A fachada do MAM Rio. Foto: Fabio Souza/ Divulgação
A pandemia do novo coronavírus resultou em uma grande mudança na dinâmica expositiva no mundo todo. Museus, galerias e feiras de arte investiram no digital e suspenderam a atuação física durante meses. Foi o que aconteceu com o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), que agora, após cinco meses fechado, reabre para o público.
No dia 12 de setembro, as visitações retornam, e consigo trazem uma série de novidades: um cuidadoso protocolo de segurança para os visitantes, outro horário de funcionamento e uma nova forma de ingressar e interagir com o museu: sem cobrança obrigatória de ingresso. “Estamos comprometidos em servir a comunidade, abrindo nossas portas para a visitação de todos. Por isso, o ingresso ao museu passa a ser gratuito com contribuição sugerida”, explica Fabio Szwarcwald, diretor executivo da instituição. Assim, o MAM Rio pretende se posicionar como um espaço inclusivo, que entende a conexão com a arte e a cultura como vitais para a saúde das pessoas. Dessa forma, pretende proporcionar um ambiente de trocas, onde as pessoas possam vivenciar o museu neste momento de retomada progressiva das práticas sociais que sucede o isolamento.
Isso vai de encontro com o que foi dito pelos novos diretores artísticos, Keyna Eleison e Pablo Lafuente, eleitos em agosto. Eles defendem a ideia de que é preciso criar uma relação mais orgânica com o museu, transformando-o de uma instituição visitada em uma habitada. “O MAM não é apenas o espaço demarcado pela sua arquitetura, é igualmente o parque que o acolhe, a passagem da Baía de Guanabara e as experiências daqueles que passam por esses locais. É necessário criar mecanismos que garantam a troca”, disse Lafuente (leia nossa reportagem sobre o anúncio dos novos diretores artísticos).
1 de 3
A obra "Campos Interpostos", de Willys de Castro, dá nome à exposição que será inaugurada no MAM Rio no dia 12 de setembro. Foto: Jaime-Acioli
"Por do Sol", de Nelson Leirner, será exposta na mostra Campos Interpostos do MAM Rio. Foto: Divulgação.
Sem título. A obra de Hildebrando de Castro compõe a série Janelas e é parte da mostra Campos Interpostos do MAM Rio. Foto: Jaime-Acioli
O que há para ser visto?
No mesmo dia da reabertura, há o início da mostra Campos Interpostos, que reúne cerca de 70 obras do acervo do museu carioca, de vertentes variadas, realizadas por mais de 50 artistas brasileiros e estrangeiros. A coletiva parte da articulação espaço-temática entre fachada e plano pictórico e, com curadoria de Fernando Cocchiarale e Fernanda Lopes, estabelece correlações que atravessam o conjunto da produção artística brasileira das últimas sete décadas. Nela, poderão ser vistos trabalhos de Willys de Castro, Alfredo Volpi, Nuno Ramos, Djanira, entre diversos outros artistas.
Além disso, as exposições que já estavam montadas antes da pandemia também serão retomadas. São elas: Wanda Pimentel, Poça/Possa, Alucinações à Beira Mar e Irmãos Campana – 35 Revoluções.
Para vê-las, pode-se optar por um simples passeio no museu – com contribuição voluntária – ou por uma das visitas agendadas. Neste novo momento, o MAM Rio oferece duas opções: a Visita Percursos no MAM e a Visita Petrobrás. A primeira é uma experiência especial para grupos fechados, que permite acesso exclusivo às exposições antes do horário de abertura do museu. A segunda, pensada para grupos de até 8 pessoas, é gratuita e oferecida pela Petrobras, mantenedora do MAM Rio. Ambas serão mediadas por educadores.
Após o horário de encerramento das atividades do museu, ainda há programação. Todas as noites, acontece a apresentação de Noite de Abertura, projeto inédito de Thiago Rocha Pitta. A obra, composta por uma escultura e um vídeo em projeção, cria uma fogueira imagética no espaço, aludindo aos incêndios reais e metafóricos que a cultura tem vivido no Brasil (leia a matéria sobre a obra). A criação consegue ser vista por quem passa pela região e é a primeira do Programa Intervenções, que ocupará as áreas externas do MAM Rio, e tem como próxima artista participante Carmela Gross.
Trecho do vídeo “The Clopen Door” que compõe a obra “Noite de Abertura” de Thiago Rocha Pitta. Foto: Reprodução/MAM Rio
Normal?
O mundo, porém, ainda não voltou à normalidade. Por isso, o museu elaborou um protocolo de segurança com diversas medidas sanitárias, prevendo aferição de temperatura na entrada, uso obrigatório de máscara, tapetes sanitizantes, distanciamento orientado, disponibilização de álcool em gel para os visitantes, entre outras medidas.
O espaço também conta com uma rigorosa rotina de sanitização e, antes da reabertura, realizou uma limpeza completa dos dutos de ar condicionados e troca de filtros. “Essa limpeza era algo muito complexo, pois leva meses para ser executada com qualidade. Agora, estamos entregando um ambiente mais adequado para todos os nossos visitantes, para a equipe do museu e para as obras, já que uma filtragem apropriada traz enormes benefícios na conservação dos acervos”, explica Fabio Szwarcwald.
Serviço
Horários de visitação do público:
Quinta e sexta, das 13h às 18h
Sábado e domingo, das 10h às 18h
"Rue (Figures Dans Une Structure)", de Joaquín Torres-García, obra que foi repatriada ao Brasil e ficou sob custódia do MAC-SP, mas foi devolvida à massa falida do Banco Santos para ir a leilão nos EUA (Foto: Cortesia MAC-USP)
“Rue (Figures Dans Une Structure)”, de Joaquín Torres-García, obra da coleção do Banco Santos que ficou sob guarda provisória do MAC USP (Foto: Cortesia MAC-USP)
O episódio envolvendo a massa falida do Banco Santos, do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (o MAC USP), traz novos dados para a história do museu da USP e nos ensina sobre como mudaram as relações entre segmentos da burguesia paulista (e seus funcionários) e o Estado. Para aqueles que não sabem da história, um resumo: em 2005 o MAC USP foi indicado pelo Poder Judiciário como responsável pela guarda provisória da coleção de arte do ex-banqueiro. Embora sob essa guarda não permanente, desde o início havia a expectativa, junto a alguns setores da universidade e da sociedade paulista, de que a coleção acabasse sendo entregue em definitivo ao museu. Tal esperança, estimulada por alguns setores envolvidos no processo, acabou frustrada. Neste ano, a coleção que durante quase uma década e meia não foi apenas guardada pelo museu, mas também conservada, estudada e exibida, foi retirada da instituição para ser leiloada, visando ressarcir os credores do Banco.
Este texto reflete o caso, tendo como parâmetro a história inicial do próprio MAC USP, atentando para como a história quando se repete, o faz como farsa.
***
A origem do MAC USP está ligada à história do Museu de Arte Moderna de São Paulo (o antigo MAM-SP), uma instituição que, fundada em 1948 por um segmento da elite econômica de São Paulo, foi por ela instrumentalizada até o início dos anos 1960. Em 1963, quando deixou de servir aos interesses do líder daquele segmento, o MAM-SP foi passado para a Universidade de São Paulo (USP), e seu nome trocado para MAC USP[1].
***
A criação do antigo MAM-SP pode ser entendida como a realização do desejo de um membro da elite paulista de extravasar, no atacado, seu viés empreendedor, à semelhança de seus congêneres norte-americanos; no varejo, ele pretendia lustrar ainda mais sua figura de industrial bem-sucedido e voltado para o campo da cultura. Seu nome era Ciccillo Matarazzo, um homem pertencente a uma família enriquecida de imigrantes italianos. Outro fato da vida de Ciccillo que também serviu para ampliar seu capital simbólico foi ter se unido matrimonialmente a um dos baluartes da tradicional “aristô” paulistana, Yolanda Penteado.
É incontornável a importância de Ciccillo para a arte do país, a partir da criação do antigo MAM-SP[2]. Com a instituição, ele ofereceu ao público, além do convívio com um rico acervo de obras de arte, outras atividades que adensavam a vida cultural do país. Em seus primeiros anos, o antigo MAM-SP pareceu significar um projeto civilizatório de longo prazo, fomentado por um industrial preocupado com o futuro da comunidade.
Dentre as atividades empreendidas pelo antigo MAM, a mais importante foi a instauração das suas Bienais Internacionais, cuja primeira edição ocorreu em 1951. O leitor concordará com o quanto as bienais foram importantes para a arte no Brasil, pois foi no embate por ela criado entre as produções local e aquela internacional que muitos artistas brasileiros deram início às suas respectivas poéticas, elevando a arte aqui produzida a um patamar, de fato, internacional.
Mas houve também a ampliação do acervo do MAM-SP, por meio tanto da premiação regulamentar das Bienais quanto dos prêmios-aquisição, ocorridos em suas primeiras edições[3], o que foi outra contribuição importante do museu para a comunidade. Por mais que se possa discutir os limites de um projeto de ampliação de acervo atrelado a premiações, foi por meio delas que entraram para o antigo museu obras de artistas como Max Bill, Maria Martins, Barbara Hepworth, Karel Appel, Fritz Winter e Lygia Clark, entre outros.
“A Soma de Nossos Dias”, de Maria Martins, obra do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Foto: MAC USP
***
Percebe-se hoje que Ciccillo Matarazzo, já no final dos anos 1950, viu-se dividido entre as duas estratégias que até então usava para ampliar seu capital simbólico: continuar capitaneando o MAM-SP – mirando no processo ininterrupto do aprimoramento artístico-cultural da comunidade –, ou dedicar-se apenas às bienais, cujo reconhecimento e prestígio que traziam pareciam mais imediatos. Seja como for, o fato é que, entre o MAM de São Paulo e as bienais do museu, Ciccillo optou por seguir à frente das bienais, desvinculando-as da instituição matriz e criando a Fundação Bienal de São Paulo. Porém, antes de devotar-se apenas à fundação, o que fazer com o museu, seu acervo de obras de arte e suas outras propriedades?
Em uma atitude que ainda lembrava aquelas de milionários norte-americanos, Ciccillo doa para a USP o “seu” MAM-SP[4]. Ou seja, ao querer se ver livre de um patrimônio que começou a lhe parecer um obstáculo para o pleno exercício de sua atividade como presidente da Bienal, Ciccillo opta por de novo atuar como mecenas, doando a coleção do museu à Universidade. O empresário, portanto, se livra daquilo que se transformara num estorvo, mas, ao fazê-lo, age de forma diferente daqueles que, mais tarde, irão transferir para a mesma USP a Coleção do Banco Santos (mas não em definitivo, é claro).
***
Um dia serão estudados os pormenores que explicarão as razões que levaram a USP – também tendo a experiência norte-americana como parâmetro – a aceitar a oferta de Ciccillo e a lutar por ela. Uma luta que, na verdade, se “esquecia” de que, entre as suas diversas unidades nenhuma delas era ligada à formação de artistas, historiadores da arte e outros especialistas da área. Se na maioria das universidades norte-americanas o museu de arte era criado como o coroamento de uma política de incentivo e formação de artistas e outros profissionais ligados às artes, o novo museu da USP tornou-se a cereja de um bolo inexistente[5].
***
Uma reflexão sobre as relações do MAC USP e as instâncias superiores da universidade comprovariam a hipótese de que o interesse inicial da cúpula universitária pelo museu foi claudicando com o passar dos anos, até atingir uma relação protocolar, com breves episódios de confluência. É certo que os diversos dirigentes da universidade, desde 1963, nunca negligenciaram suas obrigações quanto à manutenção da equipe de profissionais especializados do museu, fornecendo as bases para que ela não deixasse de cumprir todas as demandas relativas à guarda, conservação, restauro, pesquisa e exibição das obras. Porém, um ponto nessa relação demonstra a falta de um interesse efetivo da universidade para com o MAC USP: em nenhum momento da história do museu foi instaurada uma política de aquisição de obras para o acervo – fato que distancia ainda mais a Universidade de São Paulo de suas congêneres norte-americanas.
Tal situação não significou, porém, que o MAC USP tenha persistido até o presente apenas com as coleções que herdou do antigo MAM-SP. Pela diligência de alguns de seus diretores e diretoras, suas curadorias e os artistas que sempre acreditaram em sua importância, o MAC USP ampliou consideravelmente o acervo que lhe deu origem, transformando-se num dos principais museus de arte do século XX e XXI do hemisfério Sul. No entanto, apesar desses esforços, muitas vertentes e artistas permaneceram não representados no acervo do MAC USP, criando lacunas em seu interior e em alguns casos dificultando que se procedessem estudos e exposições que levassem para o público novas interpretações sobre a arte do período coberto pelo museu.
Foi por essa situação ainda distante do ideal em termos de amplitude do acervo, que a designação do MAC USP como responsável pela guarda provisória da Coleção Banco Santos foi em parte bem saudada pela equipe do museu, apesar dos problemas que ela, desde o início, trouxe para a instituição. Mesmo provisoriamente, receber um acervo de quase 1600 pinturas de variadas dimensões e técnicas, esculturas e objetos de diversos materiais, fotografias do século XIX ao XXI, tapeçarias e vários outros tipos de objetos de arte, é de uma enorme complexidade e responsabilidade. Uma responsabilidade tão grande que deveria ter levado a universidade a, desde o início, condicionar o recebimento da coleção a uma verba que viabilizasse a contratação de profissionais para atuarem junto àqueles já presentes na Instituição.
Mas a USP aceitou o envio da coleção sem exigir contrapartida. Nem verba para contribuir na manutenção do conjunto de obras, nem um ressarcimento em obras da coleção, para que o MAC USP não servisse apenas como um depósito qualificado, pago com dinheiro público, para guardar temporariamente a coleção do ex-banqueiro. Esse assunto tão grave foi tratado pela USP apenas como mais uma ação jurídico-burocrática, uma forma de atender a uma determinação do Poder Jurídico, sem uma reflexão sobre o ônus que tal aceite causaria no orçamento do museu ou sobre com o que a universidade poderia ganhar com essa guarda da coleção, enquanto instituição pública.
De novo, depois de pouco mais de quarenta anos, segmentos da burguesia paulista, agora por meio de seus funcionários, transferiam para a Universidade – ou seja, para o Estado –, um conjunto de obras de arte que se tornara um estorvo para ser conservado. Só que, como visto – e ao contrário da experiência com Ciccillo –, essa transferência não seria definitiva. Diferente do início dos anos 1960, hoje acredita-se que, para o Estado, não se deve doar nada, apenas retirar. A universidade que cuidasse das obras para esse segmento da elite de São Paulo enquanto, se destrinchava o embroglio todo do Banco Santos. Resolvido, as obras voltariam para pagar as contas dos credores. E voltaram.
Houve, é claro, o canto da sereia, afirmando que, talvez, quem sabe, aquele acervo pudesse permanecer no museu, como ocorrera com o acervo do antigo MAM-SP. É claro que essa possibilidade era inexistente se posturas mais firmes não fossem tomadas.
***
Desde o início existia a desconfiança de que, dada a falta de atitudes efetivas da universidade para reverter a situação, o museu corria, de fato, o risco de ver aquela Coleção ir embora. Nesse sentido, todo o trabalho e todos os gastos da Instituição com ela só teriam servido para aumentar-lhe o prestígio, tornando seus itens ainda mais preciosos para os colecionadores ávidos. A consciência desse perigo com o passar dos anos foi ficando tão presente que, em 2011 – quando atuava como diretor do MAC USP (no período de 2010 a 2014) – ao escrever o texto institucional do museu para a mostra Fotógrafos da Cena Contemporânea, com curadoria de Helouise Costa a partir da Coleção Banco Santos, externei o problema do seguinte modo:
“Ao dar visibilidade a estas obras o museu pretende também lançar um alerta. Esse patrimônio corre o risco de se dispersar, cabendo à sociedade manifestar-se sobre a importância de sua permanência em uma instituição pública, em um meio como o nosso, tão carente de acervos representativos da experiência fotográfica contemporânea”[6].
Apesar desse e de outros alertas, nada de concreto foi realizado no sentido de reverter a situação[7]. Quando, passados mais alguns anos, seu atual corpo diretivo finalmente tomou consciência da situação humilhante em que a instituição havia se colocada desde o início desse processo, era tarde demais.
***
Finalizando, acrescentaria que esse triste episódio envolvendo o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e a Coleção Banco Santos deve, pelo menos, servir de lição para as instituições museológicas públicas do país: estabeleçam condições concretas de ressarcimento quando surgir a possibilidade de recepção de coleções ou parte de coleções por meio de comodato ou guarda provisória. Toda instituição pública precisa garantir que, no final desses processos provisórios de guarda, ela não saia sem algum dividendo de interesse para a comunidade. Não é possível que instituições públicas como a Universidade de São Paulo – um dos pontos altos da produção de conhecimento em todas as áreas, no Brasil – sejam usada apenas como depósito.
Leia mais da coluna de Tadeu Chiarelli, clique aqui.
[1]- A passagem do MAM-SP para a USP não significou apenas uma troca de nomes. Na prática ela propiciou o surgimento de um novo museu (o MAC USP) e a morte de outro (o antigo MAM-SP). O Museu de Arte Moderna de São Paulo que conhecemos hoje, surgiu no final dos anos 1960, inaugurando sua própria história repleta de acidentes, mas desligada daquela de seu antigo homônimo. Para uma rápida visualização das histórias do antigo e do novo Museu de Arte Moderna de São Paulo, sugiro consultar a Cronologia, “Museu de Arte Moderna de São Paulo 1948-2006”, in CHIARELLI/T./CHAIMOVICH, F./ALVES, C. (curadores). mam[na]oca. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2006, pág. 66 e segs.
[2]- Neste primeiro estágio da história do antigo MAM-SP a figura de Yolanda Penteado, em muitos aspectos teve a mesma importância daquela de Ciccillo Matarazzo.
[3]- Sobre esses prêmios das Bienais, em 2004 o MAC USP realizou, sob a responsabilidade do então arquiteto do Museu, Gabriel Borba, a mostra “Prêmios Bienais – Acervo do MAC USP” que apresentava as obras que ganharam os prêmios regulamentares das Bienais. Mais recentemente, em 2012, a curadora e atual diretora do Museu, Ana Magalhães foi a responsável pela mostra “Um outro acervo do MAC USP: Prêmios-aquisição, 1951-1963”, que apresentava as obras eu receberam os prêmios-aquisição, obras que eram adquiridas dos artistas por empresas e/ou empresários durante as mostras e posteriormente doados para o Museu.
[4]- De fato, Ciccillo Matarazzo, em 1963, doa mais do que o MAM-SP para a USP. Na mesma ocasião doa também para a Universidade uma coleção de artefatos arqueológicos do Mediterrâneo que ajudarão a Universidade, ainda naquele ano, criar o seu antigo Museu de Arqueologia e Etnologia.
[5]- Não devemos esquecer que, mesmo levando-se em conta a dedicação de tantos e tantas, a Comissão de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP, (de onde surgiria, no final dos anos 1970 o Departamento de Artes Plásticas da ECA USP) foi criada apenas em 1971, ou seja, somente oito anos após a criação do MAC USP. Por outro lado, naquela ocasião não foi criado um curso de bacharelado em História da Arte na USP, lacuna que permanece até hoje dentro da Universidade.
[6]- Texto institucional do folder da mostra “Fotógrafos da cena contemporânea”. Curadoria Helouise Costa. São Paulo: MAC USP, de 19 de novembro de 2011 a 15 de abril de 2012.
[7]- Não tenho dúvidas de que, com um empenho maior, a USP poderia ter reivindicado há anos seu arrolamento também como credora da massa falida do Banco Santos. Se isto tivesse ocorrido, a Universidade poderia, então, negociar a permanência de pelo menos parte daquela Coleção ou uma indenização, que não a risível quantia de R$37.000,00 paga ao Museu como ressarcimento pelos seus quinze anos de dedicação à Coleção Banco Santos.
Algum tempo antes da covid-19 obrigar-nos a estar de uma maneira diferente no mundo, a equipe curatorial da 11ª Bienal de Berlim já discutia e propunha novas formas de estar junto e outras possibilidades de encontros. Renata Cervetto, Agustin Pérez Rubio, Lisette Lagnado e María Berríos abriram a bienal há exatamente um ano no bairro do Wedding ao norte da cidade, predominantemente caracterizado por uma população heterogênea com diversas ascendências. Ali iniciaram-se experimentos / exposições / experimentações / expansões / expectativas, inteligentemente abreviadas como exp. 1, 2 e 3 no edifício ExRotaprint. A equipe curatorial ocupou o espaço a partir de setembro de 2019 com um programa dinâmico e em diferentes línguas e que pressupunha não apenas o diálogo, mas mais importante: a escuta. Escutar leva tempo, respeito e cuidado. Assim foi criada, com as pessoas do entorno, uma plataforma solidária pautada na troca e na desaceleração das relações e de eventos como os da bienal – o que foi chamado de slow opening. Alguns dos trabalhos, ideias e processos que ali se iniciaram fazem parte da última parte da exposição, o epílogo, intitulado The Crack Begins Within e que abriu, depois de ser adiado três meses por causa da pandemia, no último final de semana.
Os quatro espaços expositivos do epílogo sugerem quatro capítulos: The Antichurch (KW Instituto de Arte Contemporânea), Storefront for Dissident Bodies (daadgalerie), The Inverted Museum (Gropius Bau) e The Living Archive (ExRotaprint). Em cada um deles, a curadoria sensível e coerente escutou diferentes perspectivas da história e do sistema, mas que são raramente contadas e, geralmente, consideradas fora do próprio sistema. A inclusão de coletivos, teatros e museus na lista de participantes aponta para a mudança subjetiva do ponto de vista do Eu para o Nós e coloca em diversos momentos o movimento feminista e seus desdobramentos na arte e na sociedade, o ser cuir/queer, assim como rituais, religiões e histórias no centro de uma realidade resistente, vulnerável e alternativa. Considerando-se apenas os títulos das quatro partes, a sugestão é de resistência: anti, invertido, dissidente e um arquivo vivo.
Os primeiros trabalhos no KW são “Marcha à ré“, do Teatro da Vertigem em parceria com Nuno Ramos, e “Movilización“, da argentina Mariela Scafati. “Marcha à ré“ é a documentação de uma ação – que aconteceu em 4 de agosto de 2020, na Avenida Paulista, em São Paulo, em meio à pandemia – em que 120 carros movimentam-se no sentido oposto do fluxo, fazendo marcha à ré em direção ao Cemitério da Consolação, onde estava uma reprodução do trabalho “A série trágica – Minha mãe morrendo“ de Flávio de Carvalho, e que mostra os últimos suspiros da mãe do artista. A imagem profundamente agonizante e triste é emblemática da atual política de saúde pública brasileira desdenhosa. Do lado oposto, Mariela Scafati cria 65 figuras antropomórficas em escala real e as deita no chão de uma das salas. Apesar da aparente passividade transmitida pela horizontalidade, a mobilização coletiva protesta para si o espaço e impede que o público entre no mesmo.
Trabalhos de Pedro Moraleida Bernardes, Young-jun Tak e Florencia Rodriguez Giles, no KW Institute for Contemporary Art. Foto: Silke Briel
Mais adiante, no centro do KW, os trabalhos de Pedro Moraleida Bernardes, Florencia Rodriguez Giles, Young-jun Tak e Carlos Motta exemplificam a anunciada “anti-igreja”: ela é feminina, diversa, queer, gay, fluída. O conflito psicológico, que não tem lugar no nosso sistema, é protagonista: “sentindo um cansaço mortal por representar o humano sem fazer parte do humano“ lê-se no altar de Pedro Moraleida Bernardes. Ou seria essa uma indagação do religioso, que se afastou completamente da realidade diversa e plural, ou seja, que é completamente parte do humano? Na maioria dos trabalhos expostos, as pessoas contribuem ativamente para a manutenção da sua memória e tradição e, ainda que estas existam apenas subjetivamente, elas existem. Além disso, essas pessoas são protagonistas na sobrevivência do seu entorno e são resilientes aos fatores de oposição externos. Trabalhos da polonesa Małgorzata Mirga-Tas e do coletivo espanhol El Palomar também podem ser vistos até 1º de novembro no KW.
Com trabalhos e transições precisas e brilhantes entre as salas expositivas, The Inverted Museum no Gropius Bau também procura alternativas ao que se chama de cânon e conta histórias universais por meio de biografias e trabalhos pessoais. É o que a artista peruana Sandra Gamarra Heshiki mostra logo à entrada em sua pesquisa sobre a lógica dos museus e das coleções europeias chamadas “antropológicas“ ou de origem não ocidental. Quatro novas pinturas da série Cryptomnesia(or in some museums the sun never shines), desde 2015, mostram o conflito entre norte e sul globais no que diz respeito à objetificação do Outro, em diálogo com a instalação The Museum of Ostracism, 2018, em que o display de outras culturas, aqui cerâmicas pré-Incaicas e de origem Inca, também é feito de forma objetificante e alienante. A instalação de Andrés Pereira Paz, composta de esculturas metálicas filigranas, um sensível jogo de luz e sombra e som, conta sobre um pássaro que foge do fogo na Amazônia em 2019, e que é descoberto em La Paz, na Bolívia, sugerindo uma identidade latina marcada pelo deslocamento de pessoas, a impossibilidade da volta, a destruição natural e a resiliência. Há paralelos inteligentes nos trabalhos No antiquário eu negociei o tempo, 2018, de Castiel Vitorino Brasileiro e La Humana Perfecta, 2018, do coletivo La rara troupe, colocados lado a lado, além da belíssima sala onde dialogam trabalhos de Flávio de Carvalho, Käthe Kollwitz e Katarina Zdjelar. A última sala do Gropius Bau é dedicada ao Museo de la Solidariedad Salvador Allende e fecha consequentemente o percurso expositivo com indagações sobre colecionismo, verdade, monopólio geopolítico e solidariedade.
“EGO FVLCIO COLLVMNAS EIVS [I FORTIFY YOUR COLUMNS]”, de Andrés Pereira Paz. Foto: Mathias VölzkeA daadgalerie foca em trabalhos de coletivos ou que, de certa forma, têm raízes nas possibilidades apresentadas pelo feminismo dos anos 60: grupos, ações, performances, happenings e o espaço urbano ganham papel principal na estruturação da discussão em torno da ocupação e da presença na cidade – muitas vezes em forma do teatro e da experimentação coletiva – em que o tecido, a roupa e a fantasia têm papel transformativo na expressão da identidade. Aqui é apresentada a continuação da pesquisa de Osías Yanov que se iniciou no exp. 3, desta vez juntamente com o coletivo Sirenes Errantes, colagens de Francisco Copello dos anos 90 e o trabalho do FCNN – Feminist Collective With No Name. O ExRotaprint permance espaço expositivo da bienal e funciona no epílogo como memória deste mais de um ano de processo e de experimentação.
Identidade visual da 11ª Bienal de Berlim, por Till Gathmann. Foto: Divulgação.
É impossível não se perguntar o que esta bienal teria sido sem a pandemia. Talvez cheia de programas, visitas, conversas, discursos, empenhada em se aproximar cada vez mais da cidade e das pessoas num longo e profundo exercício de escuta e mudança. Apesar disso, a pandemia mostrou também a discrepância nas situações de vida das pessoas em todas as partes e tornou ainda mais urgente toda a discussão que a equipe curatorial traz à Europa. Cuidadosa e inteligente sem ser dogmática, a 11ª Bienal de Berlim traz-nos um alívio programático. A beleza da identidade visual em aquarela sempre em transformação de Till Gathmann traduz a leveza com que a curadoria apresentou-se à cidade e que trouxe no epílogo. Em um dos textos a equipe avisa: a vida, sobretudo agora, é difícil. Mas ela é também rica e maravilhosa. É preciso dar espaço e saber ouvir outras realidades.
*Formado em Arquitetura e Urbanismo, pela FAU-SP, e mestre em História da Arte, pela Universidade Humboldt de Berlim, Brito Rocha é curador na Berlinische Galerie, Museu de Arte Moderna de Berlim, desde novembro de 2019.
O artista Abdoulaye Konaté, que é tema do documentário que estreia a plataforma. Foto: Everton Ballardin
Em quase quatro décadas de história, desde a realização do primeiro festival em 1983, o Videobrasil expôs em seus eventos, publicações e plataformas alguns milhares de obras de artistas brasileiros e estrangeiros. Em um primeiro momento eram apenas trabalhos de videoarte, mas com o tempo foram incluídas outras formas de arte eletrônica, performances e, na última década, as mais variadas linguagens contemporâneas. Foi ainda nos primórdios desta trajetória, quando fundou a Associação Cultural Videobrasil em 1991, que Solange Farkas percebeu a importância da criação e manutenção de um acervo – que incluísse tanto as obras apresentadas nos festivais (hoje Bienal Sesc_Videobrasil) quanto os mais variados conteúdos produzidos pela instituição.
“A associação foi criada em um gesto que visava preservar e ativar o espólio artístico formado pelo festival. E isso está profundamente contaminado pelo fato de não haver no país uma política cultural consistente e sistemática, especialmente no que diz respeito à preservação da memória e a ativação de bens e patrimônios importantes”, afirma Farkas. “Então acho que já naquela época eu intuí a necessidade de arquivar e salvaguardar esses residuais que o festival produzia, suas discussões, sobretudo por conta do contexto político.”
O resultado destes 37 anos de arquivamento são cerca de 1560 obras, um acervo bibliográfico com mais de 5 mil títulos e um acervo documental de 11 mil itens – que inclui a documentação audiovisual produzida pelo próprio Videobrasil, entre depoimentos e entrevistas de artistas e curadores. É um destes trabalhos, o documentário Abdoulaye Konaté – Cores e Composições, de Juliano Ribeiro Salgado, que inaugura o mais novo projeto da associação, a plataforma Videobrasil Online, que dá continuidade às duas missões básicas da instituição, segundo Farkas: democratização do acesso à produção da região do Sul Global e rearticulação constante dos conteúdos da coleção, em consonância com as urgências de cada momento.
O termo Sul Global, utilizado pela instituição desde os anos 1990, se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central. Apesar de não ser um termo estanque, refere-se basicamente à regiões do mundo como América Latina, Caribe, África e Oriente Médio, além de parte significativa dos países da Ásia, Europa Oriental e Oceania.
Layout do novo site, com o trabalho do malinês Abdoulaye Konaté. Crédito: Nina Farkas
Quanto à rearticulação constante do acervo, o VB Online surge após outros projetos como o ff>>dossier, a PLATAFORMA:VB, o Canal VB e o recente Acervo Comentado Videobrasil, sempre voltados à divulgação desta produção. No caso da nova plataforma, no ar a partir desta sexta, 4 de setembro, Farkas explica que ela funcionará como um espaço expositivo “não cumulativo”, em que cada mostra virtual fica no ar por cerca de um mês e, após o período, o conteúdo é retirado para a entrada de uma nova exposição.
“Esse é um projeto que está na minha cabeça faz um tempo, porque é um pouco um caminho natural ir para o online e para o streaming. Mas ele foi acelerado por tudo isso que aconteceu, pela pandemia e o isolamento social”. Além disso, segundo Farkas, o novo site supre, em parte, a ausência do Galpão Videobrasil, espaço expositivo da associação que foi fechado no fim de 2018. Apesar de a ausência da presença física impossibilitar certos tipos de vivência, a diretora do Videobrasil acredita que o espaço online apresenta também as suas vantagens, especialmente no que se refere à democratização do acesso. “O alcance é extraordinário, porque não estou falando mais com o público da bienal ou do galpão, mas com um público global, com qualquer pessoa que tenha internet. E nessa ausência do espaço físico, ficou muito claro para mim que o lugar do vídeo é de fato na telinha. E que faz sentido, mais do que nunca, voltarmos a focar no vídeo, que é a origem da associação.”
Documentários, individuais e curadorias
Abdoulaye Konaté – Cores e Composições, documentário inédito que marca a estreia do Videobrasil Online, é o mais recente trabalho de uma série sobre artistas contemporâneos produzidos pela instituição. O filme de Juliano Salgado apresenta a obra do artista malinês Abdoulaye Konaté, um dos mais destacados criadores da África Subsaariana, que teve trabalhos comissionados para a 19a Bienal Sesc_Videobrasil em 2015 – posteriormente apresentados na Bienal de Veneza. Produzido naquele período, o filme acompanha Konaté em sua visita ao Brasil e em períodos no Mali e na Dinamarca.
O diretor Juliano Salgado durante a gravação do documentário. Foto: Divulgação
Além dos documentários, o projeto do Videobrasil Online se desenha em torno de outros dois formatos fixos, as individuais de artistas e as curadorias. Os três modelos de mostras serão disponibilizados de forma alternada ao longo dos meses. No primeiro grupo, além do filme sobre Konaté, serão apresentados documentários sobre Olafur Eliason, William Kentridge, Akram Zaatari, Coco Fusco e o coletivo Chelpa Ferro, entre outros. Nas individuais, a série começa já no próximo mês com uma mostra de Ayrson Heráclito e segue com nomes como Carlos Nader, Jonathas de Andrade, Gabriela Golder, Enrique Ramirez e Liu Wei. As curadorias, por fim, apresentarão seleções de vídeos organizadas por curadores – são cogitados nomes como Juliana Borges, Julia Rebouças, Raphael Fonseca, Koyo Kuoh, Renee M’Boya, Alexia Talla e Marina Fokidis.
“Tudo é pensado em torno do acervo, mas não quer dizer que não possam entrar trabalhos que não estejam nele. Obras que ajudem a dar um panorama mais completo, dentro da perspectiva do curador ou do artista, são muito bem vindos”, diz Farkas. “São ferramentas que vamos criando para recontextualizar o acervo e contribuir não apenas com a veiculação e difusão dos trabalhos dos artistas – claro que isso fundamentalmente -, mas também com importantes reflexões contemporâneas”.
Reflexões sobre temas como o racismo estrutural, os ataques aos povos originários, as desigualdades resultantes da globalização e a destruição do meio ambiente, entre outros, se apresentam para o Videobrasil como questões não apenas brasileiras, mas latentes em grande parte do Sul Global. “Isso tudo diz respeito não só a nós, por mais que estejamos em uma situação muito acentuada no Brasil. E eu acho que nunca foi tão necessário fazer essas trocas, fazer uma reflexão sobre essas questões que estão provocando esse grande mal estar, esse desajuste no mundo”, diz Farkas.
Voltando à constatação inicial, sobre os motivos da criação do acervo, ela conclui: “Porque os países que fazem parte desse recorte geopolítico costumam ter como semelhança também essas políticas frágeis, sobretudo no campo da cultura e da memória. E nós conseguimos, no acervo, reunir um panorama extraordinário dessas regiões. São trabalhos incríveis, que ajudam a iluminar um pouco esses tempos tão sombrios”.
O artista recebendo o Leão de Ouro em Veneza. Foto: Museo de Bellas Artes
Aracy Amaral
O artista León Ferrari chegado a São Paulo com toda a energia de seus 56 anos era certamente um homem aplastado pela amargura de uma perda familiar irreparável e carregando o drama dos anos de chumbo na Argentina (circunstancia em que vivíamos aqui também).
Mas era um ser carregado de uma capacidade inusual de comunicação, que dizia não se sentir um “exilado” em São Paulo: sempre aberto a encontros, discussões sobre arte, contatos com outros. De imediato, nas casas em que viveu na rua Carlos Sampaio, Alameda Lorena e mesmo em seu ateliê da rua Amalia de Noronha, acolhia a todos que dele nos aproximávamos.
Atraiu em breve uma diversidade de amigos e artistas, muitos mais jovens e com os quais intercambiaria suas inquietações e investigações : Paulo Bruscky, Ana Carreta, Hudinilson Junior, Bené Fonteles, Arnaldo Antunes, o compositor Conrado Silva, eu mesma, Ana Beluzzo, Walter Zanini, Leonor Amarante, Jean Claude Bernardet, enfim, todos o conheciam e compartiam com ele o momento em que vivíamos.
De forma muito particular a dupla de artistas Regina Silveira e Julio Plaza, que o atraiam com suas experimentações inovadoras, passando León a se utilizar de formas mecânicas de reprodução gráfica com heliografias, letraset, e vídeo-textos.
Tive enorme satisfaçao de propiciar sua primeira exposição, entre nós, na Pinacoteca do Estado em 1978, quando diretora dessa entidade.
Ao mesmo tempo, Ferrari desenvolveu seus trabalhos em esculturas, filamentos finíssimos de aço que manipulava manualmente produzindo sons como no concerto realizado posteriormente na Pinacoteca do Estado, abrindo assim um novo rumo para suas experimentações sem fim.
Inquieto, influiu e foi influído por várias gerações de criadores com os quais conviveu em seus anos aqui, personalidade familiar no meio artístico, seja com seu convívio como com suas obras e o espírito aberto para nossa realidade, que é a de todo o continente.
Dizia ele que sabia que a arte não pode fazer uma revolução social. Mas reconhecia que todo grão de areia “tem sua importância, tem a possibilidade de falar de coisas que não têm palavras” (1982, entrev. a Adriana Malvido). Esse posicionamento permanente é sua contribuição perene.
Alex Flemming
Eu e o León nos conhecemos em 1977, quando fazíamos o curso de técnica de gravura em metal no ateliê de Romildo Paiva, na Vila Mariana. Logo depois, em 1978, eu fiz e expus minha série Natureza Morta, denunciando a tortura política no Brasil, e a partir daí nos tornamos grandes amigos. Toda semana eu almoçava uma vez em sua casa, na Rua Sampaio Vidal, e a Alicia começou a me dar aulas de espanhol. Foi aí sedimentada uma longa amizade, nos vários endereços paulistas do León que se seguiram: tenho ótimas lembranças principalmente do espaçoso ateliê em Pinheiros, na Rua Amalia de Noronha, onde havia grandes reuniões com muitos artistas.
No início da década de 1980 eu ganhei a Bolsa Fulbright e fui morar em Nova York. O León e a Alicia me visitaram em 1982 e ficaram morando em meu apartamento em Manhattan, na Rua East 30. Me lembro que era a época de nós experimentarmos várias maneiras da reprodutibilidade técnica de diferentes imagens, e íamos muitas vezes fazer xerox na Franklin Furnace. Depois que o León e a Alicia voltaram para a Argentina, eu os visitei em Buenos Aires e conheci também os diferentes endereços onde eles moraram, dentre eles a famosa casa da Rua Reconquista.
Doei para a Pinacoteca várias obras do León, que hoje em dia valem milhões. Por acaso estivemos juntos também em Veneza durante a Bienal, e tomamos café da manhã juntos no famoso Hotel des Bains no dia em que ele ganhou o Leão de Ouro.
Andrea Giunta
Uma pequena história para lembrar o León hoje, que nos deixou há sete anos. A obra Planeta, agora no acervo do MoMA, foi feita em São Paulo, durante o exílio de quase toda a família. Fez isso em 1979, quando já completava três anos que retomava o arame soldado que fazia até 1964. Um ano depois, e em rebelião aberta contra o sistema, em busca de outras formas de desafiar a ordem do mundo, León deixou de produzir obras visuais e passou a escrever obras. Palavras de Outros, de 1967, é tão épico quanto o célebre avião bombardeiro norte-americano com o Cristo. Mas voltando ao Planeta: León expõe esse trabalho na galeria Espaço Alternativo, Galpão de São Paulo. “Quando a obra chegou” – León me disse, em 24 de julho de 2004 – “era tão grande que não passava e tiveram que arrombar a porta para colocá-la na galeria”. O diâmetro do Planeta é 130 cm. Vi essa escultura deslumbrante na primeira vez que viajei para São Paulo, no MASP. Estava alto no corredor em frente ao elevador. Quando fiz a curadoria da retrospectiva [organizada por Giunta no Centro Cultural Recoleta, em 2004], trouxemos para a Argentina muitas das esculturas que León havia deixado em São Paulo quando voltou em 1991. Na retrospectiva ela reverberou na sala onde estavam os desenhos e esculturas de arame. A sala mais intensa, a sala maior.
Foto: Andrea Giunta
Na foto, León é visto em um de seus concertos, provavelmente durante as 14 noites de atuação no Sesc, em 1981. O ano de 1979 foi também quando ele escreveu seu primeiro texto sobre artefatos para desenhar sons e quando ele empreendeu os planos com os quais faria seus projetos. Na retrospectiva, as salas de suas esculturas e desenhos eram muito mais representativas do que as duas pequenas salas que desencadearam a barbárie. Mas as notícias não param no sutil ou no abstrato. Nem a fúria que reproduz a violência que a imagem desafia. Sua falta é sentida.
Fábio Magalhães
Eis algumas palavras sobre o León: León Ferrari foi um amigo querido, teve presença marcante no ambiente artístico brasileiro e foi solidário e às lutas pela democracia no Brasil, sendo ele mesmo e sua família vítima da brutalidade da ditadura Argentina. Lembro do episódio em que o artista Alberto Cedron se viu ameaçado pela presença de militares em São Paulo e León Ferrari organizou um grupo de intelectuais e artistas para protegê-lo evitando que Cedron fosse sequestrado e levado à Argentina.
Leonor Amarante
Conheci León Ferrari uma semana depois que ele chegou da Argentina para morar em São Paulo. Meu amigo Miguel Briante, jornalista e escritor argentino, um dos fundadores do Página12, em um telefonema me disse: “Você tem que conhecer esse homem”. Nunca mais perdi de vista León e sua obra. Aqui ele deu continuidade a seu trabalho, que ganhou cidadania na história da arte brasileira. Ao longo de sessenta anos de produção artística viveu no contra fluxo do sistema, até que na década de 1970 foi empurrado aos infernos da ditadura argentina, que lhe tirou filho e nora.
Quis entender como Ferrari transfigurava outras temporalidades para criticar o presente, como na série Relecturas de la Bíblia iniciada em 1983. Minha última conversa com ele foi sobre este tema, em 2012, em seu ateliê em Buenos Aires. Explorar esse assunto requer imaginação analítica. Suas colagens misturam obras primas da arte com iconografia religiosa cristã, gravuras eróticas orientais e as confrontam com episódios contemporâneos como Guerra do Vietnã, ou Esquadrão da Morte na Baixada Fluminense. Léon Ferrari é um dos raros artistas com autoridade para enfrentar um sistema autoritário. Com sabedoria, deu exemplos motivadores para se sair de qualquer fascismo que tente destruir a democracia. Ele e sua obra pulsam nos corações libertários.
Regina Silveira
Conheci León Ferrari pouco tempo depois de sua chegada ao Brasil. Ele me procurou no ASTER (um centro de estudos que havia recém fundado junto com Walter Zanini, Donato Ferrari e Julio Plaza), porque estava interessado numa orientação em gravura que permitisse imprimir suas escritas sem inverter o texto, como era possibilitado pelos recursos de fotomecânica e matrizes fotográficas que eram de uso comum no ateliê de litografia que eu coordenava naquele centro. León em seguida fez aquelas gravuras e se tornou um frequentador assíduo do ASTER nos três anos em que este centro esteve funcionando. Logo ficamos muito amigos, visitava sua casa e conheci algumas de obras anteriores que tinha no estúdio. Um dia León trouxe ao ASTER um xerox que havia feito sobre papel de algodão importado, com qualidade gráfica surpreendente. Sua descoberta terminou por desencadear, na turma do ASTER e em artistas afins, uma verdadeira avalanche de experimentações. Em pouco tempo se organizou uma exposição, que Julio Plaza intitulou Gerox (mistura de “gravura” com “xerox”), organizada pela Poesia e Arte e mostrada na Pinacoteca do Estado, que, sob a direção de Fabio Magalhães era um lugar atento aos movimentos anti–tudo dos artistas neste período.
A curiosidade de León Ferrari pelas possibilidades abertas à expressão pelos meios gráficos disponíveis, mais precisamente os não tradicionais, era uma das nossas muitas afinidades e pontes de contato. Quase simultaneamente fizemos heliografias, uma técnica gráfica efêmera, pelo desbotamento progressivo que sofre com a luz, mas que permitia cópias de grande extensão, com qualidades especificas, a partir de uma matriz realizada sobre suporte transparente. León também foi um dos participantes de ARTEMICRO – uma exposição “portátil” e itinerante com obras microfilmadas, organizada por mim e pelo Rafael Franca em 1982. Ele também foi meu parceiro no pequeno display para ver microfichas, junto ao setor de Videotexto organizado por Julio Plaza para a 16ª Bienal de São Paulo em 1981, que teve Walter Zanini como curador.
Foi nesta ocasião que lhe dediquei o trabalho Eles e os Outros (Para León Ferrari). A dedicatória não está apenas no título, mas na remessa direta ao trabalho de León, tanto pela figuração escolhida como pela ordenação da visualidade – e até pelo humor. No trabalho utilizei aquelas pequenas figuras de executivos das folhas de Letraset que eram sua marca registrada, com a intenção de acentuar as diferenças entre o mundo do poder – o mundo dos “Eles”- e as figuras muito mais estranhas dos “Outros”, extraídas do mundo da arte.
Para mim León Ferrari era uma mistura de mágico e menino, sempre encantado com o universo particular das imagens e objetos que associava poeticamente, muitas vezes para montar discursos absurdos ou irreverentes. Fui uma admiradora sem restrições das narrativas anticlericais provocantes, que a partir dos anos 1980 ele montava com dose dupla de ironia e perversidade – mas sempre com uma enorme competência de linguagem. Uma vez Aracy Amaral me disse, até hoje não sei se a sério, que León era o único artista que ela conhecia que ainda tratava de temas religiosos, mesmo na posição de ataque e na contramão dos propósitos seculares da arte religiosa.
Agora que irremediavelmente León Ferrari não está mais por perto, só resta pensar que ele viveu uma vida rica, com reveses e muitas vitorias, e deixou atrás de si um poderoso conjunto de obras que não vai cessar de provocar a nossa imaginação.
“Inquieto, navegou em todas as águas e experimentou técnicas e suportes diversos como a xerox, o videotexto, a arte postal, microfichas, livros de artista, heliografia, uso da letra-set e instalações sonoras”, escreveu a jornalista Leonor Amarante sobre o emblemático artista argentino León Ferrari, cujo centenário é celebrado neste dia 3 de setembro.
A propósito da data, a exposição retrospectiva La Bondadosa Crueldad percorrerá dois anos pela Europa. Sua inauguração será no dia 15 de dezembro no Museu Reina Sofía, em Madrid (Espanha) – onde sete salas serão dedicadas à obra de Ferrari -, com sequência no Museu Van Abbe, em Eindhoven (Holanda), onde permanece de 8 de maio até 26 de setembro do próximo ano. O percurso da mostra, na Europa, termina em junho de 2022, no Centro Georges Pompidou, em Paris (França).
La Bondadosa Crueldad propõe um percurso pelas obras, ideias e lutas políticas que atravessaram a vida do artista argentino. Trabalhos que “desmontam as sequências naturalizadas de violência propagadas pela guerra, religião e outros sistemas de poder”, e que “convidam quem os olha a parar, refletir e se posicionar”, segundo a Fundação Augusto y León Ferrari-Arte y Acervo.
A exposição agrega ainda um número significativo de documentos inéditos disponibilizados pela Fundação Augusto y León Ferrari para apresentar outros pontos de vista sobre sua produção e as várias ações que desenvolveu ao longo da vida. Tal proposta feita pela fundação, de fornecer uma visão alargada acerca da vida de León, será transportada para suas redes sociais durante o mês de setembro, contando com ciclos de publicações, registros e histórias enviados por amigos e familiares que compartilharão suas experiências com León e seu trabalho.
Já em seu país natal, o Museu Nacional de Belas Artes montou em seu hall de entrada uma das obras mais marcantes do artista: La Civilización Ocidental y Cristiana. Exibida pela primeira vez em 1965, ela apresenta uma figura de Cristo crucificado nas asas de um avião de guerra estadunidense. Sua importância é tamanha que, para a curadora Andrea Giunta, depois desta obra “León abandona a arte no sentido tradicional do termo”.
Enquanto a instituição permanece fechada à visitação, La Civilización poderá ser vista a partir do exterior do museu. Em novembro ela parte para a Europa como integrante da mostra retrospectiva. O trabalho retorna ao Belas Artes em 2022, depois da finalização de La Bondadosa Crueldad, dando início à temporada de exposições do museu, com ações anteriormente programadas para 2020 e adiadas devido à pandemia do coronavírus.
“La civilización occidental y cristiana” (2008). Foto: Museo Nacional de Belas Artes.
No site do Belas Artes já pode ser conferido, na íntegra, o filme Civilización, premiado no Festival de Cinema Independente de Buenos Aires em 2012, um ano antes do falecimento de Ferrari. Dirigido por Rubén Guzmán, o documentário registra entrevistas exclusivas e mostra o feitio de uma obra original especialmente para o filme (Assista aqui).
León e o Brasil
Andrea Giunta afirma que “a obra que León realiza nos anos 1960 é delicada e monumental. Os desenhos de linhas flutuantes, apenas uma sucessão de traços sobre o papel, dialogam com suas esculturas que soldam ou enredam o arame”. Ao mesmo tempo, tais trabalhos convivem com La Civilización Occidental y Cristiana (1965).
Focado na Guerra do Vietnã nos anos de 1966 a 1970, Ferrari retorna às esculturas de aço abstratas durante o período que morou em São Paulo entre 1976 e 1991 (ele retorna a Buenos Aires logo após). Em 1975, Ferrari parte para o Brasil com Alicia, sua esposa, e toda sua família, para se proteger da hostilidade criada em seu país natal pela ditadura iniciada em 1976 e findada em 1983, quando a última junta militar convocou eleições em outubro. Em São Paulo, León se vincula às formações experimentais da cidade com artistas como Regina Silveira, Julio Plaza, Carmela Gross, Alex Flemming, Marcelo Nietsche e Hudinilson. “O momento paulista [ainda marcado pela prisão ilegal e assassinato de seu filho Ariel pelas forças militares argentinas] é, também, o retorno às escrituras sagradas e ao papel que os escritos bíblicos exercem na história do Ocidente”, lembra Giunta.
Em uma tentativa de retribuição, a metrópole paulistana recebeu duas mostras-homenagem com trabalhos de Ferrari. Uma no MASP, em 2015, e outra na Galeria Nara Roesler, em junho deste ano – foi também a galeria que fez, em 2013, a primeira mostra individual de envergadura após a morte do artista, à época com curadoria de Lisette Lagnado e uma seleção de obras que abrangia o período entre 1962 e 2009.
1 de 5
León Ferrari. Sem título (1976). Foto: Divulgação.
Da esquerda para a direita: “Maquete para homem” (1962); Sem título (1978); “Amores de um prisma” (1977). Foto: Divulgação.
Na mostra mais recente no Brasil, a cidade de São Paulo foi ressaltada como elemento participante do trabalho do argentino, em um esforço de mostrar que a chave do “ativismo” é redutora para explicar sua produção. A exposição trouxe trabalhos de Ferrari que comunicam o absurdo da vida comum, a alienação das multidões e a influência da cidade avassaladora que é São Paulo.
1 de 3
"Autopista del sur" (1982), León Ferrari. Cortesia Museo de Arte Moderno de Buenos Aires.
"Espiral" (1982), León Ferrari. Cortesia Museo Nacional de Belas Artes.
Vista geral da exposição no MASP. Foto: Divulgação.
Enquanto isso, no MASP, cinco anos atrás, foram reunidas quase 100 obras – pertencentes ao acervo do museu – em torno do tema León Ferrari: Entre Ditaduras, servindo como “testemunho de seu embate contra as forças antidemocráticas que se instauraram na América Latina nas décadas de 60, 70 e 80”, como escreveu Eduardo Simões para a arte!brasileiros à época. Em especial sobre as heliografias expostas, o jornalista relatou: “León Ferrari fez dezenas de versões deste trabalho, mostrando o percurso quilométrico feito por uma pessoa em busca de informações sobre desaparecidos, sem nunca chegar a lugar algum. Ele tinha humor e estômago para criar este labirinto onde a procura dispara múltiplas releituras da dissolução da vida”.
Trecho do vídeo "The Clopen Door" que compõe a obra "Noite de Abertura" de Thiago Rocha Pitta. Foto: Reprodução/MAM Rio
Em 2 de setembro de 2018, às 19 horas e 24 minutos, o corpo de bombeiros era acionado para conter um incêndio no Museu Nacional – UFRJ. Dois anos depois, neste mesmo dia e horário, uma projeção de grandes dimensões ocupa o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), dando vida à uma obra em memória do incêndio: Noite de Abertura, de Thiago Rocha Pitta.
Composta por uma escultura e um vídeo em projeção, a criação dá início ao Programa Intervenções, que ocupará as áreas externas do MAM Rio com manifestações artísticas contemporâneas com curadoria de Fernanda Lopes e Fernando Cocchiarale.
Trecho do vídeo “The Clopen Door” que compõe a obra “Noite de Abertura” de Thiago Rocha Pitta. Foto: Reprodução/MAM Rio
Noite de abertura
A obra de Pitta consiste na junção de duas linguagens artísticas. No vão do museu, uma escultura pode ser vista por quem passa pela região. A peça é um fogueira pronta para ser acesa e, em seu topo, uma porta de madeira espera para ser incendiada. À noite, o trabalho é complementada por um filme projetado nas paredes do MAM. Intitulado The Clopen Door, ele traz uma fogueira como a da escultura, porém essa queima continuamente, até a total destruição da porta. Graças à configuração arquitetônica do local, a imagem reflete no piso de granito preto e invade as áreas interna e externa do museu através das paredes de vidro, transformando o espaço em uma grande fogueira imagética.
A Escultura de Thiago Rocha Pitta que compõe “Noite de Abertura” ficará exposta no vão do MAM Rio. Foto: Fábio Souza
A escultura ficará exposta continuamente e o vídeo será exibido todas as noites, com o museu fechado. “O nome da obra, Noite de abertura, já é uma ironia, porque o museu não está aberto na hora em que ela acontece”, explica Thiago Rocha Pitta.
Intervenções
Com esta obra, o artista questiona a relação entre o interno e o externo, o aberto e o fechado, e relaciona-se diretamente com o princípio que guia Fernanda Lopes e Fernando Cocchiarale para o Programa Intervenções. Os curadores buscam estimular artistas contemporâneos na criação de projetos inéditos para a área externa do MAM Rio – desde o vão livre, à empena, passando pelos jardins e qualquer área que fuja de uma sala de exposição convencional.
“O museu sempre esteve nesse limite entre o dentro e o fora, tensionando essa relação. A própria arquitetura já faz muito isso, com as paredes de vidro, o vão livre etc. Além disso, sempre teve exposições inéditas, que eram propostas no papel e o museu apostava em realizá-las. Acho que esse programa de intervenção recupera um pouco a identidade que o MAM Rio construiu nos anos 60 e 70, de um museu experimental que age em parceria com o artista”, afirma Fernanda Lopes. Atualmente, a instituição desenvolve essa parceria com Carmela Gross, que participará do programa ainda neste ano.
A não oposição entre dentro e fora
Com Thiago Rocha Pitta não foi diferente. A obra só pôde ser vista em sua completude após ser montada no museu no dia 31 de agosto. “Foi muito interessante vermos o trabalho acontecer pela primeira vez fora do papel, ele ganha outras dimensões. Tiveram ecos de imagem por conta dessa película de vidro que separa o dentro e o fora do museu, que tornaram a obra ainda mais interessante”, compartilha a curadora.
A fachada do MAM Rio, com suas paredes de vidro, em um dia convencional. Foto: Fabio Souza
Em Noite de Abertura, o artista parte da noção antropológica de clopen (junção das palavras closed e open em inglês, aberto e fechado), no qual os termos aberto e fechado não são vistos como opostos, mas sim como complementares. Com as paredes e a porta de vidro, a arquitetura do MAM Rio colabora para essa ideia, como explica Pitta: “A escultura e a projeção estão alinhadas com a porta do MAM, que virou uma espécie de espelho. A porta do MAM está fechada, mas também está aberta – porque é transparente”.
Mas o conceito se dá em vários níveis da obra, para além da sua localização. “Quando colocamos uma porta na fogueira, você já projeta mentalmente a parede em volta, e quando a porta está queimando, ela está abrindo. Mas depois que ela se queima totalmente, o portal se fecha”, diz Pita.
Entre fogos
É a partir desses conceitos e símbolos que Thiago constrói a ideia de passagem e transformação, e é nesse ponto também que traça um paralelo entre o incêndio imagético de The Clopen Door e o incêndio real do Museu Nacional do Rio de Janeiro. “Aquilo [que incendiou o museu] é um fogo destruidor. O meu fogo – que utilizo nos trabalhos – é um fogo culinário. Não é um fogo que mata, que destrói; é um fogo que transforma”, conta.
O artista tinha uma relação pessoal com o espaço incendiado. Morador de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, era frequentador do Museu Nacional – UFRJ e chegou a estudar nele durante um semestre. Quando a tragédia ocorreu, percebeu que precisava trabalhar em algo que mantivesse essa história viva.
O incêndio do Museu Nacional-UFRJ destruiu quase todo o acervo de 20 milhões de itens. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
O trabalho com a fogueira já existia, começou a queimar portas em 2017. Porém, foi em 2020 que filmou a intervenção, criando a peça fílmica. “A obra não foi pensada para o MAM, mas a forma como ela se configura para o museu traz uma reverberação muito específica”, complementa. Dessa forma, o artista pretende retomar não só o incêndio do Museu Nacional, mas também o do próprio MAM Rio de 1978 e os diversos que o precederam e seguiram. Para Fernanda Lopes, o trabalho adquire um caráter de memória e uma dimensão política, de “recuperar essa ideia e entender os incêndios literais e metafóricos que a gente vem sofrendo no Brasil em várias áreas, inclusive na cultura”.
“Esse fogo já vem sendo acesso a muito tempo – vamos dizer, desde que os portugueses chegaram aqui. No entanto, nos últimos anos, é notável uma aceleração desse fogo destruidor, colonial e genocida. Acho que o incêndio no museu foi um emblema do que está acontecendo hoje. Aquilo ali foi um oráculo horrível do que a gente está vivendo hoje”, explica Pitta, ao que Lopes complementa: “Talvez essa homenagem tente fazer com que a gente não esqueça o que aconteceu, por que aconteceu, e como não deixar acontecer de novo”.
"Festa para Iemanjá" (2017), obra de Sinesio Brandão na edição anterior da Bienal. Foto: Divulgação
A Bienal Naïfs do Brasil 2020, que teria início em agosto no Sesc Piracicaba, foi presencialmente adiada por causa da pandemia. Contudo, ações online, que se estenderão até julho de 2021, permitem ao público que se aproxime deste universo mesmo durante o isolamento social.
Conversamos com as curadoras, Renata Felinto e Ana Avelar, sobre o conceito desta 15ª edição e sobre as atividades digitais criadas para fazer com que o público, durante o isolamento social, tenha acesso à Bienal. Os trabalhos apresentados na mostra seguiram um panorama de representatividade a partir de diversos critérios, como o território, as declarações étnico-raciais, as faixas-etárias e os assuntos com os quais os artistas trabalham. Além disso, buscaram dar ênfase à temáticas que têm relação com os assuntos que criam discussões acerca das desconstruções e das construções da sociedade, como as questões de gênero e o meio ambiente.
Todas as ações da Bienal serão anunciadas periodicamente nos canais do Sesc Piracicaba no Facebook, Instagram e Twitter. A lista completa de artistas selecionados para a Bienal Naïfs do Brasil 2020, bem como catálogos e informações de edições anteriores, podem ser conferidos aqui. Assista ao vídeo (por Jamyle Rkain e Coil Lopes) e, abaixo, veja a lista dos premiados da edição:
Premiação
Como forma de estimular a participação, valorizar seu trabalho e diversificar a coleção permanente da instituição – o Acervo Sesc de Arte –, o Sesc São Paulo concede a alguns dos artistas selecionados, por meio de suas obras, o Prêmio Destaque-Aquisição, o Prêmio Incentivo e Menção Especial. Na 15ª edição da Bienal Naïfs, as obras agraciadas são:
Prêmio Destaque-Aquisição
Cotidiano II, de Alexandra Adamoli (Piracicaba, SP). Totem Apurinã Kamadeni, de Sãnipã (Pauiní, AM). O renascimento de Luzia, de Paulo Mattos (São Paulo, SP). O martírio de Nossa Senhora do Brasil, de Shila Joaquim (São Matheus, ES).
Prêmio Incentivo
Manto tropeiro: um breve olhar do caminho das tropas, de Angeles Paredes e Carmem Kuntz (Sorocaba, SP). Em busca de uma liberdade que ainda não raiou, de Con Silva (Batatais, SP). Comadre Fulosinha dá a luz depois de degolar o caçador que a engravidou, de Eriba Chagas (São Paulo, SP). Esperança em pedaços, de Chavonga (Diadema, SP). Brincantes do imaginário, de Valdeck de Garanhuns (Guararema, SP).
Menção Especial É óleo no mar…, de Alcides Peixe (São Paulo, SP). Cantinho do benzer, de Alexandra Jacob (Piracicaba, SP). Vazante, de Eri Alves (São Paulo, SP). Jandira #33, de Hellen Audrey (Campinas, SP). Aprendiz de Pajé, de Yúpury (Manaus, AM). Umbuzeiro florindo, de Nilda Neves (São Paulo, SP). Gorda, de Soupixo (Crato, CE). Alma da estrada, de Thiago Nevs (São Paulo, SP). Dia-a-dia de Finoca, de Zila Abreu (São Paulo, SP)
O artista argentino León Ferrari. Foto: Divulgação
Hoje não é véspera de um dia qualquer. É um dia em que perdemos León Ferrari, um dos mais íntegros, criativos e profícuos artistas do nosso tempo. No passaporte está carimbada sua cidadania argentina, mas ele se sentia também brasileiro. Quando nos conhecemos, logo descobri que tínhamos muito em comum. Fomos plantados em solo fertilizado pela sede de justiça social, contra atitudes arbitrárias da igreja e contra as ditaduras militares. Sua poética, carregada de indagações, se sentia livre para errar com algumas verdades provisórias e muitas certezas definitivas. León tinha uma filosofia de vida que refletia em seu trabalho como um ponto de inflexão da insistência sobre a vida terrestre e “divina”, recheados de posições heréticas e agnósticas. Por isso, alguns quiseram silenciar sua arte, mas ela é mais forte e universal, tanto que foi reconhecida mundialmente ao ser premiada com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza em 2007.
A história mostra como alguns países foram enriquecidos culturalmente com a imigração de intelectuais e artistas perseguidos politicamente em sua terra natal. O deslocamento reconstrói nosso lugar no mundo, e muitas vezes nos faz crescer e melhorar a sociedade que nos acolheu. A arte brasileira ganhou e muito com a presença de León Ferrari, artista plástico multimídia, poeta e militante político. León chegou a São Paulo fugindo da ditadura militar de seu país. O golpe de 24 de março de 1976, aplicado pela Junta das Forças Armadas Argentinas, tinha vários objetivos em mira, como afastar a presidente Maria Estela, viúva do general Perón, e promover a caça tanto da esquerda marxista como da esquerda peronista.
León Ferrari transcendeu, em grandeza humana, qualquer uma de suas obras. Parafraseando Hanna Arendt, o que salva os dons realmente grandes é que os que arcam com esse ônus permanecem superiores ao que fizeram, pelo menos enquanto estiver viva a fonte de criatividade. Ferrari trabalhou vertiginosamente em seu ateliê no bairro paulistano de Vila Madalena, alternando viagens a Buenos Aires à procura do filho e nora, desaparecidos durante a ditadura argentina. Sua produção, diferenciada e provocante, denunciava um criador vivo que naturalmente se incorporou à produção de arte brasileira, sendo convidado como tal para várias exposições de arte contemporânea. Antes de desembarcar em São Paulo ele fazia política e, mais do que isso, arte política. No Brasil sua obra cresceu ainda mais e sem concessões.
Durante o período que morou em São Paulo entre 1976 e 1991, retomou as esculturas de aço abstratas do início dos anos 1960. Inquieto, navegou em todas as águas e experimentou técnicas e suportes diversos como a xerox, o videotexto, a arte postal, microfichas, livros de artista, heliografia, uso da letra-set e instalações sonoras. Estamos falando da década de 80, quando começou a série de Releituras Bíblicas, o Brasil vivia o final de sua ditadura política, e ele continuava a fazer suas ácidas críticas.
León não ficou imune ao impacto que a cultura popular brasileira e o sincretismo religioso exerceram sobre sua arte. Crítico sobre o papel da igreja católica ele dizia que Dante, Pisano e Bosch, por exemplo, são de certa foram responsáveis pelo imaginário imagético sobre o inferno e seu personagem central, o diabo.
Sem nunca baixar as armas contra a ditadura, ao voltar a Buenos Aires inicia uma série de colagens que foram publicadas em 1995/96 no jornal argentino Pagina/12, acompanhadas com listas de desaparecidos políticos, vítimas do regime militar argentino. As obras mesclam a ditadura, o nazismo e a Igreja.
La Civilización Occidental y Cristiana (1965). Foto: Divulgação
* Por Andrea Giunta
Desde 1954 León Ferrari realiza uma obra que une poesia e política com a mesma força. Conhecemos bem a infinita variação de movimentos do traço que, ao final, completa e revela seus desenhos abstratos.
Muitas vezes abstratos na aparência, já que quando investigamos as palavras escondidas e o relato enredado pela linha apertada, nos internamos em seus questionamentos aos cânones, às hierarquias estabelecidas pelo Ocidente, aos dogmas dos livros sagrados, da sexualidade repressiva do poder politico, do poder eclesiástico. Muitas vezes ruborizados pelo que a sua escrita e as suas imagens expõem, não podemos deixar de nos sentir, ao mesmo tempo, seduzidos por sua beleza.
A obra que León realiza nos anos 1960 é delicada e monumental. Os desenhos de linhas flutuantes, apenas uma sucessão de traços sobre o papel, dialogam com suas esculturas que soldam ou enredam o arame. Convivem, ao mesmo tempo, com a sua obra paradigmática, La Civilización Occidental y Cristiana (1965), na qual um Cristo é crucificado sobre um bombardeiro americano. Depois dessa obra León abandona a arte no sentido tradicional do termo.
Em 1975 ele parte para o Brasil com Alicia, sua esposa, e toda sua família. Partem para um exílio que durou até 1991, quando regressam a Buenos Aires. Em São Paulo, León se vincula às formações experimentais da cidade com artistas como Regina Silveira, Julio Plaza, Carmela Gross, Alex Fleming, Marcelo Nietsche e Hudinilson. O momento paulista não é, tão somente, o momento do retorno à arte, às esculturas soldadas, aos instrumentos abstratos (que Léon chama de Berimbau). É, também, o retorno às escrituras sagradas e ao papel que os escritos bíblicos exercem na história do Ocidente. Se é certo que é em São Paulo que Léon retoma a Bíblia e ao questionamento da cultura do ocidente, também é verdade que ele já havia antecipado seus argumentos em muitas de suas obras dos anos 1960. Como em A Arca de Noé, uma caligrafia apertada onde relata outra versão do dilúvio universal. Nessa, os homens morrem e só as mulheres sobram. Elas são como Eva, uma amante do conhecimento, que desobedece e lega à humanidade todos os prazeres do sexo – por isso León diz que se deveria fazer uma homenagem a Eva e que os cientistas deveriam considerá-la uma heroína, pois foi ela a sábia que descobriu o valor da pesquisa e do conhecimento. Nessa versão da arca de Noé, eu dizia, León descreve como as mulheres salvam a humanidade, cortando os genitais dos homens afogados e enxertando-os em uma árvore na qual sobem, em uma copulação frenética e reprodutora. Uma grande fornicação contra a qual Deus nada pode fazer, a não ser ficar observando, absorto, à distância.
Em São Paulo, León retoma a escultura e os desenhos, essa grisalha* que define os ritmos das linhas com as quais reinventa o abecedário, uma escritura de ritmos perpétuos. Penso em como sua obra esta marcada por momentos liminares, de fim e de começo, de abismo. Como quando quer falar da censura e não pode, porque não encontra as formas, e encripta as palavras em uma linha aparentemente abstrata (Carta a un general, 1963); como quando o vocabulário comum não lhe é suficiente para descrever os extremos da sensualidade e busca e copia do dicionário palavras em desuso; centenas de palavras que separa de seus significados e que utiliza por seu som; um som que evoca o amor, a descrição da beleza, o relato da aventura sensual. Os limites das palavras e o limite das formas. Toda a obra de León, poderíamos dizer, é uma exploração dos limites do que é possivel dizer mediante as formas ou mediante as palavras. Uma invenção de palavras novas, de alfabetos inéditos que nos propõe aprender, alfabetos de linhas amarradas, desviadas, enroladas; linhas ordenadas nessa textura, nessa trama de ritmos, no sussurro visual da Grisalha.
Certa vez León me disse que “se por acaso você tem que se exilar, faça isso no Brasil, lá o exílio é melhor”. Essas palavras guardam muitos dados da relação particular que ele teve com o Brasil. Aqui encontrou amigos artistas, aqui recuperou o sentido experimental da arte; aqui voltou a ler os livros sagrados; aqui realizou uma obra monumental; aqui encontrou, apesar da dor do exílio, o sentido da felicidade.
A obra de León Ferrari conta hoje com um forte e crescente reconhecimento internacional. O Leão de Ouro que recebeu na Bienal de Veneza, em 2007, representa um dos tributos máximos. Sua obra se expõe nos principais museus do mundo e é disputada por coleções públicas e privadas. Mas não são estes os aspectos que marcam seu legado: este está na obra que León realizou durante 55 anos de vida junto a sua família, seus amigos, as causas que sempre apoiou e a arte. Sua obra representa uma mensagem aberta ao passado, ao presente e às gerações futuras. León, como poucos artistas conseguem, faz uma revisão do passado e da complexidade do presente, por meio de obras que nos colocam, ao observá-las, frente a uma turbulenta e inesgotável beleza.