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Incêndio atinge parte importante do Museu de História Natural da UFMG

Incêndio UFMG
Prédio que foi atingido pelo incêndio no Museu da UFMG. Foto: Corpo de Bombeiros.

Um incêndio no Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG atingiu uma das partes mais importantes do acervo da instituição, segundo a diretora pro tempore Mariana de Oliveira Lacerda. De acordo com o Corpo de Bombeiros, as chamas começaram na madrugada e as causas ainda não foram identificadas. Lacerda, entretanto, informou à imprensa que o prédio atingido tem monitoramento, detecção de fumaça e teve a fiação trocada em 2013.

A seção afetada abrigava três salas da reserva técnica, que recebe as obras do museu não expostas no momento e destina-se principalmente às finalidades acadêmicas e projetos de ensino desenvolvidos pela graduação e pós graduação da UFMG. Entre as coleções guardadas no prédio atingido estão as de paleontologia, arqueologia, biologia, alguns acervos de zoologia e de entomologia (estudo dos insetos). 

Ao jornal O Estado de Minas, a diretora afirmou que “agora é hora de arregaçar as mangas e fazer o que precisa ser feito, entender melhor a situação. O museu tem todas as medidas necessárias para enfrentar esse problema. Todos os pesquisadores e cientistas já estão envolvidos e comprometidos com a próxima etapa que vai ser justamente recuperar e entender qual foi o dano causado”.

Incêndio UFMG
Museu foi atingido pelas chamas ainda na madrugada. Foto: Corpo de Bombeiros.

Com uma área de 600 metros quadrados no Bairro Horto, na região leste de Belo Horizonte, o museu foi instalado em 1969, depois que a área pertencente a uma fazenda foi desapropriada no início do século e adquirida posteriormente pelo governo do estado. Entre os 265 mil ítens que compõem o acervo da instituição está o Presépio do Pipiripau, obra do artesão Raimundo Machado que é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O presépio é composto por 586 peças móveis, distribuídas em 45 cenas que contam, através do cotidiano de uma cidade, a vida de Jesus Cristo. Como estava em exposição, a obra não se encontrava no acervo e não foi atingida.

Pouco depois do ocorrido, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) entrou em contato com a Coordenadora da Rede de Museus e Espaços de Ciências e Cultura da UFMG, Letícia Julião, e enviou o protocolo de mitigação de danos, desenvolvido à época do incêndio do Museu Nacional do Rio (UFRJ) para as providências imediatas.

Para o emprego de uma força-tarefa para a atuação no salvamento dos bens atingidos, o Ibram também disponibilizou informações do seu banco de dados de cadastro de voluntários. Em nota pública, o instituto cobrou também uma identificação rápida das causas do incêndio para que os problemas possam ser enfrentados de forma eficiente, dando eficácia à proteção do patrimônio cultural.

Saiba mais sobre o cadastramento de voluntários aqui.

 

MASP Escola lança cursos inéditos para o mês de junho

MASP
"Man Walking Down", de Trisha Brown. Foto: Divulgação.

Neste mês de junho, o MASP dá continuidade à sua proposta educativa virtual abordando com temas a história da arte no Brasil; as mulheres artistas nos séculos XVI e XVII; uma introdução à arquitetura moderna brasileira; o corpo, território e liberdade a partir de artistas como Hélio Oiticica e Trisha Brown; e a violência sexual e literatura.

Os cursos têm custo de R$ 240 (com desconto de 15% para quem faz parte do programa Amigo MASP) e contam com cinco aulas cada. A realização das aulas será feita por uma plataforma virtual e o MASP disponibilizará um certificado para os alunos com pelo menos 75% de presença. Os cursos, inéditos, são lançados todo mês, eles se somam aos semestrais já existentes, que migraram para o ambiente virtual como parte da adaptação do museu à pandemia e sua tentativa de continuar difundindo seu acervo mesmo com as barreiras impostas pelo isolamento.

Uma história da arte no Brasil – de Tarsila a Bárbara é ministrado pela crítica de arte Luiza Interlenghi e apresentará uma introdução à história da arte brasileira com base em obras da coleção do MASP. Modernismo, concretismo, neoconcretismo, os impactos da abstração na arte brasileira são alguns dos temas que aparecem no curso cujo objetivo é esclarecer de que modo a arte brasileira contribui para a formação da nossa visão de cultura. 

Em Hélio Oiticica a Trisha Brown: um percurso sobre corpo, território e liberdade, a curadora associada do Instituto Tomie Ohtake, Priscyla Gomes pretende abordar a relação entre corpo e espaço partindo de ações, práticas e atores que marcam a cena artística deste e do século passado. Além dos artistas já citados no título, as aulas pretendem permear os trabalhos de Marina Abramovic, Robert Smithson, Richard Long, Flávio de Carvalho, Francis Alÿs, Nan Goldin, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca.

Mulheres artistas nos séculos XVI e XVII propõe o estudo de seis artistas italianas: Properzia de Rossi, Plautilla Nelli, Sofonisba Anguissola, Lavinia Fontana, Artemisia Gentileschi e Giovanna Garzoni. Violência sexual e literatura, utilizando de passagens literárias e teóricas emblemáticas, buscará trabalhar a sensibilidade ante narrativas de sexo e estupro, e mais à frente, pensar como seriam as representações de erotismo capazes de confrontar a misoginia e o racismo.

Por fim, o arquiteto Denis Joelsons faz uma breve Introdução à arquitetura moderna brasileira abordando as experiências pioneiras de Lúcio Costa, a consolidação da figura de Oscar Niemeyer, a pluralidade trazida pelos imigrantes como Lina Bo Bardi e as tensões no cenário nacional por meio de figuras chave da chamada “escola paulista”: Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha.

Para saber mais acesse este link.

 

Decolonial, des-outrização: imaginando uma política pós-nacional e instituidora de novas subjetividades (2ª parte)

Obra de No Martins que foi exposta na 21a Bienal Sesc_Videobrasil. Foto: Divulgação.

Leia aqui a primeira parte do texto de Márcio Seligmann-Silva. E a seguir a segunda parte: 

Histórias atravessadas: imagens dialéticas

Fazer das artes uma plataforma de construção de novas subjetividades e de lançamento de formas alternativas de convívio em comum implica uma integração de histórias recentes que ainda nos atravessam e nos dominam. No caso brasileiro, a história de nossa violência é paradigmática no sentido de ter sido e continuar sendo sistematicamente apagada. Grada Kilomba, em seu livro seminal Memórias da Plantação, afirma com relação a esse imperativo da arte e da escrita: “A ideia de que se tem de escrever, quase como uma obrigação moral, incorpora a crença de que a história pode ‘ser interrompida, apropriada e transformada através da prática artística e literária’”, citando bell hooks.[1] Apenas através de uma apropriação criativa de nossas histórias e narrativas da violência poderemos imaginar e moldar novos futuros. Como na imagem de Sankofa, um pássaro, cujo nome na língua Twi de Gana, significa “volte e pegue”, e que é replicado no símbolo dos Ashanti em forma de coração. Esse pássaro, associado ao provérbio “Não é errado voltar para aquilo que esquecemos”, porta um ovo precioso e é representado sempre com a cabeça voltada para trás, buscando forças no passado, nas histórias escritas com sangue e que são submetidas ao esquecimento, ao recalque, ao memoricídio.

A tarefa da reconstrução decolonial e artística da história é fundamental e, aqui, curadorias e obras como a que pudemos ver na 21a Bienal Sesc_Videobrasil são absolutamente fundamentais. A arte aqui se revela como essa segunda técnica de que Benjamin nos fala (capaz de produzir outra physis) e como uma fabulosa técnica de gerar narrativas com potencial de servir de suporte para ações transformadoras. Antes de mais nada isso se dá pela produção de novas subjetividades, não mais esvaziadas e preenchidas artificialmente por histórias eurocêntricas e incapazes de produzir autênticos sujeitos políticos. Essas obras e curadorias permitem um novo posicionamento subjetivo diante de questões chave, essenciais. Ao adentrar o espaço da 21ª Bienal e mergulhar na (política da) imanência de suas obras, nossos corpos e nossa autoimagem são afetados. A narrativa que denuncia as violências coloniais, falocêntricas, de gênero, racistas, de classe e contra a natureza serve de contraponto aos discursos oficiais que, em sua estrutura teleológica-progressista, procuram sempre justificar as ações do mercado e dos poderes centrais, como se tratassem de uma segunda e inexorável natureza. Essas contranarrativas querem-se abertas e voltadas para o empoderamento de subjetividades antes cerceadas, censuradas e tentativamente eliminadas. Essas novas subjetividades pós-coloniais e pós-nacionais exigem também novas responsabilidades.

Essas responsabilidades, podemos pensar com Benjamin, se voltam aos mortos (que foram sacrificados pela história do Esclarecimento e da primeira técnica), suas histórias e sonhos, e também para os viventes de agora e do futuro. As obras de arte promovem o “tempo do agora” de que Benjamin fala: o tempo de Sankofa. São “imagens dialéticas” definidas por ele como “a memória involuntária da humanidade redimida”.[2] Ou seja, o agora que está na base do conhecimento da história estrutura, para Benjamin, o reconhecimento de uma imagem do passado que, na verdade, é uma “imagem da memória. Ela aparenta-se às imagens do próprio passado que surgem diante das pessoas no momento de perigo”.[3] Nosso momento, não tenhamos dúvidas quanto a isso, é esse momento do perigo. Em vez da busca da representação (mimética) do passado, “tal como ele foi”, como as posturas tradicionais historicistas e positivistas – em uma palavra, representacionistas – da história postulavam-no, Benjamin quer articular o passado historicamente apropriando-se “de uma reminiscência”. O historiador, e isso vale para o artista e qualquer um que se volta para recolecionar essas imagens com passados que nos atravessam, deve ter presença de espírito para apanhar essas imagens nos momentos que elas se oferecem: assim, ele pode salvá-las, paralisando-as,[4] como um fotógrafo do tempo. Essa história construída com base na memória involuntária despreza e liquida o “momento épico da exposição da história”, ou seja, sua representação segundo uma narração ordenada monologicamente. “A memória involuntária nunca oferece […] um percurso, mas sim uma imagem. (Daí a ‘desordem’ como o espaço-imagético da memória involuntária)”.[5] Essa imagem é lida e, portanto, é hieroglífica: misto de palavra e imagem. Nas obras e na curadoria da 21a Bienal, a “desordem” e a não epicidade imperam. Cada leitor também torna-se um curador de segunda ordem. Citemos as palavras de Benjamin:

A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. […] A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura.[6]

O perigo é também o de cair no esquecimento, assim como o de se manter não lida e encoberta pela narrativa tradicional – épica, linear –, que apresenta, na visão benjaminiana, apenas o triunfo dos vencedores. Na imagem, em vez do narrado, encontramos uma densificação do histórico que o arranca do fluxo da dominação. O artista crítico cultural materialista agarra o ocorrido e mergulha-o no agora, como um fotógrafo que sequestra um aqui e agora e o arrasta para outros cronotopoi. Suas constelações tensas explodem as falsas totalidades da representação histórica tradicional que nos ordena.

Construir a solidariedade: a partilha entre o terror e a compaixão

Com Hans Jonas, vale lembrar, nossa responsabilidade se volta também para a Natureza como um todo, como lemos nas palavras sábias de Davi Kopenawa em seu livro-depoimento A queda do céu.[7] Em vez de levantar como estandarte de luta a promessa de um paraíso futuro, esses dispositivos artísticos atuam sobretudo pela construção de narrativas testemunhais que lançam uma nova luz sobre o passado e sobre nosso sistema de dominação presente. Nessas narrativas não se trata tanto de instituir novos heróis, mas de se desmontar a lógica da historiografia dos heróis e da hagiografia dos santos. Agora, parte-se de uma nova ética das relações micropolíticas, calcada em uma autoimagem de corpos fragilizados e abertos a estratégias de solidariedade.

Esse ponto é central, uma vez que a história da arte, assim como a história da política, pode ser retraçada como a história da construção de uma partilha na sociedade, levada a cabo sobretudo pelo dispositivo trágico, tal como ele já havia sido percebido e descrito por Aristóteles. Se para esse filósofo as paixões centrais despertadas pela tragédia são éleos e phóbos, compaixão e terror, o funcionamento do dispositivo trágico depende de conseguirmos calibrar os personagens e as situações passíveis de despertar essas paixões. Na definição mínima mas essencial da Poética aristotélica, lemos que a compaixão “tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer, e o terror, a respeito do nosso semelhante desditoso”.[8] Este “nosso semelhante” constitui peça fundamental da argumentação: o dispositivo trágico revela-se, com esta noção, como um meio de construção e de formação do próprio. No centro do processo trágico espreita um mecanismo de criação de tipos que tanto agrega os “iguais” como permite a exclusão do “diferente”. Esse dispositivo secreta o “próprio” e o “outro”. Portanto, se o conceito de “purificação” e o de “pureza” rondam, como um espectro, este dispositivo, é também porque ele é este meio de traçar identidades grupais.

Não por acaso, as ações catastróficas por excelência que devem ser imitadas pelo poeta trágico são descritas por Aristóteles como as que envolvem a luta entre amigos e familiares. Daí notarmos nas tragédias a tendência para a apresentação da história de certas famílias, como a dos labdácidas. Isto não apenas torna as ações mais facilmente compreensíveis e terríveis, como mostra Aristóteles, mas também, ao propiciar terror e compaixão, reforça-se o culto destas famílias míticas e de uma origem fundadora. O dispositivo trágico estabelece fronteiras entre os que merecem compaixão derivada do terror e aqueles que produzem apenas terror sem compaixão. Toda uma política da amizade e da inimizade[9] pode ser traçada a partir da aplicação desse dispositivo que, vale lembrar, atua em praticamente toda obra de arte. Portanto, o desafio de criar obras artísticas voltadas para romper com o círculo vicioso no qual nos lança o dispositivo trágico exige uma reinstauração das fronteiras do campo artístico, de seus agentes e personagens. Como promover solidariedade sem reproduzir terror e ódio? Inspirados em Brecht e em Harun Farocki, podemos pensar em uma empatia não trágica, em uma solidariedade que agrega, mas mantém o “efeito de estranhamento”.

A própria precariedade, que é a marca da arte contemporânea – com o uso de materiais considerados não nobres, muitas vezes abjetos, e com sua temporalidade que amiúde tende ao efêmero da performance – é também marca de outra antropologia na qual essa nova arte da memória e do desesquecimento se calca.[10] Ou seja, esses novos dispositivos artísticos, que se insurgem contra a imagem do museu como arquivo que constrói a ontologia do próprio – ou, ainda, contra a ideia do museu como prisão (já criticada por Flusser) ou necrotério de imagens estanques –, que demandam diálogo com a sociedade, que instauram novas subjetividades e narrativas, atualizando passados de modo a instituir contranarrativas de resistência, essas obras clamam por mudanças políticas profundas. Não é de se admirar, portanto, se a censura e a violência contra artistas voltem com intensidade neste momento.

João Pedro e George Floyd: a repetição traumática

Concluo essas palavras sob o impacto dos recentes assassinatos de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, ocorrido em São Gonzalo no dia 18/05/20, e o de George Floyd, de 46 anos, ocorrido em Minnesota no dia 25/05. Os dois foram mortos covardemente por integrantes de forças policiais e em situação de total vulnerabilidade. Estes dois eventos repetem a longa história de genocídios que é a Modernidade, desde a chegada dos europeus às Américas até os dias de hoje.

As obras de No Martins que fizeram parte da 21ª Bienal, da série #JáBasta!, podem ser lidas como uma contundente resposta a essa história da violência.

No Martins é parte de uma nova geração de artistas que compõe a contemporânea arte negra afrodescendente brasileira. Essa série #JáBasta! funciona como um catalizador para formular as demandas políticas antifascistas e contra a necropolítica que têm atuado sobre a população negra desde os tempos da escravidão. A impressionante força e originalidade da arte negra brasileira contemporânea responde à terrível ascensão de neo-fascismos que repetem hoje seus desígnios genocidas. Essa arte profundamente decolonial, produz uma ruptura da cumplicidade entre o “dispositivo estético” e o “dispositivo colonial”. Ela diz um basta ao cubo branco (por demais branco) e a todos os classicismos.

Não se pode mais falar de modo inocente de “democracia racial” ou comemorar nossa cultura “sincrética” e a “miscigenação” sem perceber o trauma que está na origem dessa hibridização. Com as mudanças profundas ocorridas no campo das artes nas últimas décadas do século XX ocorreu uma ascensão do sujeito, do agente da arte, que antes estava em parte submetido ainda ao campo da representação: ele era representado. Uma série de artistas afrodescendentes, quase todos formados em artes visuais, e coletivos artísticos passaram a interagir na cena cultural brasileira desse ponto de vista da virada decolonial, que No Martins nos apresenta. Esses artistas vão imaginar a negritude nos espaços da diáspora. Imaginar no sentido de criar imagens, mas também de criar um campo de ação lúdico e político.

O #JáBasta! deve ser ecoado por nós e traduzido em novas modalidades de vida em comum, nas quais a política do ódio e a necropolítica se tornem apenas parte de nossos livros de história e onde esse tipo de crime não possa mais acontecer. O fato do assassinato de João Pedro ter repercutido no Brasil de modo muito menos intenso do que ocorreu nos E.U.A. com o assassinato de George Floyd, mostra apenas o quanto ainda temos que trilhar nesse caminho de construção de uma sociedade autenticamente pós-colonial. A Empresa Colonial, lamentavelmente, ainda está forte e robusta por aqui.

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[1] Grada Kilomba. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 27.

[2] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften. Vol. V: Das Passagen-Werk. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1982, p. 1233.

[3] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften. Vol. I. Frankfurt a.M.: Suhkamp, 1974, p. 1243.

[4] Idem, p. 1244.

[5] Idem, p. 1243.

[6] Walter Benjamin, 1982, op. cit., p, 578. Tradução citada: W. Benjamin Passagens. W. Bolle e O. Matos. (Org.). (C. P. B. Mourão e I. Aron, Trad.). São Paulo: UFMG e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 505.

[7] Davi Kopenawa; Bruce Albert. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[8] Aristóteles, Poética, trad. Eudoro de Souza, São Paulo: Ars Poética, 1993, p. 67.

[9] Carl Schmitt pensou a política como tendo o par amigo-inimigo como sua pedra de toque em Der Begriff des Politischen [O conceito do politico] (1927/1932). Ele também teorizou a tragédia, como em seu livro Hamlet oder Hecuba. Der Einbruch der Zeit in das Spiel [Hamlet ou Hécuba. A irrupção do tempo no drama] (1956).

[10] Remeto aqui ao meu artigo “Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência”, in Psicol. USP vol.27 no.1 São Paulo jan./abr. 2016, p. 49-60.

Clube de Fotografia do MAM-SP completa 20 anos

"Menina de branco, festa do Bonfim, Salvador, 1994", Mario Cravo Neto para o Clube de Colecionadores de Fotografia. Foto: Cortesia MAM.

Em 2020, o Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM-SP completa 20 anos. Criado por iniciativa da então curadora executiva Rejane Cintrão, o grupo surge em um momento em que a fotografia começa a ser, de fato, legitimada como arte pelas instituições do mundo. A criação do Clube no começo nos anos 2000 fez do MAM-SP um “protagonista no Brasil em entender que a produção contemporânea precisava ser integrada, pesquisada e preservada no acervo”, como afirma Eder Chiodetto, curador do Clube desde 2006.

“Disco Volpi” (2020), de Avaf, para o Clube dos Colecionadores de Fotografia. Foto: Cortesia MAM.

Em cada edição anual, cinco artistas são convidados a participar doando suas obras ao museu. Existem três formas de associação ao Clube, que variam de acordo com o número de obras adquiridas. Há ainda a possibilidade de obtê-las de forma avulsa. Com valor máximo de R$ 6200 – para as cinco obras daquele ano – o Clube contribui para a democratização do colecionismo ao oferecer obras por um valor mais acessível, que atrai um novo contingente de pessoas. Isso acaba por contribuir para o melhor conhecimento da produção dos artistas e também para aumentar a frequência no museu. A diversidade geográfica, de gênero, de temas tratados e de linguagens e experiências também integra esse fator democratizante. 

Exposição comemorativa e as ações virtuais

Para celebrar o aniversário, a equipe curatorial preparava a montagem de uma exposição inédita com todos os artistas que participaram do Clube – “já havia obras montadas na parede expositiva, o catálogo sendo impresso na gráfica, convite distribuído”, conta Chiodetto. A abertura da mostra, no entanto, foi impossibilitada pelo decreto da quarentena. “Imaginávamos em um primeiro momento – ou desejávamos pensar assim – que haveria um adiamento da abertura por alguns meses e logo tudo voltaria ao normal”, conta o curador. “Agora temos uma previsão a ser reavaliada de fazer a mostra em janeiro, com as restrições necessárias”, complementa. 

Clube de Fotografia
“Tela filtro”, de Lia Chaia, para o Clube de Colecionadores de Fotografia. Foto: Cortesia MAM.

Por conta disso, a exposição não foi adaptada ao ambiente virtual, como outras ações realizadas pelo MAM-SP desde o começo da quarentena. Semanalmente, a instituição promove encontros virtuais em suas redes sociais; há ainda ações como o Histórias do Acervo, onde a equipe aborda obras que o museu possui trazendo um pouco da sua trajetória na legenda; o Artista da Semana; o MAM Para Ouvir; e o MAM Educativo. Sem contar que a instituição mantém uma série de cursos online.

Clube de Fotografia
“Americano”, por Ivan Grilo, para o Clube dos Colecionadores de Fotografia. Foto: Cortesia MAM.

Com as mostras virtuais fazendo parte de uma nova dinâmica, e sendo mais necessárias para a democratização da arte, Chiodetto reforça, no entanto, a importância de estar frente a frente com a obra de arte: “É Insuperável esse contato aurático com a obra. No caso das fotografias, por exemplo, avançaram sobremaneira as formas de se pensar o acabamento da obra, o tipo de impressão, as gamas infinitas de texturas de papéis. Tem ainda a luz, a disposição pensada das imagens em relação umas com as outras. É preciso estratégias assim para que a gente readquira a capacidade de contemplar, pois de fato a velocidade e o excesso de informação e impulsos a que somos submetidos no contemporâneo nos subtraiu muito a capacidade contemplativa.”

Preservar a fotografia

Embora o projeto tenha integrado 102 obras ao museu, para Chiodetto o Clube ainda é “uma porta de entrada tímida”. O curador lembra que no Brasil ainda não há um órgão oficial responsável por captar, organizar e preservar a fotografia brasileira. Segundo ele, “de forma não sistematizada e repleta de lacunas, esse papel acaba sendo feito por alguma instituição como o IMS, o Itaú Cultural e alguns poucos museus como o MAM-SP, MAM-RJ, MAC-USP e, mais recentemente, o MAR.”

Clube de Fotografia
Sem título, Daniel Senise, para o Clube de Colecionadores de Fotografia. Foto: Cortesia MAM.

Essa é uma questão que perdura há algum tempo. Já no 1º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo, o fotógrafo Iatã Cannabrava fazia o mesmo questionamento. Com o passar do tempo, no entanto, a questão do digital soma-se à problemática. A fotografia digital aparece com maior centralidade agora do que a fotografia em película e pode ser arquivada em computadores e HDs. “Será que sobreviverão e se sobreviverem teremos como acessá-los daqui a 50, 100 anos, quando pesquisadores quiserem investigar a iconografia do nosso tempo? O que acontecerá com os arquivos dessa geração a partir da virada do século? Teremos uma amnésia iconográfica?”, questiona Chiodetto, lembrando que trabalhos importante de preservação da fotografia brasileira – como o realizado pelo IMS com os registros dos anos 1940 a 1970 – partiram do resgate de originais em negativos e cópias fotográficas, mal ou bem preservados, com familiares dos fotógrafos da época. Por isso, para ele, é necessário um organismo que equacione tudo isso.

Neste ano, participam do clube Avaf, Cinthia Marcelle, Daniel Senise, Ivan Grilo e Lia Chaia. Excepcionalmente para os 20 anos do Clube, o museu produzirá a obra Menina de branco, festa do Bonfim, Salvador 1994, do artista Mario Cravo Neto, para aquisição avulsa. Nota-se que nem todos utilizam a fotografia como meio primário em suas obras. Esse é um ponto de interesse para a curadoria atual, um exercício proposto a esses “não fotógrafos”, como foram os casos de Jac Leirner, Sandra Cinto, Nelson Lerner, Waltércio Caldas, Regina Silveira, José Patrício, Marcelo Silveira, Adriana Varejão, o próprio Nuno Ramos, que realizou a obra esse ano. Chiodetto lamenta que Tunga não tenha participado do Clube em vida. “Infelizmente o perdemos muito cedo.” Quando questionado sobre os outros artistas que convidaria para o exercício no Clube, ele confessa: “Há outros nomes que estão na minha lista impertinente de provocações, mas é segredo”.

 

O olhar de Carlos Moreira

Carlos Moreira (1936-2020) foi e é talvez a nossa melhor tradução do flâneur, descrita pelo poeta Charles Baudelaire e contada pelo filósofo Walter Benjamin. Um passeador. Seus passos e olhos sempre o levaram para percorrer as ruas das cidades, para registrar com sua câmera fotográfica e olhar atento o que acontecia ao seu redor.

Um bressoniano brasileiro. Admirador do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), contava que foi com o francês que aprendeu a olhar a rua, o rigor do enquadramento, da espera para a foto perfeita e ao mesmo tempo de registar a espontaneidade da cena. Andar por aí era seu prazer, meditar outro. Gostava de mergulhar em seu interior para que pudesse, em suas fotografias, apresentar imagens ricas de emoções.

Estudou, verdade que só por um tempo – melhor seria dizer que passeou pelas faculdades de Engenharia, Psicologia, Sociologia e Filosofia entre os seus 22 e 28 anos. Mais tarde se formou em Economia. E isso lhe trouxe uma delicadeza que aflorava em suas fotografias. Foi mestre atencioso, ensinou a muitos a arte de olhar, de observar, sempre apoiado por uma delicadeza poética.

A fotografia foi a maneira que encontrou para se comunicar com as pessoas. Em uma entrevista que me concedeu em 2009, afirmou: “Gosto de fotografar e as pessoas gostam das minhas fotografias. Foi assim que me tornei fotógrafo. Me tornei alguém quando comecei a fotografar. Antes disso só flutuava pela vida”. Agora, Carlos Moreira se foi! Deixou inúmeros aprendizes, deixou inúmeros olhos que continuam procurando com a delicadeza que ele ensinou a ver o que não está aparentemente visível.

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* Em 2019, na ocasião da retrospectiva de Carlos Moreira no Espaço Cultural Porto Seguro, o jornalista Hélio Campos Mello também escreveu sobra a obra de Moreira: “[A obra] vem à luz através de câmeras e técnicas escolhidas de maneira saudavelmente eclética”. Leia a matéria aqui.

Vamos ter que repensar o papel da arte, as estruturas e os modos de operar, diz Solange Farkas

Solange Frakas, fundadora e diretora da Associação Cultural Videobrasil. Foto: Ale Ruaro

Após o início do período de isolamento social por conta do novo coronavírus, em meados de março, enquanto a maioria das instituições culturais do país correu para as plataformas virtuais para manter suas atividades e seu vínculo com o público, a Associação Cultural Videobrasil se manteve praticamente ausente das redes sociais. “Essa parada obrigatória, para mim, em um primeiro momento foi uma coisa meio paralisante mesmo. Não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas que é muito acentuada e piorada pela nossa condição política”, afirma a fundadora e diretora da associação, Solange Farkas. “Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Acho que têm questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e de como elas vinham funcionando”, completa.

Em linha semelhante ao que escreveu recentemente o líder indígena Ailton Krenak, Solange recusa a ideia de que, após a pandemia, devemos voltar à vida como era antes. “Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está nos acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós.” Em entrevista à arte!brasileiros, a diretora do Videobrasil, associação que realiza ao lado do Sesc um dos mais importantes eventos no calendário das artes visuais do país, a Bienal Sesc_Videobrasil, confirma que a próxima edição da mostra, programada para 2021, será adiada, possivelmente para 2023. Com curadoria do carioca Raphael Fonseca e da senegalesa Renée M’boya, a 22a Bienal já estava sendo concebida, mas deverá ser repensada não só por conta da pandemia, mas também da situação política do país.

“É impossível planejar qualquer projeto diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo”, afirma Farkas. Para ela, os tempos atuais remetem ao início do VideoBrasil, ainda nos anos 1980, quando o então festival precisava submeter à censura os vídeos que seriam exibidos. “Parece que eu estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás”. Neste sentido, completa, “acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda”.

Enquanto associação que trabalha com a produção advinda do chamado Sul Global – termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central -, o Videobrasil se reinventou ao longo das décadas, deixando de ser exclusivamente voltado para o vídeo, expandindo seu acervo e programa de pesquisa permanente e alterando o status de seu principal evento de festival para bienal. Tratou, ao longo dos anos, de temáticas que se apresentam cada vez mais urgentes no panorama global, das feridas do colonialismo e do racismo estrutural à violência do Estado e ao papel da memória na sociedade. Temáticas que, muitas vezes, não recebiam o mesmo destaque que agora ganham no mundo das artes. “Acho, sim, que deve-se olhar esse movimento com cautela. Pois não é exatamente a arte, mas é o mercado quem está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável.”    

Na entrevista, Farkas fala ainda sobre o acervo do Videobrasil, que deverá ganhar maior destaque no trabalho da instituição nos próximos tempos, e sobre as várias questões colocadas pela pandemia e pelas crises política e econômica no Brasil. Leia abaixo.

ARTE! – Estamos passando por uma enorme crise, sem precedentes, por conta da pandemia do coronavírus. Então eu queria começar perguntando como vocês estão lidando com esse momento no Videobrasil? Quer dizer, o que é possível fazer ou planejar neste contexto?

Solange Farkas – Desde o dia 14 de março nós fechamos o escritório Videobrasil por conta do isolamento social. E desde lá estamos trabalhando de casa, usando as mídias de comunicação para poder pensar, ou repensar, o que fazer. E essa parada obrigatória, para mim, foi uma questão que bateu muito forte. Em um primeiro momento foi uma coisa meio paralisante. Acho que fiquei uns dois meses sem querer pensar em nada imediato, em nenhum projeto para o agora. Fiquei numa ansiedade um pouco paralisante mesmo. E uma coisa provocada por tudo, não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas que é muito acentuada e piorada pela nossa condição política. Então são camadas e camadas de notícias terríveis vindas de todo o mundo – e as nossas, particularmente terríveis. Então diferentemente de outras instituições culturais que ficaram tentando manter sua audiência e seu diálogo com o público, criando projetos online, lives etc., eu não quis, nem consegui, lidar com isso. Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Tentando achar um sentido no modo como operávamos. Só depois desse tempo, então, eu resolvi reorganizar um pouco as coisas. O momento dessa parada também foi muito maluco, porque estávamos em pleno processo criativo da próxima bienal. Estávamos para anunciar o open call agora em junho, com os curadores já  trabalhando, com artistas convidados. Então foi uma parada no meio do processo. E agora vamos comunicar o cancelamento da bienal do ano que vem.

ARTE! – E tinha também a itinerância da 21a edição, Comunidades Imaginadas

Sim, eu tinha duas exposições para esse ano. Primeiro a itinerância, que ainda vai acontecer em Campinas quando o Sesc reabrir, porque teria inaugurado em abril, mas em Rio Preto, que seria em setembro, foi cancelada. E uma exposição que eu estou trabalhando há alguns anos, sobre a questão do Antropoceno, em parceria com o Ilmin Museum of Art, da Coreia do Sul. E este projeto previa um intercâmbio. Nós levamos para lá, em 2019, os artistas brasileiros. E aqui viriam os artistas coreanos em dezembro deste ano, no Sesc Bom Retiro. E a mostra foi cancelada também.

E a 22a Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que seria em outubro de 2021 no Sesc 24 de Maio, foi cancelada pelo Sesc e ainda estamos sem perspectiva de retomada. Enfim, estamos vivendo esse momento de incertezas de todas as ordens. Isso alterou o calendário mundial das artes, que vai ter que ser totalmente realinhado. Até porque eventos de arte, em geral, estão sempre tentando responder a questões do cotidiano, do hoje, às questões políticas. E com um abalo dessa ordem você fica muito inseguro com o que dizer ou como responder à questões tão profundas. Então precisa realmente de um tempo para repensar tudo. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Eu acho que têm questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e como elas vinham funcionando. Eu começo a entender, agora, esse momento em que estamos como um novo ponto de partida mesmo, que pode nos oferecer uma oportunidade única. Claro, em uma situação privilegiada, no nosso caso, porque a gente pode se permitir isso, mas para pensar, por exemplo, como combater esse modo pelo qual o sistema neoliberal em que vivemos coloniza a nossa subjetividade. Tem tantas questões em jogo…             

ARTE! – Pensando nesses reflexos globais, o Videobrasil desde sempre priorizou este olhar para o Sul Global, este Sul geopolítico que incluí países e grupos à margem do capitalismo central. De que modo você enxerga esse mapa geopolítico neste momento de pandemia? O que está acontecendo no mundo escancara ainda mais esse desequilíbrio e desigualdade global? Ou talvez seja uma possibilidade para rearranjos nesse mapa?

Olha, acho que de fato escancara as diferenças, de todas as ordens. As diferenças sociais, econômicas, raciais. Sabemos que os países do Sul Global são atingidos mais duramente por uma crise como essa. As diferenças de fato são expostas. E somos o lado sempre mais frágil, fato que tem a ver com uma questão social e econômica. Mas ao mesmo tempo existe uma coisa interessante – se é que é possível falar de alguma coisa interessante nesse momento em que há tanto sofrimento, tantas pessoas padecendo -, que é que todas as grandes certezas, as diretrizes sempre colocadas de lá para cá, do Norte para o Sul, estão sendo postas em cheque. Elas foram um pouco por água abaixo. Nesse sentido, estamos um pouco parecidos. E com certeza, quando passar um pouco o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas. A gente vive em crise permanente. E se essa situação da pandemia se coloca para todo o globo, nós que vivemos em países subdesenvolvidos, em condições subalternas à esse lugar do mundo onde o dinheiro circula, sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura, claro.

E particularmente no caso do Videobrasil é interessante pensar como o vídeo, nesse momento, ocupa um lugar central em todos os campos da cultura. O vídeo é o modo de comunicação, é a expressão possível nesse momento, é o que está nos conectando. Ele ocupa um lugar central nesse contexto. E para nós é interessante pensar sobre isso. Muita gente me pergunta por que o Videobrasil não está fazendo coisas online. Primeiro porque essa condição forçada me permitiu esse privilégio, de certa forma, de pensar mais profundamente sobre nossas ações, sobre o papel que ocupamos e sobre como lidar com isso tudo a partir de agora, mantendo um lugar de relevância para o cenário das artes nesse lugar do mundo – o Sul – onde somos uma janela importante.

E assim surgiu essa ideia de se voltar mais para esse lugar do vídeo, que temos no nosso DNA. Temos um acervo muito importante, de 35 anos, com a produção desse lugar do mundo. E essa crise toda, todo esse movimento, me fez pensar, principalmente agora com essa perspectiva, ou falta de perspectiva, sobre quando vamos voltar a ter a bienal, de que forma e com que suporte. Repensar como vamos atuar. E pensar em como o acervo pode ser esse novo lugar. Porque nesses anos todos o acervo tem para mim essa importância não apenas na questão da memória – dessa produção sensível desse lugar do mundo -, mas também como um lugar que alimenta e retroalimenta a própria atividade da associação.

ARTE! – E de que modo se daria esse olhar mais intenso para o acervo?

Estamos desenvolvendo nossa nova plataforma, que é o Videobrasil online, para pensar em como agir no universo virtual. Continuar fazendo as curadorias, trazendo curadores da África, América Latina, América Central, como já fazemos, para colocar em destaque artistas importantes que estão neste acervo, fazer exposições individuais e coletivas, tudo isso no universo do Videobrasil online. Se era algo que já existia a possibilidade de ser trabalhado, me parece que esse é o momento. Então depois desse momento do impacto, da paralisia, de uma certa depressão, eu estou agora concentrando esforços e pensando, a partir do acervo, nessas ações, em como continuar contribuindo com essa plataforma do Videobrasil online para essa produção desse Sul Global.    

ARTE! – Tem uma coisa que me veio à mente, quando você falou dessa certa paralisia que te tomou, que tem a ver com algo que o Ailton Krenak escreveu recentemente, de que isso tudo que está acontecendo pode ser a obra de uma mãe amorosa, a Terra, que decidiu fazer seus filhos se calarem pelo menos por um instante, por querer lhes ensinar alguma coisa…

Claro. E vou dizer mais, esse livro do Krenak (O Amanhã Não Está à Venda), assim como o anterior (Ideias para Adiar o Fim do Mundo), caiu para mim como uma bomba, no melhor sentido. Ou seja, vamos prestar atenção. Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está nos acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós. E nesse sentido eu acho que os povos originários têm muito, muito, a nos ensinar, a nos dizer. Precisamos prestar atenção nisso. E realmente para mim isso virou um oráculo.

ARTE! – Agora, para além das desigualdades globais de que falamos, a pandemia tem escancarado também as enormes desigualdades internas dos países. Só para dar um exemplo, um boletim recente da prefeitura de São Paulo revelou que o risco de morte de negros por Covid-19 é 62% maior do que de brancos…

E isso diz muita coisa.

ARTE! – E essas desigualdades vem sendo tratadas há muito tempo no Videobrasil. Na última edição, por exemplo, isso foi muito forte. As coisas que estão acontecendo revelam uma urgência ainda maior de tratar destes assuntos, seja nas artes ou na sociedade como um todo?

Acho que as coisas não estão descoladas. A arte é uma experiência humana, absolutamente necessária. Sabemos disso. Aliás, é a alma da coisa. Não vejo nunca como desconectar a arte da vida, da experiência humana, do cotidiano, da política. Então são coisas que estão juntas, e só fazem sentido juntas. Não dá para pensar a produção artística como um artefato para poucos. Não é perfumaria, é o alimento, digamos assim. Então, pensar todas essas questões que nós temos trazido insistentemente nas nossas ações, isso é como um programa mesmo do Videobrasil, tentar contribuir com esse pensamento, abordar essas questões que dizem respeito não apenas à produção do simbólico, mas à vida, às diferenças cada vez mais acentuadas que existem. E a última edição do Videobrasil parece que era premonitória, de certa forma, quando falávamos dos povos indígenas e trabalhávamos essa ideia das comunidades de afeto. A nação não como Estado, mas a nação como esse Estado que você escolhe, essas comunidades. Não necessariamente a que você nasceu, mas também aquela que você escolhe por afinidade, por afeto.

No Martins, #JÁBASTA!, 2019, acrílica sobre tecidos diversos. Foto: Divulgação.

ARTE! – Falando dessa coisa premonitória, pensei agora na obra do No Martins na última bienal, com pinturas de rostos negros e o escrito “Já Basta”. Bom, nas últimas semanas assistimos, a partir dos assassinatos do americano George Floyd, e no Brasil do menino João Pedro, a explosão de manifestações e da discussão sobre o racismo estrutural que forma as sociedades americana, brasileira e muitas outras. Como você tem assistido esses fatos recentes e a eclosão desse debate sobre racismo?

Eu acho, claro, que a questão do isolamento social faz com que a gente perceba mais certas coisas. Porque quando você está numa situação de normalidade, as pessoas passam batido por isso, em geral. As pessoas não olham para o outro, não olham para essas questões. Mas essa questão da diferença social, essa questão do racismo, que é um racismo estrutural, o nível e o grau de violência contra a comunidade negra, assim como a indígena, isso sempre existiu. Foi preciso agora essa explosão nos EUA para as pessoas aqui entrarem nessa campanha. Às vezes até me deprime um pouco, porque eu vejo gente que não está nem aí, que não percebe o que está acontecendo, mas fica reproduzindo nas redes essa campanha. É um certo cinismo.

Então acho que esse é um lugar importante que o Videobrasil ocupa, de alertar, de fazer com que as pessoas olhem para esses lugares. E pensando no lugar de fala dessas comunidades. Não apenas a negra, mas os povos indígenas. Com os povos indígenas eu acho que é pior ainda, porque nem são considerados gente. É uma coisa muito louca, muito perversa. Então acho que a pandemia está ajudando também a olharmos essas nossas fragilidades enquanto sociedade. Acho que nunca foi tão evidenciado como agora essa personalidade brasileira tão racista, tão superficial. E talvez, a partir desse momento, alguma coisa pode de fato começar a acontecer. Acordar as pessoas para essa questão política, para o racismo escancarado, para essa desgraça, essa lástima que é esse atual governo, autoritário, fascista. Por que é que estamos passando por isso? De onde surgiram essas pessoas? O que é isso? Por que não reagimos? São questões que alguma hora iam explodir. E acho que a pandemia nos força a pensar nessas questões, a olhar para esse lugar.   

ARTE! – Falando sobre a produção artística das comunidades indígenas, de negros, periféricos, LGBTs, mulheres e outros grupos historicamente oprimidos, essa é uma produção que tradicionalmente pouco circula no sistema institucional e no mercado das artes. Mas parece que isso está mudando nos últimos anos e que tanto as grandes instituições quanto o mercado têm se voltado com muita força para essas produções. Queria saber como você enxerga esse movimento. E se ele é algo a se comemorar ou a se olhar com cautela.

Olha, eu acho delicado, desconfio um pouco disso. Acho sim que deve-se olhar com cautela. Claro, parece tão importante as artes olhando para a produção destes artistas negros, indígenas, e com essas questões políticas em pauta. Mas não é exatamente a arte, é o mercado que está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável. Pelo contrário, acho muito nocivo. Tende a banalizar, é perverso.   

ARTE! – Não é um olhar genuíno?

Não. Acho que descobrem esses lugares, percebem que há uma produção potente e que há um momento favorável, em que esses trabalhos vendem. Mas não mexem um centímetro para mudar, por exemplo, as condições de produção para esses artistas. Porque essa pesquisa que nós do Videobrasil fazemos – e outras instituições do mundo também, que têm essa perspectiva mais política e ligada às questões sociais que envolvem a produção artística -, essa pesquisa demanda um tempo, recursos, deslocamento. Porque nesses lugares há uma produção absolutamente potente e extraordinária não apenas no sentido, mas na própria operação, no fazer. E há 30 anos temos feito esse trabalho de colocar um pouco um foco de luz em um lugar que está na sombra. Lugares imensos, no Brasil, na América Latina, na África principalmente.

Além disso eu acho que, no cenário das artes, há também um esgotamento nesses países do Norte. Por que é que, já há algum tempo, esse mundo da arte global – Europa, EUA etc. – começa a olhar para esses lugares chamados subdesenvolvidos? Por uma necessidade, porque é preciso, por um esgotamento deles. Então você vê curadores viajando para o Sul, indo atrás. E isso é algo recente, historicamente. E eu sempre achei que precisávamos estar preparados para esse momento, porque essa relação precisa ser equilibrada. Isso é muito importante. E é claro que eu vejo com muita precaução esse afã do mercado. Porque banaliza, cria rótulos. Temos que ir com cuidado. Mas, também, os artistas não são bobos. São potentes, são espertos. Muitos artistas, curadores e gestores destes lugares mais à margem são muito politizados, muito articulados. Então eles também ficam com um pé atrás com a gente, por razões óbvias. E eles têm uma consciência do lugar que eles ocupam no mundo. E acho que essa é uma grande diferença destes artistas que vêm destes lugares mais subjugados, que sofrem preconceitos, para esses artistas brancos, de classe média, que participam de todas as feiras etc. Tem uma diferença no discurso, na atitude, e isso está impresso também na produção. Por isso a potência do trabalho dessas pessoas, por isso a potência da produção indígena. É uma loucura pensar que os indígenas brasileiros, que são das comunidades originários do globo que vivem em situações mais subjugadas e precárias, tem uma produção tão extraordinária. Então por que é que nós no Videobrasil temos tanta força e energia, apesar de tudo? Porque a gente lida com essa produção tão potente, tão necessária, que pode ajudar tanto nessa reflexão sobre o mundo.

ARTE! – Bom, falando um pouco mais especificamente da política nacional, independentemente da pandemia já existia no Brasil um quadro muito conturbado e ameaçador para a cultura nos últimos tempos. Existe um governo que parece ver as artes, a cultura, como inimigos. Como você vê esse quadro e como é possível trabalhar nesse momento?

A gente vem em um declínio desde o golpe que tirou a Dilma Rousseff. E agora com a cultura declarada como inimiga, que é uma prática típica do fascismo – historicamente nós sabemos disso. Agora, é claro que é impossível planejar qualquer projeto – como a bienal – diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa, às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo. Então a situação é paralisante. Você não tem nenhuma mobilidade, porque você não tem nenhum mecanismo para produzir, nem minimamente.

ARTE! – Financeiramente a situação se torna inviável?

Desde o governo Temer até agora, pensando em uma política pública para a cultura, não existe. Existe, na verdade, um ataque, um desmonte. Se não fosse o Sesc, que eu digo sempre que é a nossa política cultural – sobretudo o Sesc-SP, que tem essa figura extraordinária que é o Danilo Miranda, que é um humanista, um homem sensível e um gestor extraordinário -, a gente não teria feito a bienal desde 2016. Porque não há condições para fazer. Ou você tem que se reinventar, de fato, ou esperar esse terremoto passar. E nesse sentido a pandemia nos tira totalmente de uma zona de conforto. Recentemente me perguntaram sobre como a arte pode se manter, como pode reagir a tudo isso. Eu acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda. Porque as estruturas, os tentáculos para manter uma produção, as instituições, o financiamento, o modo de exibição, acabam também afetando muito a produção em si. A produção acaba sendo muito moldada para atender essas demandas, que não deixam de ser demandas desse mundo neoliberal, onde o mercado está acima de tudo. Pensando do ponto de vista da criação, o artista precisa de todos esses aparatos para produzir? Claro que não. Claro que é importante, mas talvez agora tenhamos que ser um pouco mais livres, voltar lá para trás, em um tempo anterior a esse boom das artes.

ARTE! – Falando em voltar lá para trás, o primeiro festival Videobrasil foi realizado em 1983, ainda no final do período da ditadura. Olhando para lá e pensando no momento atual, você enxerga paralelos?

É muito parecido. E isso é uma loucura. Parece que eu estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás. Quando começamos o festival, em 1983, era um momento de abertura política, e ainda existia um mecanismo de censura do Estado muito forte sobre a arte. Então nos primeiros cinco anos de Videobrasil eu submetia todas as obras, antes de exibir, para a censura. E a censura vetou vários trabalhos. Fui processada várias vezes por exibir trabalhos que tinham sido censuradas. Então a gente vem desse lugar e está voltando para esse lugar, do ponto de vista da política, muito triste.

ARTE! – Inclusive a censura voltou a ser um assunto…     

Sim, ela existe agora com outros mecanismos. Na medida em que você não pode produzir, não consegue falar o que pensa porque não tem condições para isso, é um modo de censura.

ARTE! – Em entrevistas que fiz recentemente com gestores culturais de instituições brasileiras, o Danilo Miranda disse que em muitos aspectos este é um governo ainda pior para a cultura do que foi a ditadura militar, e o Ricardo Ohtake disse ver traços até do nazismo no atual governo…

Concordo com ambos. Na ditadura as coisas eram mais claras né? E quanto ao nazismo, é perceptível. Não sou eu ou o Ricardo que estamos dizendo, são eles mesmos que fazem manifestações nesse sentido. É uma caricatura do nazismo. Eles reproduzem gestos, tentam resgatar isso. Tristes de nós. E é doloroso pensar que esse cara foi eleito. Mesmo que a gente saiba sob quais condições, mas ainda assim. O que é esse Brasil? O que é esse pedaço do Brasil doente, que ainda hoje apoia esse cidadão? De onde veem essas pessoas tão sinistras que fazem parte desse governo? Então nós somos uma sociedade esquizofrênica, que precisa ser tratada coletivamente.    

Bienal de SP lança publicação educativa e abre individual de Deana Lawson na Suíça

Deana Lawson, Chief, 2019 © Deana Lawson. Cortesia da artista e Sikkema Jenkins & Co., Nova York

Para celebrar o lançamento virtual da publicação educativa da 34ª Bienal de São Paulo – Faz escuro mas eu canto, Primeiros ensaios , a Bienal faz três encontros com temáticas relacionadas aos conteúdos contidos na sua publicação. Cada transmissão conta com a participação gravada de autores e artistas que colaboraram com a publicação e ao final é aberto um espaço para comentários e perguntas (para participar basta clicar aqui). Além disso, uma exposição virtual de Deana Lawson integra ações virtuais da instituição.

Bienal
Folhas de capa e de rosto da publicação Primeiros Ensaios. Foto: Divulgação.

Primeiros Ensaios

O livro aposta no pensamento do filósofo e poeta martinicano Édouard Glissant ao reconhecer o esforço e a complexidade exigidos para não nos relacionarmos por um único ponto de vista com os conhecimentos que são assimilados e com as realidades que nos cercam. Em nota, o curador geral da 34ª Bienal, Jacopo Crivelli Visconti, afirmou que “nunca temos a ambição de explicar as coisas do começo ao fim, porque nossa visão é a mesma do Glissant, de que sempre há uma parte do outro, uma parte grande ou pequena, que você não vai entender. E o esforço que se faz é para que você tenha uma relação com esse outro, mesmo não entendendo”.

Em 10 de junho, a conversa será feita a partir do meteorito do Bendegó. Encontrado no sertão brasileiro, na Bahia, em 1784, o meteorito resistiu ao fogo do Museu Nacional no Rio de Janeiro em 2018. Esse também foi o maior siderito vindo do espaço que fora encontrado em solo brasileiro. No livro, o meteorito aparece como um enunciado para abordar noções de resistência, perenidade e resiliência. Para a conversa, a Bienal traz a curadora de meteorítica do Museu Nacional, Maria Elizabeth Zucolotto, e o artista indígena Gustavo Caboco.

No dia 11, a professora Christine Greiner e a artista Eleonora Fabião falam sobre o sino da capela do Padre Faria, datado de 1750 e localizado na cidade mineira de Ouro Preto, que foi tocado em duas ocasiões marcantes na história do Brasil: o dia da morte de Tiradentes e na inauguração de Brasília. No livro, o sino é utilizado em um ensaio prático, uma proposta de exercício artístico focado nas relações entre corpo, som, repetição e memória.

Já no dia 12, serão abordadas temáticas em torno dos retratos de Frederick Douglass. Hoje, Douglass é reconhecido pelo pioneirismo na compreensão da circulação da imagem fotográfica como instrumento político capaz de reiterar ou contrapor estereótipos de raça. Na publicação da Bienal sua figura mobiliza pesquisas relacionadas a essas questões e à autorrepresentação. Para contribuir com o debate foram chamados o jornalista Nabor Jr. e o artista Daniel de Paula, que irá abordar também o Teatro Experimental do Negro.  

Deana Lawson em nova exposição individual

Bienal
Deana Lawson, Vera with Lateral Puncture, 2020 © Deana Lawson. Cortesia da artista e Sikkema Jenkins & Co., Nova York

Com uma série inédita realizada em Salvador (BA), comissionada pela Fundação Bienal, a fotógrafa estadunidense Deana Lawson inaugura nova individual na Suíça. A exposição parte da pesquisa da fotógrafa sobre as diásporas africanas em vários lugares do mundo e estreia no Kunsthalle Basel, na Basileia, compondo uma das múltiplas ações expandidas da 34ª Bienal de São Paulo. Centropy apresenta imagens meticulosamente encenadas, mas profundamente íntimas, que exploram a endumentária, hábitos cotidianos e interiores domésticos de tais diásporas africanas. Mantendo um olhar atento aos estereótipos nos retratos ocidentais de africanos e afrodescendentes, Lawson captura construções inesquecíveis da vida negra contemporânea.

 

A versão online dos Primeiros ensaios já está disponível para download e leitura neste link

Confira também os outros conteúdos disponibilizados no site da Bienal aqui.

É hora de destruir os monumentos de exaltação aos bandeirantes?

Desenho do artista britânico Banksy. Foto: Divulgação

Na Inglaterra e na Bélgica, monumentos foram destruídos na esteira dos movimentos antirracistas desencadeados pelo assassinato brutal de George Floyd por um policial, nos EUA, há duas semanas, trazendo uma discussão muito necessária: esculturas públicas que exaltam líderes genocidas merecem ser mantidas?

No dia 7 de junho, em Bristol, manifestantes jogaram no rio Avon a estátua de Edward Colston, um traficante de pessoas escravizadas, responsável pelo tráfico de 80 mil africanos, sendo que 20 mil deles morreram no mar.

Já em Antuérpia, nesta terça, 9 de junho, a estátua de Leopoldo II, incendiada na última semana, foi retirada da praça pública para ser inserida em um museu. O monarca, que reinou entre 1865 e 1909, foi o responsável pela morte de 10 milhões de africanos, a maioria da República do Congo, que era uma possessão pessoal de Leopoldo II (1835–1909).

Por aqui, este debate não é novo, especialmente em São Paulo, com vários monumentos que exaltam os milicianos do período colonial brasileiro: os bandeirantes. Dentre eles, o mais famoso, o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, é o que tem como autor um dos mais reconhecidos artistas modernistas, Victor Brecheret. Inaugurado em 1953, uma maquete da obra chegou a ser exposta na Semana de Arte Moderna de 1922, o que revela o caráter elitista do movimento. Afinal, as bandeiras, como explicam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling em Brasil: uma biografia, “dizimaram populações locais”. Essas bandeiras “assumiram a forma militarizada de organização das expedições de caça e escravização dos índios ou de busca de metais preciosos”.

Já há sete anos, em 2013, o monumento de Brecheret foi alvo de um protesto, tendo sido manchado com tinta vermelha. “Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência”, escreveu na época Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá. O fato ocorreu quando se discutia a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição) que transferia a competência da União na demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional e possibilitava a remarcação das terras indígenas.

As manifestações antirracistas vêm colocando em xeque o que se considera como “história universal”. Em geral, essa história é um relato de homens brancos, que ignoram todos os conflitos e resistências, impondo uma visão única. Está na hora, portanto, de descolonizar nossa história e nossos símbolos, ressignificando esses monumentos que exaltam lideranças genocidas.

Em sua conta no Instagram, o artista Banksy faz uma ótima proposta para Bristol: recolocar a estátua de Edward Colston no pedestal, acrescentando, contundo, outras estátuas representando pessoas tentando derrubá-la, tornando permanente, assim, o gesto de reescritura da história.

Não se deve, afinal, apagar a história, ou mesmo fingir de conta que ela não existiu, como se fez com o período da ditadura militar no Brasil. A transição para a democracia sem o enfrentamento com o passado violento é um dos motivos para o pesadelo atual.

É preciso, portanto, rever esses monumentos e recontextualizá-los de forma a que não se esqueça o passado violento que se abateu sobre os povos indígenas, para que ele não mais se repita.

A performance de longa duração e a pandemia em cada um de nós

"Café da Manhã", 2001. Foto: Monali Meher/ Divulgação

* Por Marco Paulo Rolla

Na busca de reconhecer sentimentos que emergiram durante os dias em que nos encontramos reclusos, reconheço que um deles é de ter no corpo a memória do tempo performático, a auto submissão às restrições para criar situações onde o público e o artista experimentam mudanças de estado no tempo presente, na matéria sólida e no espaço sinestésico.

O performer vai se submeter a todas as restrições coerentes com a proposta do trabalho e estou consciente de que, no caso da Covid-19, não é uma escolha e somos obrigados a viver este tempo presente, a encarar solidões, a auto percepção dos pensamentos, sentimentos bons da independência obtida nesta solidão e sentimentos ambíguos, isto para citar alguns dos sentimentos possíveis na privação do livre arbítrio de ir e vir.

O tempo parece correr apressado porque estamos nele em um ritmo próprio, muitas vezes ralentado o movimento no dia, mas com o correr das horas muito mais rápido para a percepção de quem o vive no cotidiano em que estávamos imersos outrora.

O relógio se distancia e o tempo é vivência constante. O conceito de Arte e Vida ganha força e é um espelho para ajudar na aceitação da vida como ela está! No presente mais que “perfeito”.

No início do século XX, os artistas compreenderam a noção de Arte e Vida. A rica troca de conhecimentos e realidades que esta fricção pode gerar permitiu, desde então, o uso de objetos cotidianos, história, antropologia, atitudes e uma infinidade de materiais, o que permitiu o reconhecimento do corpo como obra. Este conceito foi mais e mais incorporado para trazer uma relação direta entre vida e arte. Experimentos com a performance no mundo, desde as ações dadaístas até o grande movimento performático que invadiu as artes nos anos 50, 60, 70 e nos dias de hoje, explicitam esta relação.

Mas, o que mais me interessa aqui, é o elo que podemos fazer com o que as pessoas estão vivendo com a situação de confinamento e as regras de movimentação social. Estas estão desenvolvendo em nós o senso de mudanças do “estado do corpo” pelo qual estamos passando e percebendo. Muitas vezes, não queremos sentir, não estamos preparados, mas perdemos a oportunidade de acalmar e respirar o tempo sem pressa. O artista da performance usa o tempo como um construtor da imagem/paisagem/acontecimento sob o olhar ansioso do ser humano tecnológico e industrial; imprime na mente a experiência do corpo em movimento sobre este tempo ou, ao reverso, do tempo em movimento sobre o corpo paralisado.

Há alguma semelhança no tempo que a pandemia nos colocou com o tempo provocado por uma performance de longa duração, considerando que na performance, outro tempo é construído para surgir uma nova percepção. Isto está acontecendo com todos em seu espaço íntimo, no tempo presente e no limite da casa/corpo. Dentro deste limite existe o “risco”, que é um outro dado fundamental da performance e também nos ronda agora. O limite, na verdade, é o que nos da a liberdade de expansão porque sabemos onde extravasarmos e não deixar extrapolar este contorno sem consciência e presença.

Temos a oportunidade de nos reconectar com nosso sentido próprio de tempo em cada ação realizada neste novo sistema em que estamos aprendendo a estar no agora.

Como acontece em uma performance, vamos nos colocar no centro dela, sendo o corpo vivencial. Assim, muitas sensações do espectador ansioso serão diluídas ao vivenciar o novo espaço em que vivemos o agora, imponderável, pois é a situação em que nos encontramos.

O performer, além de se deslocar no tempo, se coloca em rituais que tencionam estes limites muitas vezes incompreendidos por quem esta de fora na observação e, por ironia do destino, muito similar com o que estamos vivendo. A pandemia nos colocou um novo tempo em que, seria totalmente possível em uma segunda-feira parar e respirar com calma, coisa inimaginável de se vivenciar antes. Podemos relativizar imposições da indústria como os horários de nos alimentar, acordar, dormir e muitos outros aspectos de nossa vida hoje foram levados a um total desregramento nos dando uma realidade aleatória como um material a ser remodelado no tempo, que de tão dilatado parece pequeno.

Agora, cada um de nós, pode sentir em si como o performer usa o seu corpo criando energia adquirida na restrição, reinventando o momento vivido no presente! Muitas vezes, é desconfortável, mas por passar por aquele momento, tendo se submetido a toda ordem de situações desejadas e de acasos possíveis, ele encontra o alivio através de um outro estado que é alcançado quando concentramos em nossa percepção. Perceberemos que, com o passar do tempo de confinamento, vamos começar a ganhar nova energia, adaptando o psicológico e o sentir do tempo.

A arte nos ensina que podemos nos libertar da lógica na vida cotidiana a que fomos condicionados e que chamamos realidade na ética social imposta, desta maneira podemos transmutar o momento em ações corporais, estéticas e ações sobre o tempo vivido como nas performances de longa duração.

Podemos citar aqui o artista taiwanês Tehching Hsieh em sua performance: ONE YEAR PERFORMANCE 1980–1981 (veja aqui). Ele se confinou em um quarto, durante um ano e, a cada hora registrava sua presença em foto e filme, dia e noite, por 24 horas, assim um ano resultou em 6 minutos de filme. De novo a percepção do tempo sobre o corpo. Nas palavras do artista: “esta performance pode ser vista como uma repetição continua, mas em minha percepção, cada hora vivida intensamente não se repetia, era nova, porque estamos em um processo. O mais difícil foi dormir e acordar a cada hora, mas na vida é o mesmo, estamos sempre esperando a próxima hora, e temos que nos manter calmos. Um ano é o tempo que a Terra leva para circular o Sol. A Vida é a condição da Vida. A Vida é o passar do Tempo. A vida é o pensamento livre”.

A submissão ao momento vivido, é a base fundamental de uma ação performática. Mas, no Brasil, temos muita resistência a nos submeter a algo, pois temos uma noção distorcida, militarizada e torturante da disciplina, resultantes de nossa vivência no regime militar. Disciplina e submissão são muito importantes para se alcançar evoluções em nosso ser. O sujeito quer liberdade, mas não há liberdade sem limites, pois sem sabermos de nosso contorno perdemos a forma no espaço.

Hoje, quem está nos dando este contorno é a natureza, criando um vírus que de maneira muito viva, com energia muito criativa, vai devolvendo ao homem a violência depositada nesta natureza da qual somos parte.

Para se criar uma performance de longa duração é necessário criar estratégias de reconhecimento deste contorno, repetições que se renovaram a cada momento, como em um jogo de improviso. Muitos podem pensar que improvisar e fazer sem saber, mas ao contrario disto, o improviso exige, a priori, o conhecimento de uma base da forma, e assim podemos expandir e correr riscos pois sabemos para onde voltar com segurança, assim como voltar para casa em nosso cotidiano. O acontecimento regular cria a forma reconhecível, uma base, para que o inconsciente e o acaso ocorram sem perder-se no delírio e no emocional.

Os improvisos corporais exigem a atenção no tempo, no espaço e como o outro. Desde que entendi que o movimento e o corpo eram um material importante na minha linguagem, submeto este corpo a distintos treinamentos como: natação, yoga, dança, meditação, etc.…tudo que pode elaborar mais minha atenção e me dar resistência para suportar, psíquica e corporalmente, um novo estado. O Improviso, treinado na musica e na dança, me deu a habilidade de lhe dar com acontecimentos inesperados como parte integrante e desejada da obra.

Quem sabe esta noção vivida por nós possa trazer uma compreensão e aproximação das pessoas sobre as premissas criadas em uma performance de longa duração, para expressar a vida com a experiência corporal vivida no tempo?

A oportunidade aqui é de se criar consciência de seus próprios limites e se expandir, lapidando o espírito e o funcionamento de todo o corpo etéreo, energético e sinestésico. O tempo está suspenso como em uma performance, mas quantas vezes suportamos ser o expectador de uma performance por 2 horas? Hoje podemos nos localizar dentro deste espaço atemporal e parar de ser quem assiste para assumir sua presença na vida, parando de se sentir aprisionado e dependente das telas planas, iluminadas a frio, para não se sentir isolado. Estas telas são instrumentos importantíssimos neste momento onde não podemos nos conectar materialmente ao outro. É o único sistema seguro de dialogo e contato com o material e as necessidades da Vida. Mas, podemos agora que as funções capitais que nos faz viver na correria ralentaram, descansar os olhos e olhar para dentro, aceitando o tempo de reflexão, introspecção e vivencia de si. Por mais que esta experiência pareça solitária, está sendo vivida por todos os humanos na Terra. Quem não se submeter a ela se desintegrará!

Antônio Pitanga volta a Cannes com filme que debate racismo

Antônio Pitanga em Casa de Antiguidades, selecionado pelo Festival de Cannes
Antônio Pitanga em Casa de Antiguidades. Foto: Carlos Eduardo Carvalho/ Divulgação.

Filme brasileiro com Antônio Pitanga, Casa de Antiguidades foi um dos 56 longas-metragens selecionados esse ano pelo Festival de Cinema de Cannes. A obra conta a história de Cristovam, um operário negro de uma fábrica de laticínios transferido para trabalhar em uma cidade fictícia de colonização austríaca no sul do Brasil. O filme – flertando com o folclórico e utilizando das memórias trazidas pela casa do título – toca em questões de ainda maior relevância na atualidade, como o racismo e o conservadorismo político; parte das cenas do longa foram gravadas em uma cidade catarinense que teve forte apoio do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, por exemplo.

Antônio Pitanga em Casa de Antiguidades. Foto: Carlos Eduardo Carvalho/ Divulgação.

Sobre a obra, o diretor e roteirista João Paulo Miranda afirmou que “o filme tem o protagonismo de Antônio Pitanga, com seus mais de 80 anos, interpretando um homem que veio do interior de Goiás e que enfrentará violentamente um grupo ultra conservador no sul do Brasil. Isto o guiará num buraco negro profundo e complexo; que espelha um Brasil que está perdido no tempo, com cara dos anos 70”. E ele completa: “Para mim é necessário assumir o espirito vanguardista e usar todas minhas forças para uma linguagem digna aos grandes nomes do cinema”.

O Festival de Cannes, que seria realizado de 12 a 23 de maio com um júri presidido pelo diretor estadunidense Spike Lee, cancelou sua edição de 2020 por conta da pandemia de Covid-19. A não prorrogação vem de uma decisão da organização de respeitar a ocorrência de eventos cinematográficos mais próximos do final do ano, como Veneza e Toronto. Ainda assim, os 56 filmes selecionados têm o direito de ostentar o seu selo de aprovação oficial, mesmo que não tenham de fato concorrido aos prêmios como a Palma de Ouro.

O diretor artístico de Cannes, Thierry Frémaux, segundo a RFI, comentou sobre a situação do cinema no Brasil e expressou medo pelo futuro da Cinemateca, dizendo que “o Brasil vai mal, o cinema brasileiro está mal” e reiterando que “a Cinemateca está em grandes dificuldades”. A instituição cuida do acervo visual do país e corre perigo de parar de funcionar pela falta de recursos transmitidos. Uma petição, “Cinemateca Brasileira pede socorro”, foi criada em 15 de maio para reunir assinaturas que serão transmitidas ao governo federal através da Secretaria do Audiovisual, que tem à frente o roteirista Heber Trigueiro. Já assinaram a petição nomes importantes para a cultura brasileira como Walter Salles, Jean-Claude Bernardet, Ricardo Ohtake, Marcio Seligmann-Silva e Luis Peréz-Oramas.

O diretor Steve McQueen
O diretor Steve McQueen. Foto: BBC.

Além de uma maior presença feminina no festival e da inclusão de jovens diretores entre os selecionados, também é notável que não uma, mas duas obras, do premiado diretor britânico Steve McQueen tenham sido escolhidas. Lovers Rock e Mangrove integram Small Axe, sua antologia de cinco partes sobre a comunidade de West Indian, em Londres, no final dos anos 1960 até os anos 1980. O título vem de um provérbio de origem africana, que ressoa principalmente no Caribe: “Se você é a grande árvore, nós somos o pequeno machado”. O ditado foi popularizado em 1973 por Bob Marley.

Em comunicado à revista Variety, McQueen afirmou que os filmes foram dedicados a George Floyd e a “todos os outros negros que foram assassinados por causa de quem eles são, nos Estados Unidos, Reino Unido ou em qualquer outro lugar”. Vale lembrar que Small Axe foi uma comissão feita pela BBC, uma corporação pública da Inglaterra que emprega quase 19 mil pessoas e conta com contribuição de uma taxa de licença que é paga por todos os lares que possuem televisores.