O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak. Foto: Reprodução

Choveu. E a chuva trouxe alegria para Ailton Krenak em um momento que sintetizou as falas da primeira mesa do VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, que também contou com Naiara Tukano e Antonio Donato Nobre.

Naiara abriu o evento com um canto de seu povo Yepá Mahsã, do alto do Rio Negro, na Amazônia, e um manifesto breve e contundente. “Nós, povos indígenas, somos a memória viva de milhares de anos, nossas visões e cosmovisões são a nossa ciência, onde aprendemos a nos comunicar e a viver junto com a terra. Por isso defendemos a vida e a diversidade”, disse em um trecho da mensagem inicial.

O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak. Foto: Reprodução

Após as falas de aberturas institucionais de Patricia Rousseaux, pela arte!brasileiros, e de Julian Fuchs, pelo Goethe-Institut, Krenak seria o primeiro a falar, mas um problema de conexão adiou seu depoimento, para sorte de quem acompanhou o seminário.

Graças ao problema de conexão, acabamos sendo testemunhas da primeira chuva após meses de seca na Aldeia Krenak, às margens do Rio Doce, em Minas Gerais, que foi saudada pela alegria e o canto do líder indígena e ex-deputado constituinte. Assim que a chuva teve início, ele virou seu computador para compartilhar a cena com quem assistia ao seminário. “A mais bela arte é essa chuva que cai do céu agora, em cima dessas colinas, fazendo a terra respirar, caindo sobre a terra seca, fazendo subir um mormaço do chão”, disse empolgado.

Nada mais afinado com esse momento do que o raciocínio que ele desenvolvia sobre “esse escândalo de afirmar que existe natureza e cultura, separando alguma coisa indivisível”.

Os caminhos do coração

Essa visão inclusiva já havia sido defendida por Antonio Donato Nobre em sua fala inicial: “Os indígenas são os verdadeiros sábios da natureza, eles têm uma conexão direta com a natureza e têm preservado essa conexão, o que a sociedade global perdeu. Quero vir aqui dar uma mensagem como cientista, mas de um cientista que está descobrindo os caminhos do coração”.

Algo em comum nessas três falas inaugurais foi a necessidade de afeto e respeito com o planeta, o que Nobre apontou em um paralelismo entre o filósofo Sócrates e os astronautas. “Há 2500 anos, Sócrates teria dito que quando o ser humano olhar o mundo de fora vai reconhecer sua grandiosidade. Os povos que vivem em contato com a natureza têm a percepção do que significa estar na Terra”, disse.

Em seguida, relatou como os astronautas ganham a mesma percepção após retornar do espaço: “Quando eles veem a Terra de fora, eles são instantaneamente transformados, eles têm o overview effect, que é o efeito panorama sugerido por Sócrates.”

Assim, astronautas e indígenas não padecem do distanciamento com o planeta, ou uma divisão que se replica na separação entre mente e corpo. Para o cientista, “existe um desastre cognitivo na sociedade ocidental, que ocorreu principalmente na Europa, do divórcio entre a chamada mente racional, onde reside o intelecto, e a cognição ampla, intuitiva, holística, integrativa”.

Então, de acordo com Nobre, é preciso deixar de pensar apenas com a razão: “É o coração que une todo o corpo e ele pensa também, pois a neurociência descobriu que ele possui tecidos neurológicos. Assim, quando estamos com o coração aberto, a gente capta coisas. Sem coração, o intelecto é frio, ele pode fazer coisas aberrantes”. Em sua fala, ele citou os cientistas que contribuíram com o nazismo como exemplo, mas não faltam, no Brasil atual, casos no governo que confirmem a teoria.

Não deixe de assistir a fala completa (clicando aqui) para ver o curto vídeo compartilhado por Donato, desenvolvido por uma década, que aponta como a Amazônia é o coração do planeta.

Transformação

Já Naiara Tukano iniciou sua fala contando sobre a cosmologia de seu povo, que veio da grande canoa de transformação, a Cobra-Canoa. Foi no ventre de uma Cobra-Canoa que os primeiros ancestrais dos povos Tukano partiram em uma viagem subaquática pelos rios Amazonas, Negro e Uaupés, no noroeste amazônico, e assim chegaram à região onde atualmente vivem, no Alto Rio Negro. A canoa foi parando ao longo desse percurso e, a cada parada, esses ancestrais adquiriram poderes e conhecimentos que até hoje fazem parte da herança cultural das etnias da família Tukano.

Naiara contou como, milhares de anos antes dessa viagem, “nós fomos gente peixe, até nos transformarmos em animais que vivem nas florestas, como lontras, macacos; aí o criador veio e cortou o rabo dos animais e trouxe o homem para a terra, sendo esse o terceiro tempo da humanidade, quando o homem surgiu”.

O significado dessa ancestralidade animal e desse processo de transformação ao longo do tempo tem um reflexo importante no pensamento Tukano: “Devemos entender que outros seres visíveis e invisíveis que vivem na Terra são nossos parentes, eles nos contam como devemos agir sem causar mal e nem receber o mal. Assim, nunca esquecemos do nosso lugar”, disse Naiara.

A ativista indígena e artista Naiara Tukano. Foto: Reprodução

Decorre daí, então, a percepção da importância do cuidado com o planeta de forma global, como ela afirma: “Quando a gente rompe os fluxos da Terra, a gente a prejudica, porque ela é um todo, tem uma consciência própria e a gente não pode recortá-la como um mosaico, como estamos fazendo. Há centenas de anos nossos pajés alertam para cuidar da natureza, nós somos natureza.”

E conclui sobre a importância de rever atitudes em tempos de pandemia: “É preciso que a gente se reconecte com nossa essência, e através da arte, da espiritualidade, dos cantos, que a gente se conecte novamente com a terra. Plantar, diminuir o lixo, buscar uma forma de vida mais simples, buscar outras formas de troca baseadas em outras sabedorias. É pela reconexão com a terra que podemos buscar um caminho de cura. O sopro da vida existe em cada um de nós”.

Natureza-morta

Um pouco depois do que havia sido programado, Ailton Krenak entrou no seminário problematizando um dos gêneros da pintura. “Todos os grandes mestres da pintura do ocidente deixaram algum rastro de natureza-morta atrás de si”, contou. E prosseguiu: “Será que eles estavam prenunciando um tempo em que a natureza ia se erguer, sair daquelas telas e invadir as nossas vidas na forma de vírus, na forma de afeto, no sentido de nos virar pelo avesso, de nos pôr em questão, e denunciar que não existe uma fronteira entre cultura e natureza, a não ser nas nossas mentalidades, convocando a uma mudança de mentalidade”.

Mais tarde, ele explicaria que “como poetas, esses artistas estavam prenunciando o que ocorre no século 21; não é uma reclamação, uma acusação, mas uma revelação do que a gente ia viver muito tempo depois”.

Mas ele fez um alerta ao mundo da arte: “É como se a ideia das nossas bienais de arte, das nossas galerias, estivessem todas ficado no passado, vencidas pelo tempo, pela urgência de uma nova mentalidade, de nós humanos aprendermos a pisar com cuidado, a pisar suavemente na Terra, profundamente marcada pelas nossas pegadas, que nos puseram no limiar desse Antropoceno”.

É mais ou menos nesse momento que começa a chuva e o momento mais poético do seminário. Enquanto ele afirmava que “o céu sempre vai nos dar a arte do possível”, passa um caminhão de água, como a lembrar da destruição do Rio Doce pela Samarco, há cinco anos, e que tornou necessário o abastecimento por veículos que percorrem de 200 km a 300 km para abastecer a aldeia com 130 famílias.

E Krenak concluiu como Naiara: “Quando pus em questão a divisão que nós fazemos entre natureza e cultura é uma convocação para que a gente viva mais imerso na natureza e na nossa própria experiência do corpo sendo natureza”.

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