal), vamos ter que ressacralizar a natureza. Você que ter um imperativo categórico, você tem que falar “não pode destruir uma floresta”, “não pode destruir um rio”, “não pode pescar demais”… A gente tem que ter um limite, restaurar o conceito de limite. Esse conceito é, a meu ver, a chave da mutação civilizacional. É preciso que o limite vire um valor positivo e não um valor negativo que você tem que transgredir.
arte!✱ – Uma das várias narrativas míticas a que você recorre é o da transgressão das Colunas de Hércules. Ou à imagem de Ícaro como metáfora da humanidade…
Exatamente. Carlos V, no século 16, transforma o conceito de Colunas de Hércules, que era um limite intransponível, para um conceito que ele vai chamar Plus Ultra e que vai ser seu emblema. Ou seja, ele ultrapassou as Colunas de Hércules, e é por isso que ele é meritório. Os gregos conheciam apenas um terço do mundo que nós conhecemos. E, portanto, nós somos melhores que os gregos. É, portanto, essa ideia de matar o modelo civilizacional. Enquanto no frontão do templo de Apolo em Delfos está escrito Nada demais. A ideia de limite, a ideia de que a hybris é fundamental.
arte!✱ – Valorizar essa quebra de limites é o nosso valor fundamental e também o veneno?
E o veneno. É isso que, a meu ver, tem que mudar. É preciso resgatar a ideia da virtude e da prudência novamente. A prudência não é valorizada, foi considerada algo próxima do covarde, o homem que não tem audácia, aquele que não tentou e, portanto, não conseguiu ser mais que os outros… A gente tem que ter uma sociedade em que prudência é uma bela coisa. O autocontrole é um valor tipicamente da Antiguidade. Porque o Júlio Verne tinha uma expressão típica do otimismo do século 19: “Tudo que a mente humana pode conceber, o engenho humano pode realizar”. Maravilha! Mas ele deve realizar? A gente pode imaginar uma coisa, mas temos que pensar que talvez não seja o caso de realizar aquilo que a gente concebeu, porque é imprudente. Você tem que incluir dentro da sua cogitação qual é o perigo, o princípio de responsabilidade, o princípio de precaução. Ícaro é aquele cara que quer voar mais alto do que o pai. E não é para ele fazer. O pai sabe alguma coisa, representa uma tradição, um saber sedimentado. Tem que ter uma tensão entre inovação e conservação e a gente perdeu esse equilíbrio, perdeu essa tensão que era criativa e que agora passa a destrutiva. Se eu sei fazer a fissão nuclear, eu faço uma bomba.
arte!✱ – E eles usam o termo bomba tática, como se não fosse nada.
É bem mais forte do que a de Hiroshima. Estamos voltando para um nível de enfrentamento que é demencial. Discuto muito com os amigos meus sobre a questão da guerra da Ucrânia e, longe de mim, ser um filoputiniano. Pelo contrário, acho que é um ditador sangrento da KGB, mas você tem que entender que existe alguma coisa mais importante, que é a sobrevivência da humanidade, do que saber se a Rússia está certa ou está errada. Ela não devia invadir, está bom, mas também a Otan não devia transgredir naquilo que ela mesma tinha se definido. Não acho que a gente tem que dar medalha de ouro, prata e de bronze para quem é pior, numa espécie de Olimpíada macabra. A gente tem de pensar na paz, que é um valor mais importante do que saber quem tem razão na guerra da Ucrânia. Não importa quem tem razão na guerra da Ucrânia se você tem diante de você uma potencialidade cada vez maior de uma destruição terminal. É uma guerra entre quatro potências nucleares! O conceito de risco está muito desvirtuado.
arte!✱ – Precisamos encontrar novas formas de combate nessa janelinha que você nos deu de dez anos e que é muito pequena. E olha que ela já começou a contar…
Bem menos. O que temos diante de nós é uma ultrapassagem de um crescimento da temperatura global de 1,5º C, cujos impactos foram muito subestimados. O próprio IPCC (International Panel on Climate Change) fala isso. E a cada décimo de grau que você aumenta, o impacto é desproporcionalmente maior do que o último décimo de grau que você ultrapassou. Então o impacto entre 1,5º C e 1,6º C é muito maior do que entre 1,4º C e 1,5º C.
arte!✱ – E quando passamos essas barreiras fica muito mais difícil reverter o estrago…
E você tem o desencadeamento do que eles chamam de alças de retroalimentação. Uma vez que você desencadeia um processo de degelo na Groenlândia não tem maneira de você parar aquilo, entendeu? Há uma irreversibilidade que é catastrófica. Agora, se você consegue atuar de alguma maneira para desacelerar este processo, você ganha tempo para adaptação, que é fundamental. Tempo é a chave da adaptação.
Luiz Marques. Professor livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Foi curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo. atualmente exerce o cargo de professor Senior de Humanidades e Ambientalismo na Ilum – Escola de Ciência do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energias e Materiais)
arte!✱ – Seu livro mais recente, O Decênio Decisivo, é uma releitura do Capitalismo e Colapso Ambiental ou são obras distintas?
Eu diria que sim, O Decênio Decisivo parte do Capitalismo e Colapso Ambiental, mas ele é um livro politicamente mais propositivo. A introdução do Capitalismo e Colapso Ambiental falava que não era sua intenção propor alternativas. O ponto do livro era tentar explorar o máximo possível a relação que existe entre um certo modo de produção e um certo efeito desse modo de produção. No segundo livro eu estava tentando fazer exatamente “propostas para uma política de sobrevivência”, que é o subtítulo do livro. E o terceiro livro, que eu estou escrevendo agora – nem sei o título que eu vou dar para ele ainda –, parte da ideia de que nós entramos agora numa outra fase, uma fase de aceleração ou de precipitação, que está nos levando já uma situação em que os impactos são maiores do que os modelos haviam previsto. E, em grande parte, não por culpa dos modelos climáticos e outros, mas porque eles têm por premissa que você mantenha uma certa regularidade do comportamento. E quando você tem uma situação de guerra generalizada, de proliferação de conflito, em que você bloqueia completamente qualquer proposta de cooperação internacional, de governança global, a situação se complica. O que vemos agora, ao contrário, é o estímulo a uma desconfiança cada vez maior entre os grupos sociais. Não sei se você está acompanhando os relatórios do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), que acompanha ano a ano os investimentos em armamentos internacionais. Agora em 2023 eles alcançaram 2,4 trilhões de dólares. No ano de 2022 tinha sido 2,2 trilhões de dólares, ou seja, tivemos um aumento de mais ou menos 200 bilhões de um ano para outro, o maior desde 2019. Isso sem levar em consideração todos os investimentos em orçamentos secretos, aos quais não têm acesso, mas por certo existem.
arte!✱ – E o que eles desovaram com essas duas guerras estão querendo produzir algo mais moderno, a “nova coleção”…
Exatamente, renovar seu guarda-roupa. E isso aí mostra claramente que estamos numa extensão de precipitação muito grande. A guerra é “o” fenômeno através do qual tudo se precipita. Mesmo que a gente não acabe numa guerra nuclear, a destruição da natureza, a intoxicação dos organismos, você mina o terreno, você mina o oceano, você tem efeitos que se prolongam por décadas e impedem qualquer progresso, no bom sentido do termo. Acho que estamos, desde o final do segundo decênio, desde a pandemia mais ou menos, numa nova quadra.
a gente sabe quais são os mecanismos, por que que a gente não é capaz de solucioná-la? A gente tem inteligência para isso, capacidade de educação para isso, a gente aprende rápido, somos seres sociais… Não tem desculpa para a gente simplesmente se deixar desaparecer ou se arruinar completamente por uma coisa que estamos produzindo e não sabemos porque estamos produzindo. É isso que tem que ser a raiz da indignação!”
arte!✱ – Diante desse quadro a pandemia até parece uma coisa fácil, um pequeno tropicão…
A gente já mais ou menos normalizou a pandemia. Eu não sei, por exemplo, por que milagre não houve ainda uma grande zoonose, uma grande nova epidemia na Amazônia. Você desmata aquilo de uma maneira tal, entra em contato com um monte de novos organismos, que são ponte de um monte de vírus que, se conseguirem passar para os humanos, terão ganho a sorte grande.
arte!✱ – Também temos esses vírus que reaparecem com o degelo.
Sim, congelados lá no Ártico, na Sibéria… O antraz, que matou não sei quantas renas lá na Sibéria, matou gente também, foi liberado pelo degelo. Mas aparentemente isso não foi muito divulgado. Tudo bem, é um grupo social muito isolado. Estamos numa situação muito complicada. E falar sobre isso sem tentar ao mesmo tempo propor alternativas é muito niilista. Não é essa a mensagem que tem que ser passada, mas ao contrário: Nós somos os produtores dessa crise. Portanto, somos responsáveis por sermos capazes de superá-la. Não é um meteoro! Se a gente produziu isso, a gente é capaz tem que ser capaz de alguma maneira de colocar um limite.
arte!✱ – É o freio de emergência, expressão com a qual Walter Benjamin define o conceito de revolução e que você cita…
Sim. Porque além de a gente ser o causador disso, a gente sabe que é o causador. O que é diferente de outros povos, que por uma razão ou por outra, desencadearam alguma crise, mas não sabiam de onde ela vinha e faziam estátuas para os deuses para tentar resolver. Não, a gente sabe! O mecanismo através do qual nós estamos colocando em risco a nossa existência. Então a gente produz esse mecanismo, a gente sabe quais são os mecanismos, por que que a gente não é capaz de solucioná-la? A gente tem inteligência para isso, capacidade de educação para isso, a gente aprende rápido, somos seres sociais… Não tem desculpa para a gente simplesmente se deixar desaparecer ou se arruinar completamente por uma coisa que estamos produzindo e não sabemos porque estamos produzindo. É isso que tem que ser a raiz da indignação! ✱
A artista Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin
A exposição Quase circo, de Carmela Gross, em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, possui um grau de opacidade que nos obriga pensar sobre o que podem explicitar aqueles objetos e instalações ali dispostos. Constituída por obras tão densas, desde o início a exposição foge das típicas mostras fast food, muito comuns hoje em dia. Quase circo não se confunde com essas exposições “engajadas” que encharcam vários espaços de arte da cidade, compostas por obras interessadas em sublinhar apenas o óbvio, em detrimento de qualquer dimensão poético/política mais complexa. Neste sentido Quase circo deve ser caracterizada, para começar, como um antídoto contra a mediocridade que anda assombrando o circuito de arte da cidade.
A primeira reflexão que a mostra detona diz respeito ao lugar onde ela ocorre: justamente o Sesc Pompeia, um dos espaços mais emblemáticos da cidade de São Paulo. Concebido pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, o Sesc Pompeia – produzido durante os anos 1970 e aberto em 1982 –, desde sua inauguração, significou uma aposta no futuro da cidade e do país, um marco da arquitetura comprometida com a regeneração do Brasil enquanto nação democrática.
Não percebo a presença dos trabalhos de Carmela naquele espaço tão simbólico como uma junção feliz da sua poética com a de Lina. Pelo contrário: para mim, o que amplia a potência de Quase circo é a oposição entre a confiança no futuro que Lina projetou naquele espaço e o compromisso com o presente, visível nos trabalhos de Carmela, como o lugar ideal para a revolta.
É como se Lina, com o Sesc Pompeia, jogasse a vida para a frente, enquanto Carmela relembrasse a todo momento que dificilmente teremos um devir, se a transformação não ocorrer agora, na urgência do presente.
Enquanto o edifício do Sesc Pompeia expressa confiança no futuro, as peças e intervenções de Carmela explicitam que, caso a revolta não irrompa, nossa contemporaneidade permanecerá fixada num eterno presente, violento e sem escapatória.
Ao contrário de Lina, que apostou numa arquitetura revolucionária, rumo à utopia, ao futuro, as peças e instalações de Carmela assumem que já vivemos a distopia, que ela é o agora e o aqui. Suas produções não pregam a revolução, como as de Lina, e sim a revolta, a transformação imediata do presente (Não é à toa que a mostra prima por desviar quase tudo para o vermelho, até A Negra (1997-2024).
1 de 4
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin
'A negra' (1997), de Carmela Gross. Foto: Gal Oppido
***
Outra questão que a exposição apresenta e que, de alguma forma, amplia e complementa a primeira é que, apesar de ser composta por objetos, gravuras, projeções e instalações, Quase circo é desenho.
O desenho sempre definiu a poética de Carmela Gross: uma artista que manifesta seu posicionamento sobre o real usando como fundamento os elementos da gráfica e suas extrapolações visíveis, tanto em seus trabalhos bidimensionais, quanto expandidas pelas peças tridimensionais e instalações que exibe.
O que é aquele “impenetrável” Roda Gigante (2019/24), a não ser um desenho no espaço, linhas que possuem como ponto de chegada (ou de partida) as ruínas de uma cidade que é, ao mesmo tempo, edificação e desmonte? Roda Gigante é um trabalho fundamental para politizar de novo – e sob outro viés – aquilo que se convencionou chamar de “arte participativa”.
1 de 2
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia.
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia.
E o que é Rio madeira (1994/2024), a não ser um conjunto de linhas configurado por traços vermelhos e verdes no chão – margeando o espelho d’água – um desenho retondulante?
E as Escadas vermelhas (2012/24) – traços-luz no espaço?
As obras de Carmela são a própria afirmação da gráfica em plena arte contemporânea: ponto e linha/traço e mancha, e é com tal conjunto restrito de elementos (às vezes revestidos de cor, às vezes não) que a artista interfere no real, o desmonta e o reconfigura.
***
Estranho afirmar que o trabalho de Carmela em tese nega a eficácia projetual da arte, na medida em que afirmo que toda sua produção é desenho. Como seus trabalhos, sendo desenhos, duvidam do futuro? Não seria o desenho puro vir a ser?
Quando Carmela produz seus trabalhos em neon, o uso da luz acaba por represar (não aniquilar, mas conter) o caráter projetual que caracteriza todo desenho, na medida em que a luz converte as linhas em formas latejantes, formas que acabam por deliberadamente confundir a objetividade dos traços que lhe deram origem. Exemplo: Luz del fuego (2018/24), que é uma mancha luminosa carregada de sentidos que pulsam em ritmo próprio.
***
Bem concebida e exibida, para mim o ponto alto da mostra é Bando (2016/24): manchas verdes impressas sobre folhas de zinco dispostas em um corredor construído com madeirite vermelho.
O que são aquelas manchas? São nuvens, continentes imaginários? São silhuetas de monstros, de animais?
Caminhar por aquela espécie de corredor vermelho, que remete à cidade sempre em construção e desmonte, é entender que, se os neons latejam nas outras peças e instalações presentes na exposição, nas impressões de Bando, as formas também pulsam, sempre no limiar entre o reconhecível e o irreconhecível.
Por outro lado, seria impossível caminhar por entre aquelas formas gravadas e não lembrar que Carmela teve que trabalhar muito até chegar àquele resultado. Naquelas impressões sobre zinco estão os Carimbos produzidos pela artista no final dos anos 1970, o Projeto para a construção de um céu, do início dos 1980, os Quasares, de 1983, os Buracos, dos anos 1990 e tantas outras obras em que os esquemas de representação deliberadamente perdem em objetividade. São, também puros vir a ser, puras indicações da necessidade de se revoltar contra o estabelecido, o já esquematizado.
***
Para finalizar estes comentários, sublinho que a dimensão política da produção de Carmela, presente em Quase circo, não se encontra de jeito nenhum numa mensagem da qual cada trabalho de arte é apenas o meio para expressá-la. Pelo contrário: o caráter político de sua produção é o resultado do entrelaçamento entre a poética da artista e o fazer plástico/visual que ela produz na concepção/execução de cada uma daquelas obra.
Decididamente os trabalhos de Carmela não tematizam, eles são a política.
O sociólogo Luiz Galina, atual diretor do Sesc São Paulo, comenta, em entrevista exclusiva, a sua trajetória junto a Danilo Santos de Miranda e o legado que levará adiante. Foto: Matheus José Maria
Desde novembro do ano passado, quando assumiu o cargo de diretor do Serviço Social do Comércio (Sesc) no estado de São Paulo, o sociólogo e economista Luiz Galina vem ressaltando, em publicações numa rede social, a importância de renovar compromissos históricos da instituição, em suas múltiplas frentes de atuação, sobretudo no âmbito da cultura. Nas imagens, vemos os encontros que teve com a presidente da Funarte, Maria Marighella, com o músico Hermeto Pascoal e a ministra da Cultura, Margareth Menezes, entre outros.
Com uma trajetória de mais de 50 anos no Sesc, em que atuou como orientador social, gerente de finanças, superintendente administrativo e consultor técnico, Galina ocupa agora o cargo que pertenceu, a partir de meados dos anos 1980, ao carioca Danilo Santos de Miranda, morto em outubro do ano passado. A instituição está em plena expansão: ao longo dos próximos dez anos estão previstas ampliações de unidades existentes e aberturas de novas. Dentre elas, a de Franca, que terá forte atuação em questões de sustentabilidade. Na capital, há grande expectativa para as aberturas no Parque Dom Pedro II e a unidade que vai ocupar o antigo prédio do Mappin, uma aposta da instituição para ajudar a revitalização do centro da cidade.
Galina começou sua carreira no Sesc ao lado de Miranda. Juntos, trabalharam no programa chamado Unidade Móvel de Orientação Social (Unimos), em que equipes de três orientadores sociais viajavam, por cerca de um mês, para um município do estado levando consigo “projetor de cinema, material esportivo, bolas, redes, uniformes, toca-disco, uma coleção de LPs, livros, mimeógrafo etc.”, ele conta.
“Íamos por esse interior afora, a cidades em que não havia unidades fixas do Sesc, que eram poucas na época. Havia em Bauru, São José dos Campos, Ribeirão Preto, meia dúzia de cidades. A gente chegou a ter em torno de 100 orientadores sociais distribuídos nas diversas equipes. Esses orientadores começaram depois a trabalhar nas unidades, com essa filosofia de escuta, de ouvir as demandas, de ver o que mais era importante para cada localidade, para cada cidade e, de certa maneira, essa filosofia de trabalho se incorporou ao jeito do Sesc ser a partir das décadas de 1970 e 1980, algo que alimenta toda essa dinâmica do nosso trabalho”, afirma.
Leia, a seguir, mais trechos da entrevista de Galina à arte!brasileiros.
UNIDADE MÓVEL DE ORIENTAÇÃO SOCIAL
A gente ficava de um mês a um mês e meio em cada cidade, dependendo de seu tamanho, e lá nós conversávamos com as lideranças no campo da cultura, da arte, do esporte, da saúde. Nós nos instalávamos num local cedido e perguntávamos o que eles gostariam de fazer. Aí vinham várias ideias. “Vamos fazer um seminário, vamos fazer um ciclo de cinema etc.”. Falávamos qual era nosso menu e perguntávamos o que eles gostariam de fazer. Obviamente, às vezes vinham ideias além do menu que a gente preparava. Era uma atividade que começava com uma escuta.
SESC E O LEGADO DE DANILO
Eu participo dessa história desde sempre. Desde o começo, quando eu entrei como orientador social, eu estou impregnado dessa cultura que formou a mim, formou o Danilo e a tantos colegas. E demos continuidade. O Danilo liderou esse aperfeiçoamento do nosso quadro técnico, na formação, na especialização. Nosso quadro gerencial tem uma formação, assim, incrível. Desde a graduação, pós-graduação, nós temos hoje mestres, doutores. Quase todos os nossos gerentes tiveram alguma experiência, ou várias experiências, no exterior, por exemplo. Isso traz um repertório muito rico.
É claro que mudam os processos. O tamanho vai impondo mudanças. Mas a nossa raiz não muda. O nosso DNA organizacional não muda, está impregnado neste quadro gerencial e neste quadro técnico. Nós temos nesse quadro hoje de 8.200 empregados, uma força muito poderosa e muito ativa de competência profissional voltada a essa missão de educação permanente, de apoiar o desenvolvimento das pessoas, de colaborar, um trabalho conjunto com outras instituições.
Danilo Santos de Miranda, morto em 2023, e Luiz Galina, em registro de 2019. Foto: Matheus José Maria
GOVERNANÇA
Estas entidades, Sesi, Senac e Senai, foram criadas na década de 40 do século passado. Na mesma época veio o Sesc, em 1946. Foi uma ideia precursora e pioneira dos empresários de então, lideranças que hoje participam da CNI, Confederação Nacional da Indústria, da Confederação Nacional do Comércio. Na Segunda Guerra mundial, o fluxo de importação da Europa para o Brasil ficou interrompido. Os alemães afundavam tudo, então o Brasil tinha que se industrializar. Para industrializar, precisava de mão de obra. A população, que era predominantemente rural, começou a vir para as cidades, grande parte analfabeta, grande parte sem educação para morar em cidades. Então esses empresários entenderam que, se quisessem industrializar o país, precisavam formar profissionais e também cuidar da mão de obra.
O Sesi e o Sesc surgiram, e muitos de seus programas iniciais eram dedicados à saúde. O Sesc teve maternidade, clínicas de exames laboratoriais. A ideia era boa, mas como financiar? Os empresários se predispuseram, então, eles próprios, a fazer uma contribuição. Para que essa ideia se concretizasse, levaram essa proposta ao governo, para que o governo criasse uma lei que tornasse a contribuição dos empresários e das empresas obrigatório. Porque eles sabiam que, se fosse voluntário, não haveria um aporte de recursos suficiente. E aí foi a primeira entidade então foi o Senai. Gestão privada da entidade com contribuição compulsória. Isso é a nossa característica até hoje.
O nosso decreto de criação e o nosso regulamento, que veio depois, é sábio, porque cada estado define a sua programação. Não há uma definição central de que todos os estados têm que fazer isso, isso e isso. Há um leque de programas. Por exemplo, todos os departamentos regionais do Sesc no Brasil, com exceção de São Paulo, investem na educação formal. Escolas, ensino fundamental, básico e médio. O Sesc de São Paulo falou lá atrás que não iria entrar nessa área porque já havia uma rede estadual, já havia redes municipais. Então, quem nos antecedeu na década de 1950, decidiu investir em cultura, esporte e lazer. E quando em educação, na educação extracurricular.
A âncora dessas entidades, primeiro, é o reconhecimento da sociedade e do papel que elas conquistaram ao longo da história. Isso é fundamental. Seja no campo da formação profissional ou seja no campo do desenvolvimento sociocultural, vamos dizer assim.
FINANCIAMENTO
Existem projetos na Câmara e no Senado que interferem na nossa arrecadação, por isso nunca estamos tranquilos. Isso sempre existiu. Mas a maior ameaça que nós vivemos foi durante a Constituinte. Há um artigo na Constituição brasileira que diz o seguinte: o que é descontado na folha de pagamento, uma parte do empregado, outra parte do empregador, esse tem que ser exclusivo para financiar a Previdência pública. Se esse artigo tivesse prevalecido sozinho, acabariam as contribuições para essas entidades. As lideranças, Confederação Nacional do Comércio e Confederação Nacional da Indústria, da época, entenderam que não podiam deixar essas entidades acabarem desse jeito. Se não tiver financiamento, não tem sentido. Essas entidades não vão conseguir continuar operando vendendo serviços.
A sociedade teria de mobilizar, criar uma emenda popular e levar para a Constituinte. Assim foi feito. Colheu-se mais de um milhão de assinaturas, e na época não havia internet. A gente montou barraquinhas nas praças, essas entidades todas se mobilizaram no Brasil todo e os presidentes da CNC e da CNI na época literalmente levaram um caminhão de abaixo-assinados e entregaram lá para o Mário Covas, que era o relator. Em função disso, foi colocado o artigo 240 da Constituição, que diz o seguinte: aquele artigo que diz que a contribuição empresarial é exclusiva para financiar a previdência pública, há uma exceção. As contribuições para financiar os serviços sociais autônomos, esse é o nosso nome oficial, e os serviços de formação profissional continuam a receber essa contribuição. De uma ameaça, nós nos fortalecemos, porque hoje temos uma âncora constitucional. Alguns especialistas dizem que essa seria uma cláusula pétrea.
ARRECADAÇÃO
A nossa receita depende da massa salarial paga pelas empresas de comércio, serviço e turismo. Se o número de empregados está aumentado, com carteira assinada, a nossa arrecadação cresce. Se o salário dessa massa melhora, se melhora pela quantidade e pelo valor do salário médio que as empresas pagam pro seus empregados. Se isso cresce, nós vamos bem. Claro, há momentos em que isso não cresce tanto quanto precisaria crescer, às vezes isso diminui, essa oscilação do mercado de trabalho. Aí que está a nossa base de evolução da nossa arrecadação. Nós tivemos momentos em que isso não cresceu, às vezes caiu, e aí a gente teve que se ajustar. Mas nós temos uma gestão muito cuidadosa, uma reserva financeira para que esses ajustes se façam sem precisar demitir. A nossa essência é esse conjunto de 8.200 empregados. Claro que o prédio é importante, mas a nossa equipe, você vai lá em São Caetano, que é uma unidade pequena, uma casa que a gente adaptou, essa equipe é maravilhosa, ela desenvolve atividades em praças públicas, ruas. Porque a competência profissional que é importante. Se nós tivermos um prédio bonito e não tivermos um profissional bem preparado, não acontece nada. O prédio por si é frio.
GESTÃO
Nós temos um foco muito importante nas análises dos custos. Temos uma arquitetura muito bem estudada e resolvida, usamos sempre nas nossas construções materiais de primeira. Uma pessoa desavisada pode perguntar por que o Sesc usou tal granito. Para não ter que fazer várias vezes. Então nós temos um cuidado na gestão do custo, para sempre ter um custo-benefício mais adequado. É sempre material de primeira. Porque sai mais barato. Você vê o Sesc Consolação, tem 60 anos aquela unidade. Claro, foi reformada várias vezes, mas ela está inteira. Atendem lá três, quatro mil pessoas por dia.
AS PARCERIAS
Estamos abertos a ouvir, a trocar ideia, a correalizar atividades com diversos parceiros, inclusive com equipes de órgãos públicos. Não temos qualquer problema de trabalhar na esfera municipal, na estadual ou mesmo na federal, quando há abertura para isso. Temos um relacionamento muito bom com as equipes das secretarias de cultura, de esporte, de educação. Aqui em São Paulo, por exemplo, temos um convênio com a Secretaria de Educação do município em que a gente recebe, nos meses de férias, crianças das escolas públicas para fazer visitas às nossas unidades, participar das atividades esportivas onde há equipamentos para isso etc. Temos um trabalho também relacionado às exposições, que é o de trazer estudantes e, em muitos casos, a gente contrata até o ônibus, porque às vezes há dificuldade para a escola em conseguir uma verba. Toda essa filosofia nasceu na Unimos, e eu e o Danilo entramos juntos nisso.
EXPANSÃO
Está estabelecido o nosso plano de expansão. Pirituba, Campo Limpo, São Miguel Paulista. E nós vamos iniciar, nos próximos meses, a obra em São Bernardo do Campo, um projeto de teatro da Lina Bo Bardi. Contratamos o Marcelo Ferraz. Vamos começar a construção do Sesc Limeira, estamos construindo em Marília um novo Sesc, e em Franca. Compramos um terreno em Sapopemba maravilhoso.
Há alguns anos, nos procuraram para que o Sesc assumisse o Teatro Brasileiro de Comédia. Começou há uns dez anos, eles procuraram o Danilo, e o Danilo falou com o presidente, e o presidente aceitou e disse que receberia. Mudou o governo, isso parou. No último ano do governo Bolsonaro, o pessoal da Funarte nos procurou novamente e falou, “olha, nós queremos efetivar essa concessão”. Aí houve todo um trabalho político do formato dessa concessão e o Sesc assumiu, então, o TBC. É uma concessão por 35 anos, renovável. E o que nos permitiu assumir o TBC, que está totalmente deteriorado. A faixada é tombada, inclusive. Mas o que nos permitiu é que nós compramos, ao lado, um terreno do Silvio Santos, um galpão. Então vai dar pra fazer uma unidade lá. É um lugar pequeno, mas vai ter o teatro, que tem 200 e poucos lugares, e ao lado do teatro tem uma unidade onde vai ter exposições, biblioteca, atividades físicas, um espaço para atender as crianças e será lotado de idosos também. Vai ser um centro de referência do teatro brasileiro.
SUSTENTABILIDADE
É um processo de aprendizado. Nosso cuidado começa no projeto arquitetônico. O projeto arquitetônico para futura unidade de Franca, prevê ventilação natural e iluminação natural, por exemplo. O cuidado no consumo de energia elétrica para se usar menos ar condicionado, menos iluminação, usar energia solar para o aquecimento da água, tanto dos processos industriais das nossas cozinhas, como para o aquecimento da água da piscina, da água dos vestiários e tal. Isso já está, nesse nível, incorporado aos nossos projetos arquitetônicos. Mas tem um mundo pela frente.
Tenho conversado com a nossa área que cuida das exposições, por exemplo, com a Juliana [Braga de Mattos, gerente de artes visuais e tecnologia]. Estive em Rio Preto, para a montagem da exposição com itinerância das obras da Bienal do ano passado. É muita madeira. Eu falei: “Juliana, como é que a gente faz para depois essa madeira ser reutilizada?”. Estou provocando as equipes, vamos pesquisar, vamos estudar, vamos ver o que está sendo feito mundo afora nesse sentido. Você viram a Casa Verde? A Casa Verde é um prédio que o Sesc comprou, era a sede da Riachuelo, e em outubro começamos a ocupá-lo. Lá fizemos uma exposição relacionada à música, ao carnaval, à arte popular, é uma parte do acervo do Museu do Pontal do Rio de Janeiro. Agora, vocês vão ver a montagem, é um prédio dentro do prédio. Na hora em que acabar a exposição, o que faremos com todo aquele material? O pessoal tem que inventar novas soluções: como eu desmonto aquilo em módulos, onde guardo e como reutilizo?
Na linha da sustentabilidade, procuramos sempre ter ações que sejam modelos. A gente quer servir de paradigma naquilo que faz para que outras instituições sigam. Se a gente tem condições para fazer isso, novas soluções para as exposições, isso depois será copiado. Os profissionais que trabalharam nisso levam esse conhecimento, expandem esse conhecimento e essa prática. Em Bertioga, por exemplo, nós temos uma RPPN, Reserva Privada do Patrimônio Natural. Pegamos um pedaço do terreno, grande, centenas de hectares. Havia lá uma cobertura vegetal original e nós propusemos uma RPPN, isso tem um processo legal de aprovação e já está aprovado pelas autoridades competentes. Ninguém mais vai poder mexer nesse área, na cobertura vegetal. Então isso foi um exemplo, e é importante essa RPPN em Bertioga porque ela está em um ambiente urbano. Ela está praticamente dentro da cidade de Bertioga.
A gente também tem feito muitos seminários, com convidados especialistas na questão climática. Esse é um assunto permanente, isso faz parte da nossa programação, e essa questão da sustentabilidade, nós temos uma gerência aqui dedicada a isso. E, cada vez mais, nas nossas unidades, estamos criando espaços adequados à educação para a sustentabilidade. É um movimento importante de renovação na nossa programação nesse sentido.
DIVERSIDADE
De alguns anos para cá, nós estamos atuando muito forte na questão da diversidade. Na questão racial, na questão LGBTQIA+. É um desafio, você não imagina a dificuldade de implantar certas ideias de respeito à diversidade. E nós estamos trabalhando, afinal, nós somos todos racistas, né? Estive conversando com uma senhora que é conselheira da SP Escola de Teatro, uma psicanalista negra muito atuante nesse movimento, Isildinha Nogueira. Ela, negra, falou, “nós todos somos racistas. Inclusive os negros.” Porque isso está entranhado, né? Então nós estamos trabalhando fortemente isso internamente. Garantindo que todos os funcionários possam ascender, desenvolvendo suas carreiras. Nós mudamos alguns critérios de recrutamento e seleção para garantir que todas as pessoas possam participar em igualdade de condições nos nossos processos. E temos a presença até de participantes descendentes de indígenas e indígenas mesmo. Nós os temos no quadro. Esse é o nosso DNA. O nosso conselho nos dá esse empoderamento. Com esse empoderamento que eu recebo do presidente e do conselho, eu trabalho muito tranquilamente.
IDOSOS
O Sesc foi pioneiro no campo do trabalho social com idosos. Nós comemoramos, ano passado, 60 anos. Fomos uma das primeiras entidades, se não a primeira, a reconhecer no idoso um cidadão como qualquer outro. Como é que isso começou? Começou no Sesc Carmo, próximo à praça da Sé, onde um técnico do Sesc observava as pessoas que iam lá almoçar, aposentados, e depois essas pessoas não tinham o que fazer. E ele pensou: vamos juntar essas pessoas, vamos bater papo. Aí começou o trabalho social com as pessoas idosas, a gente começou a convidar esses idosos a participarem. Nossos técnicos foram estudando países na Europa onde havia avanço etário na população. Então temos esportes adaptados, ginásticas adequadas. Temos um conjunto de conhecimento que nos permite atender bem a pessoas idosas. Nossos técnicos, lá na década de 1960, participaram ativamente da formação das políticas do Estatuto da Pessoa Idosa, por exemplo, que foi aprovado no Congresso Nacional. Nós tivemos uma participação importante na formulação dessa legislação. Atualmente nós temos, todo ano, uma campanha de prevenção de queda da pessoa idosa, porque é um problema seríssimo. Temos educadores especializados, espaços adequados, uma cultura de receber idosos. Anualmente, fazemos um encontro em Bertioga, em que reunimos pessoas idosas de todas as nossas unidades do estado de São Paulo para discutirem os problemas desta fase da vida. Para as pessoas também terem lazer, namorarem, brincarem, dançarem.
Júlio Martins da Silva, Sem título, Óleo sobre tela
foi ao leste do Éden, no território de Nod, que Caim ficou exilado após matar seu irmão Abel. Perdeu a abundância do paraíso e teve de criar seu refúgio, erguendo um novo lugar que pudesse habitar. É esta passagem bíblica, aqui bastante simplificada, que inspira a exposição Leste do Éden, que reúne nas galerias Estação e Millan, em São Paulo, os trabalhos de três pintores de diferentes gerações: o uruguaio Pedro Figari (1861-1938) e os brasileiros Júlio Martins da Silva (1893-1978) e Paulo Pasta. A ideia de exílio, no caso destes artistas, obviamente não se refere a uma punição por qualquer pecado cometido, nem a algum tipo de expulsão forçada de uma terra, mas sim a um sentimento que percorre suas obras e que remete ao deslocamento – seja ao lugar de onde se veio, mas que não mais existe, seja a um lugar para onde se poderia ir, mas que igualmente não é real.
Com curadoria de Antonio Gonçalves Filho, a mostra, que celebra os 20 anos da Galeria Estação, coloca assim em diálogo trabalhos de três nomes atuantes em diferentes momentos da história moderna e contemporânea, desde a primeira metade do século 20, no caso de Figari, até os dias atuais, no caso de Pasta. Todos eles com pinturas onde predominam a natureza, com raras figuras humanas, e nas quais não se tenta reproduzir paisagens realistas, fiéis às existentes. “Acho que o que costurou a exposição, mais do que propor um diálogo entre gerações distintas, é uma ideia de paisagem como este ponto fora do lugar”, explica Pasta. Em seus “exílios”, de onde pintaram, “todos os três têm com a paisagem uma espécie de criação de um lugar simbólico”.
1 de 4
Paulo Pasta, Sem título, Óleo sobre tela
Paulo Pasta, Sem título, Óleo sobre madeira
Paulo Pasta, Sem título, Óleo sobre tela
Paulo Pasta, Sem título, Óleo sobre madeira
No caso de Pasta, o local deixado para trás é a sua cidade natal, Ariranha, no interior de São Paulo, de onde saiu aos 17 anos de idade. Consagrado ao longo de 40 anos de carreira como pintor abstrato, dono de um universo cromático e geométrico marcante, o artista apresenta em Leste do Éden um eixo menos conhecido de seu trabalho. “Eu não sou um paisagista. Só pinto as paisagens do lugar em que nasci e cresci, é isso que me interessa”, afirma. “Tem sim uma nostalgia, mas principalmente tem vazio e distância. E quando você trata de vazio e distância, é inevitável ter a sugestão da melancolia, da solidão.” Se por um lado revive, nestes quadros, sentimentos antigos, explica ele, o “voltar para casa” é estar em um lugar que não mais existe. Um lugar, como completa Gonçalves, que precisa ser criado, “assim como fez Caim”.
Uma situação semelhante, mesmo que resulte em visualidade pictórica tão distinta, também dá as bases do trabalho produzido por Figari tantas décadas antes. Uruguaio que partiu para Paris nos anos 1920 – onde se aproximou de pós-impressionistas como Pierre Bonnard e Édouard Vuillard –, o artista seguiu pintando paisagens de sua terra de origem, o universo gaúcho, pastoral, os pampas, as festas populares uruguaias e os rituais afro do candombe. Como explica Gonçalves, mesmo adaptado à modernidade parisiense, “ele nunca pintou um carro, um trem, um edifício de arquitetura francesa. O que lhe fazia falta era a natureza, uma nostalgia desse lugar que ele conheceu na infância e na adolescência e que para ele não existia mais.” Em seus quadros expostos, deste modo, surge um universo que, embebido na memória, não existe na realidade, mas em um “tempo suspenso”, imaginado e criado.
1 de 4
Pedro Figari, Pericón bajo los ombúes, Óleo sobre cartão
Pedro Figari, Pericón bajo los ombúes, Óleo sobre cartão
Pedro Figari, Quenas, Óleo sobre cartão
Pedro Figari, A descansar, Óleo sobre cartão
O caso que certamente mais se diferencia, entre os três, é o de Júlio Martins, já que o seu exílio não se refere à memória de um passado nostálgico ou de um lugar abandonado. Parece factível pensar que Martins esteve exilado sem sair de sua própria terra, o Rio de Janeiro, dadas as condições sociais desfavoráveis, de carências e privações em que viveu. Neto de escravos africanos e filho de pais analfabetos, nasceu em Icaraí (Niterói) e começou a trabalhar cedo para sobreviver. Pintor tardio e autodidata, não teve uma formação erudita como Figari e Pasta. Curiosamente, não retratou o universo duro no qual habitava. Pelo contrário, seu deslocamento foi para paisagens de lugares perfeitos, harmônicos, simétricos, inalcançáveis em vida – mas, quiçá, em um futuro fictício ou em uma vida após a morte, como destaca Gonçalves.
1 de 4
Júlio Martins da Silva, Sem título, Óleo sobre tela
Júlio Martins da Silva, Sem título, Óleo sobre cartão
Júlio Martins da Silva, Sem título, Óleo sobre eucatex
Júlio Martins da Silva, Sem título, Óleo sobre eucatex
Nas palavras de Pasta, curador de uma exposição sobre Martins realizada na própria Estação em 2012, “com uma delicadeza extrema, ele constrói um mundo mais que possível, mas perfeito. Uma projeção deste mundo que não conheceu”. Ao que Gonçalves completa: “Imagine, dentro de um barraco, pintar essas coisas multicoloridas, simétricas, de uma realidade paradisíaca”. Ao longo dos anos, o artista alcançou relativo espaço no mundo das artes, chegando mesmo a participar da Bienal de Veneza de 1978. Ainda assim, permaneceu com reconhecimento muito aquém do que se poderia esperar dada a força de sua produção.
Leste do Éden, que se divide entre as galerias Estação e Millan, marca os 20 anos da primeira, fundada por Vilma Eid em 2004 e consolidada como uma das mais importantes do país voltadas a produções “não canônicas”, sejam contemporâneas ou históricas. Entre elas, o que se costuma chamar – por vezes de modo reducionista – de arte naif, popular ou vernacular, realizada em geral por artistas autodidatas, que se mantêm sub-representados no mercado. Ainda assim, o enfoque recente da galeria se mostra mais amplo que isso, incluindo também jovens artistas contemporâneos. A parceria com a Millan resulta da proximidade entre as duas casas, que já realizaram outra mostra juntas no passado. Em Leste do Éden, as galerias contam também com a colaboração da Galería Sur, de Punta del Este (Uruguai), que cedeu as obras de Figari.
Nos dois espaços paulistanos pode-se ver obras dos três artistas. “São complementares”, diz Gonçalves, explicando que não há algum tipo de divisão temática na montagem da exposição. Para o curador, de qualquer modo, percebe-se nas paisagens da Millan uma maior presença do céu, do azul, enquanto na Estação há um predomínio maior da terra e do verde da vegetação. Neste conjunto de pinturas, juntos os três artistas sonham seja com um país, como Figari, com um território rural, como Pasta, ou com um mundo perfeito, como Martins. “E talvez seja mesmo este o denominador comum entre eles: resgatar a placidez edênica associada ao sono eterno”, conclui Gonçalves.
SERVIÇO Galeria Estação: Rua Ferreira Araújo, 625 – Pinheiros
Galeria Millan: Fradique Coutinho, 1430 – Pinheiros Em cartaz até 8 de junho de 2024
Visitação: segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 11h às 15h Entrada gratuita
Fachada do Museu Paranaense, em Curitiba (PR). Foto: Heloisa Michele/MUPA
atento a questões urgentes da atualidade, como o resgate e o direito à memória, a reparação e a restituição, o Museu Paranaense (MUPA) iniciou em 2019, com a chegada da atual gestão, uma mirada crítica sobre sua trajetória à luz de perspectivas diversas. Fundado em 1876, em Curitiba (PR), o MUPA passou a ensejar um diálogo entre seu acervo, composto de aproximadamente 500 mil itens, e a produção artística contemporânea.
Nesse sentido, os núcleos tradicionais de pesquisa do museu (arqueologia, antropologia e história) são friccionados com o campo das artes. Por sua vez, a programação e as ações educativas do museu são orientados por quatro eixos: identidades múltiplas, ecologia/sustentabilidade, memória e cosmovisões.
Mostras como Retomada da Imagem (2021) e Necrobrasiliana (2022) foram resultantes da metodologia implementada há cinco anos na instituição. Na primeira, os artistas indígenas Denilson Baniwa e Gustavo Caboco e a equipe do MUPA se debruçaram sobre o acervo fotográfico do museu, um conjunto de cerca de mil fotografias, diapositivos, negativos fotográficos e em vidro, fotopinturas e outras representações. A partir de imagens que retratam diversas etnias indígenas do Paraná e da América Latina, Baniwa, Caboco e convidados criaram uma série de obras que têm como temas centrais a relação com a terra, os laços familiares e a resistência indígena.
Já em Necrobrasiliana, fruto de uma parceria do MUPA com a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), de Recife, o curador Moacir dos Anjos reuniu obras em que 12 artistas brasileiros reinterpretam e reinventam a brasiliana, conjunto documental pertencente ao museu, composto de produções dos séculos 16 e 19, de artistas, escritores e fotógrafos, como Albert Eckhout, Jean-Baptiste Debret, Johan Moritz Rugendas e Christiano Jr. A coletiva apresentou trabalhos de Dalton Paula, Gê Viana, Jaime Lauriano, Rosana Paulino, Rosângela Rennó, Sidney Amaral e Thiago Martins de Melo, entre outros.
Em entrevista à arte!brasileiros, Gabriela Bettega, diretora do MUPA, explica que o museu vem fazendo duas movimentações:
“Uma delas é aproximar a instituição e a sociedade; outra, alargar as fronteiras das disciplinas científicas do museu, através da contaminação com a arte contemporânea. A exposição Objeto Sujeito, atualmente em cartaz, é emblemática disso, ao reunir 12 artistas de diferentes regiões do país para pensar conosco o que é o Museu Paranaense, questionar quais foram as pautas que a instituição explorou ao longo de sua história e o seu próprio acervo”, diz Gabriela.
É possível traduzir em números o êxito desta aproximação do Museu Paranaense com a sociedade, em especial com os jovens: entre 2019 e 2023, o público do MUPA quase dobrou, pulando de 73.327 visitantes para 134.067. Secretária de Estado da Cultura do Paraná, Luciana Casagrande Pereira diz à arte!brasileiros que o museu sempre foi mais associado à história do que à contemporaneidade. Há um porém:
“O MUPA mudou bastante o seu perfil. Antes você entrava no museu e via apenas banners contando a história do Paraná. Agora ele está com trabalhando com muitas linguagens além das exposições. Lá você vê comunidades tradicionais sendo valorizadas, vê muita música, muita dança, cinema. O Programa Público, que foi iniciado recentemente, é como um festival, com uma programação intensa, dentro do museu”, conta Luciana. “O MUPA está gerando sementes. Até o final da gestão teremos um Museu Paranaense em cada macrorregião do nosso Estado, ou seja, teremos oito filiais.”
OBJETO SUJEITO
Concebida pela curadora Pollyana Quintella (Pinacoteca do Estado de São Paulo) em parceria com a equipe do Museu Paranaense (Felipe Vilas Bôas e Richard Romanini), Objeto Sujeito é uma exposição de longa duração que estabelece um diálogo entre mais de 140 itens dos acervos arqueológico, antropológico e histórico da instituição e as obras, em sua maioria inéditas, criadas por 12 artistas brasileiros: Arthur Palhano, Clara Moreira, C. L. Salvaro, Érica Storer, Frederico Filippi, Gustavo Magalhães, Gustavo Caboco, Isis Gasparini, Josi Souza, Laryssa Machado, Pedro França e Willian Santos. Metade deles tem algum vínculo com o Paraná ou teve alguma experiência no estado, uma condição defendida pelos curadores.
O título da coletiva vem do poema homônimo do escritor paranaense Paulo Leminski (1944-1989), publicado originalmente em 1987 no livro Distraídos venceremos, sua última obra poética em vida. O texto curatorial é encimado por um trecho do poema, que diz:
[…] você nunca vai saber o que vem depois de sábado quem sabe um século muito mais lindo e mais sábio quem sabe apenas mais um domingo […]
No texto, os curadores citam Waly Salomão – “a memória é uma ilha de edição” – e afirmam que “passado e futuro são vetores que se entrecruzam e se transformam continuamente […] campos de batalhas que não cessam, cujo espaço de significação simbólica se dá no próprio presente”. E prosseguem:
“Nesta exposição, as temporalidades estão interconectadas. Fatos e eventos foram selecionados não por sua excepcionalidade, mas pela sua historicidade, ou seja, caráter histórico transformador, que de forma explícita ou implícita dizem respeito à trajetória do Museu Paranaense: seus acervos e narrativas eleitas e propagadas ao longo do tempo.”
Em entrevista à arte!brasileiros, Felipe Vilas Bôas lembra que Objeto Sujeito é fruto de um trabalho iniciado em janeiro de 2023, em que o MUPA busca “se auto-pensar em suas formas de narrativas e indagar como ela lida com a questão temporal dentro da disciplina de História, um dos âmbitos de pesquisa que o museu tem em sua base desde a inauguração”. E continua:
“Objeto Sujeito quer, de maneira geral, discutir a produção de narrativas históricas, a sua relação com temporalidades distintas – seja o passado, o presente ou um possível futuro – e a maneira como elas estão entrelaçadas. A instituição questiona não apenas os acervos que ela mobiliza, as histórias que conta, mas também aquelas que reproduz”, diz Vilas Bôas.
1 de 3
Vista da exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Vista da exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Vista da exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Pollyana Quintella, curadora convidada para a exposição, ressalta que a disciplina da história não é uma narrativa cristalizada, mas que ela pede uma escuta. Cada tempo, diz, tem a sua própria ideia de futuro e de passado.
“Queremos entender como o presente remodela nossa compreensão da história. Para isso, a gente partiu de dois sintomas: um deles indica que nosso tempo padece de certo presentismo. A gente tem muita dificuldade de produzir memória, de elaborar experiências do passado, de fazer nossos lutos. E também temos dificuldade de produzir futuros que possam nos tirar das catástrofes que nos atravessam intensamente no século 21. Vivemos uma experiência muito marcada pelo aqui e agora”, pondera Pollyana. “Como é que nós, aliados aos artistas, conseguimos oxigenar esse imaginário do tempo histórico, tornando a experiência mais elástica, ou seja, conseguindo olhar para futuro e passado de forma mais saudável?”.
O segundo sintoma, prossegue Pollyana, seria a “fantasia de linearidade histórica que pauta o projeto moderno”. No século 20, afirma a curadora, esse conceito sustentava que tudo apontava para um progresso da história, que tudo para frente apontava para o mais evoluído, e tudo que apontava para trás seria menos interessante e menos sofisticado.
“Hoje sabemos que isso é uma ficção. Vivemos uma experiência de tempo espiralar que embaralha passado, presente e futuro. Há uma série de novos arranjos que surgem a partir da diversificação dos agentes que compõem a história, que vêm oferecer novas formas de narrar. Por isso convidamos artistas contemporâneos, com os pés no século 21, para responder a eventos tanto locais como nacionais que já compunham o acervo do MUPA.”
Pollyanna assinala que os trabalhos comissionados aos artistas passam a fazer parte do acervo do MUPA e que, dessa forma, Objeto Sujeito dá um passo à frente na atualização da coleção do museu, diversificando os modos de compreender a história. A curadora também destaca a expografia da coletiva:
“[Por meio da expografia] a gente escolhe discutir a história não apenas a partir do ponto de vista temático, mas a partir de uma perspectiva estrutural, na medida em que as obras não estão todas expostas nas paredes, lado a lado, conduzindo o visitante num percurso linear. Ao contrário, o que a gente tem aqui são ilhas de alumínio e concreto que embaralham o que é frente e verso, esquerda e direita, início e fim de determinado assunto, buscando inflamar nos visitantes a dúvida sobre qual o percurso que eles vão fazer. Que tipo de história eles vão costurar?”, questiona.
1 de 3
Vista da exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Vista da exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Vista da exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Em resposta à provocação do trio de curadores, os artistas selecionados apresentaram obras com variadas tipologias. O carioca Pedro França fez um trabalho de imersão no núcleo de arqueologia do MUPA motivando uma discussão da história a partir de uma “perspectiva mais alongada” a partir das eras geológicas, nas palavras de Pollyana Quintela. França fez oficinas de cerâmica com o público do museu e desenvolveu uma obra que integra peças de arqueologia da instituição, como fragmentos de sambaquis, à sua composição.
1 de 3
Obra de Pedro França na exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Obra de Pedro França na exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Obra de Pedro França na exposição "Objeto Sujeito", em cartaz no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
O paranaense Cleverson Salvaro ocupou um nicho do espaço expositivo, confinando-se atrás de uma parede, para discutir os regimes de visibilidade que compõem uma estrutura museal, segundo Pollyana. “O museu muito mais esconde do que revela. As reservas técnicas são muito mais recheadas de conteúdo do que as exposições que a gente vê”, diz. Neste exercício entre revelar e não revelar, Salvaro aborda a relação de poder sobre aquilo que chamamos de narrativas históricas, reconhecendo o papel do museu na construção delas.
1 de 4
Performance do artista paranaense Cleverson Salvaro na abertura de "Objeto Sujeito", no Museu Paranaense. Foto: Kraw Penas
O artista paranaense Cleverson Salvaro durante sua performance na abertura de "Objeto Sujeito", no Museu Paranaense. Foto: Kraw Penas
O artista paranaense Cleverson Salvaro durante sua performance na abertura de "Objeto Sujeito", no Museu Paranaense. Foto: Klaw Penas
Performance do artista paranaense Cleverson Salvaro na abertura de "Objeto Sujeito", no Museu Paranaense. Foto: Kraw Penas
Ainda numa discussão sobre museus, a paulista Isis Gasparini comprou uma série de objetos em uma feira que acontece aos domingos, na praça em frente ao MUPA. Em Vizinhança, um dos quatro trabalhos que apresenta, a artista misturou os objetos adquiridos a itens pertencentes ao acervo, sem identificação de origem, abrindo uma discussão acerca dos critérios que orientam a formação da coleção de um museu público. “Também me interessava discutir a ideia de anonimato, de histórias que se perdem ou que podem ser recontadas”, afirma Isis, em entrevista à arte!brasileiros.
Em uma parede do espaço expositivo, outros itens anônimos – “imagens que estavam numa espécie de limbo do acervo, sobretudo fotografias e recortes de jornal, muitos deles em duplicata ou sem registro”, segundo Isis – foram incorporados a um bloco de concreto na obra E então, ontem.
“De alguma forma, havia um desejo de descarte ou redirecionamento desses itens, mas isso é algo que depende de uma série de políticas do museu. Meu gesto foi devolver esse material ao museu, quase que num sepultamento de algo que já não estava visível aos olhos do público, que permanece ali como presença, matéria, corpo, mas que também não se revela como unidade”, explica Isis.
1 de 5
A artista Isis Gasparini junto a uma de suas obras expostas em "Objeto Sujeito" no Museu Paranaense. Foto: Kraw Penas
Obras da artista Isis Gasparini na exposição "Objeto Sujeito" no Museu Paranaense. Foto: Rafael Dabul
Obras da artista Isis Gasparini na exposição "Objeto Sujeito" no Museu Paranaense. Foto: Rafael Dabul
Obras da artista Isis Gasparini na exposição "Objeto Sujeito" no Museu Paranaense. Foto: Eduardo Macarios
Obras da artista Isis Gasparini na exposição "Objeto Sujeito" no Museu Paranaense. Foto: Rafael Dabul
Na obra 1 minuto, 72 passos, 45 metros, 1839 imagens, da série Plano-sequência, Isis reúne quadros de uma sequência panorâmica captada por ela no Museu Paranaense, também montados num bloco. Dessa forma, as imagens não se apresentam mais como unidades, mas também como uma forma escultórica.
Por fim, Isis apresenta o trabalho Véu, um díptico com duas imagens captadas em suas visitas ao MUPA, “sobretudo atrás das paredes, em espaços mais técnicos”. Nelas, a artista afirma ter condensado a “ausência de uma identidade”, na pintura de uma mulher cujo rosto não aparece, junto a uma espécie de paisagem, na verdade uma montanha de objetos encontrados no acervo. “Juntas, as quatro obras estão falando de invisibilidades, das problemáticas e dos paradoxos que envolvem a construção de narrativas dentro de um museu”, conclui.
Marcos Zacariades com fotos icônicas da cidade original
Por Fabio Cypriano e Patrícia Rousseaux, em Igatu
Parece improvável que uma cidade abandonada de pedras, Igatu, que chegou a ter mais de dez mil habitantes no século 19, no auge da mineração na Chapada Diamantina, e hoje com pouco mais de 400, seja sede para uma galeria de arte contemporânea. Mais surpreendente é que esta galeria tenha sido inaugurada em 2002 e, com uma programação ativa, que não só trate de arte, mas também da memória do local.
O soteropolitano Marcos Zacariades, 63, é o responsável pela iniciativa, em uma história muito particular. Funcionário da Caixa Econômica, nos anos 1980, ele resolve largar a carreira e a estabilidade financeira aos 36 anos, quando começa estudar na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Sua formação foi influenciada pelo cinema, onde Godard e Bergman eram figuras determinantes para o estudo da imagem. Na mesma época comprou um pequeno terreno em Igatu, distrito que pertence ao município de Andaraí.
“Encontrei esse lugar na minha segunda viagem à Chapada no ano de 1984 e me identifiquei”, relembra na sombra de um gazebo em ferro, projeto dele mesmo, na área externa da Galeria Arte & Memória. “Quando vim, parecia mais uma cidade fantasma, estava completamente abandonada”.
1 de 5
A galeria possui fotos icônicas da cidade original
A galeria possui fotos icônicas da cidade original
Marcos Zacariades, O Homem Feio Sonha Lindo, pedra sabão
Marcos Zacariades
Marcos Zacariades
Sua relação com arte, no entanto, é anterior ao próprio curso, já que ele se envolveu com a arte postal nos anos 1980, o que o levou a participar da 16ª Bienal de São Paulo, em 1981, quando Walter Zanini foi o diretor responsável e, em sua gestão frente ao Museu de Arte Contemporânea da USP estimulava a arte conceitual.
Zacariades formou-se em 2001 e, no mesmo ano, mudou-se para Igatu. Seu primeiro ano lá foi sem energia elétrica, não porque não havia fornecimento possível, mas ele se recusava a instalar um poste convencional de concreto em meio às ruínas de pedra, tombadas pelo patrimônio nacional. Sua casa é praticamente a última da cidade e, após ela, há dezenas de pequenas casas de pedra abandonadas, pois os garimpeiros construíam suas moradias em frente às rochas onde se encontravam diamantes – o ciclo durou cem anos, entre 1844 e 1945.
Para convencer o funcionário da empresa de energia ele chegou a chamá-lo para um almoço, e insistiu na importância em se manter os postes de ferro originários da rede telegráfica. “Eu ficaria mais tempo sem energia, se fosse necessário”, conta.
A opção em sair de uma cidade com tantos equipamentos culturais e vida artística como Salvador, se tornou uma estratégia eficaz para criar uma identidade própria, longe da disputa que metrópoles costumam criar. Esse isolamento não o impediu de ter sido premiado pela Taipei Artist Village com uma residência artística em Taiwan, em 2007, e pela Rockefeller Foundation com uma residência artística no Bellagio Center – Itália, em 2013.
Ao mesmo tempo, ao instalar uma galeria em um lugar tão particular e precário – no início dos anos 2000 nem havia posto de saúde ali – Zacariades mais que um artista se tornou em um ativista cultural.
Boa parte de sua obra, aliás, envolve habitantes da cidade, muitos deles relacionados com a mineração de alguma forma. É o caso do site specific“Penitentes da memória coletiva”, de 2007, uma instalação em uma antiga mina de diamantes, a Gruna do Brejo, a menos de um quilômetro do centro da vila. Lá, ele convidou quatro garimpeiros que tentavam reabrir a mina, que teria sido deliberadamente alagada por conta de desavenças entre antigos donos, a modelarem 44 corpos em argila, criando um memorial para os garimpeiros que lá trabalharam até o ano de 1950.A missão original do quarteto nunca foi cumprida, mas eles receberam um salário-mínimo por dois meses para criar a instalação. “Muita gente de Igatu ficou relembrando os nomes de antepassados quando abrimos a instalação, foi muito emocionante”, conta Zacariades.
1 de 7
Gruna do Brejo, uma antiga mina de diamantes
Zacariades acende dezenas de velas para iluminar o espaço, em um ritual que se repete cada vez que um visitante entra ali
Zacariades acende dezenas de velas para iluminar o espaço, em um ritual que se repete cada vez que um visitante entra ali
Zacariades acende dezenas de velas para iluminar o espaço, em um ritual que se repete cada vez que um visitante entra ali
Site specific “Penitentes da memória coletiva”, de 2007, uma instalação em uma antiga mina de diamantes, a Gruna do Brejo
Site specific “Penitentes da memória coletiva”, de 2007, uma instalação em uma antiga mina de diamantes, a Gruna do Brejo
Site specific “Penitentes da memória coletiva”, de 2007, uma instalação em uma antiga mina de diamantes, a Gruna do Brejo
Além de tudo, o lugar é muito especial, um lago com águas cor de Coca-Cola – é o padrão na Chapada Diamantina, circundado por rochas e plantas recebem o visitante, que precisa caminhar agachado por algumas dezenas de metros na gruna (assim se chama a escavação para o garimpo) até chegar a uma área de uns mil metros quadrados, com uma altura de ao menos dez metros. Lá estão, há 17 anos esses corpos em argila, agora bastante decompostos. “Criar isso foi custoso para mim, mas se eu não o fizesse, isso não existiria”, conta enquanto acendia dezenas de velas para iluminar o espaço, em um ritual que se repete cada vez que um visitante entra ali. As velas, aliás, estão incluídas na taxa de R$ 20 cobradas por um dos criadores e cuidadores da instalação, o Badega, que vive a poucos metros da entrada da gruna.
Nesses 22 anos em Igatu, Zacariades proporcionou muitas experiências a seus moradores, sempre preocupado com seu entorno.Durante a guerra do Iraque, que ocorreu entre 2003 e 2011, Zacariades decidiu fazer uma instalação que se chamou “Para uma criança em Bagdá. Ano 2003 DC”, usando as carrapetas do eucalipto e pediu para que as crianças o ajudassem a coletar essas pequenas peças e depois todos iriam tomar sorvete na galeria. Em uma semana, ele tinha 19 crianças no projeto. “Minha ideia era que o processo de produção fosse uma brincadeirae que um dia eles se lembrassem do propósito humanitário da obra, ainda que fosse a partir da lembrança lúdica do sorvete”.
Esse tipo de ativação de uma comunidade é uma prática rara, mas é o que faz a originalidade na carreira de Zacariades, assim como a própria galeria, que conta a história deste território por meio de objetos coletados ao longo dos anos. A parte histórica, aliás, está alocada em meio a ruínas e sem o teto de palha original, mas com projeto expositivo e iluminação sofisticados.
Vinho e arte
O espectro da produção do artista é bastante amplo, além de trabalhos nada comerciais como o que foi visto até aqui, ele trabalha ainda com vídeo e escultura. Sua obra tridimensional é marcada sobretudo por materiais encontrados na própria Igatu como restos de madeira. Em sua galeria há duas salas dedicadas à arte contemporânea, uma que permanentemente mostra sua obra, outra para mostras temporárias.
Foi lá que, há três anos, ele recebeu o gaúcho Fabiano Borré, que desde os anos 1980 está instalado com seus pais e tios, na Chapada de Diamantina, para a produção de alimentos. Tentaram de tudo, mas batata e café se tornaram o carro chefe da família, até que decidiram explorar um novo campo: o vinho, até então inédito na região.
Com o apoio da Embrapa, fizeram um projeto de vinícola ambicioso, com quase dez anos de experimentação e 53ha plantadas. A vinícola foi inaugurada em 2021, no meio da pandemia. Hoje com vinhos que incluem varietais e blends, a UVVA oferece desde espumante Nature e extra brut, Sauvignon Blanc, Chardonnay, Pinot Noire, Cordel (blend) e Diamã (blend) numa produção de já 120 mil garrafas para venda nacional e internacional com a segunda Safra de 2020.
1 de 10
No meio do projeto da arquiteta gaúcha, Vanja Hertcert, possível de ser comparado com vinícolas tradicionais de Mendoza, California ou França, Borré comenta que ao conhecer a obra de Zacariades, não teve dúvida de que ela também deveria fazer parte do projeto, preocupado em dar a ele uma ênfase essencialmente brasileira.
Numa conversa inicial o artista ocuparia um espaço livre com uma instalação. “Eu expliquei que não conseguiria realizar um trabalho grandioso em pouco tempo e, em diálogo, decidimos que seria feita uma mostra de obras já prontas”, explica Zacariades. Assim surgiu “O tempo espelhado”, que Paulo Herkenhoff visitou no ano passado, tendo escrito a respeito para ARTE!Brasileiros. Desde então, o curador está preparando um livro sobre Zacariades e esteve novamente na região quando estivemos ali.
1 de 2
Paulo Herkenhoff
Paulo Herkenhoff
A mostra, programada inicialmente para durar seis meses, já ficou um ano, mas não deve durar muito. Ela ocupa uma área destinada originalmente para o armazenamento do vinho. Com um projeto cujo potencial instalado é de 260 mil garrafas por ano, os espaços não mais darão lugar à exposição. Isso não significa que Zacariades ficará sem obras ali. “Nossa relação será permanente, arte aqui veio para ficar”, diz Borré.
Fabio Cypriano e Patricia Rousseaux viajaram a convite da Vinícola UVVA