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Com novo site, Bienal de São Paulo reforça presença online

Alfredo Jaar, "I Can’t Go On, I’ll Go On", 2019. Imagem: Cortesia do artista

Nesta terça-feira, 12 de maio, a Fundação Bienal lança o site bilíngue para a 34ª Bienal de São Paulo. Sob o título Faz escuro mas eu canto, a edição teve seu pontapé inicial em 8 de fevereiro – antes do surto do coronavírus alcançar o status de pandemia e da necessidade de isolamento social -, com a abertura da exposição de Ximena Garrido-Lecca e a performance realizada por Neo Muyanga, assistida por um público de quase 1,8 mil pessoas. Com a chegada da pandemia, a dinâmica de exposições individuais foi interrompida e as futuras mostras estão sendo repensadas pela curadoria da Bienal. Mesmo assim, embora a mostra coletiva tenha sido adiada de setembro para o dia 3 de outubro, a equipe da Bienal segue ativa e acaba de lançar o site da edição.

Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Equipe curatorial da 34a Bienal de São Paulo.
Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Foto: Pedro Ivo Trasferetti / Fundação Bienal de São Paulo

Novo site, novas confirmações

A 34ª Bienal terá a participação de cerca de 90 artistas, cujos anúncios têm sido graduais. Enquanto a Fundação não divulga a lista completa, o perfil dos artistas confirmados pode ser checado na nova página virtual. Aos 28 nomes que já constam na plataforma somam-se três novos artistas que contribuíram com a publicação educativa da 34ª Bienal: Carmela Gross, Daniel de Paula e Gustavo Caboco.

Gross já participou de sete edições da mostra. Seus trabalhos em grande escala se inserem no espaço urbano e assinalam um olhar crítico sobre a arquitetura e a história. Daniel de Paula, brasileiro nascido nos EUA, propõe em sua obra reflexões acerca da produção do espaço enquanto reprodução de dinâmicas de poder, revelando assim investigações críticas sobre as estruturas que moldam lugares e relações. O curitibano Gustavo Caboco, filho de mãe Wapichana, apresenta uma obra marcada pelo desejo à memória dos povos indígenas, pela repercussão das vozes desses povos e sua religação com o imaginário de luta e vida presentes em suas raízes – foi apenas em 2001 que Caboco conseguiu visitar a aldeia Canuanim (Roraima), de sua família.

Acesso gratuito às publicações da mostra

Seguindo a proposta da 34ª Bienal de expandir-se no tempo, as publicações do evento também começaram a ser lançadas em fevereiro de 2020 e se estenderão até outubro de 2020, por ocasião da inauguração da mostra coletiva. Tais publicações podem ser encontradas no site desta edição, com destaque para uma série de correspondências, elaboradas pela equipe curatorial da Bienal, para compartilhar com o público as reflexões sobre o desenvolvimento da 34ª edição.

Deana Lawson, “Oath”, 2013. Imagem: Cortesia do artista

Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada, curador geral e curador adjunto respectivamente, abordam a escuridão imprevisível da pandemia. “Em setembro, quando a mostra principal da Bienal abrir, quão sombrio estará o horizonte? É impossível prever”, escreve Miyada em uma correspondência “pré-isolamento”. Ao que Crivelli Visconti complementa: “Não previmos que a escuridão de que falávamos ficaria mais impenetrável ainda. Que a ameaça política e social à qual nos referíamos, simbólica e metaforicamente, de um momento para outro se tornaria também física, apesar de invisível”.

Já a curadora convidada Carla Zaccagni caminha rapidamente pelo processo de definição do título da Bienal. Ela comenta: “Decidimos chamá-la Faz escuro mas eu canto. Porque estamos em tempos escuros. E o escuro em que estamos é feito. Porque queremos olhar para esse escuro, olhar nesse escuro. Deixar que as pupilas se dilatem para capturar a luz que ainda há e começar a delinear vultos nas sombras.”.

Acervo multimídia mostra o que já veio e o que está por vir

Performance do artista sul-africano Neo Muyanga, apresentada no Pavilhão da Bienal em parceria com o coletivo Legítima Defesa. Foto: Levi Fanan/ Divulgação

Vale também vasculhar a parte multimídia disponibilizada, que conta, por exemplo, com o documentário sobre a realização da performance A Maze in Grace, de Neo Muyanga com Legítima Defesa + Bianca Turner, apresentada no dia 8 de fevereiro de 2020.

Embora as obras presentes na mostra coletiva ainda não estejam confirmadas, para cada artista foi criada uma galeria com algumas imagens referenciais de seu trabalho.

Desde 1996 a Bienal tem seu site próprio, sendo que todos podem ser vistos ou revistos no portal da Bienal, que também reúne conteúdos exclusivos sobre as diversas iniciativas culturais da Fundação Bienal e inclui o Arquivo Histórico Wanda Svevo, com mais de um milhão de documentos em torno das realizações das Bienais de São Paulo e seus desdobramentos na história da arte.

Confira também:

Em entrevista recente Jacopo Crivelli Visconti, curador da mostra, e Paulo Miyada, curador-adjunto, explicaram os principais contornos de seu projeto. Leia aqui.

 

Pioneiro da arte cinética, Abraham Palatnik morre aos 92 anos

Abraham Palatnik
O artista Abraham Palatnik em frente a uma de suas obras. Foto: Divulgação.

Morreu neste sábado (9 de maio de 2020), aos 92 anos, o artista Abraham Palatnik, vítima de Covid-19. Ele foi internado no dia 29 de abril em estado grave, após testar positivo para o novo coronavírus. Segundo pessoas próximas, ele sofria de doença pulmonar e contraíra uma pneumonia há seis meses. Um dos pioneiros da arte cinética no Brasil, Palatinik se consagrou pela criação de obras marcadas pela fusão entre o movimento, o tempo e a luz. Em 2017 a arte!brasileiros publicou texto de Vivian Mocellin sobre a mostra A Reinvenção da Pintura, uma grande exposição do artista que circulou por instituições como CCBB Rio e MAM-SP. Leia abaixo:

 

Um dos pioneiros da arte cinética no País, Abraham Palatnik ganha uma exposição no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro (CCBB Rio). A mostra reúne 85 trabalhos do artista, nascido em Natal em 1928, de pais russos, criado em Tel Aviv, na então Palestina, e desde 1947 – há 70 anos, portanto – residente no Rio.

São pinturas, aparelhos cinecromáticos, objetos cinéticos e lúdicos, mobiliário e desenhos de projetos, provenientes de acervos particulares e institucionais do País e, principalmente, da coleção do próprio artista. A mostra, com curadoria de Pieter Tjabbes e Felipe Scovino, ocupa todo o segundo andar do CCBB.

“A história da arte mundial considera Palatnik um pioneiro da pintura e da escultura em movimento”, destaca Scovino. Tanto ele quanto Tjabbes apontam “o diálogo preciso entre tecnologia e intuição” como um  dado fortemente significativo do lugar que Palatnik ocupa no panorama da arte. “Além disso, o experimentalismo e a organicidade sobrevoam a sua trajetória. Dois dados aparentemente ambíguos que encontram uma simbiose perfeita”, afirmam.

Também fazem parte da exposição pinturas dos pacientes psiquiátricos do hospital do Engenho de Dentro – Emydgio de Barros (1895-1986) e Raphael Domingues (1912-1979) –, que influenciaram uma mudança de rota na carreira do artista. Ele conheceu os dois em 1948, ao visitar o Museu de Imagens do Inconsciente, criado no manicômio pela psiquiatra Nise da Silveira.

Detalhe de obra de Abraham Palatnik. Foto: Agência Brasil

A partir de suas idas ao hospital, Palatnik abandonou tintas e pincéis e não voltou mais à pintura figurativa. “Eles não tinham aprendido nada na escola, não frequentavam ateliês e, de repente, surgem imagens tão preciosas. De onde veio essa força interior? Não vou mais pintar porque minha pintura não valia nada, era uma porcaria”, relata Palatnik sobre a decisão que tomou na época.

O resgate para a vida artística veio de um encontro com o crítico Mário Pedrosa e da leitura de um livro indicado por ele, sobre Gestalt, de Norbert Wiener. Em 1949, ele começou a pesquisar sobre luz e movimento até criar/fabricar os “aparelhos cinecromáticos” – caixa com lâmpadas cujo deslocamento era acionado por motor, criando imagens de luzes e cores em movimento.

Foi com o cinecromático Azul e roxo em seu primeiro movimento que Palatnik participou da 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, ganhando menção honrosa do júri internacional. Ainda nos anos 50, ele desenvolveu pesquisa em pintura abstrato-geométrica e também em design de móveis.

Em 1964, o artista cria os “objetos cinéticos”, construídos por hastes ou fios metálicos que têm nas extremidades discos de madeira de várias cores e são movimentados por um motor. No mesmo ano, participa da Bienal de Veneza, o que estimula sua carreira no circuito internacional.

MAM Rio faz chamada internacional para cargo de direção artística

MAM Rio. Foto: Divulgação

No dia 3 de maio, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) completou 72 anos. A celebração da data veio na forma de uma chamada internacional sul-americana para um cargo novo na instituição: diretor-artístico. Desde janeiro de 2020, o MAM Rio está sob nova liderança com o diretor-executivo Fabio Szwarcwald e essa iniciativa faz parte de um reposicionamento da instituição, que conta com um dos mais importantes acervos de arte moderna e contemporânea da América Latina, com cerca de 15 mil obras. A recente chamada marca a primeira vez que o MAM Rio faz um processo seletivo aberto para uma posição de destaque.

“É parte da transformação do MAM Rio atrair profissionais que, com suas experiências e conhecimentos, contribuam para a construção de novas formas de atuação, pautadas por valores inclusivos em favor de um pensamento coletivo. O objetivo é promover o trânsito entre as diversas expressões artísticas, eliminando fronteiras e gerando integração entre gêneros e programas poéticos”, afirma Szwarcwald em texto divulgado pelo museu.

MAM Rio
Da esq. para a dir., Jochen Volz, Fabio Szwarcwald e Eduardo Saron. No seminário “Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos”, organizado pela ARTE!Brasileiros e pelo Itaú Cultural. Foto: Divulgação

Para o diretor, a proposta de uma chamada aberta é “divulgar a iniciativa a um número maior e mais diversificado de profissionais com a possibilidade de contribuir com a visão de um museu contemporâneo, aberto, sustentável e solidário”, complementando que essa é uma visão que o MAM Rio deseja construir junto com os artistas, a sociedade e os públicos do museu.

A direção artística será responsável pela curadoria de artes visuais e pela gestão das coleções, além de ser responsável por áreas que abrangem desde as exposições até iniciativas e eventos dos departamentos de cinema, documentação e educação; além da parceria com a residência artística internacional Capacete, que terá suas atividades, agenda e processos de pesquisa integrados ao MAM Rio.

O contrato de trabalho tem prazo mínimo de dois anos, com possibilidade de renovação, e podem se candidatar profissionais de nacionalidade brasileira ou estrangeira, desde que tenham visto de residência e trabalho no Brasil ou cidadania de um dos países do Mercosul (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai).

Como participar

Para participar, os candidatos deverão encaminhar suas propostas, de acordo com as regras e os critérios divulgados no site do museu (www.mam.rio). O prazo final de recebimento será 24 de maio. Um comitê formado por funcionários da instituição e artistas externos vão avaliar as candidaturas.

Passada a primeira etapa do processo seletivo, cinco candidatos serão entrevistados para a segunda parte da convocatória. O prazo final de análise para a última etapa da chamada internacional é o dia 24 de julho, com resultado divulgado no dia 27 do mesmo mês – o prazo pode ser alterado em razão da quarentena.

A movimentação do MAM Rio ilustra os esforços dos museus e instituições diante dos desafios postos pelo isolamento social devido à pandemia do coronavírus. Para a Veja SP, Szwarcwald comentou que “a cultura é uma válvula de escape nesses tempos difíceis. As pessoas estão percebendo que a arte é uma forma de ver o mundo de outra forma e de propor soluções. A arte, assim como a ciência, diz para onde a gente vai. Acredito que a arte passará a ser mais valorizada quando a pandemia terminar.”. 

Confira também o seminário “Gestão Cultural: desafios contemporâneos”, realizado em 2019 pela arte!brasileiros e pelo Itaú Cultural, no qual Fabio Szwarcwald foi um dos convidados. Neste link.

 

Diários Imagéticos: a contribuição de um retrato para o debate sobre HIV/AIDS nos anos 1990

A mãe de David Kirby, Kay, segura uma fotografia de seu filho - tirada pelo fotógrafo Art Smith, de Ohio - antes do desenvolvimento das doenças relacionadas à AIDS. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine
A mãe de David Kirby, Kay, segura uma fotografia de seu filho - tirada pelo fotógrafo Art Smith, de Ohio - antes do desenvolvimento das doenças relacionadas à AIDS. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine

Há 30 anos, em 5 de maio de 1990, faleceu, na Casa Pater Noster em Columbus, Ohio, o ativista David Lawrence Kirby. O retrato, no momento de sua morte, cercado pela família e seu cuidador, Peta, foi registrado pela fotógrafa Therese Frare. A foto rendeu a Therese, no ano seguinte, o principal prêmio do fotojornalismo mundial, o World Press Photo. Pouco mais de uma década depois, em 2003, a fotografia foi considerada pela LIFE Magazine “a foto que mudou a face da AIDS” e foi incluída em 2016 no livro TIME 100 photographs: the most influential images of all time, da TIME Magazine, a detentora da publicação anterior.

Therese Frare, no instante [e lugar] decisivo[s]

Em janeiro de 1990, Therese Frare estava interessada em retratar as questões que cercavam o HIV/AIDS. Entretanto, uma das barreiras a serem contornadas era a dificuldade de encontrar um grupo de pessoas vivendo com HIV/AIDS que estivesse disposto a ser fotografado. Com medo da exposição por si só, mas também impactadas pelo teor negativo marcante das reportagens publicadas até então sobre o vírus, as pessoas que viviam com HIV/AIDS tinham receio de serem representadas, ainda mais em imagens, cujo papel na personalização da notícia pode ter efeitos dialéticos.

A Pater Noster House, em Columbus, foi uma exceção à regra, porque sua criadora e diretora Barb Cordle acreditava na importância de divulgar a finalidade e os objetivos da instituição. Com isso, a permissão para fotografar foi concedida a Frare, que logo estabeleceu uma relação com Peta, um voluntário que cuidava de David e outros pacientes. David, por sua vez, permitiu que Frare o fotografasse com a condição de que ela não tivesse lucros pessoais com a venda das imagens. Foi a relação estabelecida com Peta que possibilitou a Frare fotografar o falecimento de David.

No mesmo ano em que a fotógrafa começou seu trabalho na Pater Noster, o Ryan White CARE Act foi promulgado pelo Congresso estadunidense, após alguns meses do falecimento de Ryan White, um adolescente hemofílico de Indiana que havia contraído HIV aos 13 anos por transfusões de sangue contaminado. White fora expulso da escola na década de 1980 por ser portador do vírus e iniciou, com a mãe Jeanne White Ginder, uma batalha jurídica que elevou seu nome a um símbolo da luta contra a AIDS. Segundo a HRSA (Administração de Recursos e Serviços de Saúde dos Estados Unidos), o CARE é o maior programa do país focado especificamente em fornecer serviços de tratamento para pessoas de baixa renda vivendo com HIV que não têm seguro e/ou são carentes.

A despedida

Em 5 de maio de 1990, Frare e Peta estavam juntos na Pater Noster House quando outros voluntários vieram buscá-lo para que pudesse estar com David nos seus momentos finais. Frare conta que, a princípio, permaneceu fora do quarto de Kirby, só entrando quando a mãe de David pediu que ela fotografasse as despedidas da família; “eu entrei e fiquei em silêncio no canto, mal me mexendo, observando e fotografando a cena”. O processo, com maior detalhamento, é contado por Frare no documentário de curta-metragem The Face of AIDS (realizado pela TIME para seu projeto 100 photographs), no qual a fotógrafa percorre a sucessão de eventos daquele dia. No mini-doc também é mostrado o rolo de filme, com imagens do mesmo dia, de antes e depois, nem todas publicadas.

Nos registros de 5 de maio vemos Peta consolando David sozinho antes da chegada da família; as mãos de uma enfermeira do lar Pater Noster colocadas sobre as de David, sobre seu peito; e dois registros da mesma cena, por ângulos diferentes – um deles que ganhou notoriedade.

Em outra imagem está Kay Kirby, mãe de David, segurando uma foto do filho sorrindo, vestido com terno e gravata, com a face mais preenchida, antes de ter desenvolvido as doenças relacionadas à AIDS. 

A imagem notória

Na imagem premiada, David – com uma expressão já esmaecida – está em seus momentos finais. Reunidos com ele estão Peta, com a mão sobre seu braço; seu pai Bill, que enlaça a cabeça do filho nos braços enquanto chora; e sua irmã Susan que conforta a sobrinha do ativista ao seu lado. O toque pelo pai questiona a crença, ainda presente na época, que o HIV poderia ser transmitido pelo tato. O apoio de uma família fora dos grupos marginalizados confere valor à figura de David e assim ajuda a enfraquecer o estigma simbólico direcionado ao homem gay. “Ao fazer da AIDS um problema de todos e, portanto, assunto sobre o qual todos precisam ser educados, é subvertido o nosso entendimento da diferença entre o ‘nós’ e o ‘eles'”, escreve Susan Sontag em AIDS como metáfora. A foto destaca em David a figura do filho, ação que tem impacto no encurtamento da distância entre o “nós” e o “eles” citada por Sontag, até mesmo em um tempo tão hostil com as pessoas que viviam com HIV. 

Foto de Therese Frare ajudou a intensificar o debate acerca do HIV/AIDS
David Kirby – cercado por Peta e sua família – em seu leito de morte, Ohio, 1990. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine

Mesmo que possa reforçar estereótipos de representação de pessoas em estado terminal, a imagem de Frare “permite reconhecer o medo paralisante ao mesmo tempo em que desencadeia um impulso de fazer algo a respeito”, como escrevem Robert Hariman e John Louis Lucaites.

O enlace de David por Bill, congelado na imagem de Therese, consegue conectar-se ainda com uma das representações artísticas mais sólidas nos corações e mentes da população ocidental: A Pietà de Michelangelo.

Cores reunidas: A controversa campanha da Benetton

Tibor Kalman – editor-chefe da revista Colors, da grife de moda italiana Benetton – havia visto o retrato de David Kirby na LIFE de 1990 e pediu permissão à família e à fotógrafa para seu uso, que foi concedido. Assim, em 1992, a Benetton coloriu a fotografia, originalmente em preto e branco, com intuito de amenizar o caráter fotojornalístico e deixá-la mais próxima de uma propaganda. O trabalho foi realizado pela colorista Ann Rhoney com tinta a óleo em menos de vinte e quatro horas: “Eu queria capturar a dignidade de David. O mesmo sentimento que Therese deve ter tido, eu penso”.

Foto de Therese Frare ajudou a intensificar o debate acerca do HIV/AIDS
Foto de Therese Frare colorizada por Ann Rhoney e apropriada para uma leva de publicidade feita pela grife de moda italiana Benetton

O título oficial da imagem, contrariando o esperado, não era “AIDS”; a propaganda, a princípio, recebeu o nome de “Família”. Apesar disso, foi pessoalmente batizada por Oliviero Toscani – diretor criativo da Colors e responsável pela leva de publicidades “United Colors of Benetton – de “La Pietà”, que com sua explicação para tal adicionou ainda mais furor à questão:

“Pessoalmente eu a chamo de ‘La Pietà’ porque é a Pietà que é real. A Pietà de Michelangelo, na Renascença, pode ser falsa, Jesus Cristo pode ter nunca existido. Mas nós sabemos que esta morte ocorreu. Isso é real, e quanto mais real algo é, menos pessoas querem vê-lo. Sempre me intrigou o porquê aquilo que é falso tem sido aceito e a realidade tem sido rejeitada. AIDS é hoje um dos maiores problemas no mundo, então penso  que deveríamos mostrar algo a respeito.”

O uso da foto colorizada gerou reações mistas; indivíduos e grupos, variando desde católicos a ativistas da AIDS, expressaram indignação: “Eu não vi uma mensagem de empoderamento, não vi nenhum tipo de mensagem vinda daquele anúncio que pudesse fornecer às pessoas uma maneira de se tornarem ativas, de agirem em seu próprio mundo”, argumenta Marlene McCarty, integrante do grupo de ativismo da AIDS, Gran Fury, no mini-doc The Face of AIDS. Ainda nos Estados Unidos, outro grupo militante, o ACT Up, talvez o principal relacionado à causa, fez uma contra-campanha à peça publicitária com outdoors escritos “Existe apenas um pullover que esta fotografia deveria ser usada para vender”, acompanhados da foto de um preservativo masculino.

Na Inglaterra, a instituição de caridade Terrence Higgins Trust convocou um boicote à peça publicitária enquanto o The Guardian foi forçado a lançar um editorial justificando sua decisão de manter a propaganda. As revistas de moda Vogue, Elle e Marie Claire, em sua edição britânica, recusaram colocar a publicidade em suas páginas. O caso mais extremo foi na Alemanha, onde a companhia foi levada aos tribunais.

Diante das demandas por boicote da publicidade e as acusações de estarem usando Kirby e sua família, a Benetton argumentou que “em alguns países como Paraguai, essa foi a primeira campanha a falar sobre AIDS, e em muitos países foi a primeira campanha a ir além das medidas puramente preventivas e abordar temas como solidariedade para com pacientes com AIDS”. A favor da Benetton, somou-se uma declaração de Therese Frare à TIME, sobre uma afirmação de Bill Kirby: “Benetton não nos usou ou explorou. Nós a usamos. Por causa deles, sua foto foi vista ao redor do mundo, e é exatamente isso que David gostaria”.

Por volta de 2010, no aniversário de duas décadas da fotografia de Therese Frare, foi estimado pela TIME Magazine que 1 bilhão de pessoas haviam visto o retrato.

 

300 Desenhos reúne artistas em torno de causas humanitárias

Detalhe de "Árvore" (2013), Manuella Karmann doado para o 300 desenhos

Com o objetivo de arrecadar recursos para apoiar três importantes organizações filantrópicas – que estão desenvolvendo ações diretas durante a pandemia do Covid-19 -, o projeto 300 Desenhos reuniu um grupo voluntário de profissionais das artes visuais que conta com artistas em diversos estágios de carreira. As únicas diretrizes foram que o trabalho doado fosse um desenho, inédito ou não, em folha A4, permitindo a interpretação livre de cada participante e resultando em um corpo de trabalho coletivo e diverso.

 

 

Entre os convidados estão artistas consagrados como Ernesto Neto, Artur Lescher, Guto Lacaz e Jac Leirner, além de nomes emergentes como Anna Costa e Silva, Mariana Palma, Mano Penalva e Manuela Costa Lima.

Como funciona?

Ao contribuir com uma cota única de R$ 1000, os apoiadores do projeto são direcionados para o site do projeto, onde poderão visualizar as obras doadas e descobrir qual será a sua. Um ponto interessante é que a obra não é escolhida pelo apoiador, mas sim por um algoritmo da própria iniciativa. Assim, cada desenho é, de certa forma, designado ao seu dono como se a obra escolhesse o apoiador. Não há limite de colaborações, no entanto.

A campanha vai até o dia 10 de maio e quando for finalizada os fundos recolhidos serão doados em partes iguais para as três organizações filantrópicas escolhidas: APIB, CUFA e Habitat.

As organizações apoiadas

A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) é referência no movimento nacional indígena. Nasceu para defender os direitos indígenas, articulando e reunindo organizações de todas as regiões do país.

CUFA (Central Única das Favelas) é responsável pela criação e implementação de projetos culturais, artísticos, esportivos e educacionais nas favelas e periferias de todo o Brasil. Sua ação teve início há mais de 20 anos.

Habitat Brasil faz parte da mobilização internacional Habitat for Humanity. No país, a organização atua desde 1992 para propor e incidir em políticas públicas de acesso à moradia. Além disso, promove ações de capacitação e, através de ações de voluntariado e mobilização, busca envolver a sociedade na luta pelo direito à moradia adequada.

Organização

Os organizadores do 300 Desenhos são Amanda Rodrigues Alves, Alexandre Gabriel, Camilla Barella, Carolina Câmara, Efrain Almeida, Erika Verzutti, Fernanda Brenner, Magê Abatayguara, Mel Marcondes e Paula Signorelli.

A hora e a vez de os democratas agirem

Claudio Tozzi, "A Prisão", 1968. Foto: Divulgação.

* Por André Singer, Christian Dunker, Cicero Araújo, Felipe Loureiro, Laura Carvalho, Leda Paulani, Ruy Braga, Vladimir Safatle

 

I. O projeto bolsonarista e a pandemia

Nas comunidades antigas, costumava-se escolher chefes com poderes excepcionais em duas ocasiões: na guerra e na epidemia. Os romanos chamavam esse poder concentrado de “ditadura”. Na época contemporânea, ditadura passou a ser o nome, não de um instrumento de governo passível de ser implementado em contextos de crise, mas de um regime político autoritário, necessariamente resultado de uma usurpação. A coincidência do nome nos lembra uma distinção sutil que o século XX provou fazer toda a diferença, confirmando um velho adágio: “a ocasião faz o ladrão”. 

A tentativa do presidente Jair Bolsonaro de instrumentalizar a Polícia Federal, que ocasionou a demissão do Ministro da Justiça, é apenas o último elo de uma longa cadeia de um projeto autoritário.

Antes da explosão do coronavírus, o núcleo duro do bolsonarismo vinha lançando as bases de um regime antidemocrático assentado na submissão das práticas de governo à lógica da mobilização permanente – nas redes, nas ruas, nas igrejas e, perigosamente, nos quartéis. Tal mobilização parte do diagnóstico do esgotamento dos espaços de negociação próprios à democracia liberal, mas não no sentido de reformá-la, muito menos substituí-la por mecanismos de democracia direta. Trata-se de uma guinada autoritária que se centra em uma liderança de culto personalista, cujos atos e palavras pretendem simbolizar a verdade, sem qualquer abertura para o dissenso.

Vemos o modelo espalhar-se pelo mundo. Tendo o presidente norte-americano Donald Trump como líder, Bolsonaro e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán formam alguns dos principais integrantes dessa internacional autoritária de extrema-direita. Orbán usou a crise do coronavírus para obter poderes excepcionais, representando o experimento autoritário furtivo mais bem realizado até agora. Diz-se furtivo, nos termos de Adam Przeworski, porque não decorre de um golpe de Estado, mas implementa-se aos poucos, alicerçado na letra da lei, e conduzido por líderes democraticamente eleitos – semelhante, aliás, à maneira pela qual determinados regimes fascistas ascenderam ao poder, como o nazismo alemão.

Ainda candidato à presidência, Bolsonaro dera inúmeras provas de seu projeto autoritário, indo de declarações favoráveis à ditadura militar (1964-1985) ao encorajamento de execuções extrajudiciais pela polícia; da negativa à legitimidade de adversários políticos a ameaças de golpes de Estado. Uma vez presidente, os ataques ao Estado de Direito continuaram. No final de outubro de 2019, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, porta-voz informal do presidente, ameaçou editar, em caso de radicalização, um novo AI-5. Um mês depois, o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, repetiu a ameaça. Em janeiro deste ano, o líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (GO), afirmou que a Constituição prevê a suspensão de garantias e liberdades individuais e coletivas em caso de necessidade. Em fevereiro, o motim de policiais militares no Ceará, apoiado indiretamente pelo presidente, representou uma ameaça ainda maior à democracia, com quebra de autoridade militar, esvaziamento do poder de governadores, e demonstração da fidelidade de lideranças dos amotinados a Bolsonaro.

No Brasil pré-pandemia, o pretexto que vinha se formando para o fechamento da democracia era a missão de vencer o inimigo interno, caracterizado como antinacional e anticristão. Aqui se amalgamam um conjunto de estereótipos e preconceitos que perpassam concepções sobre família, sexualidade, gênero, raça, drogas, segurança, educação, cultura, ciência, propriedade privada, relações internacionais e, unindo tudo , o papel do Estado na sociedade e no mundo. Assentado na construção do inimigo doméstico, o projeto bolsonarista de poder impõe uma dinâmica de contínua transformação do país, visando a consolidação de uma sociedade intolerante, violenta, e voltada à preservação e aprofundamento das estruturas historicamente desiguais de poder, status e riqueza.

O horizonte maior do bolsonarismo é a mutação ideológica de setores da sociedade, que passam a operar, sem recalque algum, a partir de profunda indiferença, aversão à solidariedade, e falta de respeito ao próximo. Estamos diante de uma tentativa de revolução conservadora. Essa revolução conta com uma base  altamente mobilizada – e, o mais dramático, parte dela armada –, disposta a seguir cegamente os passos do líder. Alicerçado em sindicalismo militar, culto à violência, e glorificação das Forças Armadas e das polícias, Bolsonaro mantém seguidores fiéis nas fileiras dessas corporações, além de nas milícias. Trata-se de um poder que não se pode subestimar.   

De que forma a pandemia afeta esse projeto? Na Hungria, a fim de empregar a Covid-19 como pretexto para fechar ainda mais a democracia, Orbán teve que reconhecer a gravidade das ameaças à saúde pública que se abatem sobre o mundo. A adoção urgente de medidas restritivas para frear a transmissão do vírus serviu para que o primeiro-ministro húngaro disfarçasse as ambições ditatoriais. No contexto pandêmico, o parlamento do país, controlado pelo partido de Orbán, aprovou a possibilidade de o primeiro-ministro governar por decreto, cancelar eleições e punir disseminadores daquilo que o próprio Executivo considerasse como informações falsas que pusessem em risco a saúde da população. Ficou claro, ali, que a pandemia pode se transformar em grande ameaça à democracia, por tratar-se de um álibi perfeito para a necessidade de estabelecer um regime de exceção.

Mas a posição de Jair Bolsonaro tem sido, ao contrário, a de negar e esconder os enormes riscos trazidos pela doença. Em um primeiro momento, até mesmo a profundidade do colapso econômico causado pela pandemia foi minimizada: em 16 de março, o ministro da Economia Paulo Guedes ainda declarava que a economia brasileira “poderia perfeitamente crescer 2,5% neste ano”. Num segundo momento, o Planalto passou a reconhecer o perigo econômico, porém apenas para atribuí-lo às medidas restritivas tomadas por prefeitos e governadores. Nesse sentido, ao minimizar a pandemia, Jair Bolsonaro abriu mão da possibilidade de tomar ele próprio as rédeas da situação, acumulando poderes excepcionais como Orbán; ao contrário, vem se apresentando como paladino das liberdades individuais, do direito de trabalhar, de ir e vir e, até mesmo, da privacidade dos dados.

Para a perplexidade geral, porém, os sinais de que o horizonte continuava a ser a concretização do projeto autoritário não cessaram em meio ao negacionismo. Em 15 de março, suspeito de portar o vírus, Bolsonaro decidiu misturar-se a manifestantes em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Alguns dias depois, declarou que decretar tanto o estado de sítio quanto o estado de defesa seria algo “relativamente fácil”, coisa de “poucas horas”, por meio de “medida legislativa para o Congresso.” Se aprovadas pelo Congresso, isso permitiria restringir direitos de reunião, sigilo telefônico e liberdade de imprensa, além de viabilizar busca e apreensão em domicílio sem mandato judicial e até mesmo prisão por “crime contra o Estado”. Em 19 de abril, Dia do Exército, Bolsonaro discursou diante de manifestantes pró-intervenção militar em Brasília na frente do QG do Exército, dizendo que não haveria mais “negociação” possível com os patifes (leia-se: Rodrigo Maia e STF, principais alvos da manifestação), e que “agora é o povo no poder”.

A escalada contra o Estado de Direito, o negacionismo e a tática de esgarçamento das instituições vêm inflando a oposição ao presidente no Legislativo, no STF e dentro de seu próprio ministério, além de ter provocado perda de apoio ao governo em parte das elites econômicas do país. A garantia por parte do STF da autonomia de estados e municípios para determinarem políticas de isolamento social e as dificuldades para demitir o ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cujas políticas opunham-se diametralmente à retórica presidencial, sinalizam um contexto menos favorável ao projeto bolsonarista. Do mesmo modo, a saída do ministro Sérgio Moro representa um duro movimento de desconstituição da rede de apoios institucionais que sustentavam o presidente.

Ocorre que o isolamento político e institucional de Bolsonaro funciona para reforçar o mito do “salvador acorrentado”, refém de instituições corruptas e antinacionais, permitindo-lhe manter a prática de jogar nas costas de supostos inimigos internos – agora representados especialmente pelos governadores e pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia – a culpa por uma potencial perturbação da ordem pública, enquanto o presidente seria o único preocupado com a defesa do emprego e da renda da população. Com isso, Bolsonaro visa ampliar apoio junto às camadas populares desprotegidas e consolidar sua relação com setores empresariais – como o varejo, por exemplo –, que sofrerão impactos profundos do que deve ser a maior queda anual de PIB de nossa história.

Apesar de ser uma aposta de altíssimo risco, ela poderá prosperar a depender da longevidade e gravidade da crise. Somando-se o culto quase religioso à personalidade de Bolsonaro com o fato de parte significativa dos apoiadores estar armada, concentrando-se nas fileiras inferiores do Exército (cabos, sargentos, tenentes e capitães), nas polícias e nas milícias, temos uma combinação explosiva para contextos de instabilidade e incerteza, ainda mais em se tratando de uma figura cujo projeto é exatamente o de destruir a democracia. Trata-se, em suma, de um projeto de revolução conservadora que é capaz de colocar Jesus Cristo atrás de uma arma e de militarizar nossas escolas.

II. As contradições do bolsonarismo

Mas a pandemia também cria uma oportunidade para os opositores do presidente. Por constituir um inimigo literalmente invisível, o combate ao vírus precisa ser coletivo para ser eficaz. Agir em coletividade, no entanto, representa diluir as divisões com as quais o bolsonarismo opera, com sua desumanização de inimigos internos e sua permanente polarização do bem contra o mal. Daí também o porquê de Bolsonaro negar a existência de uma ameaça à saúde pública, recriando dicotomias que mantenham os adeptos permanentemente mobilizados. 

O ponto crucial de seu argumento é: como comparar a morte física de alguns à morte econômica do país, impedido de produzir, trabalhar e sustentar os filhos, que resultaria em número infinitamente maior de mortes? O Brasil está sendo colocado diante de uma escolha falsa: ou a morte física provável ou a morte econômica certa. A terceira e óbvia saída, que recusa o dilema entre a morte econômica e a morte física, envolve minimizar o quanto possível a letalidade do vírus, via isolamento social – este último coordenado com estados e municípios e amparado por amplo apoio emergencial ao sistema público de saúde –; e atenuar também, na magnitude e no tempo necessários, a perda de renda e emprego, a partir da aprovação de medidas de proteção e de apoio a setores econômicos em colapso.

A adoção do terceiro caminho exigiria o abandono de dois dos principais pilares do bolsonarismo. Para frear o contágio do vírus e evitar o colapso do sistema hospitalar, é necessário valorizar mais do que nunca a ciência e a universidade, deixando de lado o antiintelectualismo que está na essência, sobretudo, da ala olavista. Para preservar ao máximo a renda da população durante a fase de isolamento e impedir uma depressão da economia após o controle da pandemia, é preciso pôr fim ao fundamentalismo de mercado que ajudou a eleger Bolsonaro. Essa questão não precisou ser enfrentada, por exemplo, por Viktor Orbán na Hungria, que une à plataforma autoritária uma forte oposição ao neoliberalismo e à globalização. 

Para eleger-se presidente em 2018, ao invés de culpar estrangeiros pela perda de empregos, como fizeram líderes de extrema direita em países do Norte global, Bolsonaro aproveitou-se da frustração crescente da população com a piora das condições de vida desde 2014-16 para reforçar o senso comum de que a corrupção do establishment político – e da esquerda, em particular – teria sido a responsável pela recessão econômica. Para a economia voltar a crescer, seria necessário, portanto, livrar-se do próprio Estado em suas diversas esferas de atuação, exceto a da segurança e encarceramento.

Em meio à crise atual, que requer mais do que nunca a atuação do Estado, o governo se vê em uma encruzilhada. De um lado, se não abandonar o fundamentalismo de mercado, terá de lidar com a perda de popularidade entre os mais afetados pela crise. De outro, ao mudar radicalmente o discurso na economia, expõe contradições intestinas. Assim, o que estamos vendo são tentativas de fazer um pouco de cada.

Em uma mudança improvisada, mas substantiva, ao ser pressionado por projetos aprovados a toque de caixa pelo Congresso, o governo acabou implementando medidas radicalmente contrárias ao DNA neoliberal, entre as quais a concessão de vultosos recursos para o programa de renda básica emergencial, o pagamento de parte do seguro-desemprego para trabalhadores com redução de jornada, a desoneração de diversos setores econômicos, e a oferta de linhas de crédito subsidiado para empresas em dificuldade. No último dia 22 de abril, sem a presença de nenhum representante do Ministério da Economia, o Ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, anunciou um plano de recuperação econômica de R$ 30 bilhões em investimentos em infraestrutura até 2022. De outro lado, apesar das importantes mudanças, a equipe econômica mantém o discurso neoliberal de que serão necessárias reformas estruturais, cortes agressivos de despesas e privatizações no contexto pós-pandemia.

No caso do pilar antiintelectual, a resposta foi menos ambígua. O presidente recusou-se por completo a valorizar a ciência e a apoiar as medidas de isolamento, optando, em sua qualidade de chefe de Estado e de governo, por uma verdadeira sentença de morte aos grupos de risco. Ao mostrar-se indiferente à tarefa de proteger os cidadãos contra a ameaça da morte, Bolsonaro rompe com o princípio basilar do pacto social e com a justificativa da existência do próprio Estado: a garantia do direito à vida.

As informações que surgem a cada dia sobre a dinâmica de espraiamento da pandemia, a natureza da doença produzida pelo coronavírus e as terapias eficazes para tratá-la ou preveni-la ainda precisam ser submetidas ao método científico de verificação e refutação empíricas – algo que requer tempo e cautela. Entretanto, com base no que já aconteceu em outros países, acumulam-se evidências sobre o grau de letalidade da Covid-19 e a grande variedade dos grupos de risco. No contexto em que a realidade tende a se impor sobre teorias conspiratórias com a força persuasiva do número de mortos e doentes, o modus operandi típico do bolsonarismo arrisca-se a perder força.

Há também fortes evidências de que os mais pobres serão muito mais afetados, não só pelo maior número de contaminações (transporte público, número de pessoas no domicílio, falta de acesso a saneamento, dificuldade de manter o isolamento sem perda excessiva de renda ou emprego), mas também pela maior gravidade dos casos pela incidência de comorbidades. A desigualdade no acesso à saúde é abissal: quase cinco vezes mais leitos de UTI por 10 mil habitantes na rede privada do que no SUS. Ou seja, os mais vulneráveis à morte econômica também são os mais vulneráveis à morte física, o que pode fazer das pressões por menos desigualdade uma questão de sobrevivência. 

Nesse sentido, é na profunda indiferença do bolsonarismo ao direito à vida que jaz seu calcanhar de Aquiles em contexto de pandemia. Esta fraqueza merece toda a atenção dos setores democráticos, uma vez que pode ser convertida em fator poderoso para barrar o projeto autoritário e retirar seu chefe da presidência. A solidariedade e o espírito de comunidade que se formam em torno da experiência coletiva do adoecimento representam a antítese dos afetos típicos da onda neofascista.

A pandemia vem desencadeando uma coordenação de esforços de solidariedade que confronta diretamente o profundo descaso social do governo. Um caleidoscópio de movimentos com foco na assistência de áreas periféricas das grandes cidades ganhou força, especialmente na região metropolitana de São Paulo, a maior do país e a mais afetada pelo vírus até aqui em termos absolutos. Alguns desses grupos são antigos, outros nasceram do próprio acontecimento ou da união de movimentos populares pré-existentes. Todos, porém, do G10 Favelas ao UNAS Heliópolis e Região, do Movimentos Populares Contra o Covid-19 à Campanha Jd. Ângela Contra o Covid 19, articulam-se pelas redes sociais, com a ajuda de voluntários – religiosos e laicos – que atuam in loco nas periferias, formando uma linha de frente tão importante contra a crise quanto aquela constituída por profissionais de saúde em hospitais.

A constituição das experiências vinculadas à dependência mútua e à vulnerabilidade tem o potencial não somente de quebrar a polarização entre patriotas e inimigos da nação, mas também contêm, em seu germe, a própria negação da lógica de esvaziamento da capacidade estatal de atuação e de mobilização de recursos, indo ao encontro, a partir da base da sociedade, das políticas de cunho social recentemente aprovadas pelo Congresso Nacional e das novas formas de “governar” suscitadas pela pandemia. As iniciativas de solidariedade podem se constituir no embrião de uma nova agenda de combate político.

É fácil perceber o potencial de mobilização que há aí para tornar permanentes as medidas de proteção social adotadas durante a fase de combate à pandemia e para a criação de sistemas efetivos de tributação da renda e do patrimônio dos mais ricos, a fim de distribuir melhor os custos da crise e impedir o retorno das políticas de austeridade. A garantia de recursos para a saúde pública, pesquisa científica, saneamento básico e outras áreas que a pandemia torna prioritárias exigirá também a mobilização intensa da sociedade civil em torno da revisão do teto de gastos. Certamente essas demandas enfrentarão forte resistência dos adeptos do Estado mínimo, mas o contexto engendrado pela agressividade do novo coronavírus abriu espaço para a construção de uma agenda efetiva de transformação social, que deve servir como pilar na luta da sociedade contra o autoritarismo.

III. A hora da decisão

O problema é que ao provocar o que pode se tornar a maior crise econômica da história do capitalismo, em meio ao grande número de óbitos derivados diretamente do vírus, o coronavírus ameaça, também,  produzir um ambiente turbulento e propício aos ataques contra a democracia. Uma liderança autoritária, como a do atual presidente, vai se lançar a todo o tipo de aventuras, usando os piores estratagemas – desde doses cavalares de desinformação e cortinas de fumaça até a instigação de violência contra “inimigos”. Bolsonaro é o tipo de figura que não economiza no hábito de apontar o dedo e linchar “culpados”, insuflando seguidores a destruir os obstáculos que estariam mantendo o “mito” acorrentado e que o impediriam de governar para o bem da nação. Tudo em meio a uma malta armada e fanática. Alguém duvida de quão trágica poderá ser essa história se nada for feito para barrá-lo?

Dado que a pandemia abriu janelas de oportunidades para os setores democráticos, expondo as contradições desse projeto nefasto, é esta a hora de agir. Nunca estivemos tão próximos do precipício, como deixa evidente o discurso de Bolsonaro no Dia do Exército, quando nem se deu ao trabalho de disfarçar sua disposição para golpear mortalmente as instituições democráticas. Não há como imaginar que os fanáticos que o seguem se restringirão ao plano da retórica, furtando-se de sacar as armas caso sejam convocados a salvar aquele que cegamente idolatram. Editoriais de jornal, admoestações, “broncas”, sermões edificantes, mesmo as resoluções de contenção dos demais poderes constitucionais, nada disso terá o dom de os dissuadir. Aliás, quanto mais essas manifestações se repetem sem trazer consequências, mais perdem autoridade.

Só um gesto contundente e decisivo poderá alcançar aquilo que as palavras apenas não são mais capazes de obter. Sabemos que setores conservadores e liberais, predominantes no Congresso Nacional, e importantes em vários setores da sociedade civil, hesitam em dar esse passo e ainda buscam modos de evitar o confronto incontornável. A eles, lembremos o que disse o então parlamentar Winston Churchill sobre a estratégia dos governantes de seu país, à época liderados pelo também conservador Neville Chamberlain, a fim de apaziguar Hitler no contexto imediatamente anterior à eclosão da 2ª Guerra Mundial: “Preferem perder a honra a ter a guerra. No fim, perderão a honra e terão a guerra”. Só que com uma diferença: terão a guerra em condições piores.

Quando a pandemia mostra de modo cru a face desumana e violenta do bolsonarismo, é urgente que todas as forças democráticas do Brasil unam-se de vez para dar um basta à escalada do projeto autoritário, colocando o afastamento de Bolsonaro do poder como prioridade número um da agenda. Antes que seja tarde demais.


* André Singer, Professor Titular do Departamento de Ciência Política da USP
* Christian Dunker, Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP
* Cicero Araújo, Professor Titular do Departamento de Ciência Política da USP
* Felipe Loureiro, Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais da USP
* Laura Carvalho, Professora Associada do Departamento de Economia da USP
* Leda Paulani, Professora Titular do Departamento de Economia da USP
* Ruy Braga, Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP
* Vladimir Safatle, Professor Titular do Departamento de Filosofia da USP

Relembre algumas das principais exposições realizadas pelo Sesc-SP em 2019

Durante a pandemia do novo coronavírus, enquanto as unidades do Sesc São Paulo se encontram fechadas, seguindo as indicações das leis governamentais e sanitárias, a instituição segue ativa. Seja ao promover shows online, cursos à distancia ou ao captar e distribuir alimentos, o Sesc segue promovendo atividades voltadas à cultura, educação e saúde. Aqui, relembramos mostras de artes visuais organizadas em 2019, que refletem a busca pela diversidade de temas e diferentes linguagens. Assista ao vídeo:

 

Construir paraquedas coloridos? Corona e os sonhos para além do apocalipse e da redenção

"Desabamento do Céu/ Fim do Mundo" [Série Sonhos Yanomami], de Claudia Andujar. Foto: Divulgação.

“Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos.”

                               Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, 2019.

Essa epígrafe de Ailton Krenak, retirada de uma fala sua publicada em 2019, como que indica uma janela, desenha uma brecha no confinamento a que fomos obrigados a vivenciar em 2020, para tentar superar a crise produzida pela pandemia da covid-19. Lendo a passagem, pensamos: vamos sair do espaço confinado com a potência de nossa mente, expandindo-o para a dimensão do cosmos onde voaremos em nossos “paraquedas coloridos”! Essa formulação, que permite se estabelecer uma ponte que vai do terrível ao maravilhoso, rompe com a clausura, rachando as paredes de nossos “claustros”. Podemos dizer que ela é autoperformática, na medida em que Krenak, ao formular a sua tese, já está produzindo em nossas mentes aberturas, expansões para além de nosso confinamento. Mas não se trata, é claro, apenas do confinamento produzido pela pandemia de Sars-CoV-2. Krenak formulou essa ideia antes da pandemia e a partir de uma poderosa reflexão sobre os caminhos e acidentes da história da humanidade. O espaço confinado a que ele se refere nessa passagem é o confinamento dentro da razão instrumental de origem humanista e Iluminista. Essa razão elegeu um modo de progresso que entroniza uma técnica destruidora que se alimenta da terra e das pessoas e está nos levando ao “fim do mundo” a que se refere o título de seu livro, Ideias para adiar o fim do mundo.

A razão instrumental nos lançou em uma aporia, em um impasse, numa incerteza profunda que nos paralisa. Fechou as portas e estamos sem saída. Aporia vem do grego áporos e deriva, conforme o dicionário Houaiss, “de a- ‘privação, negação’ […], + grego póros, ou ‘passagem’”. Em meio a essa clausura produzida por esse modelo de desenvolvimento e que agora gerou uma gigantesca e avassaladora pandemia, as palavras de Krenak, um líder indígena que vem de uma cultura que vive há milênios nas Américas sem nunca ter chegado à situação semelhante, sugerem a necessidade de uma pausa para reflexão: vamos construir saídas criativas, façamos os nossos “paraquedas coloridos”.

Krenak descreve essa aporia vivida pela sociedade contemporânea, mas ao mesmo tempo se separa dessa sociedade, mostra que vem de outra tradição, de uma história multicentenária de sobrevivência:

Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.[1]

Ao invés de cair na posição melancólica, na prostração paralisante, Krenak nos fala de um outro registro de pensamento, para além de nossos parâmetros cartesianos, que veem no raciocínio lógico o ápice do saber. E motivos para a melancolia é que não faltam, quando observamos a história da destruição e da violência contra os indígenas no Brasil. Claude Lévi-Strauss, no livro Saudades do Brasil, apresentou suscintamente essa história como a de um fantástico acúmulo de barbáries. É a extensão do massacre indígena que o antropólogo destacou nessa obra. Em fazendo isto, ele apontou ao mesmo tempo para a grandeza das culturas indígenas que vivem em terras brasileiras, revertendo a hierarquia tradicionalmente atribuída aos povos originários nas Américas: a “Amazônia”, ele escreve, “poderia ser o berço de onde saíram as civilizações andinas.”[2] Lévi-Strauss surge como uma testemunha de populações que sobreviveram a “um monstruoso genocídio” que se estende desde a chegada dos europeus até hoje. Ele viu “os últimos sobreviventes desse cataclismo que foi para seus antepassados [sc. dos índios] o descobrimento e as invasões que se seguiram.”[3] Calcula-se que entre 5 a 9 milhões de indígenas foram assassinados graças à empresa colonial, seja por meio de epidemias, de massacres ou da escravização. Trata-se de um dos maiores genocídios da história da humanidade. Essa empresa colonial está ainda em curso e recuperou fôlego em 2018.

Krenak, partindo dessa gigantesca e pesada herança de genocídios, etnocídios e de lutas pela sobrevivência, dá uma virada e propõe a resistência pela imaginação. Ela é uma poderosa “esburacadora” de brechas, que permite o abrir de caminhos, de inúmeros “poros”, que facultam sairmos de nossa “aporia”. Esse comutador que nos lançaria para fora do buraco em que nos encontramos tem como uma de suas faces os sonhos:

Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades.[4]

Esses sonhos são locais privilegiados que descortinam um novo olhar sobre nossas vidas. Além dessa abertura que permite estruturarmos uma outra leitura do real e construir outras subjetividades, os sonhos são em si mesmo locais de moradia sem paredes. Krenak nos fala: “De que lugar se projetam os paraquedas? Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho.”[5] Habitar os sonhos, viver para além “dessa terra dura”, na suavidade multiforme dos sonhos, abrir poros entre o mundo onírico e nossa vigília, quebrar as paredes da “instituição total” e totalitária em que o sistema converte e reduz a terra inteira. Antes que a terra toda fique dura e seca, Krenak propõe, com toda a leveza do mundo, sem gritos revolucionários, sem clamores a derramamento de sangue, que reconheçamos nos sonhos um lugar de expansão de nossas vidas, um espaço para sairmos da aporia.

Durante o mês de abril, ou seja, poucos meses após o início do surto da pandemia de covid19, Krenak publicou outras falas em seu pequeno opúsculo O amanhã não está à venda. Novamente ele volta ao tema da falta de saída, agora radicalizada com a covid19, para aqueles que apostam no modelo de humanidade consagrado pela tradição Humanista, Iluminista e pela entronização da técnica como agente de dominação e destruição da natureza. A Modernidade na qual confluíram essas tendências, sempre foi marcada tanto por uma biopolítica que reduz grandes partes da humanidade à categoria de sub-humanos, pelo preconceito étnico-racial, por políticas de escravidão e de genocídio e, por fim, foi caracterizada por uma relação de espoliação com a natureza. Por outro lado, os povos ameríndios, como escreve Krenak apresentando a sua cosmovisão, não percebem “que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza.”[6] Assim, eles abandonaram o binarismo que marca ao menos desde a visão de mundo clássica, nascida na Grécia, a dualidade que reproduz a relação de objetificação com essa natureza dominada pela “cultura”. O antropocentrismo e o especismo são parte central do projeto que culminou no Antropoceno, ou seja, a era na qual a humanidade molda o planeta e constrói as bases para a eliminação de sua possibilidade de sobrevida. Não podemos esquecer que esta pandemia é resultado da destruição da biodiversidade. As “zoonoses emergentes” são fruto da invasão desses habitats ricos em biodiversidade. A biodiversidade é ao mesmo tempo o depositário de nosso futuro e a sua preservação a garantia de que essas zoonoses não se repetirão.[7] Nas Américas, as populações ameríndias são as grandes responsáveis pela conservação dos territórios da biodiversidade. As populações originárias no Brasil são guardiãs de um dos maiores patrimônios de biodiversidade do mundo, como também, como lemos acima com Krenak, elas detêm um dos mais ricos patrimônios culturais, com suas 250 etnias e cerca de 150 línguas e dialetos. Assim, Krenak aponta para o fato de que esse vírus coloca em xeque esse modelo de relação destruidora com a natureza:

Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise. […]

Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos.[8]

No livro, Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak ironizava um certo alarmismo acerca do “fim do mundo” e lembrava que os povos indígenas convivem com mais de cinco séculos de epidemias introduzidas pelos “brancos”. Ele apresenta um modo de vida que escapa às nossas visões de mundo judaico-cristãs (marxistas ou não) que apostam em um “fim do mundo”, em uma revolução, em uma redenção pontual. A sabedoria cultivada nos sonhos e, nas danças e no diálogo com os espíritos do passado ensina que a “revolução” está na capacidade de frearmos e sairmos do caminho aporético. Devemos aprender a perfurar nossos muros, a cavar pontes e túneis, encher de poros uma sociedade e as mentes fechadas e programadas para um projeto em si entrópico, posto que aposta na exploração infinita dos recursos naturais. Aposta também no fim da pluralidade da biodiversidade e das formas de vida e cultura, as verdadeiras bases da vida na Terra. Em seu O amanhã não está à venda Krenak justamente vai destacar a importância de não lutarmos, agora, por uma “volta à normalidade”, ou seja, ao mesmo caminho que vínhamos trilhando e que produziu essa pandemia.

Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. […] Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos os carros, todas as máquinas ao mesmo tempo. Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira.[9]

Outra grande voz vinda do mundo ameríndio que tem trazido uma série de preciosos e urgentes ensinamentos é a de Davi Kopenawa. Em seu livro A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami (coescrito com o antropólogo Bruce Albert) ele descreve em centenas de páginas o martirológio dos yanomamis provocado pelos contatos com os brancos, sejam militares em missões de demarcação das fronteiras, ou operários construindo estradas, mas sobretudo garimpeiros em busca dos minérios sob a terra yanomami. Kopenawa tem uma clareza total com relação ao fato de que essas explorações dos minérios em si produzem epidemias. Ou seja, não só o contato com esses brancos traz as doenças, mas a destruição da floresta, dos rios e do solo produz epidemias.

As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres, que só Omama [o deus criador] conhecia. Ele porém decidiu, no começo, escondê-los sob o chão da floresta para que não nos deixassem doentes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos proteger. Por isso devem ser mantidas onde ele as deixou enterradas desde sempre. A floresta é a carne e a pele de nossa terra, que é o dorso do antigo Hutukara [nome xamânico do antigo céu] caído no primeiro tempo. O metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto, que ela envolve de frescor úmido. São essas as palavras dos nossos espíritos que os brancos desconhecem. Eles já possuem mercadorias mais do que suficientes. Apesar disso, continuam cavando o solo sem trégua, como tatus-canastra. Não acham que, fazendo isso, serão tão contaminados quanto nós. Estão enganados.[10]

Segundo narra Davi Kopenawa, recordando o saber que lhe foi passado em conversas com os antigos xamãs, em sonhos e nos transes xamânicos, os metais foram criados não por Omama, mas sim por seu malévolo irmão Yoasi, o deus que também introduziu a morte. Omama enterrou os metais para proteger-nos e debaixo da terra eles devem ficar. Esses metais, ademais, seguram os esteios que sustentam o céu, eles mantém “a terra no seu lugar”. Ou seja, retirar esses metais do solo, destruir a floresta que os isola, implica em liberar epidemias fatais:

Agora sabemos de onde provém essa fumaça maléfica. É a fumaça do metal, que também chamamos de fumaça dos minérios. São todas a mesma fumaça de epidemias xawara [11] que é nossa verdadeira inimiga. Omama enterrou os minérios para que ficassem debaixo da terra e não pudessem nunca nos contaminar. Foi uma decisão sábia e nenhum de nós [yanomami] jamais teve a ideia de cavar o solo para tirá-los da escuridão! […] O sopro vital dos habitantes da floresta é frágil diante dessas fumaças xawara. […] Quando essas fumaças sugiram, não tiveram forças para se defender. Todos arderam em febre e logo ficaram como fantasmas. Faleceram rapidamente, em grande número, como peixes na pesca com timbó. Foi assim que os primeiros brancos fizeram desaparecer quase todos os nossos antigos.[12]

Kopenawa afirma também que apesar de nossas cidades estarem infestadas dessa fumaça mortal, não desistimos, continuamos destruindo a floresta, criando cidades gigantescas. Nosso pensamento, ele afirma, “está todo fechado”, em uma expressão que lembra a imagem do “lugar confinado” da fala de Krenak que lemos na abertura deste texto. Kopenawa estabelece uma relação entre essas epidemias e as mercadorias trazidas pelos brancos: “a doença e a morte golpeiam os habitantes da floresta assim que estes começaram a desejar as mercadorias. […] De modo que, para nós, as mercadorias têm valor de epidemia xawara.”[13] Esse raciocínio é fundamental e parte central da contra-antropologia de Kopenawa: os brancos, que ele denomina de “povo da mercadoria”, são também de certo modo o povo que traz e produz as epidemias, com sua sanha de arrancar os metais, que seguram os esteios do céu sobre nossas cabeças, e gana de produzir mercadorias, com o que esgotam os metais da terra. “Hoje, os seres maléficos xawarari não param de aumentar”, ele escreve de modo quase profético, mas que na verdade explicita simplesmente a percepção dos povos que vivem nas florestas e são a vítimas mais fáceis dessas epidemias há séculos. E ele continua: “Mas as orelhas dos brancos não escutam as palavras dos espíritos! Eles só prestam atenção no seu próprio discurso e nunca se dão conta de que é a mesma fumaça de epidemia que envenena e devora suas próprias crianças.”[14] Assim como Krenak fala da necessidade de despertarmos, antes que seja tarde demais, para o que está acontecendo com a Terra[15], aqui Davi Kopenawa fala dessa necessidade de ouvirmos os clamores da Terra. Temos que sair de nossa “zona de conforto” que se tornou uma “zona de desconforto”, pois estamos sim cavando o chão sob os nossos próprios pés.

Foto de Claudia Andujar da série “Catrimani”. Foto: Divulgação.

O Brasil da pandemia de covid-19 em abril de 2020 é também um país assolado pela praga de uma política fascista de caráter abertamente genocida. É importante retomar uma fala do atual presidente feita em 29/06/2017 em Porto Alegre: “Minha especialidade é matar”. Naquela ocasião ele também recordou que o maior feito de sua atividade como deputado teria sido a aprovação da “pílula do câncer” (a fosfoetanolamina), um embuste, o que não deixa de recordar a sua atual insistência na suposta capacidade milagrosa da cloroquina contra a covid-19. Sua tanatopolítica contra as populações indígenas, quilombolas, negras, LGBTQ+, sua misoginia e ataque às liberdades fundamentais, fazem com que a pandemia surja como um aliado da política de morte desse governo, sendo que já está claro que as populações mais pobres e desprotegidas pelo sistema de saúde serão as mais vitimadas. Agora, não só tem aumentado as invasões de garimpeiros e madeireros aos territórios indígenas, levando a pandemia às populações originárias, como o desmatamento da Amazônia tem se intensificado. Segundo o Instituto Socioambiental, “o desmatamento no primeiro trimestre deste ano [2020] foi 51% maior que o mesmo período do ano passado.”[16] Essas árvores derrubadas são potencial combustível para queimadas que provavelmente serão ainda mais avassaladoras do que as de 2019. Como assumido cavaleiro da morte esse presidente se recusa a ver de frente a pandemia, ele a nega, como nega as questões socioambientais ou a destruição e violência associadas ao período da ditadura de 1964-1985, que ele prefere enxergar como uma fase heroica e modelar. Seu negacionismo de raiz se associa a uma incapacidade patológica de empatia e de solidariedade. O “outro”, nesta visão de mundo, merece apenas o seu apagamento. O monolinguismo fundamentalista nega a pluralidade e a diferença. O “outricídio” se dá tanto em termos culturais, extinguindo tentativamente toda produção cultural e destruindo etnias, sobretudo as culturas indígenas e quilombolas, seus alvos prediletos, o que indica também a sua covardia intrínseca. Os povos da megadiversidade, indígenas e quilombolas, são os antípodas do modelo de pensamento fascista “outricida”. Necropolítica e ultraliberalismo, nesse sentido, andam de mãos dadas, vide o desmonte dos direitos trabalhistas que está sendo realizado desde o governo Temer, que continuou em 2019 e agora, durante a pandemia, procurando-se extirpar os poucos direitos que sobraram, reduzindo o trabalhador a uma situação de total desamparo. O ultraliberalismo é apenas a expressão contemporânea da empresa colonial que sempre quis reduzir a terra à commodity e o trabalhador à escravo.

A pandemia de corona além de tornar a morte onipresente, obriga-nos a uma reclusão que impede que enterremos nossos parentes e amigos. O próprio luto fica barrado. Trata-se de uma morte que vem com a morte da própria morte, o que destrói nossos quadros de referência e barra a simbolização. Para piorar a situação no Brasil, acrescenta-se a isso tudo um governo que assume a morte como seu mote. Aproveita-se o período conturbado e caótico, sem um ministro que lidere o combate à doença (uma vez que o ex ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta foi demitido em plena pandemia e substituído por um administrador empenhado em minimizar a gravidade da crise) para realizar um desmonte do país. Por exemplo, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, assinou recentemente (06/04/2020) um despacho que anistia terras desmatadas até 2008 em Áreas de Conservação Permanente da Mata Atlântica, facultando o uso “produtivo” desses locais. Essa autorização da destruição ratifica o ecocídio praticado freneticamente. Tudo que propicie a máxima exploração dos trabalhadores e da natureza é validado pelo governo Bolsonaro. No dia 23 de abril, Bolsonaro baixou uma portaria que autoriza civis a adquirir 550 unidades de munição por mês. Ao invés do combate à pandemia, o incentivo aos armamentos, a construção de um exército de milicianos com potencial inimaginável de morte e destruição.

Existe um descompasso evidente entre a radicalidade dessa política da destruição e da morte e, por outro lado, o movimento de cuidado e de proteção da população, exigido em um momento de pandemia. O presidente, nas poucas vezes que se dignou a falar do tema, adere, como mencionei, a soluções mágicas, como medicamentos comprovadamente pouco eficazes e até perigosos para o combate ao covid-19. Outro ponto que mobiliza este governo, que depois de demitir o Ministro da Justiça, está colocando a Polícia Federal a serviço da família do presidente e de seus novos aliados no chamado Centrão, é a expansão do controle da população, por meio de acesso a dados dos celulares e computadores, como a sua localização. O panóptico digital alimenta um presidente ávido de informações da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e da PF.

Nesse contexto, a saída proposta por Krenak e sustentada pelas palavras de Kopenawa, que temos que nos abrir para as demandas da Terra, sem dúvida são difíceis de se traduzirem em prática. Mas o império da morte, com seus dois cavaleiros do apocalipse Bolsonaro e Corona servindo de escudeiros momentâneos, não há de triunfar tão rapidamente ou sem resistência. A própria publicação do texto de Krenak, composto a partir de 3 falas ministradas em abril deste ano, é uma prova disso. Ele mesmo nos lança seus paraquedas coloridos, indicando a necessidade de revermos nossa ideia de “normalidade” diante da crise da pandemia e do desgoverno Bolsonaro. Krenak nos faz lembrar também de outros pensadores que, no século XX, vivendo situações limite, aporias e encurralamentos, quando a morte também se estendia sob boa parte do mundo. É o caso de Walter Benjamin, que foi vítima do nazifascismo e que também refletiu profundamente sobre a necessidade de frearmos o modelo de sociedade que associou o capitalismo a um modelo destruidor de técnica.[17] Benjamin resumiu a sua crítica ao progresso no modelo industrializante europeu com essa forte imagem: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o acionar do freio de emergência pela humanidade que viaja neste trem.”[18] Benjamin, desde seu importante ensaio sobre o surrealismo, de 1929, também esteve ocupado com um projeto que nos lembra muito a apologia e a centralidade dos sonhos e do transe xamânico nas culturas ameríndias: “Mobilizar para a revolução as forças da embriaguez”.[19] Evidentemente, a ideia de “revolução”, como vimos, não é parte do arcabouço ameríndio e sim um fruto de nosso pensamento judaico-cristão (e a seu modo marxista no caso de Benjamin). Mas isso não implica que não possamos encontrar afinidades aqui, pois Benjamin era um pensador do “tempo do agora” (Jetztzeit), que valorizava a ideia de curtos-circuitos temporais na produção de mudanças vitais. O mesmo se dá no xamanismo e no mundo dos sonhos, onde tampouco existe a fronteira entre passado, presente e futuro.

Para Benjamin, essa conquista das forças da embriaguez para a revolução estava associada também ao que ele denominou de “organização do pessimismo”.[20] Nada mais atual. A tarefa que ele se colocava era a de alterar radicalmente a relação entre a política e a moral a partir dessa mobilização das forças da embriaguez. Benjamin adere ao que ele acredita ser a alternativa dada pelos surrealistas. Nessa visão, em oposição ao otimismo burguês da socialdemocracia e ao “arcabouço imagético” dos seus poetas, prega-se um pessimismo de princípio como guia para a mudança. E sobretudo: trata-se de uma clara consciência de que o único “avanço” alcançável no atual modelo capitalista (seja nos anos 1930, seja nos 2020) é o da técnica que leva à destruição. Também essa ideia é luminar hoje, nesses tempos de nuvens negras, rios de dejeto, de oceanos de piche, destruição de florestas e de pandemias. Para organizar o pessimismo seria necessário “simplesmente extirpar a metáfora moral da esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem.”[21] Ou seja, tratava-se e trata-se, ontem como hoje, de reconhecer na política voltada para o moralismo, para a “luta contra os corruptos”, para a higiene que eliminaria os “esquerdistas”, a mais clara expressão do fascismo. A luta política se dá como uma batalha de imagens e pensadores como Kopenawa e Krenak, assim como artistas, poetas, trabalhadores e intelectuais, produzem a cada dia novas imagens que se opõem à pretensa verdade monológica que os donos do poder procuram impor. Essas outras imagens mobilizam nossas paixões e sustentam novas e robustas subjetividades, formam outras coletividades e amparam a resistência.

Benjamin também se dedicou à “embriaguez” do haxixe, que ele consumiu para estudar os seus efeitos na nossa mente, e foi alguém que procurou trazer para sua teoria a força do sonho. Como ele anotou no seu livro sobre as passagens de Paris: “No sonho, em que diante dos olhos de cada época surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva, ou seja, de uma sociedade sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu deposito no inconsciente do coletivo, geram, em interação com o novo, a utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, das construções duradouras até as modas passageiras.”[22] Saber sentir e perceber esses fragmentos de utopia dispersos na superfície da sociedade e na sua história é um primeiro passo para se iniciar a sua concretização. Benjamin, em suma, também nos presenteou com uma série de paraquedas coloridos para enfrentarmos os tempos sombrios e aprendermos a romper com nossos muros e paredes, saltar com paraquedas coloridos e a cair de modo mais suave.

Por fim, concluo essas reflexões, desencadeadas pelo isolamento e pela pandemia da covid-19 que agora se espalha por todo o mundo e já vitimou mais de 200 mil pessoas (25/04/2020), sendo 4 mil no Brasil, recordando um poeta, portanto um outro criador de paraquedas, que sobreviveu a campos de concentração nazistas onde perdeu seus pais. Refiro-me a Paul Celan. Ele possui um poema que tenho relido nestes dias. Seu título é “Corona”. “Corona” (coroa) em italiano é também o nome da indicação que se coloca sobre uma nota para aumentar o seu valor e que em português se denomina suspensão ou fermata. Esta última expressão também vem do italiano e significa “parada”. Ela pode indicar tanto a extensão de uma nota como de uma parada, do silêncio. O poema de Celan “Corona” trata do tempo e do dar-se do próprio tempo. Na primeira estrofe lemos, na tradução de Mauricio Cardozo:

O outono come suas folhas na minha mão: somos amigos.
Descascamos das nozes a hora e a ensinamos a ir:
a hora volta de novo pra casca.

Esta “hora”, ou “tempo” (“Zeit”), que volta à casca é um tempo tanto do ciclo da natureza, quanto o tempo das relações humanas. O poema, como acontece muito na poética de Celan, dirige-se a um “tu” e fala de um “nós”, de um encontro. Trata-se da construção de uma epifania, marcada pelo encontro de duas pessoas, que rompe a continuidade temporal, “é domingo”, instaurando tanto o esquecimento (papoula) quanto a memória. O poema continua:

No espelho é domingo,
no sonho se dorme,
na boca, a verdade.

Meu olho desce até o sexo dos amantes:
nós nos vemos,
nós nos dizemos coisas obscuras,
nós nos amamos como papoula e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
como o mar no sangue que raia da lua.

Nós juntos na janela, eles nos olham da rua:
tá na hora de saber!
Tá na hora de a pedra se acostumar a florir,
de a inquietude fazer bater um coração.
Tá na hora de estar na hora.
Tá na hora.

Esse tempo instaurado, o tempo do tempo, pode ser lido como um renascimento a partir da onipresença da morte. Dos corpos que se encontram, renasce a vida. As pedras na poética de Celan quase sempre remetem à morte e à necessidade de se fazer o luto. Depois da morte, no reencontro com o “outro”, a vida volta a fluir: “Tá na hora de a pedra se acostumar a florir”. O que mais me interessa em “Corona” no nosso contexto é essa sua estrofe final. A imagem desse casal à janela e de um saber que subitamente é instaurado e rompe com a linearidade do tempo. Ele rompe também com o “lugar confinado”, para retomarmos a epígrafe de Krenak. A pedra que vai florir é associada ao coração que bate. O tempo que nasce é um tempo puro, sem passado ou futuro, simples instância do devir, do dar-se, para além do apocalipse e da redenção. Sem o medo do fim e sem a esperança vã da revolução messiânica. “A hora volta de novo pra casca”, “die Zeit kehrt zurück in die Schale”. “Tá na hora de estar na hora”, “Es ist Zeit, daß es Zeit wird”: já é tempo que o tempo se concretize.

Não seria essa temporalidade irmã daquela que permite que construamos nossos paraquedas coloridos? Caminhemos da corona para a fermata, em direção ao tempo da suspensão. O tempo reinstaurado abre espaço para que despenquemos, em rede, mediatizados e unidos pelos nossos poros eletrônicos, mas não só, “em paraquedas coloridos”, rompendo com as aporias. Não seria essa consciência da “fermata”, da suspensão do tempo, o primeiro passo para que agarremos no freio de emergência de que nos fala Benjamin? Já é mais do que tempo.

* Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale, professor titular de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do CNPq. É autor de, entre outras obras, “Ler o Livro do Mundo” (Iluminuras,1999, vencedor do Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Nacional em 2000), “Adorno” (PubliFolha, 2003), “O Local da Diferença” (Editora 34, 2005 vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006), “Para uma crítica da compaixão” (Lumme Editor, 2009) e “A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno” (Editora Civilização Brasileira, 2009). Foi professor visitante em Universidades no Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra e México.

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[1] Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo: Companhia das letras, 2019, p. 31.

[2] Claude Lévi-Strauss, Saudades do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 13.

[3] Id., p. 16.

[4] Krenak, 2019, cit., p. 52.

[5] Id., p. 65.

[6] Ailton Krenak, O amanhã não está à venda, São Paulo: Companhia das Letras, 2020, versão Kindle.

[7] Janes Rocha, “Biodiversidade é a chave para prever e evitar novas pandemias”, In: Jornal da Ciência, 16/04/2020.

[8] Krenak, 2020, cit.

[9] Krenak, 2020, cit.

[10] Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, São Paulo: Companhia da Letras, 2015, p. 357.

[11] Mais adiante Kopenawa define: “O que chamamos de xawara são o sarampo, a gripe, a malária, a tuberculose e todas as doenças de brancos que nos matam para devorar nossa carne.” Id., p. 366.

[12] Id., p. 363-64.

[13] Id., p. 368.

[14] Id., p. 370.

[15] “O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.” Krenak, 2019, cit., p. 45.

[16] “Desmatamento na Amazônia cresce e pode gerar novas queimadas”, https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento/desmatamento-na-amazonia-cresce-e-pode-gerar-novas-queimadas, visitada em 25/04/2020.

[17] Remeto sobre essa teoria da técnica em Benjamin ao meu artigo recente: “Filosofia da Técnica: Arte como um novo campo de ação lúdico (Spielraum) em Benjamin e Flusser”, in: ARTEFILOSOFIA, No. 26, julho de 2019, p. 52-85. (Também disponível online)

[18] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, Vol. II: Essays, Vorträge, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980, p. 1232.

[19] Benjamin, Obras escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, trad. S.P. Rouanet, revisão técnica Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 33.

[20] Id., p. 34.

[21] Id., p. 34.

[22] Benjamin, Passagens, org. Willi Bolle e Olgária Matos, tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão, São Paulo/Belo Horizonte:Ed.UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 41.

 

P.art.ilha une galerias de “fora do eixo” diante da quarentena

Andrey Zignnatto, "Sobre a pele #11". Galeria Janaina Torres. Para p.art.ilha
Andrey Zignnatto, "Sobre a pele #11". Galeria Janaina Torres

Com o isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus, museus, instituições culturais e os agentes do mercado tiveram que repensar seu modo organizacional às pressas, mesmo que as alternativas encontradas agora sejam temporárias. Tendo em vista esse cenário – e também considerando o cancelamento da SP-Arte, principal feira do país -, um grupo de galeristas e artistas se reuniu para criar a p.art.ilha.

A iniciativa é online, indo de encontro a outro projeto dos últimos tempos, o Quarentine. Sua primeira ação ocorre no dia 1˚ de maio, quando as galerias lançarão simultaneamente em seus sites e redes sociais uma criteriosa seleção de obras à venda.

Cada compra feita durante o mês de maio implica no recebimento de um crédito pelo colecionador para compras futuras na mesma galeria; assim a p.art.ilha enxerga também mais à frente da crise atual, fermentando estímulos que podem provocar crescimento. A iniciativa não perde de vista, de qualquer modo, questões mais urgentes, como manter ativos os profissionais que atuam na cadeia criativa do setor artístico (artistas, galeristas, produtores, curadores, pesquisadores, fotógrafos, montadores e técnicos).

Em comunicado à imprensa, o grupo afirma ser “aberto a todas as galerias que se identifiquem com o nosso objetivo” e que deseja “arejar o mercado e recepcionar negócios inovadores, startups e projetos artísticos que não tem vez no nosso mercado atual”.

Participam da p.art.ilha: Aura (SP), B_arco (SP), c.galeria (RJ), Carcara Photo (SP), Casanova (SP), Desapê (SP), Eduardo Fernandes (SP), Janaina Torres (SP), Karla Osório (DF), Mamute (RS), Mapa (SP), Lume (SP), Oma (SBC/SP), Periscópio (BH), Sé (SP), Soma (PR) e Ybakatu (PR).

“O pós-corona demandará fortalecimento da ciência, da educação e do fazer artístico”, afirma Eduardo Saron

Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, durante seminário organizado pela arte!brasileiros e pelo IC em 2019. Foto: Divulgação
Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, durante seminário organizado pela arte!brasileiros e pelo IC em 2019. Foto: Divulgação

Diretor do Instituto Itaú Cultural (IC) há dez anos, Eduardo Saron acredita que “a partir de agora, teremos de encontrar um novo normal, ou melhor, uma nova realidade”. Durante e após o período da crise com o novo coronavírus, em um ecossistema cultural e econômico extremamente afetado, ”as instituições que tiverem a capacidade de dar respostas e de correr riscos para ajudar a desenhar este novo real se destacarão.”

Em entrevista dada por e-mail à arte!brasileiros, Saron, que também é um dos diretores do MAM-SP desde 2019, afirma que “paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura este desejo”.

Com uma série de iniciativas em suas plataformas digitais (saiba mais), o IC lançou nas últimas semanas editais de emergência voltados à artistas de diversas áreas, de música, poesia, artes cênicas e visuais. Questionado se os editais não poderiam incentivar uma mentalidade competitiva prejudicial neste momento de crise, Saron defende que a iniciativa “se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social”, ajudando “a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico”.

O diretor do IC falou também sobre a necessidade de as instituições culturais darem um salto da ideia de democratização – “onde as métricas de sucesso se tornaram a catraca” – para a de participação, onde o tripé “formação, fomento e fruição” ganha espaço. Ele critica também a falta de uma política de Estado para a Cultura e destaca a importância de preservação da memória. Leia a seguir a íntegra da conversa:

ARTE! – Estamos vivendo um momento sem precedentes na história, por conta da pandemia do coronavírus, então eu queria começar perguntando como vocês estão lidando com isso no Itaú Cultural? Como estão agindo e que tipo de planejamento estão fazendo?

Nesse período de pandemia, umas das nossas primeiras medidas foi garantir a suspensão social dos colaboradores do Itaú Cultural, que estão trabalhando remotamente. Em outra frente, deflagramos uma série de ações para ampliar nossa atuação digital, oferecendo mais arte e cultura para nossos diversos públicos no ambiente virtual.

Uma das nossas preocupações também foi a de manter ativa a economia da cultura. Nesse sentido, mais uma medida que adotamos imediatamente foi garantir, para já, a remuneração prevista nos contratos de todos os artistas que iriam se apresentar no Itaú Cultural e tiveram as suas atividades suspensas em virtude da quarentena. Posteriormente, eles voltarão a fazer parte da nossa agenda de programação. Dentro desse pensamento, ainda criamos editais emergenciais que acolhem a produção dos artistas hoje sujeitos a trabalhar nesta condição de supressão social.

Confesso que o planejamento não é uma tarefa fácil. Tenho conversado muito com a equipe e buscado orientações com o presidente do Itaú Cultural, Alfredo Setubal. Como todos, tivemos de nos reinventar e reorganizar os recursos, não somente financeiros, como também organizacionais e humanos, uma vez que, mesmo com a situação diferenciada que o Itaú Cultural tem, fazemos parte deste ecossistema cultural e econômico, hoje, extremamente afetado.

ARTE! – O IC acaba de lançar o terceiro edital de emergência para produções culturais criadas durante a pandemia, relacionadas a esse período de isolamento social. Gostaria que você falasse um pouco sobre o intuito destes editais, mais especificamente o de artes visuais e fotografia, e qual a importância da iniciativa neste momento.

O Itaú Cultural tem uma forte tradição na realização de editais e chamamentos públicos para fomento. Por exemplo, o programa Rumos Itaú Cultural, que há mais de 20 anos promove o apoio à produção artística e a difusão da arte e da cultura entre os projetos inscritos vindos de todo o país e selecionados por comissões de excelência, ou a convocatória a_ponte: cena do teatro universitário, que lançamos em 2018, destinada a alunos de vários perfis de ensino. Essas experiências sempre nos surpreendem ao revelar novas produções e artistas.

Resolvemos lançar esses microeditais de emergência por essa razão, associada ao fato de que precisamos ajudar a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico. Além de, naturalmente, oferecer oxigênio criativo afetivo para as pessoas que nos acompanham virtualmente nos nossos canais.

Começamos por artes cênicas, pelo desafio desta linguagem para gerar ações virtuais. Uma semana depois, avançamos sobre o campo da música e agora optamos pelas artes visuais. Não somente esta iniciativa provoca fazer um registro de como se está fazendo arte neste momento histórico, como também a instituição se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social. Nosso intuito é lançar um edital por semana e abranger o maior número possível de áreas de expressão artística.  

ARTE! – Em um texto publicado na revista Select, intitulado “Parem a competição já”, os artistas e pesquisadores Flora Leite e Daniel Jablonski questionam o papel deste tipo de incentivo no atual contexto. Argumentam, entre outras coisas, que o estimulo à produção durante a quarentena aumenta a pressão sobre os artistas, como se fosse urgente criar um “imaginário da crise”; que ele pode resultar na criação de obras de qualidade duvidosa; e que incentiva uma mentalidade competitiva que recompensa a produtividade como única moeda de troca. Enfim, eles propõem que existem outros caminhos para apoiar o trabalho de artistas neste momento. O que você pensa sobre isso?

Como comentei no início, nós temos uma tradição na realização de editais nas múltiplas áreas de expressão, algo que se consolidou na gestão de Milu Villela. Associado a isso, temos percebido uma intensa difusão artística ocorrendo nas plataformas virtuais nesse momento. Nosso intuito é oferecer mais dignidade para a produção e o pensamento artístico em um período como este, mesmo sabendo que, naturalmente, temos escalas limitadas para podermos fazer esse tipo de apoio.

Os editais sempre foram bem-vindos no Brasil, se consolidando legitimamente ao longo dos anos como um mecanismo objetivo para apoiar projetos de arte e cultura realizados no país. Não temos como atender a todas as propostas em circulação. Neste momento de urgência, eles nos permitem estabelecer critérios para manter a economia da cultura funcionando. 

Como em todo momento de crise, a produção artística e intelectual se intensifica naturalmente. Quando nos afastarmos desse momento histórico teremos, a meu ver, duas questões a serem observadas. A primeira é quais leituras, análises e provocações artísticas foram contundentes a ponto de transbordarem o próprio tempo da coronavírus. Na segunda, poderemos observar o que era frágil e não permaneceu, se tornando apenas um registro de uma pandemia.

ARTE! – Em um texto publicado recentemente na Folha de S.Paulo, a artista e professora Giselle Beiguelman afirmou que após um mês de isolamento é possível perceber que as instituições culturais de modo geral estão ainda na “idade da pedra” da internet. Que foram pegas completamente despreparadas, sem bons conteúdos criados para a web. Queria saber como você vê essa questão de modo geral e no caso específico do Itaú Cultural.

A atividade artístico-cultural tem, por natureza, um modus operandi de agregação de pessoas. Aliás, é algo que se coaduna, ou que se coadunava, ao pré-corona. Porém, considero muito forte a afirmação de que as instituições brasileiras estão na idade da pedra da internet, afinal este período se limitava à propagação somente de textos. Vejo que muitas instituições culturais não apenas superaram esta fase, como também alcançaram espaços de interação com o seu público por meio de cursos, percursos educativos, difusão de programação; todos no campo virtual. A partir de agora, teremos de encontrar um novo normal, ou melhor, uma nova realidade. Nesse sentido, as instituições que tiverem a capacidade de dar respostas e de correr riscos para ajudar a desenhar este novo real se destacarão.

No nosso caso, estamos empenhados em buscar essas respostas. Não é fácil e talvez ainda erremos muito, até porque nada mais será como antes. Neste momento, estamos, mais do que nunca, nos reencontrando com o que originou o Itaú Cultural. A organização nasceu para ser uma base de dados de artes plásticas, que hoje é parte da Enciclopédia de Arte e Cultura Brasileira. Hoje somos muito mais do que isso, mas esta pandemia nos fez olhar com atenção para essa nossa missão de origem, apontada por Olavo Setubal há mais de 30 anos quando criou o Itaú Cultural. Vamos aprofundar nossa atuação no digital.

ARTE! – Imagino que era algo planejado já muito antes da quarentena, mas vocês acabam de lançar o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, uma plataforma digital dedicada à análise de dados da cultura e da economia criativa. Gostaria que explicasse resumidamente o que é e qual a importância de um projeto como esse, inédito no Brasil.

Essa pergunta me permite continuar respondendo a anterior, pois, embora já estivéssemos desenvolvendo há mais de oito meses este Painel de Dados, ele reforça a nossa vocação de produzir material por meio digital. O Painel de Dados é uma ferramenta aberta e inédita, que permite pesquisar indicadores de emprego, empresas, financiamento público e comércio internacional de produtos e serviços criativos, para subsidiar pesquisas, agentes do mercado e a formulação de políticas públicas. Esta é a primeira plataforma digital do país inteiramente dedicada à análise de dados da cultura e da economia criativa. O projeto tem como objetivo fornecer aos visitantes um arsenal de dados sobre estes setores, em três grandes eixos: emprego/empresas, financiamento público e importação e exportação de produtos e serviços. Para a execução deste Painel de Dados, foram processados aproximadamente 10,4 milhões de dados, de várias fontes públicas, como IBGE, RAIS, do Ministério da Economia e a PNAD Contínua.

ARTE! – Ainda sobre esse contexto da pandemia do coronavírus, nesses últimos tempos acompanhamos uma série de demissões em museus como Serralves, MoMA e outros. No Itaú Cultural há algum risco de isso acontecer?

As instituições, no Brasil e no mundo, vão passar por uma profunda reorganização, inclusive abrindo um debate sobre a sua missão e propósito. Certamente, isso não será percebido agora, imediatamente. Porém, mais adiante entenderemos e viveremos isso como um efeito desse novo normal, desse novo real. As demissões que algumas instituições realizam hoje, certamente, fazem parte de um programa que passa inclusive pela própria sobrevivência. No nosso caso, temos uma situação diferenciada, mas permanecemos atentos à conjuntura econômica e às novas modelagens que virão.

A sede do Itaú Cultural, na avenida Paulista, em São Paulo. Foto: Edouard Fraipont

ARTE! – Em debate realizado recentemente pela arte!brasileiros e pelo Itaú Cultural você fez uma análise sobre a situação da gestão cultural no Brasil nas últimas duas décadas e falou na necessidade de se avançar da ideia de “democratização” do acesso à cultura para a ideia de “participação”. Gostaria que você explicasse um pouco o que seria este “salto” e o que exatamente significa essa ideia de participação de que você fala.

Nos últimos 30 anos, as políticas culturais foram pautadas com o grande propósito da democratização do acesso. Isso foi fundamental para que pudéssemos aumentar as escalas de público atingido, multiplicar palcos e ampliar a difusão artístico-cultural brasileira. Para dar uma ideia do que isso significa, em 1995, a relevante exposição que gerou grande público atraiu quase 200 mil pessoas. Foi a mostra de Rodin, naquela época promovida pela Pinacoteca de São Paulo, quando Emanuel Araújo dirigia a casa. O recorde de público foi aplaudido pela crítica e reconhecido pela mídia. Recentemente, o MASP trouxe uma artista brasileira, Tarsila do Amaral, e obteve um público de quase 500 mil pessoas.

A democratização do acesso veio para ficar, porém precisamos pensar em um novo propósito, no qual a democratização seja parte dele, mas não um fim em si mesmo.  A minha crítica em relação a esse conceito é que, como centro da nossa orientação, ao longo desses anos, ele gerou uma distorção em nossa atuação. Passamos a nos orientar por uma localização analógica do CEP, onde as métricas de sucesso se tornaram a catraca, a espetacularização da arte e os novos prédios. Esses três fatores acabam empurrando a gestão cultural para um campo perigoso do entretenimento em que se usava o volume de pessoas, os fogos de artifício e novos equipamentos para  responder, de maneira superficial, ao tema ao invés de pensarmos a cultura e a arte brasileiras como um todo.  Isto tudo, legitimado pela distorção do que, de fato, é democratização do acesso. Obviamente que esses três itens são relevantes, mas, como disse, não podem ser a grande métrica.  Em relação aos novos prédios, naturalmente, não sou contra o surgimento de equipamentos culturais, ao contrário, mas desde que sejam criados com uma necessidade institucional real e com um plano de sustentabilidade para a sua manutenção após a abertura.

A meu ver, o propósito maior de uma instituição cultural e de uma política cultural tem de alcançar outro patamar, no qual a democratização do acesso deve fazer parte, mas o propósito maior deve ser a participação dos sujeitos. Isso nos reposiciona como responsáveis, por meio da arte e da cultura, pela transformação da sociedade e para contribuir para o seu desenvolvimento econômico. Por exemplo, temos de ter, de forma mais consistente, uma programação de formação, fruição e fomento. Com isso, o público, a produção e os artistas se entrelaçam sob uma outra ótica, que é a da troca de repertórios, do diálogo entre conteúdos e da interação das pessoas. Esse conjunto passa a ter muito mais relevância do que a simples disponibilização de conteúdo.

ARTE! – Agora, fiquei pensando também em como é possível lidar com essa ideia de participação neste momento de quarentena… Apesar da impossibilidade da presença física de visitantes, ainda é possível nortear o trabalho a partir desta ideia de participação?

Retomando a ideia do tripé formação, fomento e fruição, um conjunto importante dessas ações pode ser realizado de maneira virtual. Naturalmente, temos o desafio de ultrapassar uma internet de velocidade baixa e de custo alto para a população mais carente. Por outro lado, isso nos provoca a oferecer produtos e programas que não sejam simplesmente uma transferência de ações presenciais para o universo digital.

A mudança de paradigma, a resposta a dar em breve, é como fazer programação no digital para levar para o presencial e não o contrário. Aliás, essa minha crítica, em especial, sobre a catraca e a espetacularização ficará ainda mais contundente em tempos de pós-corona onde juntar multidões, infelizmente, deverá ser repensado. A meu ver, nada disso nos fragilizará. Paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura deste desejo.

ARTE! – Falando sobre o trabalho do IC ao longo das décadas, alguns projetos são muito marcantes nessa trajetória da instituição. Um deles é o Rumos, que tem mais de 20 anos e é um projeto de apoio e fomento à cultura. Voltando um pouco ao assunto dos editais, até que ponto é papel de empresas privadas fomentar a cultura no país? Este caminho seria uma alternativa à ausência de apoios estatais na área?

A arte e a cultura não podem ser reféns de dirigismos culturais, seja de que fonte for. Na minha opinião, a multiplicidade de recursos e iniciativas públicas e privadas é essencial para se ter uma boa política de Estado. O Itaú Unibanco tem uma história de apoio à arte e à cultura, que se manifesta por meio do Itaú Cultural, do Espaço Itaú de Cinema, que recebem recursos diretos do grupo, assim como é direto o patrocínio a iniciativas como o Rock in Rio. Também de apoio a mais de 100 projetos de terceiros em todo o país, por meio do incentivo fiscal.

Além disso e do programa Rumos, que você mencionou, temos o maior acervo de obras de arte corporativo da América Latina. Ele circula por diversas instituições culturais dentro e fora do Brasil de forma gratuita, como o são todas as atividades que o Itaú Cultural oferece. Esse entendimento resulta da percepção de que o século XXI exige mais e mais pessoas criativas e com senso crítico para que o país possa se transformar e desenvolver. A arte e a cultura têm a força para fazer isso acontecer, do contrário sucumbiremos à automatização e aos algoritmos.

ARTE! – Você já afirmou diversas vezes que o Brasil não tem uma política consistente para as artes, para a cultura. A classe artística, no entanto, não parece ter se sentido tão ameaçada em nenhum outro momento da história recente do país como no atual contexto, com o atual governo federal. Como enxerga este momento?

De fato, o Brasil não tem uma política de Estado para a nossa área. Não é de hoje. Há sete anos que o Fundo Nacional da Cultura, um instrumento importantíssimo na constituição de uma política cultural consistente tem visto, sucessivamente, o seu orçamento ser reduzido, mesmo tendo uma fonte segura de recursos advinda das loterias, o que geraria por ano por volta de R$ 350 milhões a R$ 400 milhões para o fundo.

Este ano vence o primeiro decênio do Plano Nacional de Cultura, que é um importante documento de referência para o nosso setor em virtude do seu ineditismo e olhar federativo, mas é frágil pelo aspecto de suas metas. Erroneamente, o PNC indica mais de 50 metas. Um plano com um número exagerado de metas nos faz imaginar que praticamente não tem meta nenhuma. A meu ver, este governo deveria priorizar a análise dessas metas e, em diálogo com a sociedade, propor novas e mais objetivas prioridades para a próxima década, na ótica da participação e do olhar sistêmico para o conjunto das iniciativas culturais e a garantia de liberdade de expressão.

Outro indicativo de vulnerabilidade nas políticas públicas é o fato de que em 30 anos de existência de um órgão dirigente de cultura tivemos, em média, um responsável a cada 10 meses, com exceção de Francisco Weffort, que permaneceu no cargo por oito anos, e de Gilberto Gil, por cinco anos e meio. Tudo isso sem contar, ainda, a histórica fragilidade da Funarte, em tese a instituição pública que deveria ser a responsável por fomentar a arte no Brasil.

ARTE! – Mas falando sobre este governo atual, situações de censura, que de modo geral pareciam parte do passado da história do país, voltam à pauta do dia, criando situações de tensão para artistas e instituições culturais. Como diretor de uma instituição deste tipo, como trabalhar neste contexto? Há uma preocupação neste sentido por parte do IC?       

Para nós, a liberdade de expressão é um pressuposto essencial para a criação artística, mas é sempre importante a busca do diálogo com outros instrumentos legais, como por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com isso, a obra e a arte ficam garantidas e preservadas, mas os pais e os responsáveis têm de ser informados adequadamente sobre os motivos da indicação da faixa etária, para que eles próprios decidam se as crianças podem, ou não, acessar aquele conteúdo.

ARTE! – Por fim, um dos grandes focos do IC tem sido trabalhar com história e memória. Isso se relaciona não só com história da ditadura, mas da escravidão, das heranças indígenas e africanas e dos vários períodos da história do país. Qual a importância deste trabalho e como ele tem sido feito?

O país mal tem políticas para preservar a sua memória. Somos muito afeitos ao novo, ao imediato, mas não há inovação sem conservação. Por isso, tratar da nossa memória é determinante para que possamos nos entender e compreender nosso processo de desenvolvimento, de modo a ganharmos consciência das nossas várias trajetórias para, inclusive, propormos não só múltiplas narrativas, como também nos prepararmos para o ineditismo e o novo.