De quatro a seis de junho, o Goethe-Institut realiza o primeiro Festival Latitude em ambiente digital. Sob o mote Repensando relações de poder – por um mundo decolonizado e antirracista, o festival entrega uma programação totalmente gratuita centrada em como as estruturas coloniais surtem efeito até o presente e como elas podem ser superadas. O evento reúne referências internacionais da arte, ciência, cultura e política. Entre os participantes estão a politóloga Nanjira Sambuli (Quênia), a filósofa Denise Ferreira da Silva (Canadá), a performer Trixie Munyama (Namíbia), o historiador Ciraj Rassool (África do Sul) e o pesquisador de migração Mark Terkessidis (Alemanha).
O Latitude se divide em quatro complexos temáticos que abordam a perpetuação de estruturas coloniais, refletindo sobre: desigualdade econômica; identidade e memória; conduta frente a bens culturais; e desigualdade digital global. Ao lado de discussões, debates e entrevistas, serão exibidos filmes, performances, concertos e shows ao vivo através de streaming e por vídeos gravados.
Como é um festival internacional, as falas serão feitas em inglês ou terão tradução simultânea para o inglês. A arte!brasileiros destaca algumas atividades que serão realizadas:
Mostra Vila Sul (mostra): Vila Sul é a residência artística do Goethe-Institut em Salvador, na Bahia, destinada a artistas, intelectuais e pesquisadores cujas frentes de trabalho tenham como tema principal o hemisfério sul. Devido à pandemia do Covid-19, os atuais “residentes” da Vila Sul – Thó Simões (Malanje), Koffi Mensah Akagbor (Ouagadougou), Émilie B. Guérette (Montreal) e Renata Martins (Bonn) – não conseguiram viajar para Salvador e estão concluindo sua residências digitalmente, o que também é uma nova experiência para a instituição. Dessa forma, os resultados iniciais de seus trabalhos serão apresentados virtualmente no festival Latitude.
Como parte do programa, o artista residente Koffi Mensah Akagbor participa da mostra Metal contra as nuvens; a crítica de arte Renata Martins é a responsável pelo conceito para a exposição TransAções – ambos podem ser acessados no portal do Goethe-Institut a partir do início de 4 de junho. Já no dia 5, Émilie B. Guérette participa de uma conversa sobre mulheres cineastas de diferentes origens, mas com um interesse comum: questionar a ordem colonial e patriarcal do mundo através de seu trabalho.
Resistindo ao extrativismo (painel): Moderado pela teórica cultural Lotte Arndt, o painel reúne artistas que desenvolvem, em seus respectivos contextos, estratégias visuais para resistir ao extrativismo. A artista e curadora Rachel O’Reilly comentará seu documentário Infractions (2019), que aborda o futuro da extração de gás na Austrália, em especial através do processo de fraturamento hidráulico – o “fracking”. O documentário baseia-se em anos de pesquisa e entrevistas, e questiona a relação incomum da cultura contemporânea e das artes com o extrativismo. O fotógrafo congolês Sammy Baloji falará sobre seu trabalho focado nas consequências da mineração colonial na região de Lubumbashi, República Democrática do Congo.
DIA 5
Memórias de uma câmera, para o esquecimento humano (exibição): Programa desenvolvido em conjunto com o Arsenal – Instituto de Cinema e Videoarte, sediado em Potsdamer. Seu título foi retirado do filme Forgetting Vietnam, de Trinh T Minh-ha, devido à exploração realizada pela cineasta vietnamita da reparação através da recontagem poética da história. Essa característica une os filmes do programa, além do seu interesse pela demonstração das estruturas desiguais de poder e o trabalho de perturbá-las. O resultado é uma coleção de obras subversivas dos artistas Lemohang Jeremiah Mosese, Ng’endo Mukii, Christa Joo Hyun D’Angelo, Wendelien van Oldenborgh, Jessica Lauren Elizabeth Taylor e Thirza Cuthand.
Aprendendo uns com os outros – a restituição como desafio ético e jurídico (painel): Tendo como ponto de partida a publicação do relatório de restituição elaborado por Bénédicte Savoy e Felwine Sarr em novembro de 2018, o painel vai discutir a restituição de bens culturais, tema controverso e cada vez mais discutido. Os participantes – especialistas em teoria e prática jurídicas, antropológicas e da civilização – vão mergulhar na questão para saber suas possibilidades e limitações, indagando, por exemplo, se a restituição pode funcionar como uma negociação social.
Como os museus caminham para o futuro (painel): Neste painel, profissionais da cultura e pesquisadores refletem sobre a prática atual nos museus: quais desafios eles enfrentam? Quais oportunidades surgem para a criação de novos modelos de museus? Tal debate, acentuado pela pandemia, tem forçado instituições a continuar questionando onde se imaginam no futuro e se nesse cenário é possível ampliar a relevância social dos museus.
DIA 6
Enquanto esperamos – produção artística tanzaniana em tempos de corona (exibição e debate): A artista performática Vicensia Shule estrearia uma produção teatral na edição 2020 do festival Latitude, em Berlim. Com as barreiras impostas pela Covid-19, Shule não pôde se apresentar, ao invés disso, convidou outros artistas afetados de vários campos das artes – cinema, música, artes visuais e teatro – para se expressarem em entrevistas em vídeo. Nas gravações, Shule documenta o trabalho desses artistas e como eles lidam com a produção de suas obras na situação atual. Ela nota, no entanto, que algumas das questões levantadas nas entrevistas afetam os artistas tanzanianos desde antes da pandemia.
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung propõe pensarmos um conceito de des-outrização como estratégia de crítica e desconstrução das geografias e narrativas que instituem poderes centrais em nossas sociedades. Seu texto para o catálogo da 21a Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que teve como equipe curatorial Gabriel Bogossian, Luisa Duarte, Miguel López e Solange Farkas, tem por título “Des-outrização como método” e leva como subtítulo uma frase em ngemba que, traduzindo, significa algo como “mantenha o seu que eu mantenho o meu”. O desafio do método da des-outrização é que outrizar, de certa forma, sempre foi nossa maneira de estar no mundo. Ao menos nossas auto-narrativas e epistemologias tendem a reproduzir binarismos que remontam quase sempre ao contraponto eu-outro. Na visão psicanalítica, o eu começa a tomar contornos com a diferenciação do outro, dada pelos limites do corpo, pelo desamparo e, finalmente, pelo aprender à jogar com o outro.
Angústia e medo na origem do conhecimento e da relação com o “outro”
Adorno e Horkheimer, em uma passagem conhecida do ensaio Dialética do Esclarecimento, descrevem a origem do conhecimento no grito do horror diante daquilo que desconhecemos. O conhecimento derivado desse encontro trágico com o “outro” seria eivado de medo e terror.[1] Seja na religiosidade, seja na filosofia, uma vez que “o esclarecimento é a radicalização da angústia mítica”, paira o projeto de submeter o outro de modo integral, já que “nada pode ficar de fora, porque a simples ideia do ‘fora’ é a verdadeira fonte da angústia.”[2] O projeto do esclarecimento, ou seja, a expansão da razão iluminista para todos os cantos da Terra, teve como resultado um processo de dominação do “outro” e da natureza que culmina agora com as imagens cada vez mais próximas e tangíveis do fim do nosso mundo. A razão que se ergueu como reação ao medo e se articulou a partir da angústia mítica torna-se uma arma violenta de redução do outro a meio, seja de conhecimento, seja de obtenção de lucro, uma vez que existe um vínculo perverso entre a razão iluminista e a lógica espoliadora e dominadora do capitalismo, sobretudo em sua vertente neoliberal. Se a razão não queria deixar “nada de fora”, o capital também deseja transformar tudo em meio para a riqueza: indivíduos são vistos como robôs-trabalhadores sem subjetividade e direitos, a terra é reduzida à categoria de commodity. Se existe algo que não pode ser transformado imediatamente em lucro, como árvores e populações originárias, elas devem ser aniquiladas. O outro é negado e esse outro é tudo o que se opõe ao império do capital. A comodificação do mundo implica necessariamente a sua própria morte. A geopolítica neoliberal recorta o mundo em função de sua exploração máxima. No campo político, Estados-nação se articulam em blocos globalizados, desdobrando a lógica do extrativismo, manufatura e conversão em lucro. Esse modelo é uma continuidade do sistema colonial e reproduz as hierarquias que redundaram da colonialidade, tanto nas relações entre os blocos nacionais como em termos de uma nova racialização ontologizante.
Colonizar e seus crimes: genocídio, etnocídio, ecocídio, memoricídio
Achille Mbembe com razão recorda um manual de colonização francês do século 19, de autoria de Paul Leroy-Beaulieu. A colonização, para esse autor, “é a força expansiva de um povo, é o seu poder de reprodução, é a sua expansão e a sua multiplicação através dos espaços; é a submissão do universo ou de uma vasta parte dele à sua língua, aos seus costumes, às suas ideias e às suas leis.” Vale lembrar que, em 2018, um candidato à eleição no Brasil falou que “quilombola não serve nem para procriar”, num gesto que ao mesmo tempo animalizou os afrodescendentes e negou a eles o direito à auto-reprodução e determinação.
Colonizar, precisa ainda Alexandre Mérignhac, no início do século 20, “é relacionarmo-nos com países novos, para aproveitar os recursos de toda a natureza desses países.”[3] Colonizar implica hierarquizar, dividir e dominar. Trata-se de uma necropolítica que destrói a natureza e populações inteiras. Destrói-se fisicamente e simbolicamente: genocídio, etnocídio e ecocídio andam de mãos dadas nessa era. Mas há uma quarta face dessa besta do apocalipse que não pode ser esquecida. Pois trata-se também aqui de um memoricídio planejado e sistematicamente reiterado. Não pode haver dominação sem violência física e simbólica. O caso do Brasil é paradigmático: país com uma das piores divisões sociais da riqueza no mundo, é também um campeão em termos de violência estatal e paraestatal, assim como em termos do apagamento das histórias e narrativas dessas violências.
É evidente que o sistema neocolonial/neoliberal foi duplamente oleado nas últimas décadas: primeiro com o fim do bloco de países liderados pela União Soviética, que permitiu uma expansão praticamente total do sistema neoliberal implantado já nos 1980 por Ronald Reagan e Margaret Thatcher; e, em segundo lugar, pelo 11 de setembro, com o desencadeamento da guerra aniquiladora contra o “outro”. Nunca a máquina de produção de narrativas da indústria cultural secretou tantos novos mitos e estabeleceu de modo tão claro as diferenças pretensamente insuperáveis entre o Eu defensor do Iluminismo e o Outro-bárbaro. Se da Ilíada a Hollywood a história dessas narrativas se repete, por outro lado o potencial genocida dessas narrativas nunca foi tão grande, tendo em vista as modernas tecnologias de guerra e cibernéticas.
No Brasil, onde agora essa explicitação do programa neoliberal se dá de modo trágico e patético, não por acaso o mote das políticas de segurança é “direitos humanos para humanos direitos”. Na medida em que os políticos no poder se arvoram a capacidade de estabelecer automaticamente, como nas modernas câmeras de reconhecimento facial, a distinção entre cidadão do “bem” e do “mal”, trata-se, portanto de um lema que caberia bem na porta de Auschwitz ou do DOI-CODI. Achille Mbembe também recordou as palavras do teórico francês da colonialidade do final do século 19, Jules Ferry, que já exalavam conceitos parecidos: “É preciso dizer francamente que de fato as raças superiores têm mais direitos que as raças inferiores […]. A Declaração dos Direitos do Homem não ‘foi escrita pelos Negros da África Equatorial.”[4]
Ou seja, a busca de uma política da des-outrização, defendida por Bonaventure assim como por outros artistas, curadores, antropólogos, atores e pensadores críticos, hoje, é uma resposta clara à virada fundamentalista que ocorreu com o triunfo do neoliberalismo, associado a uma nova onda de luta pela supremacia de um pensamento que podemos chamar de Esclarecimento, de Iluminismo ou simplesmente de eurocentrismo. Como escreveu Ta-Nehisi Coates, “os americanos [e não só eles, eu acrescento] acreditam na realidade da ‘raça’ como uma característica definida, indubitável, do mundo natural. […] a raça é filha do racismo, e não sua mãe.”[5] Ou, nas palavras de Achille Mbembe: “O grande nervo [do] projeto imperial é a diferença racial, que se incorpora em disciplinas como a Etnologia, a Geografia ou a Missionologia.”[6] As narrativas feitas em museus, nas literaturas, nas artes, na publicidade, nas exposições internacionais, apenas reforçam constantemente essas partilhas raciais, políticas e econômicas.
Nova ética da responsabilidade e o “todo” como um jogo
O método de des-outrização, no entanto, não é inocente e sabe que, aquém ou além de binarismos, nossas narrativas necessitam de um solo, mínimo que seja, de identidade para instituir a linguagem. Trata-se de pensar as diferenças como devires e não como mônadas sólidas, como a lógica haurida na base do medo da razão do Esclarecimento o faz. O subtítulo ardiloso de Bonaventure, “mantenha o seu e eu mantenho o meu”, não quer indicar, me parece, uma nova luta identitária, na qual simplesmente colocaríamos de ponta-cabeça as hierarquias norte-sul que operam política e economicamente no mundo hoje, mantendo intocada essa lógica binária metafísica. Antes, essa dualidade não deve ser pensada dentro de um binarismo estanque, mas sim a partir de uma nova ética da responsabilidade. Nessa relação do eu-mundo não necessariamente a outrização implica coisificação, objetificação ou dominação.
Saussure pensava o sistema linguístico como um jogo de diferenças, mas sabia que as peças desse jogo são móveis. Novalis, um século antes desse linguista, descreveu o todo de um modo divertido que pode iluminar o que quer dizer imaginar-se um jogo de diferenças aberto que sustenta a linguagem: “O todo consiste aproximadamente – como as pessoas jogando que, sem cadeiras, sentam-se num círculo uma no joelho da outra.”[7] Aqui vemos o todo sendo sustentado por um jogar ou brincar em comum. No catálogo da Bienal também lemos o precioso texto de Gladys Tzul Tzul, que afirma, a partir de sua experiência maia k’iche’ da Guatemala e de seus estudos de sociologia: “O trabalho comunal é a energia primordial a partir da qual se produz a riqueza concreta da vida comunal; ao mesmo tempo, possibilita um horizonte ético de existência e estratégias de inclusão que não são centradas em uma identidade essencial.”[8] As culturas tradicionais produzem as únicas comunidades e grupos autenticamente ricos, se pensarmos a riqueza em termos de bem-estar, como estado que nos livra da mencionada “angústia mítica” que se desdobra no nosso trabalho alienado e nas nossas relações coisificadas com o outro, com a natureza e com nossos desejos. Portanto, quando se afirma hoje que os “índios são pobres sobre terras ricas” isso só expressa a pobreza de caráter e a falta de inteligência de quem o disse. Os indígenas são as populações genuinamente ricas deste planeta. A vergonha, projetada neles, deve ser reconhecida na cultura hegemônica com sua lógica genocida.
A “segunda técnica” e o novo espaço lúdico de ação
Pensando na imagem de Novalis do jogo de sentar no colo um do outro para indicar o todo, lembro que também para Benjamin o jogo era visto como uma categoria aberta e não violenta de atuar no mundo. A relação lúdica com o mundo deve ser pensada como uma técnica de relacionamento não violento. Benjamin escreveu em seu conhecido ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica acerca de uma técnica emancipada, que seria para ele uma “segunda técnica”. A “primeira técnica” tinha o ser humano em seu centro e possuía como sua realização paroxística o sacrifício humano. Podemos dizer que essa técnica se irmana à razão do Esclarecimento e teve como realização os genocídios do século 20 e a destruição de boa parte do planeta. Já a “segunda técnica” tende a dispensar o ser humano do trabalho. Ela baseia-se na repetição lúdica e teria sua origem no jogo, visto por Benjamin como primeira modalidade de tomada de distância da natureza.
Lembremos também aqui da teoria freudiana do jogo: o fort-da (o brincar de desaparecer) do bebê como uma elaboração da separação/realidade.[9] Também para Benjamin o jogo é meio de empoderamento. Para ele a “segunda técnica” não visa a um domínio da natureza (como ocorria na “primeira técnica”), mas sim jogar com ela. O jogo aproxima, mas mantém a distância. A “primeira técnica” seria mais séria, e a segunda, lúdica: a obra de arte estaria no meio, oscilando entre elas. Mas o cinema e a fotografia, por serem artes eminentemente dependentes da técnica, estariam mais próximas dessa “segunda técnica”, e atuariam justamente no treino em direção à emancipação. Benjamin destaca a relação dessa segunda técnica com as revoluções e utopias. Ele apresenta, nesse contexto, o conceito fundamental de Spielraum, campo de ação, mas também, espaço de jogo. Cito: “Justamente porque essa segunda técnica pretende liberar progressivamente o ser humano do trabalho forçado, o indivíduo vê, de outro lado, seu campo de ação aumentar de uma vez para além de todas as proporções.”[10] Benjamin afirma também que, diante dessa segunda técnica, “as questões vitais do indivíduo – amor e morte – já exigem novas soluções”.[11] Essa ideia parece constar como mote para as obras de arte produzidas em nossa era. Hoje, uma parte significativa delas explora esses novos espaços de jogo e de liberdade que a técnica nos abre. São incursões sobre o novo sentido da vida – e da biopolítica – na era da síntese técnica da vida. Elas colocam questões a nós humanos, habitantes da era da crise das fronteiras (geográficas, biológicas e outras mais), da mobilidade incessante, da ansiedade, do fim do trabalho – esse definidor de nossa humanidade por tantos séculos.
Vale lembrar que Benjamin desenvolvera essa dicotomia entre dois tipos de técnica, ainda que de modo não tão explicito, e tratando da técnica como uma segunda natureza, em seu último fragmento de Rua de mão única, livro publicado em 1928. Nesse texto, denominado de “A caminho do planetário”, Benjamin trata do tema, caro a ele, do abandono, que teria ocorrido na modernidade, da percepção das afinidades eletivas, ou do mundo das semelhanças, que antes uniam a humanidade, o macro e o microcosmo. Ele escreve sobre a técnica destrutiva e sacrificial que culminou na Primeira Guerra e também sobre uma técnica que não seria mais dominação, que ele vê in nuce na força proletária:
Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. […] [No entanto] a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie estão, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se na técnica uma physis na qual seu contato com o cosmos se forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias.[12]
Ou seja, através de novas técnicas, dessa “segunda técnica” derivada e inspirada na fotografia e no cinema, uma outra natureza se organiza. Nossa relação com essa outra natureza será lúdica, dialógica, e se dará para além das lógicas do capital, das nações e das famílias. Esse pensador apostou em uma incorporação dessa técnica pensada como arte, e não mais como aparato de domínio e destruição. Seu sonho era que pudéssemos frear o atual desenvolvimento catastrófico em nome do pretenso progresso, que só traz morte, e construir uma humanidade capaz de realizar as potencialidades utópicas dessa “segunda técnica”: “Fazer da monstruosa aparelhagem técnica de nossos tempos o objeto da enervação humana – é esta a tarefa histórica em cujo serviço o cinema tem seu verdadeiro sentido”.[13] No cinema e, acrescento, nas artes como dispositivos de construção de novas subjetividades e de inscrição da história da violência, a humanidade poderia também testar novas modalidades de convívio intrahumano e com a natureza e, dessa forma, ensaiar – ludicamente – seu futuro.
[1] Também Hans Jonas notou que o sonho da civilização, ou seja, de domesticação da natureza, nascera do medo dessa mesma natureza e da ideia de sua conquista como um ato heroico. Hoje as coisas estão invertidas. Nós somos o perigo para a natureza. As marés que nos destroem (de água ou de lama) são respostas dessa Natureza ferida. Como escreve Hans Jonas: “A euforia do sonho fáustico se dissipou e nós despertamos sob a luz diurna e fria do medo.” (Hans Jonas, Une éthique pour la nature, trad. S. Courtine-Denamy, Paris: Flammarion, 2017, p. 176) A resposta a esse medo, no entanto, não deve ser o pânico, mas, antes, a ativação de uma nova ética que inclui pela primeira vez a Natureza e não se limita a ser apenas intersubjetiva.
[2] Theodor W. Adorno, e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos, trad. G. Almeida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 29.
[3] Achille Mbembe, Crítica da Razão negra, tradução Marta Lança, Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2a edição, 2017, p. 119.
[7] Novalis. Werke. Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs. Hans-Joachim Mähl; Richard Samuel (orgs.). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999. Vol. II. p. 152.
[8] Gladys Tzul Tzul. “Uma forma ética de existência: o comunal indígena como horizonte político”. in 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil: Comunidades imaginadas. São Paulo: Videobrasil; Edições Sesc, 2019. (Catálogo de exposição). p. 56.
[9] Sigmund Freud, Jenseits des Lutprinzips, in: Studienausgabe, vol. III, Frankfurt a.M.: Fischer, 1989, pp. 213-272, p. 225 e seguinte.
[10] Walter Benjamin. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Organização e apresentação M. Seligmann-Silva; trad. Gabriel Valladão Silva, Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 63.
[12] Walter Benjamin. Obras Escolhidas II: Rua de Mão única, trad. R.R. Torres Filho e J. Barbosa, revisão técnica Márcio Seligmann-Silva, 6. ed. revista, São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 70 e seguinte.
Neste período em que o isolamento social nos afasta dos eventos que costumamos experimentar nas múltiplas sedes do Sesc-SP, podemos vivenciar um outro tipo de experiencia acessando e descobrindo o Sesc Digital. A plataforma contém uma grande e variada quantidade de conteúdos – sobre esporte, meio ambiente, arte, saúde e cidadania, entre outros – adaptados para o ambiente online. Saiba mais no vídeo abaixo:
Reunindo 56 galerias de diferentes cidades brasileiras, a feira de arte Not cancelled Brasil realiza sua primeira edição entre os dias 10 de junho e 9 de julho de 2020. A feira, que funcionará apenas virtualmente, surge como alternativa de mercado no contexto da pandemia de Covid-19 e após o cancelamento das feiras presenciais no Brasil e no mundo.
No site do evento (www.notcancelled.art/brazil), que estará disponível durante o período da feira, o visitante poderá ver as obras dos artistas selecionadas por cada galeria – participam da feira 101 artistas -, além de acessar conteúdo diário ao vivo, como transmissões, entrevistas, palestras e visitas guiadas. Para dar maior dinamismo ao evento, o programa online será alterado semanalmente, variando artistas e galerias que estarão expostos.
“Not cancelled” (não cancelado) é um projeto desenvolvido pela agência TREAT, sediada em Viena, e foi inaugurado em abril de 2020 na esteira do fechamento de museus, galerias, feiras de arte e outros eventos culturais. Após seu lançamento com a feira de Viena, foi reproduzida com edições em Berlim, Paris, Varsóvia, Chicago, Dubai, leste e sul da Europa, sul dos EUA, entre outros. Todos eles com eventos de uma semana de duração. (saiba mais aqui)
A edição brasileira, organizada a partir da iniciativa de Karla Osorio Netto, galerista de Brasília, é a primeira com um mês de duração. Como explica o texto de apresentação do evento, trata-se de um projeto independente reunindo grande parte das principais galerias de arte contemporânea do país, incluindo casas de médio e pequeno porte. “É crucial que todas as galerias mantenham contato para ampliar sua visibilidade nacional e dentro de um contexto global. Devido ao fato de que a pandemia está paralisando todas as atividades globais no futuro imediato, essas galerias foram particularmente afetadas, pois também dependem da visibilidade fora de seus mercados locais.”
Nesse sentido, o texto conclui: “Em vez de cada uma lutar sozinho ou em nível local por visibilidade, pensamos em celebrar as atividades artísticas do país como um todo, unindo forças, e obtivemos apoio de uma plataforma internacional já existente, quase sem custo para as galerias. Esta é a primeira feira online de nível internacional realizada no Brasil e conta com o apoio da ABACT – Associação Brasileira de Galerias Contemporâneas.”
As casas que participam desta primeira edição são:A Gentil Carioca; AM Galeria; Amparo 60; Anita Schwartz; Athena; Aura; Berenice Arvani; Bergamin & Gomide; Bianca Boeckel; Bolsa de Arte; C. Galeria; Carbono; Casa Triângulo; Casanova; Cavalo; Celma Albuquerque; Central Galeria; Dan Galeria; Eduardo Fernandes; Estação; Fortes d’Aloia e Gabriel; Gaby Indio do Brasil; Janaina Torres; Jaqueline Martins; Karla Osorio; Kogan Amaro; Leme Galeria; Luciana Brito; Luciana Caravello Arte Contemporânea; Luisa Strina; Lume; Mamute; Marcelo Guarnieri; Marilia Razuk; Mario Cohen; Mendes Wood DM; Millan; Multiplo Espaço Arte; Nara Roesler; OÁ Galeria; OMA Galeria; Periscópio; Pinakotheke; Portas Vilaseca; Raquel Arnaud; RV Cultura e Arte; Sé Galeria; Silvia Cintra + Box 4; Simões de Assis; Soma Galeria; Superfície; Vermelho; Verve; Ybakatu; Zipper e 55SP.
Faleceu hoje, 31 de maio, aos 84 anos, o emblemático artista Christo. De acordo com um comunicado de imprensa divulgado pelo escritório do artista, Christo morreu por causas naturais.
Nascido na Bulgária como Christo Vladimirov Javacheff, ele conheceu sua parceira Jeanne-Claude em 1958, em Paris, depois de receber a encomenda de fazer um quadro da mãe de Jeanne-Claude. Juntos eles ajudaram a questionar percepções sobre a arte. O casal incluía, junto com suas esculturas de proporção maciça – muitas vezes invólucros de tecido ao redor de construções históricas -, as documentações relacionadas à burocracia necessária para a realização da obra; os relatórios de impacto ambiental; os desenhos e diagramas feitos nas etapas de planejamento desses trabalhos. Propunham, dessa forma, uma nova forma para a arte pública ser compreendida.
Entre suas empreitadas mais famosas estão os embrulhos da ponte Pont Neuf, em Paris, do Reichstag, em Berlim; as ilhas de tecido na Baía Biscayne, em Miami; a Mastaba colorida no Hyde Park, em Londres; e os Floating Piers, entre Sulzano, Monte Isola e a ilha de San Paolo, na Itália.
Em 1978, o processo de sua obra Running Fence foi documentado por Albert e David Maysles em um filme que mostra a longa luta do casal de artistas para construir uma cerca de 40 quilômetros de tecido branco sobre as colinas da Califórnia, desaparecendo no Pacífico.
A cerca, como os outros projetos de Christo e Jeanne-Claude, acabaria sendo derrubada depois de um tempo pré-determinado, persistindo graças ao documentário dos irmãos Maysles. Uma cena chama atenção para o impacto de seu trabalho. Durante as audiências públicas para aprovar ou não o início do projeto (que enfrentava grave rejeição e empecilhos burocráticos) uma mulher identificada como Sra. George Michelson se aproxima do microfone, oferendo a seguinte visão: “Algumas das refeições que preparo não são muito… Às vezes eu trabalho bastante para preparar uma refeição que eu acho que é arte. É uma obra-prima. E o que acontece? É devorada e desaparece”.
A fala da fazendeira mostra como – através de seus próprios quadros de referência – as pessoas conseguiam se relacionar com o processo do trabalho de Christo e Jeanne-Claude. Quando a cerca foi finalmente erguida, a comunidade se uniu em admiração pela beleza da obra. No comunicado emitido pelo escritório do artista isso é reafirmado: “As obras de arte de Christo e Jeanne-Claude reuniram pessoas em experiências compartilhadas em todo o mundo e seu trabalho continua em nossos corações e memórias”.
A notícia de sua morte chega quando Christo havia assumido um de seus projetos mais ambiciosos, uma escultura que veria o Arco do Triunfo, em Paris, envolto em 269.097 pés quadrados de tecido. A obra foi concebida pela primeira vez com Jeanne-Claude, em 1962. O projeto ainda deve ser executado em setembro de 2021.
No próximo dia 9 de junho, a Universidade de São Paulo (USP) escolhe a nova direção do Museu de Arte Contemporânea, que irá substituir a atual gestão, composta por Carlos Roberto Ferreira Brandão e Ana Gonçalves Magalhães. O mandato se encerra no próximo semestre. Será uma nova chance de renovação em uma instituição que não consegue se destacar na cena de arte da cidade, enfrentando desde problemas de financiamento à falta de um projeto claro de museu e mesmo de ocupação do espaço, o imenso antigo Detran.
Duas chapas disputam a direção do museu: uma encabeçada por Magalhães (MAC), tendo a arquiteta Marta Vieira Bogéa (FAU) como vice, e outra liderada pelo professor Martin Grossmann (ECA), com Maurício Pietrocola Pinto de Oliveira (Faculdade de Educação).
A convite de arte!brasileiros, as duas chapas fizeram uma síntese de suas propostas – disponíveis na íntegra aqui.
Criado em 1963, a partir da doação das coleções do casal de mecenas Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo, e pelas coleções de obras adquiridas ou recebidas em doação durante a vigência do MAM – o que gerou uma crise no museu -, e pelos prêmios das Bienais de São Paulo, até 1961, o MAC viveu um período especialmente efervescente durante a gestão de Walter Zanini, entre 1963 e 1978. Zanini (1925-2013) marcou o espaço como um lugar de experimentação para os artistas nos tempos difíceis da ditadura militar, e seu trabalho vem alcançando crescente reconhecimento, inclusive no âmbito internacional.
Desde então, o museu passou por altos e baixos. Há oito anos, em 2012, com a inauguração de sua nova sede, no Ibirapuera, em um edifício projetado por Oscar Niemeyer nos anos 1950, o MAC conseguiu uma área de 23 mil m2, rara entre as instituições de arte brasileiras. Lá está o acervo de 10 mil trabalhos, que inclui obras modernistas de artistas de renome como Picasso, Matisse, Max Bill ou Käthe Kollwitz, entre os estrangeiros, e Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Flávio de Carvalho, entre os brasileiros, até a produção recente, especialmente nacional, boa parte incorporada durante a gestão de Tadeu Chiarelli (2010-2014).
O colégio eleitoral que decide a direção é composto por um grupo seleto da própria USP: os membros do conselho deliberativo do museu e representantes de cinco unidades afins da universidade, como a Escola de Comunicações e Artes ou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Leia a seguir o que propõe cada chapa.
MAC USP: UM MUSEU UNIVERSITÁRIO NO SÉCULO 21 (Ana Magalhães e Marta Bogéa)
Com quase seis décadas de existência, e instalado definitivamente em sua nova sede no Parque do Ibirapuera, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) é a mais importante instituição em seu gênero no país. Guardião de um acervo inestimável de arte moderna e contemporânea, ele não é só mais um museu de arte na cidade de São Paulo. Por ser um museu universitário, no qual as atividades de docência, pesquisa e curadoria estão intimamente interligadas, ao longo de sua história, ele se consolidou como um espaço de reflexão crítica e formação (especializada e de extensão). Isso se reflete no perfil de seu colecionismo. Desde sua implantação na Universidade e sob a direção de Walter Zanini (1925-2013), o museu buscou investigar as novas práticas artísticas e as novas mídias, transformando-se em uma instituição pioneira no país, fato reconhecido pela historiografia internacional recente.
O MAC USP deve ser entendido como um museu-laboratório, pois além de abrir-se para o fomento à produção artística deve continuar a estimular o envolvimento de estudantes, dentro e fora da USP, bem como as parcerias interdisciplinares entre pesquisadores e docentes. Isso não é propriamente uma novidade para o Museu: desde a instauração da carreira docente (2004), seus curadores-professores vêm trabalhando na pesquisa em colaboração com colegas de outras áreas de conhecimento, inclusive internacionalmente, ao mesmo tempo que cumprem um papel singular de prover a formação de jovens pesquisadores em um contexto transdisciplinar. Recentemente, iniciou a discussão de um programa de residências artísticas e, em 2019, implantou um edital de exposições para artistas emergentes. Esta é, de fato, outra singularidade do MAC USP: a atividade curatorial é pautada pela pesquisa acadêmica e se desdobra em disciplinas de graduação e pós-graduação, em exposições e no programa de extensão do Museu. São práticas existentes que reconhecemos e desejamos continuar e ampliar.
Partimos desses pressupostos para elaborar nosso Programa de Gestão. Neste sentido, o MAC USP é uma porta aberta da maior e mais relevante universidade brasileira para a sociedade. Pretendemos, portanto, nos manter em diálogo com agentes dentro e fora da USP para debater questões prementes da contemporaneidade e assegurar este como um espaço de reflexão crítica e autonomia de pensamento. Por esse mesmo motivo, o MAC USP não é só um conjunto de galerias de exposições: suas formas de extroversão devem envolver várias áreas de conhecimento e atividades amplas de extensão cultural. Para tanto, esperamos contar com parcerias de outras instituições, dentro e fora do País – algumas das quais já desenvolvem projetos conjuntos com o Museu –, para construir um programa que se desdobre no tempo, e promova a produção de conhecimento e a educação em vários níveis. É também imperativo que este programa espelhe a diversidade e a alteridade, não só no seu calendário de exposições, mas nas suas ações de formação e de pesquisa.
O MAC USP deve ainda enfrentar grandes desafios nos próximos dez anos, sendo o mais imediato o da sua autonomia financeira para dar continuidade à sua excelência em pesquisa e formação, e ter fôlego em seu programa de extroversão. Diante das vicissitudes que estamos vivendo em função da mais grave pandemia dos últimos 100 anos, esses desafios tornaram-se ainda maiores, pois isso demanda do Museu que investigue novas formas de relação com seu público. Neste sentido, as equipes do MAC USP já estão discutindo propostas para este novo modo de comunicação e extensão de suas atividades, através das mídias digitais e redes sociais. Essas propostas deverão, em nossa visão, também envolver projetos e parcerias com artistas e pesquisadores da área, de modo a pensarmos juntos a dimensão virtual do Museu. Vale aqui lembrar que foi através do Projeto Temático financiado pela Fapesp que a instituição construiu uma plataforma virtual de difusão de seu acervo – extraindo os dados de seu banco de catalogação – e montou um laboratório de preservação digital (ver matéria na Revista Pesquisa FAPESP, de 25 de maio de 2020). O fato de ser um museu universitário, que conta com quadros altamente capacitados em seus vários modos de ação, deu não só o respaldo a essas iniciativas, mas também viabilizou a infraestrutura necessária para tal empreendimento. Com apoio de repositórios digitais que Universidade criou nos últimos anos, o MAC USP teve as condições de iniciar o colecionismo de artemídia antes de qualquer outro museu no País.
O MAC USP cresceu em espaço (27.000 m2 de área expositiva, em 2012), em número de visitantes (396.000 visitantes em 2019), e em projeção na área de pesquisa e formação. Crescimento em números, resultante sobretudo da excelência acadêmica, da competência de seus quadros funcionais e técnicos, e da reflexão crítica que permitiu ao Museu se reinventar em sua nova sede. Nosso compromisso é o de dar as condições para que o Museu continue a realizar plenamente a sua missão: produzir e promover a arte como forma de conhecimento e experimentação.
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POR UM MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA CONTEMPORÂNEO Na vanguarda do espaço-tempo: público, ubíquo, universal, planetário, experimental, transdisciplinar, formativo, colaborativo, dinâmico, aberto. Ancorado em referenciadas diretrizes museológicas e de gestão cultural.
(Martin Grossmann e Maurício Pietrocola)
A arte contemporânea se configura na segunda metade do século 20 principalmente por meio das ações de vanguardas artísticas críticas à institucionalidade da arte consolidada pelo museu de arte moderna. O pós-guerra, e em particular a inquietação dos anos 1960 e 70, colocam em xeque este paradigma de museu modernista. Surge um museu mais permeável e responsivo às intensas mutações do contemporâneo, que prioriza as relações entre arte e vida.
O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo é, portanto, um dos pioneiros no mundo nessa nova tipologia, ao inaugurar e liderar uma nova forma de ação museológica, laboratorial, ousada, crítica, contextual, performática.
O processo de criação do MAC é resultante de uma crise institucional do Museu de Arte Moderna de São Paulo, fundado em 1949. Em 1963,sua coleção, bem como as de seus idealizadores e mecenas (Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado), são doados à USP.
Instalado em sede definitiva no Parque do Ibirapuera viabilizada pelo Governo do Estado em 2007, o MAC, no entanto, ainda não aterrissou na metrópole. Ele sofre de um complexo de orfandade, seja de sua mãe de sangue, a cidade, seja de sua madrasta, a universidade. Carece de uma identidade que corresponda a ubiquidade contemporânea: o de estar e existir concomitantemente em todos os lugares, incluindo assim a universidade, a cidade, o mundo e até a virtualidade.
Por que um “culturador”*, professor titular da Escola de Comunicações e Artes, com significativa experiência em gestão cultural e acadêmica se junta a um outro professor titular da Faculdade de Educação, com um sólida formação científica (Física), especializado em Epistemologia e História da Ciência, bem como no desenvolvimento de estratégias inovadoras no ensino de Ciência, com o intuito de assumirem a gestão do MAC nos próximos quatro anos?
Entendemos que o museu precisa tornar-se uma interface, um atrator, alimentado pelos conhecimentos e práticas que só uma universidade como a USP é capaz de fornecer. O MAC precisa não só criar sentido para as suas áreas específicas e correlatas como para outras áreas de conhecimento da universidade e principalmente para o público. Precisa deixar-se contaminar pelas diferentes formas de saberes e experiências que convivem e tensionam a universidade e o planeta, sendo um espaço aberto à criação no sentido amplo do termo.
O nosso projeto de gestão se alicerça em uma proposta audaciosa de “culturadoria” inter e multidisciplinar, tendo como espinha dorsal a fantástica coleção do museu e um programa educativo e cultural colaborativo, em um movimento pela formação educacional para/pela arte, envolvendo assim, necessariamente, toda a equipe do museu, bem como vários e diversos agentes externos e diferentes públicos.
Como se trata de tarefa complexa, propomos que este projeto seja planejado e desenvolvido pelo museu em parceria com um coletivo de pesquisadores, artistas e profissionais, provenientes de diferentes áreas do conhecimento e de atuação e em sua grande maioria da USP, que queiram atuar na triangulação entre arte, ciência e cultura, visando o desenvolvimento de um dispositivo de investigação, expositivo, comunicativo e participativo transdisciplinar baseado, indiscutivelmente, na vocação, genealogia e trajetória deste museu.
Propomos um projeto coletivo, colaborativo, que considere de fato o MAC como museu de arte contemporânea da USP, ou seja, que represente a potência da interdisciplinaridade de uma universidade plural que reúne praticamente todos os campos de conhecimento. Sua centralidade será uma exposição temática de grande porte que terá a coleção do museu como referência central ampliada por meio da tecnologia digital e analógica embasada por um programa de ação educativa, científica e cultural. Uma experiência única de conhecimento e fruição, uma combinatória de narrativas interdisciplinares e multimídia —arte, cultura e ciência— que buscarão estimular experiências transdisciplinares.
Inspirados por seu primeiro diretor, Walter Zanini, a proposta aqui delineada para a gestão do MAC (2020-2024) pretende “remodelar o modelo”*. O museu precisa resgatar a sua matriz original, laboratorial, que com sua inventividade e ousadia, colocou o MAC em pari passu com outros museus de arte contemporânea no mundo, ao propor uma ação museológica distinta da maioria dos museus de arte moderna existentes em diferentes partes do globo, inclusive no Brasil.
Neste sentido, acreditamos que este seja o momento de metamorfose, do necessário salto para que o MAC —potência que é— retome o seu papel protagonista na cidade e no sistema da cultura e do conhecimento. Vivemos tempos de pandemia/pandemônio que nos inquieta, angustia, preocupa, desconcerta. Como o mundo e o Brasil sairão desta crise? Ainda não sabemos e os nossos espíritos entristecidos pelas mortes, como também pela evidente estupidez humana, tendem a uma postura mais cética, diante de tamanha barbárie e complexidade. Neste contexto distópico no qual todos nós estamos inseridos, um museu de arte contemporânea como o MAC precisa manter o seu espírito prospectivo e utópico, iluminar o que está por vir.
Um Museu de Arte Contemporânea contemporâneo que abre o terceiro milênio 27 deve apontar para o que ainda não existe, para o mundo em metamorfose. Mais do que nunca precisamos exercitar a imaginação na perspectiva de antever o novo, buscar e desenvolver novas formas de atuação, novas narrativas, novas museografias, novas metodologias a serem desenvolvidas conjunta e coletivamente seja com seu corpo técnico, seja com outras instâncias da universidade e fora dela, mas acima de tudo com o público.
*1 – Existe o culturólogo, termo que vem da Rússia onde há uma vertente importante da “ciência da cultura”: a culturologia.Já no Ocidente, os estudos culturais são a vertente mais consolidada de investigações relacionadas à cultura. No entanto, o neologismo “culturador” é lançado aqui uma vez que existem particularidades importantes na atuação e nasinvestigações até agora realizadas, que aproximam a cultura, as artes e a ciência, demandando assim uma nova área de atuação interdisciplinar, a culturadoria (culturing), uma investigação curatorial científico-poética da cultura. Ou seja, o culturador (culturator) é um especialista de estudos e da poética da cultura.
*2 – Baldini, Isis, Grossmann, Martin, Prado, Pamela, & Spricigo, Vinicius. (2018). Walter Zanini e a formação de um sistema de arte contemporânea no Brasil. Estudos Avançados, 32(93), 307-329. https://doi.org/10.5935/0103-4014.20180047
Desde que precisaram fechar as suas portas, por conta da epidemia do coronavírus, os museus e galerias do país passaram a organizar variadas atividades e iniciativas no universo digital para se manter em contato com o público. Entre essas iniciativas estão as lives, encontros transmitidos ao vivo, que ocorrem geralmente através do Instagram e Youtube, mas também de plataformas mais interativas como o Zoom. A arte!brasileiros selecionou alguns dos encontros que ocorrerão nos próximos dias. Veja abaixo:
Galeria Karla Osorio – A galeria segue sua série de lives “to.keep.alive”, com conversas sobre diversos assuntos do universo das artes. Nesta quinta-feira, dia 28, às 17h, Patricia Rousseaux (educadora, fundadora e diretora editorial da arte!brasileiros) conversa com Karla Osorio sobre “O Momento da Arte no Brasil e no Mundo. Na sexta-feira, dia 29, é a vez da artista Élle de Bernardini participar de um “Take Over” no Instagram da galeria.
Bienal do Mercosul – Rosana Paulino é a primeira convidada da Bienal 12 para o seu Programa de lives. O bate-papo acontece nesta quinta-feira, dia 28, às 19h, com mediação de Igor Simões, curador do Programa Educativo da Bienal 12. Os encontros seguem semanalmente, sendo ao todo seis encontros, sempre às quintas-feiras, que contarão com a presença de artistas, educadores e curadores. As conversas terão como eixo central o debate de questões relacionadas à arte e à educação inseridas no contexto do coronavírus.
Masp – O museu promove no dia 29, a partir das 11h, o seminário online “Histórias do Brasil”, com a participação de Heloisa Muriel Starling, Lilia Moritz Schwarcz, Moacir dos Anjos, Sandra Benites e Tom Farias. Este é o primeiro seminário de um projeto de longo prazo que antecipa o programa de exposições, palestras, oficinas, publicações e cursos do Masp dedicado às Histórias do Brasil em 2022, ano do bicentenário da independência.
Pinacoteca – O museu paulistano segue sua programação online com uma conversa neste sábado, dia 30, às 11h, sobre a exposição “Esculturas no Parque da Luz”. Tatiana Russo, conservadora do Núcleo de Conservação e Restauro da Pinacoteca, conversa com Valéria Piccoli, curadora chefe da instituição.
Galeria Nara Roesler – No dia 30 de maio, a Galeria Nara Roesler promoverá a segunda parte do evento online honrando Abraham Palatnik, artista falecido no dia 9 de maio, aos 92 anos. O evento reunirá curadores, críticos e amigos para discutir seu início, sua carreira e a herança deixada por Palatnik como pioneiro da arte cinética brasileira. No seu Instagram também podem ser conferidas as gravações das lives feitas anteriormente.
Galeria Luisa Strina – No dia 4 de junho, às 17h, a Galeria Luisa Strina faz seu webinar “Tramas, reflexos e dissonância: Passagem arquitetônica na exposição Vazios, intervalos e juntas de Leonor Antunes”. Para a conversa com a artistas, a galeria traz Denis Joelson. O bate-papo será realizado na plataforma ZOOM e para participar basta se registrar no link disponibilizado no Instagram da galeria. A live seguirá algumas questões chave como a dupla relação de Leonor Antunes com o campo da arquitetura e vai se desbruçar sobre o universo de alguns personagens que a influenciaram.
O projeto Messages for the City (Mensagens para a cidade, em tradução livre) deu largada em cinco distritos de Nova York no dia 17 de abril e ganhou sua segunda rodada no último dia 15 de maio. O projeto – conduzido em conjunto pelo Times Square Arts, o Museu Poster House, a Print Magazine e o coletivo For Freedoms – quer trazer, através da arte, anúncios de serviço público e mensagens de agradecimento e homenagem aos trabalhadores da cidade que não podem ficar em casa. São aproximadamente 30 artistas e designers, consolidados e iniciantes, que criaram obras para serem exibidas por um dos lugares mais emblemáticos do mundo.
Para a organização do Messages, “embora as imagens de uma Times Square vazia tenham se tornado emblemáticas de quão rapidamente a vida pública mudou em meio à crise global, as ruas da cidade não estão de fato vazias”. O texto afirma ainda que “centenas de milhares de nova-iorquinos vão trabalhar todos os dias para sustentar a cidade, desde profissionais de saúde, trabalhadores da cidade, funcionários de saneamento, funcionários de mercearias e bodegas, entregadores e muito mais.”
Cada obra fica em exibição nos telões digitais por 15 minutos, continuamente ao longo de todo o dia. Várias empresas doaram espaço publicitário em seus outdoors na Times Square para o projeto. As peças também aparecerão nas telas de asilos, clínicas de saúde e bancos de alimento, graças à organização F.Y.eye.
Além da campanha com os outdoors, o Messages for the City incluiu em seu desenvolvimento uma pintura em edição limitada feita pelo artista mexicano Pedro Reyes, cuja venda tinha como objetivo beneficiar a Coalizão de Imigração de Nova Iorque. A organização de defesa de direitos representa mais de 200 grupos de imigrantes e refugiados na metrópole. Em pouco tempo as edições já se esgotaram.
*Clique nos links para ser direcionado a uma mini bio de cada artista.
Leia também: No Brasil, artistas e designers se unem para campanha de ação social, acesse neste link.
Diretor-geral do Sesc-SP desde 1984, o sociólogo e filósofo Danilo Santos de Miranda exerceu o cargo que ocupa ainda hoje durante todos os governos da Nova República do Brasil – período democrático iniciado em 1985 -, desde a posse de José Sarney até os dias atuais. Nestes mais de 35 anos, afirma nunca ter visto um governo que compreendesse tão pouco e ameaçasse tanto o setor cultural do país quanto o atual. “É uma falta absoluta de política e de compromisso efetivo com uma visão ampla da cultura.”
Mais do que isso, Miranda, aos 77 anos, afirma que o governo Jair Bolsonaro chega a ser, em certos aspectos, pior para a cultura do que o foi o regime militar que assolou o país por 21 anos. “Havia a questão gravíssima da censura, não tem nem o que dizer. Mas existem muitas maneiras de fazer censura. E uma delas é diminuir, ou eliminar, quem produz algo que possa ser censurado. Então naquela época os artistas produziam e eram censurados. Agora, a ideia é que os artistas não tenham nem como produzir direito, porque não têm incentivos e mecanismos”, diz Miranda, em entrevista dada à arte!brasileiros poucos dias após a saída de Regina Duarte da secretaria da Cultura.
O quadro, que já era preocupante, se torna ainda mais grave com a atual epidemia do coronavírus e a necessidade de isolamento social. “Nós estamos enfrentando essa pandemia que é gravíssima e transversal, porque ela diz respeito a tudo, à vida humana. E não só à questão da saúde, mas da educação, da convivência, das relações, do dia a dia das pessoas, de novos hábitos…”. E no Brasil, afirma Miranda, “temos um presidente que nega absolutamente tudo isso e atua de uma maneira equivocada, totalmente errática, em todos os sentidos. É tão grave quanto um guerra”.
Por isso mesmo, o diretor do Sesc (Serviço Social do Comércio) considera urgente a retomada de uma discussão sobre a importância da cultura em sentido amplo. “Cultura para mim não é um aspecto da vida, mas é o universo onde estamos inseridos. Diz respeito aos nossos hábitos, à nossa língua, nossa maneira de ser”. Sobre esta “maneira de ser”, Miranda ressalta que ao menos a solidariedade deverá ganhar maior espaço em um mundo pós-coronavírus. “Porque uma ameaça como essa é para todo mundo, e você depende totalmente do outro para poder se manter saudável.”
Miranda falou também sobre um modelo de desenvolvimento global que ao mesmo tempo que destrói a natureza – com consequências na vida biológica de um modo geral -, gera pobreza e uma desigualdade brutal. “Se na Europa a epidemia foi grave, aqui vai ser gravíssima.” O diretor do Sesc-SP conversou ainda sobre a atuação virtual da instituição, sobre as constantes ameaças de cortes de recursos do Sistema S (formado por instituições como Sesc, Sesi, Senai e Sebrae), sobre o equívoco de se submeter a pasta da Cultura à do Turismo e sobre fake news, entre outros assuntos. Leia abaixo.
ARTE!✱ – Danilo, nós conversamos há exatamente um ano (leia aqui) e na época o senhor estava bastante preocupado com as políticas do atual governo, com um clima de ameaça à classe artística. Ao mesmo tempo, dizia que o Sesc seguia trabalhando normalmente e inclusive celebrava a abertura da unidade de Guarulhos. O panorama hoje é bastante diferente, por uma série de motivos, mas principalmente por conta da pandemia do coronavírus. Gostaria de começar perguntando como o senhor vê o momento e como está o trabalho no Sesc-SP.
Danilo Santos de Miranda – De lá para cá as coisas mudaram, precipitaram-se. As ameaças e as dificuldades do ponto de vista da cultura em geral continuam e até se ampliaram, na medida em que tem essa instabilidade, essa celeuma na questão da administração pública no campo cultural. E o que se revela é uma falta absoluta de política e de compromisso efetivo com uma visão ampla da cultura. Cultura tem a ver com política pública, com identidade nacional, com a intenção que se tem como projeto de país. Não é uma coisa apenas para lidar com uma situação episódica de uma das linguagens artísticas especificamente, nem com coisas por vezes mais vinculadas ao entretenimento do que propriamente à cultura. Então tudo isso continua me preocupando. Nesse aspecto, há a necessidade de uma retomada do que é a cultura, da importância da cultura, do caráter estratégico da cultura para o país, para o desenvolvimento, para a vida das pessoas. Ainda mais agora que nós estamos enfrentando essa pandemia, que é gravíssima, e muito transversal, porque ela diz respeito a tudo, à vida humana. Não só à questão da saúde, mas da educação, da convivência, das relações, do dia a dia das pessoas, de novos hábitos, novas regras de convivência… da cultura.
Então tem muita coisa incerta. O que temos hoje pela frente é uma ameaça gigante de saúde, uma ameaça financeira – do ponto de vista econômico, da falta de recursos, de emprego e de condições de vida – e as consequências disso tudo para a vida normal das pessoas, onde a cultura ocupa um papel bastante amplo. Cultura para mim, quando a gente considera em um sentido mais antropológico, mais amplo, não é um aspecto da vida, mas é o universo onde estamos inseridos. Diz respeito aos nossos hábitos, à nossa língua, nossa maneira de ser. E dentro da cultura, as artes têm aquele papel de ser a nobreza do simbólico, aquilo que é mais elevado, que é a representação e que dá significado às coisas para nós. Porque é a única manifestação onde você ultrapassa a sua condição puramente material e vai além, explora, desenvolve a imaginação, a fantasia, desenvolve esse lado abstrato fundamental para o ser humano, para poder enfrentar todas as realidades na vida. Então a cultura tem um papel fundamental. E está amaçada.
ARTE!✱ – E dentro deste contexto de ameaça, como o Sesc tem conseguido trabalhar?
A gente lida com cultura nesse sentido bastante amplo, como eu disse. A gente lida com questões de atividades físicas, de alimentação, de saúde e com a questão das artes. Tudo isso faz parte do nosso universo, porque nós somos uma instituição ligada a um projeto de bem-estar social, de bem viver. De procurar caminhos adequados para que as pessoas se deem bem do ponto de vista ético, estético, social, comunitário. Não é aquele bem-estar individual apenas. O bem-estar individual só faz sentido se você levar em conta também o outro, aquele que também está no lugar onde você está inserido. O Sesc então procura corresponder a essa expectativa usando as ferramentas que tem à sua disposição. Neste momento pandêmico estamos fazendo muitas coisas através das nossas plataformas virtuais, com vários horários nas redes sociais, de modo a levar para as pessoas não só informação, mas o entretenimento, a provocação, o debate. Já fizemos apresentações musicais, monólogos, teatro, entre outras coisas. Realizamos debates sobre ética, a inserção do idoso, questões de alimentação, questões de saúde, da negritude, dos grupos menos favorecidos e por aí vai. Então conhecimento, ciência, tudo isso faz parte desse esforço de divulgação em que estamos inseridos, onde a arte tem um grande papel.
Sobre artes visuais, ainda há pouco eu estava conversando com a nossa responsável pela área, imaginando algum tipo de ação que possa favorecer não apenas uma discussão, mas uma manifestação também de artistas nesse momento. De modo que eles tenham espaço não exatamente para mostrar sua arte em uma exposição comum, mas descobrir formas de eles também estarem presentes nesse momento para colaborar com a reflexão e interagir com as pessoas em casa. Porque nós temos um consumo de arte permanente em casa e muitas vezes nem nos damos conta. Nós não viveríamos de maneira completa sem arte.
ARTE!✱ – Como o senhor mesmo diz, a proposta de trabalho do Sesc é muito voltada a uma ideia de participação das pessoas, não só de contemplação, visitação. Como pensar em participação neste momento em que as pessoas precisam estar isoladas?
Tem uma coisa inicial que é o seguinte: as pessoas precisam ter informação. Formação, não é? Educação “para” algo. Você tem toda uma perspectiva de passar informação, de envolver as pessoas com conhecimento. Isso é o primeiro momento. Você se encanta com alguma coisa, mas a partir daí você se informa sobre aquilo de uma maneira mais profunda. E numa terceira etapa você se envolve a ponto de produzir alguma coisa na mesma direção. Então são várias fases desse processo de envolvimento. Sem duvida nenhuma a participação, ou seja, esse envolvimento integral – com a atração, conhecimento, a participação e o envolvimento efetivo no fazer – é parte do processo. E a gente tem feito alguma coisa virtualmente com relação a isso. É muito legal, é muito bom, mas não é suficiente. Afinal de contas o ser humano tem a questão da relação pessoal, presencial, inerente à sua natureza. Portanto, é importante que o convívio presencial volte o mais breve possível. E isso mais cedo ou mais tarde vai voltar a acontecer, mas por enquanto o caminho é o isolamento, o afastamento. É hora de permanecer em casa, sobretudo aqueles que tem, por algum motivo, uma necessidade maior de se isolar. Os chamados grupos de risco. Então nesse momento não tem muito como se envolver a esse ponto presencial, mas virtualmente existem recursos que têm sido aprimorados. Eu tenho participado de muitas conferências, debates, discussões. E é muito bom, avançou bastante. A pandemia seria muito mais grave se não fossem essas ferramentas de aproximação virtual.
ARTE!✱ – Me chamou atenção no portal do Sesc que, para além das divulgações de atividades, há um texto em destaque chamado “Dicas para evitar a ‘infodemia’, a epidemia de notícias falsas”. As fake news, especialmente nesse momento, são um dos maiores inimigos no combate ao coronavírus?
São um grande inimigo. A gente tem que ter um treinamento próprio para lidar com isso. Com mais experiência a gente começa a se disciplinar um pouco melhor, a prestar mais atenção. Primeiro na fonte. De onde vem? Qual é a origem? Por exemplo, tem milhares de lives acontecendo por aí. Então a primeira coisa é ver a origem dessa quantidade imensa de informações. E nisso ajuda o debate, a discussão. Então é preciso ter um certo cuidado, que você vai aprimorando a partir do conhecimento que adquire. A gente tem que fazer uma espécie de curadoria permanente das informações que chegam. E é nisso que esse texto no site do Sesc tenta ajudar.
ARTE!✱ – Nesse sentido, existe nos últimos anos um certo negacionismo da ciência, junto à teorias da conspiração (como a que coloca a culpa da pandemia na China), que dominaram setores da sociedade brasileira, e que acabam tornando o que seria uma questão de saúde pública em uma questão de disputa de narrativas políticas. Como o senhor vê isso?
Sim, disputas de narrativas políticas, sobretudo partidárias. Acho isso lamentável, acho uma indigência intelectual total. A afirmação que foi feita esses dias pelo presidente – de brincadeira, mas que revela um pouco isso -, de que quem é de direita consome cloroquina e quem é de esquerda consome tubaína, realmente eu lamento. Porque é uma indigência intelectual total, uma falta de visão das coisas, e está gerando uma situação muito complicada. Isso tem a ver com as fake news. A questão da teoria da conspiração com a China não foi nem aqui que nasceu, tem a ver com uma posição do próprio presidente americano, que afirma que a China criou isso numa disputa de hegemonia mundial. Teve também a discussão na Organização Mundial da Saúde, em que os EUA ameaçaram tirar recursos, e a China disse que cobria. Então está havendo uma disputa internacional em torno dessa questão, o que tem a ver também com a ascensão da direita no mundo inteiro. Uma direita que nega vários fatos e que acusa a China. Agora, a gente nunca sabe. Amanhã o Trump pode perder as eleições, no Brasil pode mudar o quadro… aí muda tudo de novo. Então tudo pode ser passageiro. Agora, existe um fato: um vírus, do qual não temos informação completa, que não está controlado ainda, e está afetando a vida das pessoas. E é transversal. Não é apenas um problema de saúde, mas diz respeito à economia, às relações e à vida no mundo inteiro, com milhões de contaminados e milhares de mortos. E o Brasil é o campeão. Já havia uma crise econômica grave, nós temos uma questão política gravíssima, com um presidente que nega absolutamente tudo isso e atua de uma maneira equivocada, totalmente errática, em todos os sentidos. É tão grave quanto um guerra.
ARTE!✱ – Um ano atrás o senhor se dizia também estarrecido com a falta de percepção da importância do conhecimento, da filosofia, da ciência, da pesquisa, do estudo, das artes e da cultura na sociedade. De algum modo, o tamanho da crise que estamos vivendo tem a ver com isso tudo, e não só com a propagação de um vírus?
Exatamente. Pois se a gente tivesse levado em conta o conhecimento científico desde o primeiro momento, com grandes especialistas que estão aí e que o Brasil dispõe em toda parte, provavelmente teríamos tomado medidas mais radicais com relação ao isolamento. Até mesmo feito um lockdown, que me parece inevitável.
ARTE!✱ – Em entrevista recente, o filósofo e sociólogo Edgar Morin ressalta que essa crise é uma crise também civilizacional, existencial, social, planetária, e que nos relembra que nós humanos não estamos separados do destino bio-ecológico do planeta. Enfim, é hora de repensar nossos modelos de desenvolvimento, de distribuição de renda, de globalização?
Totalmente. Morin atinge com muita precisão, nessa análise, os fatos que levaram de alguma forma a isso tudo. Há algumas suspeitas de que esse tratamento que o ser humano deu e dá à natureza, à terra, conduz a esse desgaste profundo. Por exemplo no que se refere à utilização inadequada para a produção de alimentos e produtos, nem sempre adequados à uma vida saudável. Então diversos fatores levaram a um desequilíbrio. E essa questão desses vírus é algo que já estaria, segundo alguns, previsto que poderia acontecer em algum momento. Eu não sou especialista do ramo, mas percebo que isso faz sentido. Então a exploração dos recursos naturais levada ao extremo, além de mexer com questões como o aquecimento global, que já é um fato real, tem consequências na vida biológica de um modo geral, na vida dos seres visíveis e invisíveis que estão sobre a terra. Então acho que isso mostra uma exploração inadequada, em primeiro lugar. E em segundo lugar mostra o desequilíbrio, a desigualdade, a falta de equidade social. Ou seja, é muito mais grave o que está acontecendo no Brasil do que o que passou pela Europa. Lá foi grave, aqui vai ser gravíssimo. Porque aqui a desigualdade, a pobreza, a miséria e a falta de condições sanitárias são muito maiores.
ARTE!✱ – E aí, exatamente em um momento como esses, o governo brasileiro tenta mais uma vez cortar recursos do Sistema S…
Pois é. No momento em que mais se necessita de instituições que lidam com essas questões, não propriamente do ponto de vista do fornecimento de recursos materiais, mas que lidam com a questão do debate, da discussão, da informação, da educação e da cultura, para que possamos vencer tudo isso. Acho que se fosse um país mais preparado, com uma educação de melhor nível, você teria pessoas mais facilmente convencíveis da necessidade de tomar medidas. As pessoas mais conscientes são aquelas que são mais informadas. Então é fundamental que quem lida com informação, com conhecimento, com cultura e com educação – não apenas no sentido escolar, mas no sentido amplo, permanente – seja preservado. Porque é essencial.
ARTE!✱ – Ao menos o corte foi barrado, pelo menos por enquanto…
Sim, mas é uma ameaça permanente. A primeira coisa que pensam sempre é de afetar o Sistema S.
ARTE!✱ – Muito se fala do “mundo de depois”, do mundo que virá após a pandemia. Inclusive o líder indígena Ailton Krenak escreveu que se “voltarmos à normalidade é porque de nada valeu a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro”, ou seja, não aprendemos nada. O que o senhor acha que podemos esperar deste futuro?
Concordo com o Krenak. Quer dizer, o “novo normal” vai exigir no mínimo que as pessoas sejam convidadas a serem mais solidárias. Não quer dizer que elas serão mais solidárias, mas serão convidadas à isso. Primeiro porque uma ameaça como essa é para todo mundo. Depois, porque você depende totalmente do outro para poder se manter saudável. Então é quase que uma solidariedade obrigatória, indispensável. Se você não for solidário corre o risco de ficar doente, de ser ameaçado. Então digamos que a solidariedade está sendo imposta, entre aspas, como condição de vida a partir de agora. E as pessoas mais poderosas vão ter que pensar duas vezes antes de exercer qualquer tipo de poder. Vão ter que levar em conta questões como: quem está excluído? Por que está excluído? Por que as pessoas não têm acesso? O que é necessário para que tenham acesso e sejam incorporados? O segundo aspecto é que vamos ter que rever hábitos. Por exemplo, enquanto não tiver vacina, vamos ter que rever hábitos de aglomeração. Como é que vamos juntar gente para ver um filme, um teatro ou um concerto? Teremos que afastar as pessoas de um modo que vai ser extremamente difícil do ponto de vista prático, arquitetônico… Então vai ser um desafio enorme. Como é que será o “novo presencial”, para além do ambiente virtual? Vai ser com uso de máscaras? De roupas especiais? Tem muita coisa para se descobrir…
ARTE!✱ – Voltando um pouco para questões da política nacional, nós acabamos de ter mais uma mudança na secretaria de cultura, com a saída de Regina Duarte. Em menos de um ano e meio de governo Bolsonaro tivemos o rebaixamento da Cultura de ministério para secretária…
O que já foi uma sinalização grave…
ARTE!✱ – Sim, e chegaremos agora ao quinto nome que assume a pasta. O que isso demonstra sobre o valor dado à cultura pelo governo?
Demonstra que não tem a menor importância. Que é só uma burocracia, destituída de qualquer fato relevante que justifique sua presença num aparato de governo. Isso está muito evidente desde o início. Subordinar a Cultura ao Ministério do Turismo, por exemplo, é de uma falta absoluta de visão, inclusive estratégica. É entender a cultura apenas como entretenimento ou elemento de atração turística para um país, uma sociedade. Como algo destituído de peso e importância do ponto de vista da educação, da economia – porque, sim, a cultura tem um papel fundamental na economia. E quando você amplia o conceito de cultura, no sentido mais completo, o turismo é que é subordinado à cultura. Então falta fundamento até teórico para entender o papel de cada um nesse processo. É muito grave o que acontece.
ARTE!✱ – Agora, se os secretários que passaram não deixaram um legado importante para a cultura, conseguiram pelo menos fazer algum barulho, vide a entrevista recente de Regina Duarte à CNN ou o pronunciamento em que Roberto Alvim parafraseou um discurso do nazista Joseph Goebbels. Gerar polêmicas foi o grande legado destes secretários até agora?
Isso tem um lado curioso. Por mais que tentem tirar a importância da cultura, reduzam o seu significado, ela segue despertando a atenção. Porque existe uma certa intencionalidade de reduzir a importância da cultura. E de algum modo, ao falar muito dessa redução, chama-se a atenção para o assunto. Parece que às vezes o tiro sai pela culatra. Tentam tanto deixar claro que não é importante, que acabam dando importância. Porque é sim importante. A cultura não é um fato complementar na vida das pessoas, ela é onde as pessoas estão inseridas no dia a dia. A cultura é mais do que as artes. É que eles entendem cultura só como as artes, o que, embora seja muito importante, ainda é pouco.
ARTE!✱ – Tem quem considere, inclusive, que a cultura está sendo tratada de um modo ainda pior do que foi na ditadura militar…
Os militares não se envolviam desse jeito nas questões da cultura. Havia a questão gravíssima da censura, não tem nem o que dizer. Mas existem muitas maneiras de fazer censura. E uma delas é diminuir, ou eliminar, quem produz algo que possa ser censurado. Então naquela época os artistas produziam e eram censurados. Agora, a ideia é que os artistas não tenham nem como produzir direito, porque não têm incentivos, mecanismos…
Mas olha, independente disso tudo, eu gostaria de colocar uma questão que para mim é fundamental. Cultura é muito amplo, é muito mais sério e mais importante do que qualquer governo possa imaginar. E ela vai existir independente da vontade dos governos, estejam eles favorecendo ou prejudicando. Porque ela é inerente à vida humana. Ela é parte da produção humana. Você vai em qualquer lugar deste país, ou do mundo, estão produzindo cultura permanentemente. E não só a cultura que se transforma num produto – como uma música, uma literatura -, mas a cultura que é a expressão humana necessária na comunicação, na narrativa, no dia a dia, nas lembranças, na memória. Não existe memória sem cultura. Então não conseguirão destruir isso nunca, nunca. Por mais que tentem.
ARTE!✱ – E como é possível imaginar uma melhora, uma transformação, neste momento?
Não é fácil, mas eu sou um otimista ferrenho, sempre fui. Não dá para fingir que está tudo bem, principalmente quando olhamos para o lado e vemos pessoas caindo, morrendo, afetados por essa pandemia. Agora, eu tenho esperança, primeiro, que desperte-se no mundo essa necessidade da solidariedade efetiva. E acho que por aí pode haver uma retomada importante, na medida também em que a gente vai encontrar meios de controlar a pandemia. Com relação à vida de um país como o nosso, seja do ponto de vista político ou econômico, existem forças que podem se contrapor a isso que está aí e que podem desenvolver esse nosso país para valer. Alguma hora a economia vai retomar, o Brasil vai crescer, lá na frente, e a gente tem esperança de que esse quadro mude. Nós já vivemos momentos graves, já passamos por ditaduras no passado, principalmente essa última (1964-1985) que matou muita gente, proibiu, censurou, oprimiu. E passou. E esse quadro atual uma hora também vai passar, porque a maioria da população percebe ou o engano que cometeu ou a necessidade efetiva de mudar a partir do que está acontecendo. Então eu tenho a esperança de que, no médio ou longo prazo, a gente altere esse quadro e retome um caminho mais positivo. Nós temos que criar outro mundo possível, um novo normal, uma nova perspectiva que virá por aí. O parto é duro, difícil, doloroso, mas tenho a impressão de que vamos sair dessa.
Faz pouco mais de dois meses que os ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública definiram, em 17 de março, os critérios para quarentena e isolamento compulsórios. Assim que o texto foi publicado no “Diário Oficial da União”, o mercado da arte se viu obrigado a repensar métodos e planejar novas estratégias para chegar ao seu público, independentemente da visitação presencial – pelo menos até o momento -, aspecto basilar das exposições em galerias e instituições culturais. O paradigma da crise acarretou a procura pelo território virtual, as lives e as salas online de visitação, entre outros recursos da web.
Entre as adaptações feitas pelo mercado, algumas iniciativas com cunho solidário também foram criadas por galeristas, curadores e artistas. Projetos como 300 Desenhos, OÁ Solidária e Quarantine conseguiram deixar mais palpável o impacto da arte durante a crise, além de, claro, ser sempre uma panaceia. Conheça melhor esses três projetos:
OÁ Solidária
Foi um dos primeiros projetos com cunho social a surgir durante a quarenta. A iniciativa tomou forma seguindo a proposta de Rafael Vicente, um dos artistas representados pela Galeria OÁ em Vitória, de disponibilizar 100% da venda de suas obras para a galeria. A ação foi o estopim para que a diretora Thais Hilal pusesse em prática o desejo de tornar a galeria mais ativa dentro de sua comunidade. Inicialmente foram convidados a participar os artistas representados pela galeria, enquanto obras do próprio acervo também estavam inclusas nessa fase da empreitada. Depois do lançamento da OÁ Solidária, Hilal conta que continua recebendo mensagens de artistas que “se sensibilizaram com o projeto e querem participar”, comentando que a equipe está aberta para novas contribuições.
As obras doadas até o momento estão disponibilizadas em um Instagram exclusivo (acesse neste link). Toda a venda será destinada ao SECRI – Serviço de Engajamento Comunitário de São Benedito, que existe em Vitória há 31 anos. Seu trabalho junto às famílias do bairro São Benedito contempla por volta de 270 jovens de 6 a 20 anos em situação de vulnerabilidade social. Além do trabalho desempenhado pelo SECRI, o fato dele estar no mesmo bairro que a OÁ também contribuiu para sua escolha por Hilal, somando à sua vontade de integrar mais a galeria ao seu entorno: “Eu acredito que se trabalharmos aliados com as iniciativas locais estaremos mais perto das transformações globais que tanto precisamos”.
Quarantine
O Quarantine surgiu como um modelo de vendas alternativo em meio à pandemia. Sua proposta cresceu pensando em colaboração e em reimaginar a forma como são feitas as vendas, geralmente realizadas pelos artistas por conta própria ou por meio de uma galeria. A cada obra vendida no Quarantine todos os artistas participantes – cerca de quarenta e cinco – ganham, formando uma espécie de cooperativa de artistas.
Para Cristiana Tejo, uma das organizadoras do projeto, adicionar uma cota extra destinada a uma entidade com ação social foi um raciocínio natural: “Queríamos ajudar ao máximo de pessoas possível, mas a prioridade era para xs artistas, pois sempre se pede doações de obras a artistas em ações de solidariedade, mas quase ninguém pergunta se xs artistas também precisam de ajuda financeira”.
Dessa forma, a entidade escolhida pelas criadoras do Quarantine foi a Casa Chama, em São Paulo, que funciona como organização civil e cultural, surgida da necessidade de criar mais espaços de pesquisa, discussão e ação para pessoas trans. Um dos motivos pela escolha da Casa é a ligação de três das artistas que participam do Quarantine: Manauara Clandestina, Diran Castro e Cinthia Marcelle. Tejo explica que a entidade receberá “o mesmo valor que cada umx dxs participantes do projeto Quarantine. Ou seja, o valor arrecadado com as vendas das obras será dividido igualmente entre xs 45 artistas (incluindo Lais Myhrra e Marilá Dardot que também são coordenadoras da iniciativa), Julia Morelli, Cristiana Tejo e a Casa Chama”.
300 Desenhos
A ideia para o 300 Desenhos surgiu de uma conversa entre dois dos organizadores da campanha, Erika Verzutti e Fernanda Brenner. O projeto foi então estruturado por um grupo de voluntários formado por artistas, curadores, produtores, gestores e galeristas.
Ele funciona assim: ao contribuir com uma cota única de R$ 1000, os apoiadores do projeto são direcionados para o site, onde podem visualizar as obras doadas e descobrir qual será a sua. Um ponto interessante é que a obra não é escolhida pelo apoiador, mas sim por um algoritmo da própria iniciativa. Assim, cada desenho é, de certa forma, designado ao seu dono como se a obra escolhesse o apoiador. Não há limite de colaborações, no entanto.
Com o projeto pronto, o grupo mobilizou suas redes e contatos para levantar recursos para três organizações, a APIB, CUFA e Habitat (confira mais sobre cada uma neste link). Ter ação nacional e agir com ações emergenciais de proteção e assistência para grupos mais vulneráveis foram os critérios de escolha das organizações.
Para o futuro
A gestora cultural Paula Signoreli, também idealizadora do 300 Desenhos, conta que os resultados já são visíveis: “Tivemos a adesão de 368 artistas, os primeiros a se mobilizarem, superando nossas expectativas iniciais. Ao final, recebemos o apoio de 273 doadores, que participaram com cotas diversas, alguns deles inclusive abrindo mão da ‘recompensa’ (desenho selecionado aleatoriamente pelo sistema criado pelo projeto)”.
Além do resultado financeiro rápido, a iniciativa já foi replicada no Peru, por exemplo, em uma articulação coordenada pelo curador peruano Miguel Lopez, que resultou no projeto Dibujos por la Amazonia. Segundo Signoreli, a equipe brasileira colaborou com as informações sobre a estruturação da campanha, incluindo o algorítmo de sorteio utilizado pelo 300 Desenhos, cedido pelo programador Ariel Tonglet. A gestora complementa que o grupo segue recebendo consultas e contatos de profissionais de outros países que planejam criar projetos com características semelhantes.
Para Cristiana Tejo, do Quarantine, no futuro “os agentes do mundo da arte devem se questionar sobre o que deve mudar em suas posturas e ações”, complementando que espera que o projeto – um modelo que pode ser replicado por qualquer pessoa – ajude a questionar: “Como causar transformações estruturais que beneficiem mais pessoas e o planeta?”.
A fala de Thais Hilal, da OÁ, vai de encontro. Ela acredita que é preciso, ainda mais agora, pensar mais à fundo a função social da arte: “Não dá mais para continuar como estávamos. Essa crise que aí está nos mostra que a vida é o que temos de maior valor e se a arte é agregadora e transformadora, ela precisa cumprir esse papel verdadeiramente. Bertold Brecht tem uma frase muito interessante sobre isso: ‘Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver'”.