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Acervo Comentado Videobrasil: Rosana Paulino

"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.
"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.

No novo episódio do Acervo Comentado VB, a filósofa Alice Lino, professora de filosofia da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), no Mato Grosso, e pesquisadora de estéticas ameríndias e afro-brasileiras, comenta a obra Das avós (2019), de Rosana Paulino [1], descrita como “uma artista que vem se firmando como uma das principais de sua geração por sua capacidade em plasmar rigor estético/artístico aos questionamentos sobre a história dos afrodescendentes no Brasil e também sobre uma história da arte que se pretende hegemônica no país”, como colocou o crítico Tadeu Chiarelli.

Na obra em questão, Lino descreve que a performer Charlene Bicalho “entra no cenário completamente coberto de branco carregando com muito cuidado, envolto em um pano também branco, a sua ancestralidade”. Para a professora, o gesto é uma referencia à violência pela qual as mulheres negras aqui escravizadas passaram. Diante desse passado cruel, Bicalho abre o tecido branco, dentro do qual estão impressas, em transparência, imagens dessas mulheres negras, o que reverencia, então, a sua ancestralidade nesses termos. A performer, com cuidado, paciência e afeto, passa a costurar essas imagens junto à sua vestimenta que também é branca.

“Eu chamo atenção aqui pro fato de uma construção política da mulher negra quando ela se reconhece a partir da história de sua ancestralidade”, atenta Lino, completando que: “Ademais vale notar que há uma tessitura de um afeto, ela olha com muito carinho para as imagens que ela traz para próximo de si. Há na performance, portanto, a reconstituição desse afeto também direcionado à mulher negra. Onde há violência, não há afeto. A Rosana Paulino, portanto, subverte essa imagem assegurando essas mulheres negras o nosso respeito pela luta travada até os nossos tempos”. Para a filósofa, quando Charlene se levanta no final do vídeo, seu gesto simboliza, com altivez, a tomada de posição pela personagem para enfrentar o racismo cotidiano pelo qual as mulheres negras passam.

"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.
“DAS AVÓS”, 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.

Ainda não conhece o Acervo Comentado?

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Confira os outros episódios neste link.

Sobre Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1] Além de artista visual, pesquisadora e educadora, Paulino é doutora em artes visuais pela USP, com especialização em gravura pelo London Print Studio. Foi bolsista da Fundação Ford e da Capes, e em 2014, foi agraciada com a bolsa para residência no Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, em Bellagio, Itália. Participou das individuais Atlântico Vermelho, na Galeria Superfície (2016), Mulheres Negras – Obscure beauté du Brésil, no Espace Fort Grifoon, Besançon (2014), Tecido Social, na Galeria Virgílio (2010); e das coletivas South­South: Let Me Begin Again, Cidade do Cabo, África do Sul (2017), La Corteza del Alma, Madri (2016) e Territórios: Artistas Afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, São Paulo (2015), entre outras

Frieze London: evento local e adaptação ao virtual marcam edição 2020

Frieze London: "Huk Pacha", "Iskay Pacha", "Kimsa Pacha". Obras por Claudia Martínez Garay. Foto: Grimm Gallery.
Frieze London: "Huk Pacha", "Iskay Pacha", "Kimsa Pacha". Obras por Claudia Martínez Garay. Foto: Grimm Gallery.

A pandemia de Covid-19 forçou o cancelamento de quase todas as grandes feiras internacionais de arte neste ano. A Frieze London – realizada todo mês de outubro desde 2003 no Regent’s Park – não foi exceção. Com um formato híbrido em 2020 – entre virtual e uma edição física predominantemente local -, a feira apresenta seus viewing rooms até o dia 16 de outubro.

Segundo Victoria Siddall, diretora global da Frieze, cerca de 250 galerias pagaram para acessar a plataforma de visualização digital, contra 280 de costume em edições anteriores. A diretora relata: “Para o mundo da arte, foi uma rápida adoção ao digital, o que não teria acontecido sem a pandemia”, complementando que “sempre houve uma resistência em colocar arte de alto valor online. E tudo isso [a adoção do digital] aconteceu da noite para o dia.”

Ainda, de acordo com Siddall, no começo desse processo de adaptação “muitas galerias usavam seus estandes em feiras online da mesma forma que fariam em uma feira real e agora estão se adaptando e vendo que isso é na verdade uma maneira diferente de mostrar arte”. Ela reconhece que, nesse sentido, houve um enorme progresso vindo das galerias e dos colecionadores.

Ao The New York Times, Thaddaeus Ropac, fundador de sua galeria homônima, descreveu a Frieze Week deste ano como “um evento muito local” tendo em vista que não participam fisicamente representantes da América Latina, Ásia e Estados Unidos – embora presentes na plataforma virtual. Como resultado, para Ropac seria “ingênuo pensar que será algo comparável ao que normalmente é”.

Para Benjamin Sutton, editor de mercado para o Artsy, “as ofertas são tipicamente amplas: de objetos milenares oferecidos por negociantes de antiguidades na Frieze Masters a obras feitas por artistas emergentes durante o isolamento, nos estandes virtuais da Frieze London”. Ele nota que algumas galerias optaram por apresentações temáticas ou conceituais, enquanto outras se entregaram à tradição ao trazer de tudo um pouco.

Entre as galerias brasileiras participantes, A Gentil Carioca ganhou destaque por uma proposta inusitada, ao invés de exibir “em tempo real” com os viewing rooms, a galeria aproveitou o vão entre suas sedes no Rio de Janeiro para apresentar obras ao ar livre. Seu diretor, Marcio Botner, expressou ao portal Artnet que enquanto aqui não podemos visitar feiras de arte, museus, galerias e espaços culturais, a ideia d’A Gentil Carioca era “imaginar a rua como uma extensão dos próprios espaços da galeria de arte”.

Como parte da ação denominada Encruzilhada Gentil estão: Curupira (2020), uma obra em tecido pela artista Laura Lima; um par de pinturas de Arjan Martins que foi carregado pelas ruas; uma escultura de Vivian Caccuri (inspirada pela música A Woman’s Work de Kate Bush) pendurada em um balaústre; e um múltiplo feito a partir da obra Fantasma da Esperança, de Marcela Cantuária, colocado nas ruas como um sinal de trânsito que revela, de forma holográfica ao mudarmos a posição do olhar, a pergunta “com quantos mortos se faz uma democracia?”, em cima do escudo do personagem de quadrinhos Capitão América.

 

Coleção “Amigo EAV” do Parque Lage participa da ArtRio 2020

Iole de Freitas, O outro, 1973-2019, impressão fotográfica. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.
Iole de Freitas, O outro, 1973-2019, impressão fotográfica. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.

Na ArtRio, que começa em 14 de outubro e vai até o dia 18 do mesmo mês, serão apresentadas obras de acervo do programa de colecionismo “Amigo EAV”, cuja venda dos múltiplos, que têm tiragem limitada, será revertida para o programa público da instituição e para cessão de bolsas de estudos a jovens artistas periféricos. Os trabalhos, a partir de R$ 1.800, foram doados nos últimos anos por artistas comprometidos com a sustentabilidade e o futuro da escola carioca. Entre eles, Antônio Dias, Brígida Baltar, Cristiano Lenhardt, Ernesto Neto, Iole de Freitas, Laura Lima, Lucia Laguna, Luiz Zerbini e Rafael Alonso compõem a seleção de nomes consagrados com obras à venda. Para quem faz parte do programa Amigo EAV, a compra conta com até 20% de desconto.

Neste ano, a ArtRio acontece em dois modelos de evento: feira presencial, na Marina da Glória, em formato reduzido, e a feira online. Na Marina da Glória, a ArtRio conta com a presença de cerca de 40 galerias. Segundo a organização, serão seguidos todos os protocolos de segurança indicados pelos órgãos competentes, incluindo o número limitado de visitantes – com indicação de horário de entrada e tempo de permanência – a exigência do uso de máscara, a distribuição de álcool gel e o distanciamento social.

Em ambiente virtual, a ArtRio disponibiliza uma plataforma que permitirá não só a visitação da feira e das galerias presentes, mas também a visualização de detalhes sobre as obras, artistas e histórico. Além disso, um chat possibilita a conversa direta com os galeristas e até comunicação por vídeo, facilitando as negociações. Somando à plataforma de visualização, a feira organizou uma série de palestras, mesas redondas, performances e visitas guiadas que podem ser conferidas em seu site. Com a pandemia, as adaptações virtuais realizadas pelas feiras se tornaram comuns, mas o ambiente digital não é estranho para a ArtRio, que ainda em 2018 lançou um marketplace para venda online.

Lucia Laguna, Colagem nº 22 (jardim), 2019 e Colagem nº 23 (paisagem), 2019, díptico. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.
Lucia Laguna, Colagem nº 22 (jardim), 2019 e Colagem nº 23 (paisagem), 2019, díptico. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.

Inédita para 2020 é a inauguração da Casa ArtRio – um espaço fixo com programação permanente no Jardim Botânico. Para o novo espaço, está programada a realização de palestras, debates, conversas com artistas e curadores, além de exposições especiais. Confira aqui.

Outra novidade é o projeto de videoarte MIRA que será justamente abrigado na Casa ArtRio e acontece na semana da feira, sob curadoria de Victor Gorgulho. Os artistas participantes foram selecionados a partir de chamadas realizadas pela organização em seu Instagram, abrindo novas oportunidades para artistas independentes e para a interação com o virtual.

LEIA MAIS: Para Yole Mendonça, diretora da EAV Parque Lage, a Escola de Artes Visuais carioca segue sua missão histórica de ser um espaço de resistência, aproveitando inclusive as possibilidades de se nacionalizar em um momento de migração para o virtual. Acesse aqui.

Alguma coisa acontece no meu coração: as imagens de São Paulo

Maurício Nogueira Lima. "Não entre à esquerda", 1964, metal e esmalte sintético sobre aglomerado, 99,2 x 59,6 cm. MAM SP.
Maurício Nogueira Lima. “Não entre à esquerda”, 1964, metal e esmalte sintético sobre aglomerado, 99,2 x 59,6 cm. MAM SP.

Não entre à esquerda, 1964, de Maurício Nogueira Lima (Col. MAM SP) poderia ser enquadrada como uma obra para espaços domésticos e não propriamente para um museu. Mais próxima de uma placa de sinalização, ela obedece a uma estrutura formal ligada ao movimento concreto, do qual Nogueira fez parte[1]: o suporte é dividido ao meio por uma vertical que, surgindo na parte inferior, desaparece para ressurgir na representação do sinal de tráfego, desaparecendo em seguida. Paralelas a essa vertical, mais duas são indicadas, à direita e à esquerda. Nove horizontais, em conjunto com as verticais, estabelecem uma grade virtual na base, cuja estabilidade é comprometida pela curva formada pela palavra “não”, encimando a pintura. Outro parentesco importante de Não entre à esquerda é com a poesia visual que então era produzida em São Paulo.

Esse hibridismo – misto de placa de sinalização, poesia visual e pintura concretista – ganha complexidade maior, devido tanto à inclusão de duas pequenas peças de metal sobre a pintura quanto ao sinal de tráfego e às palavras inscritas. As duas peças podem sugerir o interesse do artista em conferir materialidade à abstração daquele “mapa” tão sucinto. Elas são e ao mesmo tempo representam a “engrenagem” que move São Paulo.

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As palavras inscritas na obra podem ser divididas em dois grupos. O primeiro segue a objetividade de uma placa de sinalização com frases de fácil entendimento para quem domine a língua portuguesa. Elas enunciam: “Não entre à esquerda”, “Conserve-se à direita”. Essas reforçam o sinal de trânsito – elemento principal do trabalho. Já a terceira, embora inteligível, traz um ruído. A frase “Entre pelo cano” somente ganhará sentido quando aliada a outras informações inscritas no trabalho.

O segundo grupo de palavras – concentradas na base da obra – apesar de aludir a determinados topônimos da cidade, estão inscritos de forma a não seguirem a topografia de São Paulo.

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Durante o cubismo (mas não apenas), o uso de letras, palavras e mesmo de frases foi estratégico para vários artistas para sublinharem a bidimensionalidade da pintura, e também – ou ao mesmo tempo – outorgarem a ela um caráter mais entranhado na vida cotidiana ou vice-versa. O mesmo pode ser dito sobre os cubistas também terem usado pedaços de papel na produção de suas pinturas[2].

Tarsila do Amaral. “São Paulo (Gazo)”, 1924, óleo sobre tela, 50 x 60 cm. Coleção Particular.

Se tal estratégia é visível na produção de alguns cubistas e entre outras vertentes do modernismo internacional, aqui no Brasil letras, palavras ou frases tiveram um uso mais parcimonioso: são raros os exemplos de obras que usaram desses dispositivos antes dos anos 1960. Na primeira metade do século XX, podem ser rememorados a pintura de Tarsila do Amaral, São Paulo (Gazo) (Col. Particular), de 1924, e algumas obras do artista paulistano Mick Carnicelli como raros exemplares desse tipo de procedimento. No caso da pintura de Tarsila, o uso da palavra “Gazo” testemunha sua adesão ao cubismo, ao mesmo tempo em que constata a modernidade de São Paulo (potencializada pela inclusão da palavra), convivendo com índices de seu caráter ainda provinciano. Já em Carnicelli, a palavra comparece em algumas de suas pinturas como mais um elemento que compõe o cenário urbano da cidade de São Paulo, captado por procedimentos ancorados numa tradição de feição naturalista.

Mick Carnicelli. Sem título, 1944, óleo sobre tela, 60 x 50cm. Coleção Particular, SP.

O que singulariza Não entre à esquerda é como Nogueira Lima lança mão dessa estratégia para conferir novos significados à cidade. Ele se vale de frases objetivas de orientação de tráfego ao lado de uma frase irônica – “Entre pelo cano” – e também dos nomes de alguns bairros da cidade para reposicioná-los fora da ordem que seria de se esperar de uma placa de sinalização de São Paulo. Tudo motivado por um fato conjuntural e traumático: o golpe civil-militar de 1964.

A partir daquela data fatídica – 31 de março de 1964 –, São Paulo passou a ser vista por Nogueira Lima como um território dividido em dois blocos: aquele que apoiava o golpe militar (à “direita”) e aquele que a ele se opunha (à “esquerda”). Reorganizando assim a cidade, Nogueira Lima junta à esquerda os nomes dos bairros que formam para ele um território específico: “Liberdade”, “Paraíso” e “Bela Vista”. Ou seja, à esquerda do cidadão que hipoteticamente se depara com aquela espécie de placa à sua frente existe em São Paulo um território de liberdade, paz, harmonia e beleza. Do outro lado, à direita, há outra organização, reunindo bairros cujos nomes possuem, além do sentido estrito, significados específicos entendidos apenas pelos paulistanos: “Consolação”, “Casa Verde” e “Carandiru”. “Consolação” refere-se ao bairro homônimo onde está localizado o cemitério que lhe deu o nome; “Carandirú”, por sua vez, reporta ao bairro que cresceu ao lado de uma penitenciária. E “Casa Verde” diz respeito a um outro bairro que também abrigava uma antiga prisão.

Apesar de todo maniqueísmo de Não entre à esquerda – compreensivo, aliás, se não nos esquecermos do impacto do referido golpe naqueles que possuíam outras expectativas para o Brasil –, não resta dúvida de que o artista empreendeu uma operação de contundente invocação poética ao propor outra possibilidade para registrar sua revolta frente à situação da cidade (e do país) por meio da reorganização de seu mapa. O que interessa salientar é que talvez pela primeira vez um artista se valeu da subversão dos códigos de representação estandardizado de uma cidade brasileira para propor um novo mapa, uma nova representação, no caso, de São Paulo: um mapa movido pela atitude revoltosa frente ao fato de ter visto solaparem seu projeto de país? Sem dúvida. Porém, não há como não reconhecer a carga de afeto pela cidade misturada àquela revolta. Um afeto que o leva a buscar entender a nova realidade do país a partir da rearticulação e reposicionamento de alguns topônimos de São Paulo, em sua representação mais imediata e objetiva: uma placa de sinalização, um tipo de mapa mais enxuto.

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Ao reinventar no plano da pintura um novo mapa para a cidade, Nogueira Lima traz para o âmbito da arte contemporânea local uma vontade de intervir na configuração estratificada de São Paulo, fornecendo-lhe outra configuração, expandindo sua consciência sobre a cidade e a circunstância que ela e todos seus habitantes viviam.

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São Paulo não teve sua fisionomia captada pelo desenho, pela aquarela, pela pintura e mesmo pela gravura com a mesma intensidade com que foram retratadas outras cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Salvador. Mesmo assim, a partir do século XIX ela foi registrada por artistas como Thomas Ender, Eduard Hildebrandt e outros. No entanto, nenhum pintor ou gravador que se saiba conseguiu assinalar o processo de transformação da cidade com tanta perspicácia como Militão Azevedo, com as fotografias que compõem seu Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo. Justapondo imagens da cidade captadas em 1862 com outras dos mesmos lugares produzidas em 1887, Azevedo conseguiu – dentro dos limites da fotografia de sua época – sublinhar as transformações que já caracterizavam São Paulo como um contínuo vir a ser.

Obras de artistas como Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva e Antonio Ferrigno, entre outros, apresentam cenas pacatas da cidade, sempre interpretada por um viés naturalista, revelador de uma placidez interiorana e sossegada.

Tarsila do Amaral. “São Paulo”, 1924, óleo s/tela, 67 x 90 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Mesmo no âmbito do modernismo dos anos 1920 e depois, a São Paulo que aparece – e quando aparece –, é uma cidade destituída de dinamismo, de qualquer índice de seus aspectos transformadores. A cidade que emerge nas telas de Tarsila do Amaral, por exemplo, revela poucos sinais de transformação. Tanto em São Paulo (Pinacoteca) quanto na citada São Paulo (Gazo), ambas de 1924, a cidade – talvez subjugada demais pelos rigores pós-cubistas de linhagem purista –, aparece austera e cristalizada pelos conceitos de “equilíbrio, construção, sobriedade”[3].

Talvez o único modernista que captou a metrópole em potencial que era São Paulo nas primeiras décadas do século passado tenha sido Flávio de Carvalho, em seu Viaduto Santa Ifigênia à noite, (1934, Col. Particular). A São Paulo noturna de Carvalho, mesmo com a multidão ausente, apresenta-se possante, com o viaduto e os edifícios indicando seu crescimento e modernidade. Essa pintura não retrata uma cidade pacata, retida no torpor. Ela é a representação de uma metrópole que descansa, ao mesmo tempo em que revela sua pujança, a partir de linhas horizontais e curvas, repleta de vazados que se interpõem a formas verticais altivas.

Flávio de Carvalho. “Viaduto Santa Ifigênia à noite”, 1934, óleo sobre tela, 38×48 cm, Col. Particular.

Parecem existir duas São Paulo no período entre as duas guerras mundiais, e mesmo após 1945:

A primeira, a dos fotógrafos, flagra a cidade no seu crescimento até então inconcebível. Hildegard Rosenthal, Hans Gunter Flieg, Peter Scheier, Alice Brill, Georg Paulus Waschinski, dentre outros, captaram o rumor das ruas, fábricas e avenidas, a potência dos edifícios de concreto sendo erguidos, a multidão, a mercadoria tomando conta. Para esses fotógrafos imigrantes, as referências, os lugares, a São Paulo representada na fotografia é outra. Agora, a marca é a aceleração do tempo, do tempo como mercadoria.

Georg Paulus Waschinski. “Nylotex Tecelagem e Confecção S.A”, 1954, fotografia.

Em um álbum analisado pelas pesquisadoras Solange F. de Lima e Vânia C. de Carvalho[4], a foto Nylotex Tecelagem e Confecção S.A., de Georg Paulus Waschinski, esclarece a fusão entre homem e máquina, entre tempo e dinheiro. O primeiro plano – em que operárias se confundem com máquinas e fios – caminha para o fundo da cena, num continuum realçado pelas verticais das colunas da fábrica à esquerda. As diagonais produzidas pelas máquinas tomam a maior parte do campo da fotografia. Ao fundo, uma luz intensa vinda das janelas de vidro contrasta com o teto escuro da fábrica.

Hans Günter Flieg. “Pneus Pirelli”, São Paulo, S.d.

Se Waschinski sublinha a fusão entre homem e máquina com a própria fábrica representada dentro de uma mecânica formal que acentua o processo avassalador da produção industrial, já uma parte considerável da produção de Flieg tem outro objetivo: transformar o produto, a mercadoria saída daquele universo em objeto de cobiça. Em Pneus Pirelli, s.d., Flieg transforma as qualidades do produto em elementos de sedução do consumidor[5].

Nas fotos de Waschinski e Flieg não ficam evidenciados os índices exteriores de São Paulo. Nelas, é como se a cidade apresentasse suas entranhas ou, para seguir na metáfora fabril, suas engrenagens. Contextualizadas[6], elas tinham como função sublinhar a potência de São Paulo, atentando para o fato de que novos lugares e objetos podiam mapear outros significantes e significados para a metrópole.

Alice Brill. “Viaduto do Chá”, São Paulo, 1954. Coleção Pirelli-MASP.

Viaduto do Chá, São Paulo, 1954, de Alice Brill revê um local tradicional da cidade, mas flagra ali um momento em que, imerso em espaços de luz e sombra delimitados, o caos da cidade é desmentido pela ordem quase marcial dos componentes da foto: a multidão, a frota de autos, a avenida, as janelas no fundo da cena, o viaduto, nada diverge do sistema engendrado pela lente da artista. A não ser, talvez, o automóvel fora de foco, (e prestes a sair do enquadramento), passando sobre as inscrições no asfalto que cobre o antigo Anhangabaú, convocando a todos para as celebrações do Primeiro de Maio.

Hildegard Rosenthal. “Rua Direita, São Paulo”. 1939 Coleção Pirelli-MASP.

Se na foto de Brill impera a ordem, em Rua Direita, São Paulo, 1939, de Hildegard Rosenthal, surge, esvaziado de horizonte, outro pedaço do centro da cidade. Os edifícios fecham a cena, tornando o espaço claustrofóbico, os transeuntes caminhando para dentro e para fora da área mais iluminada parecem atores de uma peça de Beckett. No entanto, como nas encenações do dramaturgo irlandês, existe uma ordem ali estabelecida, dada pelas linhas que conduzem a multidão para lá e para cá. Uma ordem, no entanto, de natureza distinta daquela apresentada na imagem de Brill. Se nessa o espaço amplo, cortado por linhas cruzadas, implanta um sentimento de expansão e devir, na foto de Rosenthal a ordem subjacente parece ser da natureza do círculo ou elipse deformada, sugerindo nenhuma possibilidade de reversão.

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A segunda São Paulo, aquela dos pintores, é infensa a qualquer inquietação, a qualquer ruído do moderno. Foram poucos os artistas que no século passado deixaram os arrabaldes ermos, os confins longínquos de São Paulo. Poucos trouxeram para o campo da pintura o centro vigoroso da metrópole. E quando o fizeram, preferiram eternizá-lo na modorra das manhãs de domingo, ou então nos momentos breves em que a metrópole silencia, como se de repente ficasse exausta do barulho contínuo.

No primeiro caso, temos Francisco Rebolo. Em seu Arredores de São Paulo, 1938 (Col. MAM SP), a metrópole é evocada apenas no título e negada na sua realidade. O arrabalde da cidade é tudo o que ela não é: calmo, silencioso, onde a luz é o único ruído benfazejo, diga-se, a fertilizar, com o trabalhador em primeiro plano, a terra dadivosa.

Quando Rebolo pinta o centro de São Paulo, seus tons esmaecidos, delicados, parecem almejar mais o que vem depois do primeiro plano, em que os índices do urbano estão demarcados com singeleza e muita parcimônia. Em Praça Clóvis, 1944 (Col. Particular), por exemplo, a São Paulo ali descrita situa-se ainda entre a metrópole que se insinua por meio do edifício de concreto, do ônibus em primeiríssimo plano, e os índices do ontem ainda presentes: a igreja, o casario baixo que se alonga e esgarça até perder-se no campo, entre uma ou outra discreta chaminé, que também alude ao moderno que se avizinha cada vez mais.

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Mick Carnicelli foi um dos raros pintores que registrou São Paulo sistematicamente até o início dos anos 1960. Com formação veneziana, e estágios em Londres e Paris, o artista voltou e se estabeleceu em São Paulo no início dos anos 1920. Com a cidade manterá uma relação peculiar, optando por retratá-la por meio de recortes menos explorados, usando dessas imagens de São Paulo como subterfúgios para expressar uma visão pouco confiante não apenas na metrópole, mas na própria vida. Aderente a um naturalismo reanimado pelo apreço por alguns pós-impressionistas (Cézanne entre eles), Carnicelli, entretanto, não costumava juntar o cavalete e outros apetrechos e sair à caça de locais que chamassem sua atenção, quer pela luz, quer por outros aspectos pitorescos. Reservado, tendente à reclusão, o pintor atuou como um espectador que via São Paulo de sua janela, do pátio ou do quintal de seu ateliê ou moradia. Era desses postos de observação privilegiados, e à parte do embate direto com a cidade e com a arte de ponta, que ele a investigava a si mesmo.

Apesar de, desde o início, ter tido São Paulo como um dos estímulos para sua pintura, o que interessa sublinhar aqui é sua produção realizada a partir dos anos 1950, quando Carnicelli se instala na residência de seus pais, na Avenida Paulista. É daquele ponto privilegiado que o pintor anota o crescimento rápido da cidade moderna que avança.

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Nelson Leirner. “Você faz parte II”, 1964. Madeira, aço cromado e espelho, 111,3X111,3X10,2cm. Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

No artigo mais recente aqui publicado[7], escrevi sobre a obra de Nelson Leirner, Você faz parte II que, como Não entre à esquerda, de Maurício Nogueira Lima, foi produzida em 1964. Chamo a atenção para essa coincidência: duas obras que representaram desvios significativos no campo da arte contemporânea – contribuindo para a sua introdução entre nós –, foram produzidas num ano tão fatídico para nossa história. Se a obra de Leirner pode ser entendida como uma crítica ao golpe e como introdutora entre nós da crítica institucional, Não entre à esquerda demonstra como a cidade pode ser pensada e reelaborada enquanto imagem, fora do âmbito da iconografia mais previsível.

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[1] – Um concretismo agora semantizado, mas, mesmo assim, concretismo.
[2] – Neste sentido também podem ser pensadas as peças de metal colocadas na pintura por Nogueira.
[3] – Esses seriam os focos que, segundo Mario de Andrade, Tarsila deveria perseguir. Trecho de uma carta do crítico à artista: “(…) Creio que não cairás no cubismo. Aproveita dele apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato (…”). Carta de 16 de junho de 1923, de Mario de Andrade para Tarsila do Amaral. In, AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. Sobre as relações do modernismo brasileiro com o “pós-cubismo de linhagem purista”, consultar: CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
[4] – LIMA, Solange f. de/CARVALHO, Vânia C. de. Fotografia e cidade. Da razão urbana à lógica de consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinas: Mercado de Letras, 1997.
[5] – Em foto mais recente, o artista mantém o mesmo padrão de objetividade recorrendo, no entanto, a outro expediente: Calculadora Logos 270, Olivetti, Guarulhos, de 1970, apresenta não apenas o produto com seu desenho eficaz, objetivo, mas igualmente o resultado de toda essa eficácia: contrasta de maneira saborosa na imagem, a frieza com que é captada a calculadora e a sensualidade (acentuada pelo jogo sofisticado e sinuoso de luz e sombra) da fita de papel que sai da pequena máquina, marcada pelos registros da contabilidade empresarial.
[6] – Como visto, a foto de Wichinsk foi produzida para um álbum sobre São Paulo e as fotos de Flieg para o catálogo das indústrias mencionadas nos títulos das fotos de sua autoria. Em tempo: essas fotos hoje pertencem ao Instituto Moreira Salles.
[7] – “Para Nelson ou os perigos da fúria interpretativa”, dia 23 de setembro de 2020. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/para-nelson-ou-os-perigos-da-furia-interpretativa/

 

Ayrson Heráclito exibe obras no Videobrasil Online

O artista, professor e curador Ayrson Heráclito. Foto: Arge Lola

Ao desenvolver uma poética ligada à elementos da cultura africana e afrobrasileira – passando pelo universo mitológico do candomblé e levantando debates sobre escravidão e racismo -, o artista visual Ayrson Heráclito assistiu, ao longo de décadas, sua obra ser enquadrada basicamente como exótica e primitiva. Segundo o próprio artista, nascido em Macaúbas (BA) e atuante desde meados dos anos 1980, “o meu trabalho era visto, através de um filtro da tradição hegemonicamente masculina, patriarcal, branca e colonial, como uma produção demasiadamente regionalista e folclórica, distante da ideia de contemporâneo”.

Ao longo do tempo, especialmente nos últimos anos, temáticas ligadas às tradições africanas e afrodiaspóricas, assim como o debate sobre racismo estrutural, passaram a ocupar espaço crescente no mundo das artes, pautando – ainda que de modo incipiente – a programação de galerias, museus e instituições culturais. “E assim o sistema de arte brasileiro foi abrindo espaço para que eu me tornasse contemporâneo”, diz Heráclito. “Porque antes tudo que era produzido por pretos e índios era observado apenas pelos antropólogos. E eu sempre reivindiquei que a arte preta fosse reconhecida como uma produção do simbólico assim como todas as outras, e não vista com esse olhar etnográfico que estuda o ‘outro’ através de uma visão ocidental.”

Dentro do panorama descrito pelo artista, uma das poucas instituições do país que se voltou, ainda nos anos 1980 e 1990, para esta produção dita “exótica”, reconhecendo-a como arte contemporânea, foi a Associação Cultural Videobrasil. “Nenhuma outra instituição brasileira, pelo menos que eu tive contato, produziu tamanho debate neste sentido. Foi ela, inclusive, que possibilitou grande parte das conexões culturais que eu estabeleci com a Africa”, afirma Heráclito.

Layout do site com a exposição. Crédito: Nina Farkas

É justamente na nova plataforma da associação, o Videobrasil Online, que Ayrson Heráclito acaba de inaugurar sua primeira exposição virtual. Com dez obras audiovisuais produzidas pelo artista entre 2004 e 2018 e um vídeo inédito de apresentação, Sacudimentos tem curadoria de Solange Farkas, fundadora e diretora da instituição, e é a segunda mostra apresentada na plataforma (leia aqui sobre Abdoulaye Konaté – Cores e Composições). “O Ayrson tem uma trajetória extraordinária para o cenário das artes, com uma contribuição muito particular às práticas descoloniais”, diz Farkas. “Sacudimentos pontua o trajeto de um artista que mobiliza o sentido transformador dos ritos de matriz africana em resistência à herança colonial.”

Para Heráclito, a mostra virtual é uma experiência nova e desafiadora, “já que são trabalhos pensados para serem expostos em uma espacialidade física, por vezes com várias telas, e que agora são apresentados no universo online”. “Então estamos tentando, virtualmente, criar também jogos de telas, trazendo a ideia de instalação para dentro do site”, explica. Ele destaca, ainda, que obras muito pouco vistas, por vezes expostas apenas fora do Brasil, estão agora disponíveis no Videobrasil Online.   

A memória colonial no presente 

Um dos trabalhos criados originalmente em dois canais é justamente o que dá nome a mostra, a instalação Sacudimentos, produzida por Heraclito em 2015 a partir de uma residência artística concedida pelo Videobrasil em parceria com o Raw Material Company, em Dacar (Senegal). Filmado primeiramente na Casa dos Escravos na Ilha de Goré, no Senegal, e depois na Casa da Torre, sede de um grande latifúndio na Bahia, o trabalho registra rituais de limpeza e cura espiritual – os sacudimentos – realizados pelo artista em dois locais ligados ao comércio de escravos. Em uma espécie de performance de limpeza dos espaços arquitetônicos, na busca por afastar espíritos que seguem atormentando o presente, Heráclito traz à tona a necessidade de se olhar para o passado colonial que moldou sociedades nos dois lados do Atlântico. 

Imagem da instalação audiovisual “Sacudimentos”, de 2015. Foto: Divulgação

“No meu trabalho, o sacudimento é também uma tática de retornar ao passado afim de sacudir a história, promovendo uma ‘movência’ dos nossos traumas. É uma forma de gerar uma visibilidade para questões que tradicionalmente foram ocultadas, como o processo de desumanização da população africana escravizada”, explica o artista. “A ideia é que esse passado se cure, de certa forma, e que a lógica desse passado não se repita. Eu sempre digo que a minha tática de sacudimento é para afugentar esse monstro, esse fantasma que até hoje nos persegue, que é o fantasma do senhor de escravo”, conclui.

A ideia de enfrentar as mazelas “sem que você adoeça, mas, pelo contrário, para que você se cure” – inspirada no pensamento do artista alemão Joseph Beuys – se relaciona também à percepção de que o mito da democracia racial no Brasil sempre foi um discurso utilizado pelas elites contra a população preta. Em um contexto de intensificação das lutas antiracistas em diversos países, concomitante ao crescimento da extrema-direita ao redor do mundo, Heráclito ressalta que uma guerra que sempre existiu apenas está mais escancarada. “O que a gente vive hoje é um mundo de guerras e tensões. E não existe mais a ideia de que o Brasil é mestiço e pacífico. O Brasil está em luta, em guerra, como sempre esteve, e essas pessoas e instituições que defenderam esse tipo de apaziguamento estão tendo que se ajustar ou estão perdendo totalmente o sentido, sendo colocadas de escanteio.”

Em tempos de destruição acelerada de florestas e ecossistemas, em que debates sobre o Antropoceno ganham espaço, Heráclito reforça ainda que um olhar para as culturas de matriz africana fornecem outras formas de se relacionar com a natureza. Ao trabalhar, em vídeos e performances, a partir de materiais orgânicos e alimentos como o dendê, o açúcar e a carne, o artista apresenta um dos pilares das culturas de origem Iorubá, Bantu e Fon: “O mundo é como um corpo, um ser vivente. E em meu trabalho toda a utilização dos materiais orgânicos, que são associados às práticas de alimentar as divindades e a natureza, tem a ver com o fato de que a natureza é quem nos dá de comer, é esse sujeito maior que nos guia, nos orienta, nos propicia a vida. E são os elementos da natureza que nos deixam potentes para, por exemplo, transmutar essa ideia de cicatriz, de dor, desse passado colonial que reduziu todo esse conhecimento à ideia de feitiçaria e de macumba”.

O medo de perder o mundo se tornou amplo e irrestrito, diz nova curadora do MuBE

A curadora-chefe do MuBE Galciani Neves. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo
A curadora-chefe do MuBE Galciani Neves. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo

A primeira exposição curada por Galciani Neves no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE) não foi pensada para ser vista pelos visitantes do museu paulistano. Tampouco foi criada direcionada ao ambiente virtual, como se tornou comum nos últimos tempos. Aberta no dia 5 de setembro, dois meses após Galciani assumir o cargo de curadora-chefe da instituição, O ar que nos une é direcionada aos pedestres, usuários de ônibus e motoristas que passam pela avenida Europa, na zona oeste de São Paulo, já que a instituição segue de portas fechadas em meio à pandemia de Covid-19. E, seja neste desejo de diálogo com a cidade, seja nas temáticas que levanta, a exposição já dá uma mostra de algumas das preocupações que devem pautar a gestão da nova curadora do museu.

“Convidamos artistas cujos trabalhos não exatamente tematizam a pandemia, mas de algum modo falam de uma espécie de conexão, do fato de que mesmo à distância as conexões e diálogos insistem em acontecer. Falam da forma como o planeta se comporta e da forma como a gente se comporta”, explica Neves em entrevista à arte!brasileiros. Questões referentes à destruição do meio ambiente, ao Antropoceno, à causa indígena e ao papel educativo da arte surgem, de diferentes modos, nas obras de Ana Teixeira, Artur Lescher, Laura Vinci, Motta & Lima, Paulo Bruscky e Yoko Ono.

Nascida em Fortaleza, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professora na FAAP e na Universidade Federal do Ceará, Galciani assume o cargo após quatro anos de gestão de Cauê Alves, que recentemente se tornou curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Ela pretende dar sequência ao projeto de seu antecessor de construção de um acervo de “obras-projeto” – em que o artista disponibiliza ao museu o projeto da obra e a possibilidade de montá-la, mas não o trabalho em si – e afirma que suas prioridades são trazer maior diversidade para o museu e intensificar seu papel pedagógico.   

“Acho que deve ser ressaltada uma vontade de colocar a tarefa do museu na sua vocação como um lugar de educação. Meu maior desejo é esse. E quando digo educação é de uma maneira geral, entender a educação como uma prática de liberdade. Paulo Freire já dizia isso. Entender que o educar e o educar-se é um trânsito, uma ponte”, afirma. “Acho que o que a gente tem que fazer mesmo é abrir as portas do museu, fazer com que ele seja um espaço simpático e empático. Por isso é tão importante pensar nos processos educativos.”

Quanto às questões urgentes referentes ao meio ambiente, em um país que assiste à destruição acelerada de seus ecossistemas, Galciani fala de seu desejo de aproximar cientistas e pesquisadores do trabalho no MuBE e cita o antropólogo e filósofo francês Bruno Latour: “Há cerca de um ano ele falou em uma entrevista que finalmente o medo de perder o mundo não é mais só dos artistas e dos poetas. Eu fiquei muito chocada com isso. Então o medo de perder o mundo agora é amplo e irrestrito”. Nesse contexto, segue ela, é preciso entender que a tarefa da arte é de resistência, de questionamento. Leia abaixo a íntegra da entrevista.  

ARTE! – Você assumiu o cargo de curadora-chefe do MuBE em julho, ou seja, há pouco menos de 3 meses. Queria começar perguntando como tem sido o trabalho e o que foi possível fazer até agora, especialmente considerando que você assumiu em meio à pandemia e com o museu de portas fechadas.

Bom, desde o começo sabíamos que o museu estaria de portas fechadas por tempo indefinido. Então o início foi de um entendimento da instituição, do que poderia ser a vocação do museu. Como você sabe, o Cauê Alves, junto com a nova diretoria, já havia reposicionado o museu de uma forma muito diferente do que ele havia sido nos últimos dez anos. Então de quatro anos para cá existe um acervo sendo montado, exposições com consistência foram feitas, há uma equipe de educativo, cursos de história da arte e de arquitetura que já estavam sendo ministrados. O MuBE realmente foi adensando a programação. Então o começo foi em parte reconhecer esse terreno, ainda que à distância. Isso é muito difícil, até porque o prédio é encantador, é muito bom estar ali, naquele espaço aberto, em contato com a arquitetura do Paulo Mendes da Rocha. Realmente sinto falta deste convívio. 

E uma coisa que começamos a fazer foi intensificar a programação online, ver o que era possível produzir. Já existia uma programação chamada MuBE ao vivo – Conversa com Artista, e o que eu pude fazer de maneira um pouco mais profunda foi preparar séries para essa programação. Primeiro foi a série “hic et nunca: a cidade como espaço/tempo de experiências artísticas”. E nós convidamos cinco mulheres, cada semana uma artista brasileira: Regina Parra, Alice Shintani, Eleonora Fabião, Virginia de Medeiros e Abigail Campos Leal. E os debates foram super legais, com uma grande participação do público. Fizemos uma segunda série, que se chama “entre nós, uma ponte”, tentando montar diálogos entre arte e educação, com artistas cujos processos artísticos são indissociáveis de processos pedagógicos, como Jorgge Menna Barreto, Vânia Medeiros, Renata Felinto e Lia Rodrigues, entre outros. Agora estamos montando uma terceira série em que cada debate terá sempre um artista e um pesquisador/cientista discutindo as urgências do Antropoceno. Queremos colocar arte e ciência em diálogo.

Então essas atividades foram o foco principal. Além disso, o Educativo tem feito atividades que já existiam antes de eu entrar, como o “ateliê a distância”, geralmente mais voltadas ao público infantil. Tem também o “conhecendo o artista”, que é um video em que os educadores apresentam a produção de algum artista, em geral alguém que esteja na exposição que já estava montada – Obras-projeto: Novo Acervo do MuBE, que foi a última que o Cauê fez. E tem ainda o “conta o conto”. São as atividades online que pudemos fazer.           

Artur Lescher, Aerólito, 2003, na mostra “O ar que nos une”. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo

ARTE! – Vocês fizeram também a exposição O Ar que nos Une, já com sua curadoria, que não é uma mostra virtual. Poderia falar um pouco sobre ela?

Sim, foi o que conseguimos fazer, lembrando que a gente não abriu o museu para a exposição acontecer. Então ela foi feita na área externa para ser vista por quem passa na calçada, nos carros e ônibus. Ela parte do Conversa de Ar, da Yoko Ono, e a gente convidou artistas cujos trabalhos não exatamente tematizam a pandemia, mas de algum modo falam de uma espécie de conexão, do fato de que mesmo à distância as conexões e diálogos insistem em acontecer. Falam da forma como o planeta se comporta, e da forma como a gente se comporta, da maneira como o patrimônio cultural se constitui e se transmite.  

ARTE! – Em uma entrevista recente você falou sobre a proposta de trazer maior diversidade para o museu e de democratizar o acesso a ele. Você acha que essa mostra, ao se abrir para as ruas, já seria um passo neste sentido de desejo de maior integração com a cidade?

Acho que sim. E o desejo de integração eu acho que é algo de que vamos falar muito agora. Porque em tempos de isolamento o que a gente mais sonha é em ficar junto né? Isso se tornou muito caro para nós. Eu, antes de ser curadora, sou professora, então sinto muita falta da sala de aula. A gente sabe o quanto a experiência de aula é feita no convívio. E eu entendo também uma exposição como uma esfera pública de discussão.

Para mim, em primeiro lugar a vocação de um museu é a educação. E isso também tem a ver com o entorno mais imediato, com a cidade, com a rua, com o público. E quando penso em ampliação de público não estou falando apenas das pessoas que visitam o espaço, mas é super importante pensar no acesso aos meios de produção culturais, propondo uma possibilidade de trazer maior diversidade entre as pessoas que podem participar das exposições, palestras etc.

ARTE! – Poderia explicar um pouco melhor o que seria essa maior diversidade que você pretende trazer para o museu e de que modo isso pode ser feito na prática?

A gente já começou esse processo. Eu sei que a ideia de representatividade ainda é algo que a gente precisa ultrapassar. Quer dizer, precisamos sair da “síndrome de um negro só”, que é o que a gente vê na maioria dos espaços né? E eu não quero correr esse risco. Mas sei que pensar sobre isso é um trabalho fundamental, que tem que estar na pauta principal do MuBE. E temos que entender que uma exposição, uma curadoria, é um lugar de legitimação, e que a medida que uma curadoria olha, seleciona, legitima e coloca em exposição alguns trabalhos, ela também deixa de colocar outras coisas em circulação. Então eu acho que o trabalho parte principalmente de um processo de pesquisa, de diálogo, e aí sim de interlocução, de relação. Nós sabemos quantas iniciativas e plataformas de tentativas de mapeamento existem, por exemplo, de artistas negros, de profissionais e pesquisadores trans, mas talvez o grande desafio seja a nossa possibilidade de acessar e se comunicar com essas pessoas. E sendo franca, acho que ainda estamos engatinhando nesse sentido. O Brasil não se preparou para isso. Estamos muito acostumados a viver dialogando e expondo os grandes nomes, já hegemônicos e já cristalizados. E acho que é super importante ampliar os espaços, mas também ampliar a vista, entender uma diversidade de ação, de pontos de vista. E isso não deveria ser só uma plataforma de um museu, não teria que ser só a plataforma de arte, a gente tem que pensar em inclusão, que os meios de produção culturais tem que ser irrestritos para essas pessoas também.          

ARTE! – Você chegou já a citar essa proposta de trabalhar a ideia do Antropoceno, o que parece ter até uma relação com o nome do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia). O que significa trazer o debate sobre o Antropoceno para o museu, inclusive pensando no atual contexto brasileiro de destruição de suas florestas?

Nós estamos vivendo uma crise que é humanitária, sanitária, política… Enfim, tornou-se uma pauta que a gente encara todos os dias, isso está em nossos corpos, vinculado aos nossos deslocamentos, aos nossos privilégios de ir e vir. Então temos no museu um planejamento que está começando a ser desenhado para o ano que vem, no qual estamos conversando com muitos pesquisadores e cientistas para entender as pautas urgentes para 2021. Entender os temas que não podem faltar. Então essa série de conversas que eu citei, por exemplo, já é fruto de um diálogo inicial com algumas pessoas. O Bruno Latour, por exemplo, é um pensador que está aqui na minha mesa, literalmente, o Diante de Gaia está aqui comigo. E no Brasil estamos começando a conversar com o S.O.S Mata Atlântica, a Marcia Hirota tem nos nutrido de pessoas e pesquisadores jovens que trabalham com agrofloresta, com o impacto no ecossistema da cidade – inclusive para entendermos a cidade como meio ambiente. Isso está presente também na formação dos educadores. Estamos tentando fazer com eles uma formação bem diversa e plural, passando pelas ideias de patrimônio cultural e educação ambiental, para que a gente também comece a preparar o público interno para receber esses conteúdos. Outro conteúdo importante é sobre as mudanças climáticas, o que envolve um maior entendimento do próprio funcionamento do museu, um engajamento com o cotidiano da instituição. Existe, por exemplo, a Agenda 2030, com vários protocolos e instâncias de funcionamento, e estamos tentando posicionar o museu em relação a essas estratégias.

Acho que uma coisa importante que eu tenho começado a aprender com os pesquisadores é que nós vamos, cada vez mais, assistir o planeta falar por si só, reagir. A ciência moderna tratou, por muito tempo, o planeta como um lugar de recursos que nunca iam acabar, mais passivo, uma espécie de mãe que tudo aceita e tudo nutre, tudo dá. E acho que maior lição que tenho aprendido agora são as interconexões, tudo está imerso, o planeta vai começar a reagir de maneira mais brusca, digamos assim. E temos que pensar em como tratar esses temas.                

ARTE! – Este debate inclui também tratar de questões indígenas, por exemplo?

Sim, porque a gente também entende que os povos originários, assim como nós, somos parte do meio ambiente. Mas é também um assunto que tem uma delicadeza. Não podemos apenas estetizar, entender como uma espécie de produção excêntrica. Acho que temos que ter um cuidado para lidar com essas coisas, estamos aprendendo a pensar sobre isso. Não podemos cair em erros de museificar as coisas, mas precisamos entendê-las em um plano de ação do imediato, do contemporâneo, de conexão cultural mesmo. Talvez a gente ainda tenha que sofrer um pouco para trabalhar com esse tipo de assunto.

ARTE! – Pensando no momento político conturbado que estamos vivendo, mais especificamente no Brasil, temos um governo que parece tratar arte, cultura, educação e meio ambiente quase como áreas inimigas. Queria que você falasse um pouco sobre como vê este contexto, pensando que essa são exatamente as principais áreas de atuação do MuBE…

Há cerca de um ano o Bruno Latour falou em uma entrevista que finalmente o medo de perder o mundo não é mais só dos artistas e dos poetas. Eu fiquei muito chocada com isso. Então o medo de perder o mundo agora é amplo e irrestrito. E é uma ameaça que se edificou com mais força e potência na nossa frente. Mas, partindo disso, eu entendo a arte como uma atividade social, embrenhada no meio social, nas nossas questões políticas, no nosso exercício efetivo como gente, por mais óbvio que seja falar isso. Então nesse momento é entender mesmo que a tarefa da arte é de resistência, de questionamento. Acho ainda temos alguma esperança se entendermos que a vocação principal da arte é a educação, o que pode trazer mudanças para as próximas gerações. E especificamente no MuBE e na minha atividade como curadora e professora, eu estou pensando nas gerações futuras, no que realmente pode acontecer de transformação. Talvez não sobre muita coisa para as próximas gerações, mas temos que tentar semear uma base, um outro solo, nossa obrigação é muito grande. E nesse sentido a arte também tem essa tarefa de desobediência, também num nível de engajamento coletivo, e estar à frente do MuBE é pensar em trazer tudo isso para dentro, mas é sobretudo convocar e fazer circular, ser uma espécie de centro nevrálgico para algumas pessoas. Para que a gente possa produzir e fazer circular informações que sejam mais humanitárias, que de alguma maneira distribuam justiça, não num sentido demagógico, mas de alguma equidade social, de algum sonho de equidade social. 

ARTE! – Por fim, falando sobre o acervo do museu, você entra após um período de quatro anos em que o Cauê se dedicou à criação de um acervo de projetos de artistas. Isso seguirá neste próximo período?

O acervo do museu é feito de obras-projeto, o que significa que as ideias do artista estão ali sendo cuidadas pelo museu. O que significa também que nós temos a possibilidade de remontar essas obras. Então, por exemplo, se nós fizermos um empréstimo de uma obra do MuBE, nós enviamos o projeto e aí a outra instituição é responsável pela montagem. E os artistas são super parceiros nisso, porque não é apenas um croqui, mas todo um memorial descritivo dos trabalhos. Os artistas fizeram vídeos, estão em diálogo com a conservadora, que é a Flavia Vidal. E acho que o que o Cauê iniciou foi muito importante para reposicionar o museu, colocá-lo também como detentor de um acervo. E sim, já estou conversando com pessoas que terão projetos incorporados como parte do acervo do MuBE. Em breve poderemos anunciar quem são.

CURA BH traz obras de arte para as fachadas da capital mineira

CURA BH. "Entidades", por Jaider Esbell. Foto: Divulgação.
"Entidades", por Jaider Esbell. Foto: Divulgação.

Desde 22 de setembro, Lídia Viber, Robinho Santana, Daiara Tukano e Diego Mouro vem trabalhando nas quatro empenas (com obras pintadas, afixadas nas paredes de prédios) espalhadas pela região da Rua Sapucaí, no Bairro Floresta, comissionadas para a quinta edição do CURA BH. Os três primeiros são artistas convidados, já Diego Mouro foi o vencedor da convocatória do CURA para 2020 – que recebeu cerca de 400 propostas. Devido à pandemia, o projeto está documentando todo o processo, com duração de 13 dias, em suas redes sociais.

“O CURA 2020 nasceu de um desejo em emergência de cuidar de nós e do que nos cerca, de nos unirmos e construirmos essa edição de mãos dadas. Um festival gestado por mulheres e que se tornou uma jornada de encontro e novas perspectivas”, afirma Janaína Macruz, uma das idealizadoras do festival, ao jornal O Estado de Minas.

Além das empenas, destacam-se a instalação Bandeiras na Janela e Entidades, escultura em grande escala de Jaider Esbell. Ao todo, são 18 obras de arte em fachadas, sendo 14 na região do hipercentro de Belo Horizonte e quatro na região da Lagoinha. O conjunto forma a maior coleção de arte mural em grande escala já feita por um único festival brasileiro. Também fica a crédito do CURA o primeiro e, até então, único Mirante de Arte Urbana do mundo.

Entidades é uma escultura inflável de duas cobras, cada uma com 18 metros de comprimento e 1,5 metro de diâmetro, nos arcos do Viaduto Santa Tereza, que traz consigo um registro da floresta amazônica, suas lendas e cultura. Entidades é inspirada pelo povo Makuxi, sendo uma representação da figura da “Cobra Grande”, considerada a “grande avó universal”.

O que ela representa não poderia vir em tempo mais oportuno: “A Cobra Grande está sempre trabalhando nos bastidores, sempre, incansavelmente, para nos alertar, nos proteger, nos manter vivos neste mundo enquanto povos originários dessas terras todas. A Cobra Grande representa várias simbologias, desde a fertilidade ao caminho das águas, da fartura, porque ela vive debaixo da terra, nos grandes rios subterrâneos, mantendo o movimento da água sempre pulsando para que sejam mantidas as fontes. Ela também está distribuída no universo através da Via Láctea, também no intermediário, através dos rios voadores”, explica Esbell. À noite, a escultura ganha outra face quando acendida com luzes neon.

“Bandeiras na Janela”. Foto: Divulgação.

A série Bandeiras na Janela, por sua vez, conta com painéis que reproduzem o trabalho de cinco artistas: Celia Xakriaba, #CóleraAlegria, Denilson Baniwa, Randolpho Lamonier e Ventura Profana. Até dia 1º de dezembro, as bandeiras ficam expostas na fachada da antiga Escola de Engenharia da UFMG, na Avenida do Contorno, cujo prédio encontra-se inativo desde 2010, quando foi cedido ao TRT (Tribunal Regional do Trabalho).

Nos cartazes agigantados surgem dizeres que se voltam a discussões contemporâneas e de relevância: na obra de Ventura Profana a palavra de ordem “Sem Senhor”; Randolpho Lamonier continua sua série Profecias prevendo “Em 2050 descobrimos: Brasil é América Latina!”; e Cólera Alegria chama a incorporar a reviravolta.

Contra a devastação! 

Beuys VI Seminário ARTE!Brasileiros
Trabalho da série Difesa della natura (Defesa da Natureza), 1984, de Joseph Beuys. Foto: Divulgação

Este ano completamos 10 anos de arte!brasileiros, uma publicação que pensa a arte inserida na contemporaneidade, como uma atitude, como uma forma de atuar e de sentir frente à realidade. Em outubro, nos dias 8 e 9, das 9:30 as 12:30 da manhã, temos a satisfação de realizar nosso VI Seminário Internacional, desta vez em formato virtual, no meio de uma das maiores provações dos últimos anos. 

No mundo, e no Brasil especificamente, parecem ter sido abertas as comportas de uma represa, e quase como num filme de ficção, saído em debandada monstros de todas as espécies, capazes de atualizar as atrocidades que já formaram parte da nossa história colonial. Os incêndios criminosos na Amazônia, no Pantanal, a contaminação dos povos das florestas, a violência brutal e assassina contra negras e negros e o abuso sexual contra as mulheres se tornaram um espetáculo tenebroso. Vivimos um cenário de descaso com a vida, com a ideia de humanização. 

A pandemia só veio agravar essa sensação. 

O mundo da arte e da cultura também passa por ataques sistemáticos nas redes de ódio que se espalham pela internet. A censura chega ao absurdo de questionar nus nas telas dos museus. 

Este debate já teve como como protagonista o artista alemão Joseph Beuys, que de 1980 a 1985 produziu na Itália uma série denominada Defesa da Natureza, que buscava a ampliação e superação do conceito de arte usando não só conceitos ecológicos, mas uma perspectiva mais ampla de revisão da própria ação humana. 

O “VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros: Em defesa da natureza e da cultura – a arte do possível”, realizado em parceria com o Goethe-Institut, busca, trazer para o público varios dos temas que ganharam urgência neste período e dos esforços expositivos que foram desenvolvidos em diversas mostras internacionais que não puderam chegar a se desenvolver plenamente no contexto pandêmico.

O encontro irá reunir virtualmente, transmitido através do Youtube e varias plataformas digitais; artistas, filósofos, cientistas, ambientalistas e curadores que vêm trabalhando neste cenário complexo já há muito tempo.

Estarão presentes o filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, pensador importante sobre o futuro pós-pandemia. O líder ambientalista Ailton Krenak, uma das vozes mais potentes dessa época, a artista e militante indígena Naiara Tukano e o cientista Antônio Donato Nobre que abordarão questões cruciais que atingem a vida do planeta e o ataque aos povos indígenas. A curadora e pesquisadora argentina Andrea Giunta, responsável pela última Bienal do Mercosul, e a dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, a partir da Manifesta13, apresentarão as questões de cerceamento às liberdades individuais e a defesa de diversidade de gênero.

Os curadores da Bienal de Berlim, a brasileira Lisette Lagnado e o espanhol Agustín Pérez Rubio, assim como a artista brasileira Aline Baiana e o artista guatemalteco Edgar Calel, que participam da bienal. A mostra, que foi suspensa em abril e aberta, com restrições ao público em 4-6 de setembro, aborda temas como o combate ao fanatismo e ao extrativismo, a vulnerabilidade de indivíduos que vivem em campos ou situação de confinamento e a existência de corpos sexodissidentes.

Por último o trio de curadores Diane Lima, Beatriz Lemos e Thiago de Paula Souza, à frente da Frestas – Trienal de Artes, que acontece parcialmente em Sorocaba, trará reflexões sobre os temas que o evento aborda, como o deslocamento dos eixos geográficos na arte contemporânea e o desenvolvimento de estratégias de escuta social, participação e formação dos públicos! Aguardamos a todos!

Comité Curatorial: Patricia Rousseaux, diretora editorial arte!brasileiros, Fabio Cypriano, diretor do curso de comunicação PUC_SP, critico de arte.

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Hino contra ditadura inspira exposição de brasileiros em Paris

Lyz Parayzo, "Bandeira #2". Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.
Lyz Parayzo, "Bandeira #2". Foto: Daniel Nicolaevsky Maria.

Com título inspirado em canção de Chico Buarque contra a ditadura, a exposição manifesto Apesar de você, amanhã há de ser outro dia reúne cerca de vinte artistas mobilizados para se levantar contra a política ultraconservadora do presidente Jair Bolsonaro, que coloca em risco a cultura, os direitos humanos e a proteção do meio ambiente. A coletiva será apresentada até o dia 30 de setembro no ateliê do artista colombiano Iván Argote, nas Grandes Serres, em Pantin, Paris.

Os participantes são artistas brasileiros radicados na França cuja obra se mobiliza contra a situação preocupante do país. Sua seleção foi realizada pela curadora argentina Sofía Lanusse, partindo de uma iniciativa de Sandra Hegedüs, colecionadora e mecenas brasileira, também fundadora da SAM Art Projects. Apesar de você traz obras em plataformas diversas que abrangem pintura, escultura, desenho, música e performance. A mostra expõe trabalhos dos seguintes artistas: Anna Torres, Bianca Dacosta, Elian Almeida, Juliano Caldeira, Lyz Parayzo, Lucas Kröeff, Isadora Soares Belletti, Gabriel Moraes Aquino, Wagner Schwartz, Romain Vicari, Rodrigo Braga, Randolpho Lamonier, Liliane Mutti, Julio Villani, Daniel Nicolaevsky Maria, Daniel Zarvos, Joanna Zimmermann e Iván Argote.

Embora a canção de Chico tenha ecoado pelas ruas do Brasil nos anos 1970, alguns aspectos se mostram atuais. Hegedüs observa: “Estamos enfrentando sérios problemas de censura e uma lista de tensões que seria muito longa para enumerar. Recorri a Iván Argote, que é sul-americano e tem plena compreensão de todas essas questões que existem não só no Brasil. Ele já tinha começado a organizar exposições aqui e imediatamente acolheu este projeto. Com Sofia como curadora queríamos dar a eles esse espaço para que se expressassem sem risco de censura e violência, seguindo o comando artístico dirigido por Julio Villani nos portões da Embaixada do Brasil em Paris, no dia 21 de maio de 2020, cujos cartazes estão distribuídos ao longo da exposição”.

Cartazes de Julio Villani na mostra "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia". Foto: BZ.
Cartazes de Julio Villani na mostra “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Foto: BZ.

Na apresentação da mostra, Lanusse aponta que essa é uma “oportunidade de sublinhar a importância da criação de espaços coletivos para discutir questões que nos separam, de forma a driblar as táticas do ‘dividir para conquistar'”. Ela complementa: “A forma como nos reunimos é definida pela forma como percebemos e implementamos nossos relacionamentos e responsabilidades, uns para com os outros”. A curadora relata, por fim, que quando políticas lesivas “assediam” nossa sociedade, o diálogo se torna “uma ferramenta fundamental para restaurar a confiança e nos permitir compartilhar nossas opiniões. Cinquenta anos depois, a nostálgica melodia ‘Apesar de você’ nos lembra um passado que se faz mais uma vez presente – e ao qual devemos resistir”.

Acompanhando a exposição, neste final de semana (26 e 27 de setembro) ocorrem três mesas redondas, que poderão ser assistidas virtualmente na página do Facebook da SAM Art Projects, confira:

Sábado (26 de setembro), às 17h

Corpos políticos e afetividade

Conversa (em inglês) entre a curadora da exposição, Sofia Lanusse, e as artistas Lyz Parayzo e Isadora Belletti.

Domingo (27 de setembro), às 16h

Literatura da resistência

Com: Adriana Brandão, jornalista nascida no Brasil, integrante do corpo editorial do serviço brasileiro da RFI e autora do livro Os brasileiros em Paris, ao longo dos séculos e dos bairros; Julio Bernardo Ludemir, nascido no Brasil, autor, um dos criadores do FLUP (Festival Literário Internacional que ocorre, desde 2012, nas favelas do Rio) e da Batalha do Passinho, duelos musicais ao ritmo do funk, que acompanhou em Londres e Nova York; Leonardo Tonus, especialista em literatura brasileira contemporânea; Wagner Schwartz, artista plástico nascido no Rio de Janeiro, que vive e trabalha entre São Paulo e Paris, está envolvido em diversos grupos de pesquisa e experimentação coreográfica na América do Sul e na Europa.

Domingo (27 de setembro), às 18h

O que os artistas podem fazer?

Com: Sandra Hegedüs, mecenas e colecionadora paulista, fundadora da SAM Art Projects e iniciadora da exposição Amanhã há de ser outro dia; Iván Argote, artista plástico nascido em Bogotá, vive e trabalha em Paris, expõe seus filmes e instalações em importantes bienais, museus e galerias de todo o mundo; Liliane Mutti, diretora e roteirista baiana, mora na França e atua nas áreas de videoarte, videoperformance e ficção, tratando de temas entre o exílio e o olhar feminino; Daniel Nicolaevsky Maria, dançarino e artista visual, natural do Rio de Janeiro, que vive e trabalha entre Paris e Rio de Janeiro, expõe e se apresenta em diversos centros de arte, incluindo o Centre Pompidou e o Palais de Tokyo em Paris ou o Sogetsu Art Center em Tóquio.

Para seguir as regras sanitárias, exigidas por causa da pandemia de Covid-19, as pessoas terão que reservar seus ingressos com antecedência e agendar suas visitas no site do evento (weezevent.com). O uso de mascara é obrigatório, bem como o respeito do distanciamento social.

Galeria TATO tem exposição presencial e abre inscrições para seu segundo ciclo de formação

Obra de Rosa Grizzo na Casa TATO I
Trabalho de Rosa Grizzo que compõe a exposição da Casa TATO I. Foto: Cortesia da Galeria TATO

Neste mês a Galeria TATO abriu as portas com sua primeira exposição presencial após meses fechada por conta do isolamento social. A mostra é resultado do Casa Tato I, programa de formação ministrado pela galeria, e segue aberta até o dia 27 de setembro (domingo).

O projeto aproximou treze artistas a um grupo de curadores. Foram 39 encontros virtuais promovendo o diálogo com colecionadores e agentes do mercado de arte. Participaram desta primeira edição Arlette Kalaigian, Corina Ishikura, Cris Basile, Cynthia Leitão, Heloisa Lodder, Jussara Marangoni, Kika Goldstein, Luciana Luchesi, Marcos Pereira de Almeida, Nil Sanchez, Rosa Grizzo, Rosana Pagura e Silvio Dworecki. Na exposição, realizada com apoio da Galeria Pourquoi Pas?, de Punta Del Este, cada artista apresenta seu trabalho com uma pequena mostra em um dos cômodos do espaço expositivo. 

De forma a garantir maior segurança frente à pandemia de Covid-19, a visitação é feita apenas com hora marcada e são seguidos todos os protocolos sanitários, incluindo o uso obrigatório de máscara. As obras também serão expostas online pela ArtSoul.

O programa de formação

A Casa TATO – que resulta na mostra – nasce de uma ideia de Tato DiLascio, fundador e diretor da Galeria. Em seus 10 anos de carreira, o curador notou uma carência de serviços para desenvolvimento de artistas frente às exigências feitas pelo mercado de arte. Foi pensando em suprir essa lacuna que idealizou um programa de formação e experimentação.

O objetivo geral era criar oportunidades para desenvolvimento de competências ao artista que deseja se profissionalizar. Para que isso acontecesse, treze curadores foram convidados e realizaram abordagens e reflexões sobre os trabalhos dos inscritos na Casa TATO. Em paralelo, cada participante selecionou um nome dentre a lista de curadores, com quem teve conversas mais aprofundadas sobre suas obras e o futuro de sua trajetória profissional.  

Tato conta que essa primeira turma foi idealizada para acontecer presencialmente, porém a pandemia alterou os rumos do projeto. A maioria dos encontros aconteceram virtualmente, proporcionando maior aproximação dos artistas com todos os curadores e maior reflexão e aprofundamento na poética dos trabalhos. Além disso, Tato DiLascio acredita que o formato online traz um lado positivo para a formação: “Desse modo, a Casa TATO possibilita a presença de artistas de todo o Brasil. Por isso, seguiremos com esse formato daqui para frente”, explica.

Por isso, o segundo ciclo de formação, com início em outubro, também ocorrerá virtualmente. “A formação acontece toda pelo Zoom, a única coisa presencial é a exposição. Os curadores visitarão a exposição montada, que podem ir ver isoladamente ou seguindo os protocolos de distanciamento”, afirma o diretor. As inscrições para a segunda edição do projeto estão abertas (clique aqui).

Serviço

Endereço: R. Veríssimo Glória, 59 – Perdizes
Horários: De Sexta a Domingo – das 12h às 16h
Para visitar a exposição presencial é necessário agendar com até 15 minutos de antecedência. Para isso, envie uma mensagem de WhatsApp para (11) 98171-2121