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2010 | Mira Schendel, impulso construtivo

Mira Schendel, "Sarrafo", 1987. Foto: Ding Musa

* Por Rodrigo Neves

Uma das últimas séries realizadas por Mira Schendel ficou conhecida como Monocromáticos (1986/1987). Tratava-se de superfícies de madeira trabalhadas com gesso, formando ligeiros desníveis, e pintadas com têmpera branca ou negra. A leve sombra criada pelos relevos produzia linhas ópticas que se diferenciavam sutilmente de outras linhas, traçadas com bastão a óleo. À época Mira já tinha quase 70 anos e precisava da ajuda de assistentes para fazer obras maiores. O artista Fernando Bento, um de seus auxiliares, conta que ela costumava apontar os traços brancos deixados no céu pelos aviões, na tentativa de mostrar-lhe mais claramente o tipo de relação que procurava estabelecer entre as superfícies e as duas espécies de linha que corriam por elas.

Penso que esse episódio revela com precisão e lirismo a noção de forma que presidia as obras de Mira Schendel e os vínculos que buscava entre os diferentes elementos utilizados para produzi-las. Por mais que a condição física dos Monocromáticos se diferenciasse do espaço natural e de seus fenômenos, dentro de certos limites eles visavam à obtenção de conexões semelhantes.

Os desenhos em papel de arroz que realizou em meados dos anos 1960 – mais de dois mil e a meu ver equivocadamente identificados como monotipias – estão entre os trabalhos de Mira que melhor revelam essas preocupações. Até sua técnica de realização ressalta a preocupação de não operar sobre a superfície dos papéis, exteriormente. Feitos “por trás”, os desenhos surgiam da própria trama do papel poroso, como um material orgânico – fungos, por exemplo – que se confundisse com sua textura. No entanto, poucas vezes linhas tão frágeis produziram intervenções com tanta intensidade.

Nesses desenhos a sensação de pertencimento – de algo que não foi imposto ao suporte – só se cumpria pela sua capacidade de acentuar a presença do meio que os abrigava (o papel de arroz), algo que a tradição do desenho poucas vezes levou em conta. Nesse período, Mira praticamente trabalhava para si mesma e para um círculo restrito de amigos que apoiava aquelas experiências. Em 1989, após a morte da artista, esses trabalhos ainda eram vendidos a US$ 100!

Em certo sentido, seria Paul Klee – cuja obra Mira conhecia bem – o artista moderno mais próximo de suas preocupações. Mira compartilha com ele a modéstia das dimensões, a presença discreta, a economia das intervenções e um encanto pelas relações sábias, capazes de aproximar serenamente elementos díspares. E então as linhas dos desenhos se viam conduzidas a se aproximar da escrita. A busca de significação por meio de inscrições tão precisas aproximava um movimento singular – a mão individual que age no papel – de sentidos mais amplos, que levariam do grafismo à letra e à palavra. Experiências intensas almejam um âmbito público, e a universalidade da linguagem se desdobrava então naturalmente, como se aos poucos expressão e significação tendessem a coincidir.

No entanto, quando as palavras adquirem maior autonomia, deixando de lado seu vínculo com os movimentos da mão e adquirindo a generalidade dos conceitos, novamente Mira Schendel as devolve a uma situação repleta de ambiguidades.

Em 1959 – com a publicação do Manifesto Neoconcreto -, vários artistas que haviam tomado parte do movimento concretista passam a criticar seu dogmatismo racionalista e defendem uma arte que dê maior importância ao empírico, ao sensual e ao subjetivo. Contudo, acredito que, mesmo se afastando do dogmatismo de Max Bill, vários artistas neoconcretos permanecem operando com uma noção de forma apoiada em concatenações lógicas claramente apreensíveis. As Droguinhas revelam muito bem as relações que a artista buscava entre experiência e significado. Mira já havia transformado a escrita em quase-coisas, em seus grafismos sobre papel de arroz. Para depois transpô-las para o espaço nos Objetos Gráficos.

No entanto, acredito também que estabelecer filiações fáceis entre seus trabalhos e a história da arte brasileira pode conduzir a equívocos. Uma história da arte tão esparsa como a nossa deve aceitar com serenidade os caminhos solitários, as rotas que não têm origem facilmente identificável nem desdobramentos claros: Oswaldo Goeldi, Guignard, Bakun, Iberê Camargo e tantos outros.

Por mais que Mira volta e meia retornasse ao tonalismo e à busca de uma aproximação amena entre seres e coisas, me parece claro que, dos desenhos em diante – ou seja, posteriormente à metade da década de 1960 -, são outros os critérios que a orientam. Os Sarrafos – que, junto com os Monocromáticos, fazem parte de seus últimos trabalhos – guardam a lembrança dos desenhos dos anos 1960: preto sobre branco, ambiguidades entre plano e superfície, uma certa morosidade na diferenciação das coisas. São, com os Monocromáticos, seus trabalhos de maiores dimensões. Mas parecem ser também um testamento: naqueles anos conturbados – em que as manifestações contra a ditadura militar ganhavam força e em que uma esfera pública mais poderosa começava a se constituir no País -, a possibilidade de aproximar não violentamente os seres exigia a configuração de individualidades com uma potência maior.

Em 1987, após a realização dos Monocromáticos e dos Sarrafos, Mira começa a realizar trabalhos com pó de tijolo e cola, em dimensões semelhantes às das duas últimas séries, num espaço cedido pelo galerista Paulo Figueiredo, seu marchand e amigo. E então voltam as leves passagens tonais e a fatura encrespada de algumas regiões. A artista parecia querer expiar uma falta, e numa escala semelhante àquela em que se deixou levar pelas tentações.


Rodrigo Neves é crítico e historiador de arte

2011 | Aleksandr Ródtchenko na Pinacoteca de SP e no IMS Rio

Foto de Aleksandr Ródtchenko de 1929

A fotografia inicia o século XX como a arte revolucionária. Não à toa ela foi abraçada pelos vanguardistas, que viam em sua forma de representação de mundo uma maneira de renovar o olhar. As várias vanguardas se apropriaram da fotografia como forma de quebrar cânones. E assim também acontece com o artista russo construtivista Aleksandr Ródtchenko (1891-1956) que leva a fotografia para a ideologia artística da época num dos seus maiores expoentes.

A energia criativa da época é espantosa. Assim como seus colegas na Alemanha, França e Estados Unidos, Ródtckenko abusa – no bom sentido – das possibilidades de experimentar: múltiplas exposições, composições em diagonal, quebra de regras, fotomontagens, cartazes publicitários.

Parte deste seu pensamento fotográfico pode ser visto pela primeira vez no Brasil de forma bem didática. A exposição, organizada pela Moscow House of Photography, com curadoria de Olga Sviblova (diretora do museu), apresenta 170 obras entre fotografias, cartazes, fotomontagens, capas de livros e revistas, realizadas entre 1924 e 1954, dois anos antes de sua morte.

Ródtchenko nasce quando a fotografia já é popular no mundo todo e a escolhe como forma de expressão quando ela começa a ser vista como expressão de arte, linguagem autônoma, e quando, na década de 1920, muitos artistas discutem a importância da fotografia para a sociedade da época.

Experimentar é a palavra mote para todos eles. Câmeras de pequeno formato apresentam a possibilidade de maior movimentação dos fotógrafos. A câmera se torna uma extensão do olho, da mão, e novos ângulos, composições, são possíveis. O cotidiano e a banalidade se tornam o tema das imagens. Escreve Ródtchenko: “Vou resumir: para acostumar as pessoas a ver a partir de novos pontos de vista, é essencial tirar fotos de objetos familiares, cotidianos, a partir de perspectivas e de posições completamente inesperadas. Novos assuntos têm de ser fotografados de vários pontos, de modo a representar o assunto completamente”. Isso em 1928. E suas perspectivas diferentes são maneiras de distorcer o horizonte, fotografando na diagonal – um questionamento às regras estáticas de composição. Um porque estilístico e que, nos últimos anos, tem reaparecido na fotografia contemporânea muito mais como modismo do que como linguagem.Na mesma época ele também reflete: “Os pontos mais interessantes hoje são os de cima para baixo e os de baixo para cima, e devemos trabalhá-los. Quem os inventou não sei. Eu gostaria de afirmar esses pontos de vista, expandi-los e acostumar as pessoas a eles”. Quem os inventou, realmente não dá para saber. Mas sabe-se que na mesma época, na Alemanha, mais precisamente na Bauhaus, o fotógrafo húngaro Moholy-Nagy escrevia um texto sobre a nova visão e apontava esses mesmos ângulos. Alguns críticos chegaram a afirmar que Ródtchenko havia plagiado seu colega. Sua resposta foi o texto acima. Irrequieto e curioso, transforma a fotografia documental em arte. Redefine conceitos como o do retrato, registrando, além de seus familiares, seu círculo de amigos artistas. Inesquecíveis as fotos do poeta russo Vladímir Maiakóvski. Suas fotografias são influenciadas por todas as formas de arte que proliferam neste início do século XX, não só por conta do abstracionismo geométrico, mas também pela influência do cinema, do novo fotojornalismo e pelas inovadoras possibilidade do fazer fotográfico – decorrência do desenvolvimento tecnológico da fotografia.

Sem dúvida, ele nos ajuda a compreender a importância comunicadora da fotografia e sua força como mola propulsora de um novo pensar. Incômodo, no fim da vida, é abandonado e traído por seus amigos, impedido de trabalhar e de participar de exposições. Sua primeira mostra é organizada um ano após sua morte. Mesmo assim, não conseguiram calá-lo: sua fotografia, que se apresenta hoje atual e mais contemporânea do que muitas imagens que se vêem por aí, é ainda um exemplo a ser seguido, ou pelo menos conhecido.

Projeto colaborativo reúne galerias e espaços culturais em plataforma virtual

A Sé Galeria traz a individual de Edu de Barros, descrita pela curadora Clarissa Diniz como "uma contraproposta ao caos que se anuncia como o fim do mundo. Edu provocativamente engrossa o coro dos que esperam o regresso dos mitos e dos messias do passado, celebrando a criação em meio à convulsão em curso”. A Sé busca também formar novos públicos para artistas e obras que expressem uma visão conceitual e processual de arte contemporânea. Ela representa 19 artistas brasileiros.

Seguindo o desejo de fortalecer o diálogo entre entidades culturais atuantes no país, a Fortes D’Aloia e Gabriel lança, em 4 de agosto, a plataforma digital Transe. O projeto, situado no site da galeria, funcionará como uma rede de colaboração e exposição de trabalhos artísticos que se renovará a cada três meses. Sua primeira interação foi delineada a partir do circuito paulistano, mas a plataforma receberá também instituições de outras cidades do país.

Para estimular a reflexão acerca das mostras sediadas na plataforma, uma série de conversas entre diretores dessas entidades, curadores e artistas convidados será incorporada ao longo de cada ciclo. Celebrando a inauguração de Transe, o site da galeria será dedicado por 24 horas exclusivamente para o projeto. Confira na galeria abaixo um pouco mais sobre os participantes:

 

2011 | Alexandre da Cunha: o irônico e o lúdico

Quilt (Ivory), 2011. Foto: Edouard Fraipont

É tudo muito irônico e lúdico, mas sério. Alexandre da Cunha só promove a mudança de status de um objeto qualquer para discutir a condição humana e seus desdobramentos. Vale lembrar que o mundano e o popular sempre estiveram na raiz da obra desse artista carioca, que passou por São Paulo e saiu da Fundação Armando Alvares Penteado para estudar na Royal College of Art, em Londres, onde se radicou. E é exatamente assim, na base da apropriação de objetos do cotidiano (re)destinados, a exposição Fair Trade, que está em cartaz na Galeria Luisa Strina, de São Paulo: são muitas as questões que o artista debate com uma “simples” série de bordados feitos pela própria galerista durante um bom par de anos.

Primeiro, a expressão que dá título à mostra significa “comércio justo”. Ela vem cunhada em selos de países desenvolvidos para designar produtos adquiridos de países emergentes a preços sustentáveis, e tentar corrigir a recorrente exploração do comércio internacional. A reflexão está lançada. Se não bastasse, ao convocar a colaboração de uma empreendedora, ele também teve o intuito de gerar certa confusão entre os vários papéis ao fundir dois mundos que, em princípio, não se mesclam: o da vida de trabalhos manuais descompromissados e o da mulher inserida profissionalmente num mercado global. Há, ainda, outro aspecto: aquele que incorpora e reflete sobre o feminino no fazer artístico, fazendo referências a figuras como Mira Schendel, Eva Hesse e Louise Bourgeois, com seus trabalhos de tecido. Em contraposição, mas dentro do espírito artesanal, na mesma mostra estão esculturas de concreto, que são feitas de peças industriais, porém dispostas manualmente, umas sobre as outras, no chão, na forma de estruturas rígidas, em contraste com a maciez de outras matérias envolvidas na obra.

Na verdade, Alexandre da Cunha já usou de tudo em suas obras. Não faz muito tempo, empregou manilhas de concreto para se referir ao universo dos monumentos; a panos de prato, agregou logotipos de marcas famosas para brincar com a ideia de público e privado. Enfim, os objetos que emprega são remanejados em sua destinação original para levantar as questões que lhe interessam. Essas experimentações criativas já são conhecidas no mundo todo – de Londres, onde mora, a Alemanha, e também Veneza, onde ele participou da 50ª Bienal.


* Ana Cândida Vespucci
 é jornalista de cultura e assistente de redação da revista Nossa América, do Memorial da América Latina

2010 | Laurie Anderson: o banquete da transgressão

Desenhos das animações da performance Delusion Drawing from animation in Delusion performance, 2010. Foto: Divulgação

Ao encontrar o artista Guto Lacaz na exposição I in U – Eu em Tu, de Laurie Anderson, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo, ele me contou – em frente à obra O Arco de Neon, que olhávamos para seu primeiro contato com Laurie – que no disco Big Science a contracapa do LP trazia a autora tocando um violino com o referido arco. Os trabalhos da norte-americana, no início dos anos 1980, foram embriões da arte experimental, ao mesclar o corpo, a tecnologia e a música, colocando-os em contato com elementos do cotidiano. Permaneceram também suas reflexões sobre a tecnologia – transformando, por exemplo, um aspirador de pó em arma.

A exposição fez um apanhado da produção de Laurie. Há desde ótimos vídeos de suas performances até uma grande mesa de madeira, no centro da cúpula do CCBB, em que, colocando um punho na superfície e a outra mão no ouvido, o som reverbera pelos ossos do visitante, e estórias são transmitidas, tendo o próprio corpo como meio da mensagem. Essa obra foi feita, segundo Laurie, para se contrapor ao barulhento ambiente do entorno do museu.

Marcello Dantas assinou a curadoria da exposição, dando continuidade ao seu incansável trabalho de expansão da arte para toda a população. Responsável também pela direção artística do Museu da Língua Portuguesa, o mais visitado do Brasil, Dantas começou sua carreira como videomaker para em seguida expandir sua atuação a todas as etapas do processo artístico. “Em meu grupo, o Coletivo BijaRi, levo a arte para as ruas, afasto-a do elemento comum museu.” Dantas, porém, subverte esse espaço museu, sua linearidade, para fundir elementos da cultura pop com o erudito e torná-lo um lugar mais atraente. Usa as técnicas do espetáculo sem com isso ser espetacular. Consegue com a marca muitas vezes desagregadora de nosso tempo, a tecnologia, inverter sua lógica e aproximar a criação do cotidiano das pessoas.

A crítica comum ao trabalho de Dantas é a superficialização, causada pelo impacto das tecnologias, que deixa de lado a reflexão. Seria o que o teórico Marshall McLuhan chamaria de um “meio quente” – alta concentração de informações e vivências sensoriais, que causariam grande impacto, mas pouca interação com a obra. Dantas consegue esfriar, com os elementos tranquilizadores da arte, esse calor da tecnologia. Ele esquenta, requenta, remexe e consegue ao final o sabor da comida caseira preparada em antigas panelas de barro, mas com temperos frescos. Todos se deliciam e tentam adivinhar cada ingrediente que compôs o prato.

O trabalho de curadoria e produção artística pode muitas vezes deixar esquecido o Marcello criador. Mas ele é um educador artístico, faz o diálogo da arte com o dia a dia, e a torna acessível a todos. Hoje as pessoas discutem o direito, as decisões do Superior Tribunal Federal (STF) são debatidas e caiu o velho chavão de que as leis devem apenas ser analisadas por juízes, advogados e “doutores”. Esse movimento está acontecendo também na arte, tornando-a tão presente quanto a média com pão na chapa na padaria.

Projeto da Secretaria Municipal de Cultura visa sensibilização e combate ao racismo

Vozes Contra o Racismo
Projeção com a imagem de Tereza de Benguela na Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha, no Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. Foto: Helio Menezes.

Entre os dias 24 de julho e 24 de agosto, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (SMC), em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, e a Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial, lança o Vozes Contra o Racismo. O projeto tem curadoria feita por Amarilis Costa, Helio Menezes, Ligia Rocha e Thamires Cordeiro, e conta com uma série de intervenções artísticas – de grafitti e lambes a projeções e até um webnário – visando valorizar o trabalho de artistas negros e indígenas.

O projeto surgiu a partir da inquietação desses quatro curadores que o apresentaram à SMC. A Secretaria abraçou a iniciativa e – em articulação com as outras entidades – foi dando corpo à ideia. Vozes saiu do papel no intervalo de um mês desde seu pleito. “O fato de estarmos em grande maioria trabalhando remotamente tem suas limitações, mas também tem suas potencialidades, e uma delas é de acelerar esse tempo, dos processos de conversa com os artistas, de elaboração dos projetos, de mapeamento dos locais, das visitas técnicas”, conta o curador Helio Menezes.

A princípio, o que seria uma mostra espalhada pela cidade também ganhou a dimensão de um seminário online, o Diálogos Cultura Presente, que pode ampliar os temas tratados pela exposição trazendo intelectuais, artistas, pensadores, ativistas. A série de debates acontece ao vivo, com finalização no dia 31 de julho, para quem não conseguir assistir na hora, as conversas serão disponibilizadas no canal do YouTube da SMC.

Programação

Vozes Contra o Racismo começa com uma projeção de Denilson Baniwa (capa da edição #50 da arte!brasileiros) que traz um trabalho inédito chamado Brasil Terra Indígena. A obra será realizada durante uma semana (até 30 de julho), à noite, no Monumento às Bandeiras com as luzes apagadas, justamente para dar espaço à projeção realizada pelo Coletivo Coletores.

O vídeo começa com uma caravela portuguesa que é naufragada pela ação dos ventos, da chuva, do fogo, do mar e por isso nunca chega ao porto. A partir desse afundamento surgem bichos, plantas, seres espirituais da cosmologia Baniwa pintados com neon em meio a frases como “Brasil Terra Indígena” e “SP Terra Indígena”. “O artista vai como que re-demarcando, nos relembrando que o local onde aquele monumento do Brecheret está instalado, a cidade de São Paulo e o Brasil são terra indígena. Muda bastante a paisagem que nós estamos acostumados, e nos convida a refletir: o que seria se imaginássemos a cidade de São Paulo sem aquele monumento?”, pondera Menezes.

Não só essa, mas as outras projeções da ação ficam a cargo do Coletores. O coletivo foi formado em 2008 na periferia da Zona Leste da cidade de São Paulo pelos artistas Toni William e Flávio Camargo. Sua produção é realizada “em trânsito”, passando por espaços públicos que vão de áreas em comunidades, ocupações, escolas, universidades, assim como, espaços institucionais voltados para arte e cultura. Suas ações pensam a cidade, as pessoas e as relações entre arte, urbe, tecnologia e o público. A proposta do coletivo é trabalhar a cidade como meio e suporte para suas ações, o que vai ao encontro do que os curadores do Vozes tinham em mente.

Uma intervenção não anunciada

“Os formatos com os quais estamos trabalhando, o grafitti, a videoprojeção, videomapping e os lambes, tem uma dimensão bastante pública, eles se realizam fora dos espaços museais previstos, fora das galerias especializadas, e com isso tem um potencial muito grande de atingir novos públicos” comenta Menezes, somando à proposta de descentralização do Coletores. O curador aponta ainda que esses formatos permitem que tais trabalhos sejam vistos com outros olhares e outras posturas. “Muitas vezes é o tempo da passagem, o tempo que você está no carro, no transporte público, um caminho diário para casa, que você vê a obra de arte e ela talvez te convide a retornar àquela rua”, ele complementa.

O aspecto transitorial e disperso da exposição não foi ao acaso. Para a equipe por trás do Vozes Contra o Racismo um ponto de grande importância era fazer uma mostra que não gerasse aglomerações, uma “intervenção não anunciada” que tivesse o cuidado de não convidar as pessoas a estar fisicamente presente em grupos para vê-la. Menezes nota que esses suportes permitem que as obras sejam vistas à distância, de passagem, e com isso torna-se possível tomar o cuidado devido para por em prática um processo curatorial expositivo em tempos de pandemia.

Para ouvir mais alto

Embora Vozes tenha objetivo de ser uma grande ação cultural de sensibilização e combate ao racismo, isso não significa que os trabalhos apresentados devam ser explicitamente políticos

“Eu penso que a arte tem vários papéis e pode exercer várias funções, a partir dos caminhos e pesquisas que os artistas elaboram e materializam em seus trabalhos, uma dessas possibilidades é de uma arte mais deliberadamente politizada que conclame, que convide à reflexão, à mudança de postura. Embora a produção artística de autoria negra e/ou indígena não necessariamente versem sempre sobre temas mais evidentemente políticos.”, explica Menezes

Na mostra, o debate também é criado através do trabalho artístico que utiliza-se de uma poética voltada aos afetos, voltada à normalização da vida negra representada fora da esfera de violência, de hiperssexualizacao ou de traumas e reencenações da escravidão. “Combater o racismo também é disputar um outro imaginário visual da representação de corpos negros, oferecer um outro repertório visual, histórico e político sobre as vidas das pessoas negras”.

 

 

 

 

 

 

 

Prêmio PIPA Online dá início à sua primeira fase de votações

Prêmio PIPA Online
"Monalisa Indígena", de Denilson Baniwa, último vencedor do Prêmio PIPA Online. Foto: Divulgação.

O Prêmio PIPA Online deu início à sua primeira fase de votações no último domingo, 26 de julho. O PIPA Online é a categoria do prêmio que acontece inteiramente na internet, e a única na qual todos os artistas da edição vigente podem participar. Este ano, 56 dos 67 artistas fazem parte da votação. O PIPA Online acontece em dois turnos: o primeiro acontece até 2 de agosto. Os artistas que conquistarem mais de 500 votos nessa primeira etapa serão classificados para a próxima e última, que vai de 16 de agosto a 23 de agosto – os votos são zerados na transição dos turnos. O vencedor receberá R$ 15.000,00 e deverá doar uma obra para o Instituto PIPA, a ser escolhida entre o artista e a coordenação do instituto. No ano passado, Denilson Baniwa (capa da edição #50 de arte!brasileiros) foi o vencedor do PIPA Online. Saiba como votar neste link.

Confira o cronograma do PIPA Online abaixo:

26 de julho – Início do 1º turno do PIPA Online

2 de agosto – Término do 1º turno do PIPA Online

16 de agosto – Início do 2º turno do PIPA Online

23 de agosto – Término do 2º turno do PIPA Online

24 de agosto – Anúncio do vencedor do PIPA Online

Prêmio principal

Já para o prêmio principal do instituto, foram divulgados os quatro finalistas: Gê Viana; Maxwell Alexandre; Randolpho Lamonier; e Renata Felinto. Para esta modalidade, os finalistas recebem cada um R$ 30 mil reais e também doam uma obra para o Instituto PIPA, na sequência, o grande vencedor recebe mais R$ 30 mil para o desenvolvimento de um projeto.

Maxwell Alexandre, Presente, 2017. Foto: Divulgação.

O processo de escolha dos indicados e vencedores passa por diferentes etapas e júris: o Conselho – com os representantes do prêmio Roberto Vinhaes (sócio fundador do Instituto PIPA) Lucrécia Vinhaes (coordenadora do Instituto PIPA) e Luiz Camillo Osorio (diretor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e curador do Instituto PIPA). Os convidados Kiki Mazzucchelli (curadora independente), Marcelo Mattos Araújo (Presidente Japan House, São Paulo), Moacir dos Anjos (coordenador de Artes Plásticas da Fundação Joaquim Nabuco), Luís Antônio Almeida Braga (colecionador) e Tadeu Chiarelli (Diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo de 2015 a 2017 e professor do curso de Artes Visuais da USP). O Comitê de indicação, com 30 críticos, artistas e curadores, e o Júri de Premiação, ainda não divulgado.

Por enquanto o andamento desta categoria do prêmio está sendo estudado, já que as datas anteriores do cronograma tiveram que ser alteradas em virtude da pandemia do Covid-19; por enquanto, as novas datas ainda não foram definidas. Entre as atividades suspensas pela pandemia está a abertura da Exposição do PIPA 2020 no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, que faz parte do processo de escolha do vencedor.

O prêmio tem como missão, segundo sua página oficial: “Divulgar a arte e artistas brasileiros; estimular a produção nacional de arte contemporânea, motivando e apoiando novos artistas brasileiros (não necessariamente jovens); além de servir como uma alternativa de modelo para o terceiro setor”. De 2010 para cá os vencedores foram, respectivamente, Renata Lucas, Tatiana Blass, Marcius Galan, Cadu, Alice Miceli, Virginia de Medeiros, Paulo Nazareth, Bárbara Wagner, Arjan Martins e Guerreiro do Divino Amor.

A produção recente de Alfredo Nicolaiewsky ou a arte que dá nos nervos

Registro do processo do artista Alfredo Nicolaiewsky.

“A Arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar nervosos”, Susan Sontag.

A frase que serve de epígrafe para este texto foi retirada do ensaio Contra a interpretação, publicado no livro homônimo da pensadora norte-americana Susan Sontag. Desde que, em meados dos anos 1980, a li pela primeira vez, dela me apropriei porque traduzia bem uma sensação que já havia vivenciado algumas vezes e que, no futuro, voltaria a experimentar.

Em certa medida, para a autora e para mim não interessa – pelo menos não em um primeiro momento – o que a obra de arte de verdade “quer dizer”; não interessa o que ela “significa”; não interessa seu “conteúdo”. O que na verdade importa é como ela é capaz de mexer com nossa consciência e nossas sensações, transformando a mente em nosso sexto sentido. Quando isso ocorre, também não interessa quem é ou quem foi o artista, onde nasceu, onde viveu, seu “contexto” etc.

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A primeira obra que me deixou nervoso desse jeito foi uma pintura de Leonello Berti, um artista italiano que morou em Ribeirão Preto, onde nasci. Eu era um adolescente e fui visitar uma exposição de artistas da cidade, antes que ela fosse enviada para exibição na Europa. Não me recordo qual o título da pintura e muito menos onde ela foi parar [1]. Sei apenas que, frente a ela, tive a certeza de que via uma obra de arte verdadeira. Pelos eriçados, uma extrema excitação e a mais absoluta certeza de que tinha valido a pena ter vivido a vida toda só para estar ali, a contemplá-la.

Sem título, Leonello Berti. Acervo do Museu de Arte de Ribeirão Preto.

Depois de alguns anos, em 1977, já em São Paulo e estudante de artes na ECA USP, fui até a antiga Galeria Arte Global visitar uma instalação de Julio Plaza, As Meninas (ou Os Meninos): no meio da instalação me vi atingido por uma espécie de raio. Assustado no meio daquela instalação tão simples e, ao mesmo tempo, tão poderosa, repentinamente me dei conta de todo meu corpo e, sem saber direito o que fazer, sai apressado da sala, da galeria, e só fui parar para pensar o que tinha ocorrido quando já estava do outro lado da rua (a galeria ficava na Alameda Santos). Lembro que, na sequência, respirei fundo e voltei para a galeria. A partir daquela experiência, a arte nunca mais foi a mesma para mim, e eu nunca mais fui o mesmo para a arte [2].

“As Meninas”, 1977. Arquivo Inês Raphaelian.

Anos depois, em 1988, num final de tarde, passando pela rua Estados Unidos, entrei na Galeria São Paulo. Ao me aproximar de uma das pinturas penduradas na parede, percebi que a tela prosseguia como desenho na parede! O que era aquilo, meu Deus do céu? Então eu tinha vivido também todos aqueles anos para me deparar com aquela espécie de revelação que me transformava à medida que observava cada uma das obras ali expostas? (na verdade a mostra era uma grande instalação).

Quando consegui me recuperar, resolvi que tinha que saber a autoria daquelas peças. Finalmente alguém da Galeria apareceu e me disse que aqueles trabalhos eram de Carmela Gross. A artista abriria a mostra dali a alguns dias e só faltavam as etiquetas para terminarem a montagem.

Sem título, 1987. Carmela Gross.

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(Não creio que um fato que me ocorre agora tenha influenciado essas três experiências tão poderosas: embora tenha sido aluno apenas de Carmela Gross no Departamento de Artes Plásticas da ECA USP, Julio Plaza e Leonello Berti também tiveram alguma ligação com a minha formação: Julio, na época, ensinava no mesmo Departamento em que eu era aluno e Berti tinha sido professor da Escola de Artes Plásticas de Ribeirão Preto, quando fui aluno do curso infantil daquela Escola.

Por outro lado, e para aplacar qualquer possibilidade de endogenia, se essas foram minhas primeiras três experiências com a arte verdadeira, elas não foram as únicas. Obras de Vuillard, Giambologna, Mike Kelly, Andy Warhol, Caravaggio, Sophie Taeuber-Arp, Iran do Espírito Santo e Mira Schendel, entre poucos outros, também já me deixaram nervoso).

Acredito que muitos tiveram experiências semelhantes a essas que descrevi; muitos, com certeza,  já sentiram corpos e mentes mobilizados num tipo de experiência impossível de ser descrita em palavras – lembrando do próprio Julio Plaza, no catálogo da mostra de 1977: “A arte é importante demais para deixá-la na mão do… verbo”. Mas o que gostaria de acrescentar aqui é que experiências assim tão fortes não se dão, ou não se dão apenas, quando você, de chofre, se depara com uma obra de arte já finalizada. Outra experiência que também pode nos deixar nervosos – e por períodos renovados – é quando acompanhamos a produção de uma obra que, desde seu início, dá sinais de sua potência transformadora.

Há anos sigo o percurso profissional de Alfredo Nicolaiewsky, artista de Porto Alegre, que, além de suas atividades docentes junto ao Instituto de Artes da UFRGS, desenvolve pinturas, desenhos e apropriação de imagens. O que sempre me interessou em seus trabalhos é seu domínio técnico/formal, aliado a um humor peculiar que dá o tom de grande parte de sua produção. Esse humor, no entanto, não quer dizer que suas produções sejam engraçadas. O humor em sua produção se demonstra em como o artista consegue introduzir nas articulações dos campos cromáticos que inventa, certas anotações ou conjunções inesperadas, repletas de ironia, que tiram nosso olhar da mesmice, embora o artista lide justamente com ela.

Pois bem: nesses meses de pandemia, Alfredo convidou alguns amigos (eu, entre eles) a acompanhar a produção de algumas de suas pinturas. Promoveu encontros em seu ateliê de Porto Alegre? Claro que não. Mesmo que alguns dos convidados residam naquela cidade, a maioria (como Alfredo) pertence ao grupo de risco e, assim sendo, respeitam o “novo normal”, que é o distanciamento social. Por isso o acompanhamento do seu processo de produção tem se dado via WhatsApp, na sala “Alfredo em processo”.

Somos de Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo e nos dividimos entre críticos, artistas e historiadores que se encontram virtualmente nessa sala, desde abril. Alfredo apresenta a fotografia de uma pintura apenas iniciada, fala o que pretende ou o que não pretende fazer dali para a frente, e os amigos vão emitindo suas opiniões ou meros palpites, não importa. Às vezes me pergunto quando, numa situação “normal”, e sem o auxílio da tecnologia, seria possível desenvolver um trabalho de encontros quase diários, reunindo profissionais de várias cidades.

Um dos interesses dessa sala é que nem sempre (ou quase nunca) todos os participantes estão online ao mesmo tempo. Às vezes ocorre que, além de Alfredo, estejam ali apenas mais um ou dois amigos entretidos numa conversa que tende a ser rápida, com as observações sempre respondidas com presteza por Alfredo. Nessas ocasiões é que se percebe que o humor não é um elemento presente apenas em sua produção e sim um dado estrutural de sua personalidade, demonstrando o quanto é difícil, muitas vezes, separar o criador da criatura. Porém essas opiniões emitidas e discutidas no calor da hora não se perdem ao término das discussões mais ou menos acaloradas. Pelo contrário, elas ficam ali registradas e passíveis, portanto, de serem respondidas/desenvolvidas mais tarde por outros participantes, suscitando outra etapa de discussão.

Se formos reler os registros daquelas mensagens – sempre ao lado das imagens que as suscitaram –, veremos que as opiniões dos diversos membros sobre a produção de Nicolaiewisky (ao lado das respostas do artista) vão sendo depositadas e, em alguns casos,  devidamente soterradas pela falta de interesse ou importância; em outros casos, no entanto, elas são retiradas do interior dos registros, recuperadas e retrabalhadas a partir de novos significados que lhes são conferidos.

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Desde o início tenho sido um entusiasmado participante de “Alfredo em processo”. Fico mobilizado para discutir as idas e vindas da produção dessas pinturas de Alfredo porque renovadamente me surpreendo com sua capacidade em articular os campos visuais que cria e estrutura para além, tanto do sentido tradicional da pintura como “composição”, e mesmo como “preenchimento de campo”. Alfredo, pelo menos em parte dessa sua produção mais recente, parece reinventar a dimensão modular da pintura e é exatamente essa sua capacidade que me excita, que me faz querer acompanhar seu processo para poder entende-lo melhor e melhor me entender frente às suas várias etapas de realização.

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Saio desses encontros sempre com um sorriso nos lábios (porque a turma se diverte muito durante as trocas de mensagens). E fico pensando como esse horror que estamos vivendo com a pandemia – agravado por esse governo que é uma vergonha –, tem proporcionado situações gratificantes que jamais teriam ocorrido se estivéssemos vivendo na antiga “normalidade”. Ou alguém acredita que antes da pandemia teríamos tempo de nos reunirmos tantas vezes para discutirmos a produção de um artista, trocarmos impressões sobre arte, pensarmos não o “ato de criação” – uma ficção romântica, diga-se –, mas o processo de criação?

Essa experiência com Alfredo Nicolaiewsky e os outros colegas gaúchos e cariocas me fez atentar para algumas questões. A começar, me ensinou que o nervosismo que a arte de verdade provoca pode ser experimentado também enquanto ela se processa (isso quando ela for boa de verdade, quando diz a que veio desde os primeiros elementos que irão constitui-la). Por outro lado, como no caso de Berti, Julio e Carmela, a produção artística é boa quando, acima e antes de tudo, diz respeito a si mesma. O resto é literatura – questão fundamental a não se esquecer nesses tempos em que a retórica impera sobre a forma.


[1] – Por desconhecer o paradeiro da obra mencionada, optei por apresentar aqui a imagem de uma pintura de Leonello Berti pertencente ao acervo do Museu de Arte de Ribeirão Preto, cedida por seu diretor Nilton Campos, a quem agradeço.
[2] – O diagrama da instalação de Julio Plaza pertence ao Arquivo de Inês Raphaelian, São Paulo.

Filme luso-brasileiro une abordagem poética e cuidado documental em história da tribo Krahô

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos
Cena de "Chuva é cantoria na aldeia dos mortos". Foto: Divulgação.

*publicado originalmente na Revista Esquinas

“Filho, entra na água que vou pegar um peixe para você”. Encantado e em conflito, o jovem índio krahô encara a água movimentada perto da cachoeira, mas não entra na dança do morto que o chama. Caso fizesse entraria em chamas como o galho que arremessa nas águas para testá-las. Iluminado em tons de prata pela lua, volta floresta adentro. É assim que Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos começa, com uma introdução poética e um pouco tímida de um tema gigantesco escondido na “jornada do herói” de Ihjãc. Tema esse a morte do pai? Nossa relação com os mortos?

Cena de “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”. Foto: Divulgação.

Nosso herói é só um menino de 15 anos, casado com Kôtô, pai de um bêbê, Tepto. Ele precisa organizar o ritual funerário daquele que tenta seduzí-lo a entrar no rio, o seu pai. Uma vez que a cerimônia é completa, no entanto, o elo do filho com o pai precisa ser rompido, e Ihjãc não está preparado para isso, nem tanto para se tornar pajé. Mesmo assim os “mecarõ” viriam por ele caso não aceitasse seu destino, como avisa Crate, o pajé ancião. Na esperança que os espíritos o esquecessem Ihjãc vai para a cidade para retornar quando a chuva já estivesse caindo na sua aldeia da Pedra Branca.

Chuva fez sua estreia no Festival de Cannes – onde ganhou o prêmio Un Certain Regard – em 2018, mesmo ano em que foi selecionado para competição nos festivais de São Paulo e Rio de Janeiro. O longa é uma produção luso-brasileiro devido à sua dupla de diretores, Renée Nader Messora e o lisbonense João Salaviza, e classificado como ficção, embora possamos alargar a realidade dessa definição mantendo em vista uma notável preocupação documental no filme, dualidade que segundo Messora “permite uma aproximação diferente a cada sequência”.

Cena de “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”. Foto: Divulgação.

A direção intercala uma abordagem mais etnográfica (embora os cineastas reforcem que não tenham a pretensão de retratar os povos indígenas na sua totalidade, nem mesmo os krahô como um todo), menos intrusiva – que lembra a estética do documentário – com cenas mais poéticas. A câmera em algumas cenas acompanha de perto os personagens, os segue de costas (como um dos espíritos que perseguem Ihjãc), retrata perfis na umbra da fogueira em um ritual, rostos brilhantes à luz da hora dourada, ou crianças dançantes com folhas de árvores em chamas. 

Mais que um enriquecimento na experiência sensorial, o som na obra é sempre um alferes de algo que está por vir – as araras, o fogo, a ruptura pelos anúncios de venda na cidade ou pelo ritmo do forró, a chuva, a caminhonete na estrada. Funciona como um lembrete que mesmo sem a imagem fotográfica algo está presente naquele cenário, naquele momento; um terceiro olho para sua dupla de diretores. A captação sonora foi feita por Vitor Aratanha, que junto com sua companheira Amxykwyj, também cuidava da tradução da língua krahô para o português durante as filmagens. Os cânticos cerimoniais são as únicas passagens não traduzidas. Segundo Salaviza, a linguagem deles é uma língua ritual, um dialeto antigo do qual é possível entender partes e temas, mas não sua completude, como o latim. 

“E depois que chorarmos, acabou”. Na coda do filme, Ihjãc precisa voltar para a Pedra Branca, a tora de seu pai ainda espera para ser decorada e um ritual fúnebre precisa ser performado. Após um mergulho intenso na cultura dos krahô, uma crítica sucinta ao agronegócio que ameaça os povos indígenas há décadas, Messora e Salaviza retornam ao tópico cardíaco da obra: a relação dos krahô com a morte e a saudade. “Não namore com seu viúvo nem em sonhos. Em seus sonhos recusem a comida dos mecarõ”. Para eles, o morto é visto como uma ameaça aos vivos, por isso a pressa para realizar a cerimônia final, um marco do fim do lamento pelo ente querido e início do oblívio.

Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos faz parte da Mostra Brasil Cinema Agora! promovida pelo Itaú Cultural em seu site. Até 1º de agosto, ela apresenta quatro filmes que simbolizam a atualidade e a potência do audiovisual brasileiro. A seleção conta com a curadoria de Francesca Azzi, da Zeta Filmes. Além de Chuva, estão disponíveis gratuitamente os filmes Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans, 2017); Azougue Nazaré (Tiago Melo, 2018); e Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018).

Leia também: Olhares indígenas apontam para outro futuro possível, matéria publicada na edição #50 de arte!brasileiros que trata uma mudança de olhar pelos museus e grandes instituições de arte do país em direção à produção contemporânea indígena, para sua programações, em um momento que aumentam os ataques aos povos originários no Brasil.

Pivô lança Satélite, projeto online que irá expor trabalhos de doze artistas

Pivô Satélite
Fachada do Pivô, em São Paulo. Foto: Divulgação.

Satélite é o novo projeto online da associação cultural Pivô. Lançado no dia 24 de julho, ele é uma plataforma de comissionamento online que irá apresentar projetos de caráter experimental especialmente pensados para a internet.

Funcionando como uma espécie de sala de projetos dentro do site do Pivô, Satélite apresenta programa concebido por artistas e curadores convidados pela instituição e compreende propostas artísticas em formatos variados – sem restrições quanto ao tipo de mídia ou tema. 

Com Os dias antes da quebra, artista baiana Rebeca Cerapiá inaugura o projeto. Além de Cerapiá, os artistas biarritzzz, Diego Araúja e Raylander Mártis dos Anjos também foram selecionados pela curadora Diane Lima para a primeira etapa do Satélite. Como curadora, seu trabalho consiste em experimentar práticas curatoriais contemporâneas em perspectiva decolonial. Atualmente, Lima integra a equipe curatorial da 3ª edição de Frestas – Trienal de Artes do SESC-SP, tendo antes idealizado o programa de arte-educação AfroTranscendence. 

Pivô Satélite
A artista Rebeca Cerapiá e a curadora Diane Lima. Foto: Divulgação.

Nos próximos meses a plataforma apresentará trabalhos de 12 artistas selecionados por três jovens curadores brasileiros. Cada curador indicará quatro artistas com propostas individuais para ocupar a sala virtual de exposição por um mês.

“Os dias antes da quebra é uma exposição que sugere um movimento de retorno para o que estava sendo previsto, especulado e denunciado antes da pandemia, por um grupo de artistas com vasta experiência em adiar a iminência das suas próprias quebras”, afirma a curadora.

O objetivo do Pivô Satélite é contribuir para a criação de uma rede de apoio à comunidade artística brasileira em um momento adverso. Para isso, os 12 artistas contarão com a estrutura das equipes de produção e comunicação do Pivô, a interlocução dos curadores convidados e receberão uma bolsa de auxílio à produção.