Moisés Patrício, Sem título, série: "Álbum de família", 2020. Foto: João Liberato/Cortesia Galeria Estação
Terminamos o ano com uma única certeza. Mesmo quem teve sorte e não adoeceu – física ou psiquicamente – ou perdeu o emprego, está esgotado.
Os esforços para sustentar um ano de isolamento levaram as instituições culturais a criar alternativas através do desenvolvimento de projetos virtuais, gerenciando marchas e contramarchas. Alguns desses projetos conseguiram abrir para o público presencialmente e ainda subsistirão até março/abril de 2021.
Já o Estado, na cultura, cortou investimentos, demitiu, diminuiu residências, prêmios e editais.
Estamos pessimistas. O obscurantismo que se instalou no governo brasileiro, que começou com a negação da história colonial, defendendo a inexistência de racismo no Brasil, a imunidade das milícias, a politização da justiça e a devastação do meio ambiente, luta agora abertamente contra a ciência, proclamando-se contra a necessidade de investimentos e logística em prol da vacinação.
Chacotas do presidente contra o destino de quase 200 mil mortes não foram suficientes para criar vergonha em parte da população que ainda acha que esta gestão não é responsável pelos resultados do descaso. Que insensibilidade é essa?
Partindo da arte, estamos empenhados em mostrar o quanto é possível se rebelar contra o negacionismo e a necessidade de apagar a história. A arte contemporânea se insere neste ethos. A estética e a ética não permitem se alienar desta realidade.
O final do ano foi coroado com várias manifestações específicas resultantes do incentivo a esta violência. A maioria da população brasileira que morreu vítima da violência, de Covid-19 ou da fome foi a população negra.
Nesta edição fizemos questão de ouvir colaboradores especialistas, pesquisadores, acadêmicos, curadores e artistas negros capazes de denunciar e pronunciar-se contra todo este ataque desvairado, marcando o enraizamento secular desta violência.
Se há algo que podemos fazer é incentivar a memória. Desvelar o mito da miscigenação cordial e colaborar mostrando o quanto a arte afro-brasileira e indígena somos nós.
Queremos no encerramento do ano agradecer especialmente a aquelas e aqueles que apoiam este projeto, cujo objetivo continua sendo difundir e respeitar a diversidade.
Desejamos a todos um bom descanso, com saúde, e um ano de 2021 mais esperançoso.
Vista da primeira sala da Pinacoteca: Acervo, parede com retratos e autorretratos de artistas. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
Inclusiva e arrojada. A nova disposição do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, aberta no final de outubro passado, é um salto de qualidade da instituição. Na versão anterior, o acervo estava disponível em 400 obras ocupando 11 salas e outras 150 obras acessíveis em arquivos, totalizando 550 no total.
Agora, o acervo ocupa 19 salas, tanto do primeiro como do segundo andar do edifício sede, com cerca de mil obras de mais de 400 artistas. As artistas mulheres passaram de 17 para 95, e os artistas afrodescendentes de 7 para 26. Não são ainda números suficientes para dar conta de uma história da arte brasileira verdadeiramente plural, mas não há dúvida de que é um avanço a se notar, algo difícil de se perceber em outras instituições.
A disposição anterior tinha um princípio de que menos é mais, buscando dar mais visibilidade ao que estava exposto. Funcionou, e por isso é possível agora uma outra organização muito mais radical, que abandona a ordem cronológica, o que outros museus importantes como o Centro Pompidou (Paris) e a Tate Modern (Londres) já fazem há tempos.
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Obra de Adriana Varejão, recente comodato com a Pinacoteca. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
"Feitiço para salvar a Raposa Serra do Sol", de de Jaider Esbell. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
Essa quebra na ordem temporal é substituída por três eixos: Territórios da Arte; Corpo e Território; Corpo individual/Corpo coletivo. São como grandes temas que permitem exercícios curatoriais mais livres e, ao mesmo tempo, sintonizados com reflexões contemporâneas. Aí está um dos trunfos dessa nova ordenação, que de fato parte de uma constatação bastante necessária: só é possível rever o passado com os olhos do agora. Um acervo é, afinal, o arquivo de um museu, e como ensina Jacques Derrida, “o arquivo será sempre lacunar, toda leitura será diferente”. A equipe da Pinacoteca que fez a mudança levou a sério esse princípio e deixou escolas, movimentos e termos rígidos de lado para permitir um novo olhar reflexivo – que já tem um prazo definido para terminar: 2025.
Outro diferencial importante é que a curadoria assume uma atitude realmente propositiva, onde a disposição de obras alcança um modo instalativo, já que em cada sala criam-se ambientes não só surpreendentes, como bastante contundentes.
É o caso da parede sobre autorretratos, que faz parte do eixo Territórios da Arte, onde se veem artistas acadêmicos, modernos e contemporâneos mesclados, mas o destaque acaba sendo a pintura de Sidney Amaral (1973-2017), artista negro que sempre abordou questões relativas à raça e é visto na cortante obra Imolação (2009). A imagem dele com uma arma no pescoço acaba repercutindo em todas as demais, como a apontar para o drama de ser artista negro no Brasil. É um dos momentos emocionantes da mostra e que aponta para um forte diálogo com 2020, ano em que o movimento negro conquistou grande visibilidade.
“Imolação”, de Sidney Amaral. Foto: Romulo Fialdini/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2016
Sidney Amaral, aliás, está presente em vários outros momentos da exposição, característica reservada a algumas figuras chaves nessa reorganização do acervo, o que ocorre também com Claudia Andujar, que comparece com várias imagens dos Yanomamis, por exemplo. Há uma dupla de obras que criam um diálogo genial, quando se vê a pintura Proclamação da República (1893), de Benedito Calixto, ao lado do conjunto de desenhos e aquarelas Incômodo (2014), de Amaral: a primeira a versão oficial, a segunda a visão do racismo estrutural que decorre da República.
Outra sala icônica na nova disposição é a que abriga a instalação de Jonathas de Andrade Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste próxima de obras-primas de artistas que retrataram o povo brasileiro, como as pinturas Caipira picando fumo, de Almeida Júnior (1850-1899), Bananal, de Lasar Segall (1889-1957) e Mestiço, de Candido Portinari (1903-1962). Essa transversalidade na seleção não só revê a narrativa que costuma construir a história da arte no país como também ajuda a questionar o discurso um tanto paulista da centralidade da Semana da Arte Moderna de 1922.
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À frente, "Museu do Homem do Nordeste", de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
À frente, instalação de Jonathas de Andrade, ao fundo tela de Almeida Junior. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
Essas misturas realmente provocantes trazem um grande frescor ao museu, como que atualizando boa parte do acervo da Pinacoteca que se concentra no século 19. Uma vitrine que mistura trabalhos de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) – um dos fundadores da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, tendo antes trabalhado na corte de Napoleão – com obras do artista indígena Denilson Baniwa é o exemplo de um gesto de descolonizar o museu efetivamente em seu coração, isto é, seu acervo.
Véxoa
A remodelação do acervo no segundo andar do museu transformou também a disposição das salas para mostras temporárias. Antes alocadas nos quatro cantos do prédio, agora elas se concentram em três salas centrais no mesmo piso. Junto com o novo acervo, a exposição que inaugura o espaço é Véxoa: nós sabemos, com curadoria de Naine Terena, a primeira mostra dedicada à arte indígena na Pinacoteca.
É significativo que uma mostra sobre a produção indígena seja organizada por uma indígena, que selecionou 23 artistas e coletivos de diferentes regiões do país. Também é digno de menção que em seus 115 anos, somente no ano passado a Pinacoteca adquiriu obras de indígenas.
A mostra parte de um princípio questionador dos limites entre arte e artesanato, revendo assim os cânones tradicionais, assim como aborda temáticas distintas: seja da defesa dos direitos humanos dos povos indígenas, seja dos processos de cura utilizados nestas comunidades.
“Tatu”, Ailton Krenak. Foto: Isabella Matheus/Pinacoteca do Estado de São Paulo
Cerâmicas tradicionais estão dispostas junto a novos trabalhos, como pinturas recentes de Ailton Krenak – sim, ele mesmo, o líder na Assembleia Constituinte de 1988 e uma das vozes mais potentes durante a pandemia – que retrata macacos e tatus.
Padronagens, que são marcas dos povos indígenas, são vistas em obras de Daiara Tukano, sejam em telas de pequenas dimensões, seja em uma pintura mural que retrata uma cobra.
Com a nova disposição do acervo e uma mostra indígena potente, a Pinacoteca dá sinal de que a renovação ocorre em sintonia com novos tempos e abrindo espaço não só para quem não tinha a representatividade, mas trabalhando junto com esses grupos.
Serviço
Pinacoteca: Acervo
Pinacoteca de São Paulo |Praça da Luz, 2, Luz.
De quarta-feira a segunda-feira, das 10h às 18h.
Entrada gratuita
Véxoa: nós sabemos
De 31 de outubro de 2020 a 11 de abril de 2021
Pinacoteca de São Paulo | Praça da Luz, 2, Luz.
De quarta-feira a segunda-feira, das 10h às 18h.
Entrada gratuita
Aracy Amaral: “É uma batalha permanente”. Foto: Antonio Henrique Amaral/ Divulgação
Irrequieta, Aracy Amaral continua encarando o desafio de buscar caminhos para uma maior compreensão da arte e da cultura nacional. A despeito das enormes dificuldades impostas pela pandemia, vem trabalhando intensamente nos últimos tempos para dar corpo a uma exposição ambiciosa, que procura iluminar os vários modernismos que brotaram no Brasil nas primeiras décadas do século XX. A mostra, feita a quatro mãos, em parceria com Regina Teixeira de Barros, promete revelar uma trama interessante entre história, arte e pensamento nas primeiras décadas do século passado. Trama essa que, por contraste, deixa evidente uma das marcas do Brasil atual: a ausência de qualquer projeto coletivo, de superação da desigualdade e proposição de novas bases para o desenvolvimento nacional.
Pesquisadora, crítica, curadora, professora e, sobretudo, observadora atenta e curiosa da cena cultural brasileira desde a década de 1950, Aracy viveu com intensidade e vivacidade a segunda metade do século XX e as duas primeiras décadas do século atual. É, portanto, do ponto de vista privilegiado de quem se dedicou a investigar o passado e perscrutar o presente que ela conversou com a ARTE!Brasileiros. Na entrevista a seguir, ela fala sobre seus anos de formação, sobre a experiência à frente de instituições como a Pinacoteca do Estado e o Museu de Arte Contemporânea da USP, sobre alguns dos diversos temas de pesquisa aos quais se dedicou com rigor e curiosidade (como a preocupação social na arte; arte construtiva; arte contemporânea; as relações entre as culturas brasileira e latino-americana; o modernismo em geral – e Tarsila do Amaral em particular) e sobre a agonia e as adversidades decorrentes da pandemia.
ARTE!✱ – Vamos começar falando da exposição que você e Regina Teixeira de Barros estão preparando para o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) no ano que vem, antecipando as celebrações em torno do centenário da Semana de 1922.
Aracy Amaral – Nós vamos falar dos vários modernismos no Brasil. A ideia é ampliar, cobrindo o período entre 1900 e 1937, quando se dá o golpe de Getúlio Vargas. Abordamos então o pré-modernismo, a chegada dos modernismos propriamente ditos na década de 1920 e depois, com a queda da bolsa de Nova York, a alteração de rumos, com a federalização, o surgimento de um nacionalismo de outro gênero. Vamos passar por toda essa transformação que vive o Brasil nesse período, a eletrificação, a reconstrução de várias cidades como São Paulo e sobretudo Rio de Janeiro, enfim, o que vai acontecendo no país. As artes, nesse aspecto, são apenas uma ilustração. E nós vamos querer que no catálogo haja ensaios. Já tratamos com vários autores: Felipe Chaimovich, que vai escrever sobre o pré-modernismo; Ana Maria Belluzzo, que vai escrever sobre modernismo; sobre poesia e literatura vai escrever aprofessora Flora Süssekind; o Ruy Castro vai falar sobre o Rio de Janeiro; Cacá Machado vai escrever sobre música; e Luis Felipe de Alencastro vai escrever sobre a problemática política econômica e social no país nesse período. Nós queremos que seja como um debate, um catálogo sobre o que se passou nesse período.
ARTE!✱ – É uma mostra histórica então, com uma trama bem complexa. Você disse que nunca tinha feito uma curadoria tão difícil. Por que?
O interesse é que seja histórico. Agora, estamos tendo muita dificuldade de conseguir as obras porque as instituições se fecham, cada uma quer fazer o seu. O MAM-SP quis fazer um ano antes (das comemorações de 22) justamente para não enfrentar essa competição de obras. Mas acontece que todos recusam, pensando no que farão no ano seguinte. Claro que a Pinacoteca não abre mão da Antropofagia, e agora estamos pendentes da resposta do Museu Nacional de Belas Artes. Enfim, é uma batalha diária. Nunca fiz uma curadoria tão árdua, tão dura, a gente tem que recomeçar várias vezes. Eu e a Regina já fizemos várias relações de obras. Em um momento em que está tudo fechado, a gente não pode ir ao Rio, não se pode mais ver as obras ao vivo, não podemos falar diretamente com as pessoas, é tudo por celular, computador. É mais complicado, muito pesado. Portanto, dependemos muito da boa vontade dos interlocutores.
ARTE!✱ – Falando em pandemia, qual você acha que vai ser o principal efeito disso tudo, pensando no futuro. Esse olho no olho, esse contato pessoal é muito importante para um trabalho de garimpo como esse, não? Você acha que a gente vai conseguir achar um novo modelo, ou que a gente retoma do mesmo ponto?
Você diz do ponto de vista museológico, ou do ponto de vista de vida?
ARTE!✱ – Dos dois.
Acho que é um enigma, a gente não sabe. Estamos tateando, sem saber que tipo de comportamento poderemos vir a ter. Está todo mundo grudado na tela, esgotado de ter ou dar aulas por computador. A gente não sabe o que vai acontecer no dia de amanhã, se as vacinas vão sair. Principalmente num país como o Brasil, em que tudo é imponderável, fruto de caprichos eleitoreiros, não há um planejamento visando a sociedade como um todo. No caso das classes menos favorecidas, que são as que mais sofrem, com o desemprego, com falta de recursos, a situação é de caos. Vivemos um momento de espera e ao mesmo tempo caótico.
ARTE!✱ – Fazendo um paralelo com o período da exposição que você está trabalhando, acho que essa diferença é fundamental: hoje a gente não tem projeto. Vivemos um momento de desestruturação de tudo.
Pois é. E no caso do nosso país você não sente ninguém à frente do governo, com uma capacidade pensante que diga: temos um norte, estamos projetando isso para a região Norte, isso para o Nordeste… É tudo um enigma, não existe uma firmeza. Isso é doloroso, para um país de 210 milhões de habitantes.
Na 2a Bienal de São Paulo, conversando com o critico uruguaio Nelson di Maggio. Foto: Acervo Pessoal
ARTE!✱ – Uma coisa que você sempre defendeu, como professora, é que o aprendizado de arte se dá olhando. Como fazer hoje?
Acho que ninguém está olhando, inclusive porque os jovens não leem livros, nem do ponto de vista de literatura nem do ponto de vista de história da arte. Sei lá, eu lia muito. A gente tinha que fazer resumo, tinha que fazer apreciação, tinha uma formação que hoje não existe mais. Eu me sinto totalmente obsoleta do ponto de vista de aprendizado e do ponto de vista de o que eles leem hoje. Não é o livro em si. Acho, por exemplo, que só se debruça sobre literatura quem está fazendo literatura.
Em geral a nova geração só vê o celular, veem quando muito o computador, quando tem que fazer os trabalhos escolares ou universitários. Tive um ex-aluno, que hoje é professor na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), que disse que seus alunos de artes visuais da ECA nunca foram ao MASP. Eles são de São Paulo e nunca foram ao MASP! Se a gente sabe que eles não têm o hábito de olhar, o hábito de ver, de acompanhar a escrita através do original, imagine agora. Mas você pode dizer: por isso mesmo eles têm um bom treino para tudo que nós estamos passando.
ARTE!✱ – De certa forma a gente sempre está em minoria, não? Esse esforço pela democratização da arte, por tornar a arte acessível – uma marca de sua trajetória – não acaba.
Essa é uma luta insana, mas é uma luta que prossegue. É uma batalha permanente. Agora os museus tentam temperar, fazem coisas mais recreativas. Ir ao museu se tornou um passeio, você não pode levar muito a sério, porque senão ninguém vai. Há que se fazer exposições que distraiam. É complicado isso, ter que enganar o público. Não é como na Europa onde é possível fazer, sei lá, uma retrospectiva de um grande artista como Holbein ou Delacroix, que as pessoas vão visitar porque muitos deles já estudaram esses autores no curso ginasial, no secundário. Aqui não existe isso. Se nós temos dificuldade de alfabetizar, imagine se pensarmos do ponto de vista da alfabetização do conhecimento, da leitura dos períodos da arte. A situação é muito mais grave e não devemos pensar apenas do ponto de vista das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Temos que pensar em termos do interior de Goiás, do interior do Ceará, do Pará. Imagine, é um deserto absoluto. Só escapa desse deserto aquele que tiver a possibilidade de ganhar uma bolsa e estudar fora. Não que aqui não haja bons professores, mas é muito pouca gente que segue, é muito pouca gente interessada nesse tipo de formação. É preciso alimentar a formação do artista, que ele saiba o que aconteceu no começo do século, o que aconteceu no século XIX, que tenha ideia do que ocorreu no fim do século XVIII. É uma raridade o artista que pode se expressar em relação ao que aconteceu no passado. Acontece o mesmo com os críticos de arte. Em 2011 participei de um grupo que fez a curadoria da exposição do Mercosul e notei que os críticos que tinham por volta de 40, 45, até 50 anos se interessavam apenas por artistasque surgiram a partir da década de 1990 pra cá. O que aconteceu antes não conheciam e não tinham nenhum interesse em conhecer. Interessava do conceitual para cá. Há uma delimitação muito grande do ponto de vista geracional de estar aberto ou não para todas as épocas. Eu acho que é impossível querer ser um grande escritor sem ter lido os autores do começo do século XX, do fim do século XIX. Para mim é um enigma, uma pessoa ter uma formação na sua área sem conhecer os que o precederam.
ARTE!✱ – Falando em formação, você poderia nos contar um pouco da sua. Na sua família há uma veia artística muito forte, não?
Minha formação foi eclética, confusa, caótica (risos). Mas acho que se houve influência artística familiar, veio tudo pelo lado da minha mãe, Abreu. Do nosso lado lusitano. Como meu pai era primo distante de Tarsila, todo mundo pensa que veio por aí, mas do lado da Tarsila não há absolutamente nenhum outro artista. Já minha mãe, minhas tias pintavam. Uma delas, que morreu aos 27 anos, era desenhista gráfica.
ARTE!✱ – E foi nesse ambiente doméstico que o gosto foi se formando?
Não é que minha mãe fazia a gente se interessar. Mas do ponto de vista de influência, a gente sabia que minha mãe gostava dessas coisas, que minhas tias também gostavam. Havia um precedente familiar aí, mesmo que não fosse percebido. Só hoje percebo isso, olhando para trás. E creio que tanto eu como minhas irmãs e meu irmão pertencemos a uma geração que se formou numa época bastante tumultuada e alvissareira, do ponto de vista de curiosidade intelectual aqui no Brasil e em São Paulo em particular. Minha adolescência foi toda durante a Segunda Guerra Mundial, eu era chamada na minha casa de repórter Esso porque eu tinha verdadeira loucura para ouvir o que estava acontecendo. Eu despencava escada abaixo para ouvir o repórter Esso, queria saber onde estava a Alemanha, quem estava invadindo, se a França estava recuperando o território, sobre o bombardeio da Inglaterra. Enfim, vivenciávamos esse clima.
ARTE!✱ – Foi esse apelido de repórter Esso que te levou ao jornalismo?
Minha formação é de jornalista e meus primeiros empregos foram como jornalista. Trabalhei na A Gazeta, no Diário de São Paulo, fiz uma coluna de correspondências na Folha de S.Paulo. Mais tarde, no começo da década de 1970 trabalhei também como redatora de publicidade, na mesma agência em que trabalhou Décio Pignatari e o jornalista Fernando Lemos. Éramos redatores. Fiz até um programa sobre arte na rádio Jovem Pan. Ele se chamava “Vamos falar de Arte?”. Parecia que não era nada, só dois minutos por dia. No começo eu fazia assim, ao vivo, direto, depois comecei a gravar e comecei a redigir porque as pessoas posteriormente me cobravam, por correspondência, por chamadas, por carta. E eu tinha toda a liberdade.Acho muito interessante esse meio de comunicação, que não foi superado nem pela televisão nem pela internet nem por nada.
Em 1951, entrevistando o diretor do MoMA, René d’Harnoncourt, para o jornal da Faculdade. Foto: Acervo pessoal
ARTE!✱ – E a experiência como monitora da 2a Bienal de São Paulo, como foi?
Uma coisa leva a outra. Como eu dizia, em São Paulo na década de 50 havia muita vivacidade. Ao mesmo tempo eu fiz um pouco de dança contemporânea com a Yanka Rudzka, fiz mímica com Luís de Lima, me inscrevi para fazer cinema até que me aprovaram e eu fiquei apavorada, sai de medo. Fiz o Teatro Paulista do Estudante, estreamos no mesmo dia que estreou o Guarnieri, o Vianinha. Antonio Henrique, meu irmão, também participou dessa peça. Era tudo assim, todos tinham todas as aberturas possíveis. Então a jovem geração ficava muito contaminada. A gente se encontrava no final da tarde, todos iam ao Museu de Arte Moderna na rua Sete de Abril ver as exposições, discutir, assistir os filmes que o Paulo Emilio Salles Gomes projetava, todo mundo participava de tudo. Os que eram curiosos iam se nutrir da história da arte, da história do cinema, de exposições, conferências também na Biblioteca Municipal… A gente assistia tudo. Ficávamos até atordoados com tantas possibilidades, tão multidirecionais que a gente tinha. Daí um partiu para o cinema, outro partiu para o teatro. Minha irmã Ana Maria foi fazer criação de direção de teatro, foi morar em Nova York, e depois ela foi fazer teatro de bonecos, ser professora na ECA, ganhando prêmios internacionais. Suzana foi fazer cinema, Antonio Henrique foi pintar. Era uma coisa assimcontagiante.
ARTE!✱ – Acho que você tem uma capacidade surpreendente de mudar de assunto e de se apaixonar por novos temas.
Sim, isso para mim é fundamental, porque ficar parada num lugar só, com um tema único, é impossível. Tanto que eu fiz uma série de pesquisas sobre o modernismo. Primeiro “Artes Plásticas na semana de 22”, depois, a partir de Tarsila, eu vi tanta coisa na casa dela, tanto material documental, que acabei fazendo, antes mesmo do trabalho sobre ela, o livro Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas. Porque me dei conta de como tinha sido importante a presença e a influência dele sobre Tarsila e Oswald de Andrade. Depois veio o livro sobre Tarsila, que eu apresentei como doutorado na USP, na ECA. Daí eu fiquei farta de modernismo, porque as pessoas só me chamavam para falar disso, sabe? Então pensei: preciso partir para outra. Então eu fiz a Expo-Projeção-73, sobre os jovens que estavam mexendo com as novas mídias, trabalhando com vídeo, todas as formas de expressão não usuais, em 1973. Daí comecei a ser chamada também, fui fazer palestra em Buenos Aires…
ARTE!✱ – É a partir daí que você começa a circular mais intensamente pela América Latina ou essa conexão já existia?
Eu já tinha esse vínculo. Não sei se porque quando a gente era pequena, meu pai trabalhando com o Instituto Brasileiro de Café (IBC), nós moramos na Argentina. Fiz o primário lá. Aí eu voltei, tive umas aulas aqui para tirar todo o espanholismo de minha fala e fiz o ginásio em Santos. Mas não sei se terá sido isso. Por que eu me interessei pela América Latina? Será que foi pelo precedente da Argentina? Por que eu conhecia a história argentina melhor do que a nossa? Por que eu tinha feito primário lá?
ARTE!✱ – Talvez porque você não tenha partido do lugar tradicional que o Brasil reserva aos vizinhos. O Brasil evita olhar para o lado.
Pois é, pode ser. O Brasil olha para fora. Eu sempre falei que os dois países mais similares na América do Sul são Venezuela e Brasil. Ambos têm os olhos postos fora e se interessam muito pelo que ocorre nos Estados Unidos, na Europa, e menos pelo que ocorre na América do Sul. Tanto é assim que a Venezuela vai ter os grandes cinéticos e o Brasil vai ter outras gerações de artistas plásticos também voltados para o exterior, com interesse na informação que vem de fora. Ao passo que os países andinos são mais fechados dentro de si próprios em suas tradições e Argentina, Uruguai e Chile são mais ligados à Europa. Retomando, eu estava cansada de fazer trabalhos sobre o modernismo e Tarsila, tinha encerrado esse aspecto, tinha encerrado já a Expo-Projeção e comecei a viajar pela América Latina. Tive uma iluminação através de um livro encontrado na casa da minha mãe. Estava fazendo muitos trabalhos com Luís Saia, sobre o patrimônio em São Paulo. Percebi que as casas que eles chamavam, entre aspas, de bandeiristas não eram senão uma “casa de hacienda”. Há inúmeros casos muito similares. Em São Paulo essas casas eram também todas distantes do centro, seja no Caxingui, seja no Butantã, em São Bento… Comecei a ver essas plantas, fui viajar, estive no Paraguai, fui para a Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela. Ia nas minhas férias da USP e muitas vezes quando ia para algum congresso fotografar essas casas. Eram muito similares, muitas persistiram até o século XIX. Não adianta que o Julio Katinsky, o Carlos Lemos fiquem falando de isolamento da casa paulista. Ela existe em toda a América do Sul, como um prolongamento.
Obra de Miguel Rio Branco exposta no 34º Panorama da Arte Brasileira, “Da pedra Da terra Daqui”, com curadoria de Aracy. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Você descobriu que a imagem da padroeira argentina é brasileira?
Quando fiz esse estudo, em correspondência com um historiador jesuíta de Buenos Aires, descobri que a Imaculada Conceição, que se tornou a Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, é uma imagem paulista. E de qualidade menor que aquelas feitas em Santana do Parnaíba ou Mogi, mas havia, ao mesmo tempo, um comércio entre Lima e São Paulo. Temos que lembrar que havia outro tipo de intercâmbio, que depois foi superado. E os arquitetos aqui não tinham se dado conta disso porque nunca tinham viajado pela América do Sul. Preferiam viajar para Paris, para outros lados, então fixaram a ideia de que São Paulo tinha uma casa que só tinha aqui. Quando eu publiquei a A Hispanidade em São Paulo, eles não reconheceram o trabalho, em primeiro lugar porque eu era mulher, um fator a ser considerado queira ou não. Em segundo lugar porque eu não era arquiteta e estava falando de arquitetura e a FAU nesse aspecto não perdoa. Havia uma discriminação. Você não é arquiteta, você fica no seu lugar, escreve sobre história da arte, o que você quiser, mas não entre num terreno que não é o seu. Eu nem defendi a livre-docência com essa pesquisa porque eles iam dizer: você não é arquiteta. Uma não arquiteta escrevendo sobre arquitetura! A prova disso é que depois, quando me cansei do problema do concretismo e decidi fazer um trabalho sobre a preocupação social na arte brasileira, outra coisa que começou e me apaixonar, um amigo arquiteto me perguntou: “Seu capítulo sobre arquitetura você não vai publicar né?”. Ao que respondi: “Por que não? Faz parte do livro, já está até com editora”.
ARTE!✱ – Você enfrentou muitas dificuldades? O Brasil parece ser um lugar em que, na arte, as mulheres tiveram um pouco mais de espaço do que em outros lugares. A que você atribui isso?
É verdade, o Brasil tem muita artista mulher. Nos Estados Unidos, as mulheres se queixavam, na década de 1970, 1980, que não havia espaço para elas, que eram perseguidas. É o caso até da mulher do Pollock, a Lee Krasner, ou da Helen Frankenthaler, mulher do Motherwell. No Brasil ao contrário, nossas grandes artistas são muitas: Anita Malfatti, Tarsila, Maria Martins, Maria Leontina, Lygia Clark, Mira Schendel, Carmela Gross, Regina Silveira… Há uma infinidade de artistas mulheres que não podemos negar, porque elas fazem parte da história da arte do Brasil. Uma vez eu escrevi para uma revista em Nova York que me pediu um texto sobre isso. Nas décadas de 1950, 1960 e talvez até nos dias de hoje, as mulheres brasileiras talveztenham tido mais espaço para pesquisa que as mulheres da França, dos EUA, Alemanha, porque aqui sempre tiveram auxiliares que davam uma mão na casa enquanto em outros países a vida doméstica era muito mais dura. Esse é um dos lados.
ARTE!✱ – Talvez também a arte aqui não fosse uma carreira tão valorizada pelos homens?
Se o Milton da Costa era um excelente artista até um certo ponto da vida dele, a Maria Leontina foi grande durante todo o decorrer de sua carreira. E no entanto ela mantinha também esse espaço discreto de ser a mulher de um artista que ela respeitava. Tanto que uma vez, nos anos 1970, um diretor do Guggenheim veio aqui e eu levei ele para conhecer vários artistas. Gostaria muito que ele conhecesse o trabalho da Maria Leontina. Liguei para ela para perguntar se poderia marcar. Ela me disse: “Aracy, seja bem clara comigo. Ele quer ver os meus trabalhos ou ele quer ver os trabalhos do Milton?” Eu falei: “Os seus”. Ela falou: “Me desculpe muito, mas prefiro então não recebê-lo”. O caso é muito datado, mas é peculiar. Veja bem, é o retrato de uma época.
Obras na mostra “Das Mãos e do Barro”, na Galeria Millan, sobre arte popular indígena e latino-americana, com curadoria de Aracy. Foto: Everton Ballardin
ARTE!✱ – Aproveito essa história para falar desses movimentos mais recentes de resgate da arte das mulheres e dos negros também. Como você vê este movimento, mais ligado a causas identitárias?
Bem, o das mulheres está aberto aí porque os Estados Unidos já o fazem há muito tempo e aqui no Brasil começou de uma forma até meio exasperada mais recentemente. Mas a arte dos negros acho uma coisa incrivelmente positiva, porque nós ficamos fechados para a cultura negra, nós ignoramos a história da negritude. Até hoje você sabe que é uma disciplina que deveria ser ensinada em todas as escolas, mas não há nem professores especializados em África. Agora, nós estamos assistindo um outro tempo, não é? Na televisão vemos muitos anúncios em que há casais miscigenados, apresentam o negro de uma forma inaudita.
ARTE!✱ – E do ponto de vista artístico há uma grande potência, talvez a mais importante do momento, na arte contemporânea, não?
Na verdade a inspiração afro sempre existiu, seja na pintura, em particular na música. Qual a maior influência internacional na música do século XX? É a música negra. Seja no tango, seja no samba, seja no ritmo caribenho, no jazz na música norte-americana, onde você quiser, o ritmo que se impôs é o ritmo negro, é a música internacional que chega a Paris. Não só por causa da Josephine Baker na década de 1920, mas porque é o ritmo do século XX. Não há dúvida nenhuma.
ARTE!✱ – Outro capítulo nessa mesma linha, digamos, de lacunas que estão sendo escancaradas, é que o Brasil parece que começou finalmente a perceber que têm indígenas e que essa cultura também é importante para a gente.
Eu não sei se o Brasil já descobriu isso… Acho que ainda não. Porque no caso da presença africana isso não tem dúvida, está a flor da pele. Afinal de contas o branco hoje é uma minoria no Brasil. E o que é o branco? Ninguém sabe se existe branco no Brasil. É muito raro. Quem não é miscigenado de alguma forma? Existe a herança indígena, mas para nós ela transparece muito na arte popular, que também é uma coisa que ainda não foi assimilada e aceita. Não falo só da arte pura, tipo cestaria Yanomami, mas da arte popular do interior do Ceará, que é riquíssima, ou do Piauí… Já existem inúmeras galerias trabalhando nessa direção. Mas ainda não existe uma aceitação que valorize o caráter precioso dessas obras, entende? Mesmo a preservação delas.
ARTE!✱ – Dentre seus trabalhos recentes, está a curadoria de uma mostra de desenhos de Tarsila, em cartaz na Fábrica de Arte Marcos Amaro. Você poderia falar um pouco sobre esse aspecto da obra dela?
A exposição – que é uma curadoria conjunta também com Regina Teixeira de Barros, grande estudiosa e curadora – traz o desenvolvimento do percurso da Tarsila a partir do desenho. É muito curioso ver como o exercício do desenho pautou o desenvolvimento e a libertação dela como artista, desde, digamos assim, o estudo, a formação, primeiro acadêmica, depois parisiense, com grandes mestres da época como Andre Lhote e Gleizes, até chegar a uma liberação total e ela se sentir apta a voltar à figuração, numa viagem a Minas, com toda liberdade, mas com um espírito de síntese muito grande. Depois ela vai cair um pouco numa figuração, num realismo tão ao gosto das décadas de 1930, 1940, 1950, que é a época que, digamos assim, vai liberar também uma figura como Portinari. Uma época também em que ela escreve crônicas para o Diário de S. Paulo, e faz muita ilustração para livros, muitíssimas. Como não existia mercado para a pintura, ela vive de ilustrações, vive também de crônicas. Não é uma época de inatividade, mas de alteração de atividade.
Exposição “Tarsila, estudo e anotações”, com curadoria de Aracy e Regina Teixeira de Barros, na FAMA, em Itu, 2020
ARTE!✱ – Se você tivesse que escolher dentre as várias personalidades que você tem, como critica, professora, diretora de museu…
Eu não sei o que eu seria. Eu fui uma mistura de tudo isso. Em cada momento eu fui uma coisa. Se eu fui vanguarda na década de 1960, 1970, depois eu fui historiadora na década de 1970, 1980. Depois fui diretora de museu. Eu curti demais ser diretora da Pinacoteca, porque eu alterei completamente a imagem da Pinacoteca. Era um museu fechado, que as pessoas faziam sinal da cruz quando passavam na frente pensando que era um templo. E depois comecei a fazer exposições, cursos lá dentro, curso de modelo vivo, exposições temporárias. Mudei a Pinacoteca e essa mudança, que foi sensível, foi um prazer, uma satisfação enorme. Colocar lá Ana Maria Belluzzo, colocar lá o Paulo Portella, um fazendo arte-educação, outro me ajudando na pesquisa, poder montar lá aquela exposição do Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, cursos, tudo foi muito interessante. Nesse período da Pinacoteca ainda haviam os salões, uma época em que acabou. Os artistas jovens eram lançados a partir de salões de cidades pequenas e depois, com os prêmios que eles ganhavam, passavam para um outro patamar.
ARTE!✱ – Hoje dependem do mercado.
Agora, a partir das décadas de 1980 e 1990, um fenômeno novo entra no mundo da arte no Brasil: Volpi, por exemplo, que vendia muito pouco até a década de 1940. Ele vai fazer a primeira exposição em 1944, numa pequena galeria, na Barão de Itapetininga. Não tinha nem catálogo ainda e ele tinha 48 anos de idade. Hoje tem muito artista com 40 anos que já tem livro publicado como se fosse uma obra acabada. Era outro ritmo. O artista produzia, uma pessoa ia fazer uma bienal ou um grande salão, ia no ateliê do artista, escolhia as obras. Hoje o artista faz as obras para o evento. O mercado hoje é avassalador. E para a minha geração é um fenômeno novo. É lógico que para os jovens hoje é o princípio fundamental da atuação deles.
ARTE!✱ – Philip Kennicott, do Washington Post, afirmou há pouco que se sente “mais livre para gostar das coisas sem pedir permissão” em função da pandemia. Não lhe parece assustador esse reconhecimento?
Muitos curadores e críticos que nós conhecemos, que tem entre 30 e 50 anos, estão atrelados ao mercado, você sabe disso. Muitas vezes a gente não nomeia, mas sabemos quem são. A gente trabalhava com museus, com entidades. Se eu tenho que recorrer a uma galeria, eu faço isso com um pouco de recato, digamos assim. Porque eu acho que mercado é uma coisa e quem faz uma curadoria tem que ter um outro ponto de vista, procurar museus, procurar colecionadores privados. Agora, muitos curadores ou jovens críticos não vão à casa dos artistas, não vão às casas dos colecionadores. Você pode alegar: não vão porque não conhecem, não têm acesso. Pois é, mas por que a gente tinha? Por que conseguíamos entrar? Vai ver porque eram pessoas que publicavam em jornal e o nome já era conhecido, então eles abriam as portas para vocês. Mas hoje o curador, um jovem crítico, escreve para o catálogo de galerias. Ou seja, ele já escreve para o mercado. Ele não tem o hábito de frequentar o ateliê do artista nem de frequentar a casa do colecionador.
Exposição “Tarsila, estudo e anotações”, com curadoria de Aracy e Regina Teixeira de Barros, na FAMA, em Itu, 2020
ARTE!✱ – Você comentou que os jovens que não veem muito a história pregressa da arte, do que foi produzido antes deles. Mas a gente também vê muita gente que fica parado no tempo e que não vê o que vem depois.
Eu acho que hoje a gente vê muitos pesquisadores da história da arte que ficam trancados no seu gabinete fazendo mestrado, doutorado, pós-doutorado, livre-docência, que só se preocupam com a titulação para poder galgar uma garantia de um concurso para poder se firmar na universidade ou o que quer que seja.Mas eu acho que eles não vão ao ateliê do artista. Eles não saem do seu gabinete. Isso eu também acho criticável. Eu te garanto que os artistas teriam o maior prazer em receber historiadores… tenho certeza.✱
"Retirantes", de Pedro Zagatto | Foto: Isabella Matheus
Entre obras que retratam festas e tradições populares, pinturas que expõem a violência policial, expressões de um feminismo crescente, cenas cotidianas e retratos da degradação ambiental brasileira, a Bienal Naïfs do Brasil 2020 abriu as portas de sua exposição presencial. A mostra teria início em agosto no Sesc Piracicaba, mas foi adiada por causa da pandemia, e agora segue em paralelo com a programação digital até julho de 2021. Buscando reunir as ideias de Ailton Krenak – com Ideias para adiar o fim do mundo – e Arthur Danto, a mostra leva o título Ideias para adiar o fim da arte e conta com curadoria de Ana Avelar e Renata Felinto.
“Eu diria que Ideias para adiar o fim da arte é na verdade ampliar para 360 graus a nossa possibilidade de olhar. Parar de mirar adiante, mas ter atenção à visão periférica, e se necessário, virar o corpo pra poder enxergar o que ficou pra trás”, diz Felinto. A curadora acredita que a quantidade de pessoas diferentes na exposição já anuncia a intenção de esgarçar os limites que categorizam as produções de artes visuais no hoje. “As obras apontam para discussões que atravessam inúmeras identidades, mas que tendem a escancarar as possibilidades de humanidades que precisam ser vistas também através da arte”, explica.
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"African Rhythms", de Chavonga. Foto: Isabella Matheus
"Povos unidos e acolhedor", de Rimaro. Foto: Isabella Matheus
"Trançado semente de seringueira", de Dhiani Pa'saro. Foto: Isabella Matheus
Pensando nisso, talvez fique claro que ao invés de adiar o fim da arte, o debate seja mais sobre expandir a nossa compreensão de arte e as narrativas que incluímos nessa história. Como coloca Ana Avelar: “Na contemporaneidade já não acreditamos mais em apogeu, acreditamos que as artes se desenvolvem ao longo da história, com suas especificidades e seus assuntos. Ou seja, pensar o fim da arte já não é mais possível, mas podemos pensar a transformação dela e dos sistemas nos quais ela opera, e nós buscamos oferecer entradas de compreensão para essas narrativas”.
Mas o que os artistas naïf têm a ver com isso? Talvez as suas narrativas sejam justamente algumas que estavam invisibilizadas até então. Para compreender, vale voltar um pouco no tempo. “Naïf é um termo de origem francesa e sugere algo natural e ingênuo”, explica Margarete Regina Chiarella, agente de cultura e lazer no Sesc Piracicaba. “Mas visitando a Bienal, vocês vão perceber que de ingênuo não há nada. Essa arte tem como característica a espontaneidade e a liberdade para que os artistas expressem, como se sentem, como percebem o mundo sem ficar presos às regras da academia ou aos modismos. São insubmissos, trabalham com regras próprias.”
Visando minimizar essa inivisibilização, o Sesc optou por dar foco ao artista, e na 15ª Bienal, além de mostrar uma pluralidade na arte naïf, criou espaços que simulam ateliês e trazem relatos em vídeo dos próprios criadores, contando ao público seus processos e suas pretensões artísticas, e permitindo que o visitante da bienal o veja para além de um generalismo, mas como pessoa artista. “Então para nós isso é importantíssimo, porque ainda que a crítica de arte e a curadoria sejam fundamentais para se organizar um discurso expositivo, não é mais admissível que desprezemos a fala da pessoa artista”.
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A exposição reúne obras de 125 artistas, que trabalham com diferentes técnicas e suportes | Foto: Lucas Cersosimo
Vista da exposição. Foto: Lucas Cersosimo
Muito dessa proposta curatorial está baseada nas ideias das teóricas Ana Mae Barbosa e Lélia Coelho Frota. Como explica Ana Candida Avelar, esta edição da Bienal Naïfs também busca homenagear as mulheres. Por isso, parte de ambas as teóricas como referências na curadoria e convida Carmela Pereira, Leda Catunda, Raquel Trindade e Sonia Gomes para dialogar com a exposição. “Olhar para o trabalho delas nos faz perceber como saíram das realidades mais diversas para estar nos lugares onde estão, nos faz notar que esses e essas outras artistas estão percorrendo caminhos semelhantes e possuem esse espaço já aberto tanto por iniciativas como a do Sesc, quanto por figuras como essas artistas”, diz Ana Avelar.
Aliada à exposição presencial, uma série de iniciativas digitais foram e serão desenvolvidas. Dentre as atividades aconteceram oficinas voltadas aos artistas autodidatas, para que aprendessem a fotografar suas obras – e assim acessar outros espaços expositivos mais facilmente – e a elaborar portfólios – necessários às seleções de mostras nacionais e internacionais. Esse tipo de iniciativa visa uma ação maior do que a realização de um evento. Por isso, o trabalho com os artistas populares vai muito além do período da Bienal Naïfs e busca entender o evento não como um fim, mas um caminho, que permita a essas pessoas ampliar suas vozes e construir novas conexões e oportunidades.
"Caos + Reparo = Universo", 2014, obra de Kader Attia em cartaz no Sesc Pompeia. Foto: Gui Gomes/ Divulgação
Sábado, 14 de novembro. Exatamente oito meses após um confinamento levado muito a sério, visito a primeira exposição de arte. Escolho o Sesc Pompeia por ser um dos locais mais acolhedores da cidade, pela arquitetura de Lina Bo Bardi, pelas mostras em cartaz. Exposições costumam ser o lugar da surpresa, do espanto, da pesquisa, do questionamento, é onde se pode rever o cotidiano, repensar o real, propor novos mundos, e também a possibilidade de fantasia e ativismo.
Mas em um mundo em pandemia, que no Brasil se tornou uma política de morte, o que significa retornar a uma exposição de arte contemporânea? Dá para olhar arte com máscara, medo de se aproximar de outras pessoas e a impossibilidade de tocar na obra? Ou a experiência de uma exposição está comprometida e sua arquitetura e organização não podem mais seguir parâmetros pré-11 de março de 2020, quando a OMS anunciou a pandemia?
Desde os anos 1980, com a Aids, o mundo da arte incorporou a ideia de “contaminação” como uma afirmação positiva e a palavra inundou textos curatoriais, críticos e mesmo de descrição de mostras. Talvez seja agora o momento de se rever o uso dessa palavra, especialmente porque está claro que a contaminação está em todo lugar, mesmo levando-se em conta as medidas sanitárias necessárias, e ela segue mortal.
Na visita ao Sesc, as medidas são dadas pelo número limitado de visitantes, que só podem entrar com inscrição prévia, e pela medição de temperatura na entrada. O local, além do mais, é um lugar amplo, com muita ventilação, outro aspecto importante que dificulta a contaminação.
O Sesc Pompeia tem duas mostras em cartaz, que seguem até o fim de janeiro: Farsa. Língua, Fratura, Ficção: Brasil–Portugal e Kader Attia – Irreparáveis Reparos. Como experiência, e creio que isso é importante agora mais do que nunca, a exposição do artista franco-argelino me pareceu mais adequada ao tempo presente, apesar de ambas terem sido concebidas e desenhadas no mundo pré-pandêmico.
Esculturas de Kader Attia expostas na mostra Irreparáveis Reparos. Foto: Gui Gomes/ Divulgação
É muito atual uma exposição que fale sobre reparo, como a de Attia, a partir de sua poética em abordar os legados coloniais, especialmente suas repercussões na África, e as possíveis ressignificações de objetos e ações de violência. É o caso do vídeo Mimeses como resistência, onde pássaros reproduzem os sons de motosserras, as máquinas de destruição da natureza, uma ironia sobre como vítimas assumem o discurso do poder.
Os trabalhos de Attia, além do mais, costumam criar ambientes que fazem referência a uma situação pós-apocalíptica, o que em 2020, parece muito próxima com os alarmes cada vez mais intensos de catástrofe climática e a escalada da devastação na Amazônia. Esse cenário é uma referência explícita na instalação com máscaras e esculturas de madeira chamuscadas e queimadas, originalmente vendidas a turistas na África, e que fazem referência ao incêndio no Museu Nacional no Rio de Janeiro, em 2018. A potência da obra do artista está em ser uma síntese de diversos problemas expostos de um mundo à beira do abismo.
Parte do poder da mostra, com curadoria da alemã Carolin Köchling, está justamente em trazer as histórias de grupos vulneráveis, sejam povos colonizados por outros países, sejam coletivos de mulheres trans, sejam sobreviventes da 1ª Guerra Mundial, em um ano que todo o planeta se tornou vulnerável à catástrofe.
E é muito comovente ouvir, no vídeo Refletindo a memória (2016), sobre a necessidade de se viver o luto, a partir de depoimentos sobre a Síndrome do Membro Fantasma, quando pessoas que tiveram partes do seu corpo amputadas seguem sentindo esses membros. Quando o mundo já ultrapassou 1,5 milhão de mortos por conta da COVID-19, o trabalho de Attia se torna uma reflexão sobre a própria pandemia e mostra o terror como uma construção cotidiana na história humana. Mas há também esperança, como na escultura Caos + Reparo, um globo construído por pedaços de espelhos quebrados costurados por fios de metal, um pouco a sensação de quem atravessou 2020.
Vista da exposição “Farsa – Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal”. Foto: Ilana Bessler/ Divulgação
A mostra conta com poucos trabalhos espalhados por sete salas e uma arquitetura generosa, o que transmite um sentimento de segurança, por um lado, e a possibilidade de apreensão total, por outro. É especialmente sob essa ótica que Farsa se torna uma espécie de antítese do que poderia ser uma mostra nos dias atuais. Teria sido uma ótima mostra em “condições normais”, mas já que elas não existem, a questão é porque a curadoria, a cargo de Marta Mestre e Pollyana Quintella, não a repensou para o momento.
Há desde trabalhos interativos a muitos monitores que obrigam o uso de fones dispostos no espaço, mas sem condições de higiene adequadas. Para que se aventurar a pegar um objeto que outras pessoas podem ter tocado sem limpar?
O conceito da mostra gira em torno dos limites da linguagem e da comunicação, focando artistas que trabalham no Brasil e em Portugal, em dois tempos: nos anos 1960/70 e no século 21. Há um sentido nessa escolha, o primeiro é o momento da busca de expansão da arte para novos campos além do próprio circuito, atitude que perde espaço nas décadas seguintes, para retornar nos anos recentes. São períodos importantes de renovação, transformação e transgressão.
O problema é que a mostra ambiciosa chega a ter um caráter enciclopédico: mais de cem obras de 68 artistas, a dimensão de uma bienal. Isso tudo demanda um tempo e uma concentração um tanto difíceis no novo contexto, com limitação na visita, quando não dá para ver vídeos em pequenas salas, quando não se pode manipular obras.
Farsa é um exercício de linguagem muito bem elaborado, mas creio que o momento agora é de síntese, não de dispersão. Por isso, Irreparáveis Reparos ganha potência. Consegue expressar com contundência questões relevantes, que se já mereciam atenção antes de 2020, agora são urgentes.
Na página ao lado, Aqui é mais do que o Vírus, de Rosana Palazyan, uma série de pequenas máscaras nas quais a artista borda frases com os próprios fios de cabelo
“Aqui é mais do que o Vírus”, de Rosana Palazyan, uma série de pequenas máscaras nas quais a artista borda frases com os próprios fios de cabelo
Vivemos nos últimos tempos uma falsa impressão de normalidade, muitas vezes acompanhada de uma esperança de que tudo poderia retornar ao que era antes. No entanto, mesmo que fosse possível resgatar velhos hábitos, apenas acrescidos (e não por todos) do cumprimento de protocolos como uso de máscara e álcool em gel – o que parece bastante improvável com o crescimento exponencial dos índices de contágio –, há algo de amargo nessa ilusão de que se pode recuperar o tempo perdido. Em primeiro lugar, porque o período da quarentena não foi um parêntese, um momento em suspenso. Este isolamento, o mergulho íntimo num cotidiano que ora se revela idêntico ora parece ser de um outro mundo, revelou-se muito mais complexo e desafiador. Acabou também gerando uma tal profusão de camadas de interpretação, reflexão, engajamento ou negação que custaremos a digerir e que nos coloca diante de um mundo muito mais complexo, paradoxal e contraditório do que aquele anterior a março de 2020.
São muitas as perguntas sem resposta que se acumularam de lá para cá e muitos são os pontos de vista desses questionamentos, gerando uma enormidade de interpretações, desejos, reflexões capazes de alimentar uma forte – e muitas vezes angustiante – dúvida sobre os impasses do momento atual e o que assistiremos no futuro próximo. Ao longo dos últimos nove meses (não por acaso tempo equivalente ao de uma gestação), muito foi produzido e começa aos poucos a chegar às nossas mãos.
Um desses conjuntos, que traz uma ampla gama de análises desenvolvidas por pessoas das mais diferentes áreas do conhecimento, é No Tremor do Mundo, coletânea de ensaios e entrevistas publicadas recentemente pela editora Cobogó. São ao todo 25 autores que procuram destrinchar não apenas os efeitos da pandemia sobre o mundo, os indivíduos e a sociedade, mas também entender de que forma essa situação excepcional ajuda a iluminar, transformar ou acentuar a crise atual, seja ela política, econômica, ambiental ou humana. Os textos oscilam entre um otimismo quase redentor e um pessimismo ácido em relação aos desafios gigantescos a serem enfrentados para, nas palavras de Ailton Krenak (um dos vários entrevistados pelos organizadores da publicação, Luisa Duarte e Victor Gorgulho), “adiar o fim do mundo”.
Capa do livro. Foto: Divulgação
Nada mais terrível do que uma doença – até o momento incontrolável – que nos lembra que “o amanhã pode simplesmente não existir”, como alerta Sidarta Ribeiro. Ou, nas palavras de Guilherme Wisnik, um vírus que revela “um mundo dominado por sentimentos crescentes de paranoia e angústia”. A variedade de respostas ensaiadas pelos diferentes autores não esconde uma certeza em comum: que o momento atual funciona como uma espécie de alerta, revela a necessidade de uma mudança radical. “O Covid expôs a extensão e a profundidade da ruptura necessária”, sintetiza Heloisa Starling.
O enfrentamento pode se dar pela ação concreta, real, de movimentos como o das Marés ou do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), cujas estratégias de combate ganham visibilidade nas entrevistas feitas com Eliana Souza Silva, fundadora da ONG Redes da Maré, e com os coordenadores do MLB. Mas também se revelam a partir de reflexões filosóficas de amplo alcance, que na maioria das vezes retomam instrumentais que já vinham sendo elaborados pelos pensadores, como demonstra Pedro Duarte numa bela síntese sobre os principais lances dados pelos filósofos nesses tempos turvos.
No campo mais específico da cultura e da arte, uma questão parece ricochetear em praticamente todos os comentários, interpretações e questionamentos aventados: como pensar a questão da experiência da troca, do intercâmbio – porque não do contágio – da prática artística se o contato entre as pessoas foi limitado? A própria criação artística parece oferecer essa ponte, propor uma aproximação, poética ou reflexiva, afetiva ou simbólica, como podemos perceber em várias ações que vêm sendo compartilhadas ao longo desse período de “isolamento”. É o caso, por exemplo, do diário que a escritora Noemi Jaffe – uma das autoras convidadas de No Tremor do Mundo – se propôs a escrever como um “ato de elaboração em meio a um grande luto”.
Rosana Palazyan, cuja obra é marcada por uma delicadeza cortante e pela capacidade de combinar o universal e o particular (sua instalação Uma História que eu nunca Esqueci ajudou a Armênia a conquistar o Leão de Ouro de Melhor Pavilhão Nacional, na 56a Bienal de Veneza), também mergulhou nesse período de quarentena num rico processo de elaboração simbólica do drama coletivo vivenciado por todo o globo nesse 2020, e que em países como o Brasil – submetidos a governos de índole totalitária e negacionista e marcados por uma profunda desigualdade – é vivido de forma ainda mais intensa. Desde abril ela vem desenvolvendo a série Aqui é mais do que o Vírus, um conjunto de pequenas máscaras que cabem nas palmas das mãos e foram realizadas a partir do único retalho de que dispunha (desde o início da pandemia resolveu instalar-se na casa da mãe, ficando longe de seu ateliê). Sobre essas delicadas miniaturas, Rosana borda frases, palavras, desenhos das mais diferentes origens (apropriadas de conversas, pensamentos, reportagens…) utilizando como linha seus próprios fios de cabelo, material que utiliza desde um trabalho com meninos de rua desenvolvido em 1998. “São como as palavras e pensamentos que saem das bocas que passaram a ficar escondidas. Espaço para nossas falas, relacionando os acontecimentos diários que aqui precisamos resistir para vencer muito além de um vírus mortal, dentro de uma realidade desigual e injusta”, sintetiza.
Capa do livro. Foto: Divulgação
Alfredo Nicolaiewsky, artista e professor gaúcho, também sentiu-se estimulado pelo isolamento da pandemia e desenvolveu um interessante processo de criação e troca. Com a agenda mais livre, resolveu retomar seu trabalho com pintura, técnica que havia abandonado há 20 anos. Começou a pesquisar diariamente novas composições, usando como suporte caixas de papelão de descarte. Contrariamente ao usual silêncio do ateliê (normalmente os artistas preferem exibir suas obras quando já prontas ou encaminhadas), passou a enviar imagens desses trabalhos e conversar sobre eles com um grupo de amigos por Whatsapp, estimulando assim um diálogo e uma proximidade que mostra, na prática, como a cultura é algo coletivo. O resultado desse processo acabou sendo transformado em livro digital, cujo título Alfredo em Processo; Nicolaiewsky em quarentena ironiza esse duplo nível de relação, entre o autor público e o indivíduo que enfrenta as adversidades do cotidiano.
Outros vários livros, virtuais ou não, tem vindo à tona nos últimos tempos, com diferentes enfoques e abordagens, tornando mais rica essa reflexão. É possível citar, por exemplo, a antologia Histórias da Pandemia, organizada pela editora Alameda, que reúne dez contos de autores que trazem pontos de vista históricos, pessoais e narrativos distintos, porém complementares, em que se sucedem momentos de delicada comédia (Ciúmes, de Luiz Kignel), revisão histórica (As Mortes de Antônio Valle, de Marcelo Godoy) ou uma narrativa que mescla memórias de infância, o despertar da sexualidade homoerótica e a dureza das perdas pelo coronavirus numa sociedade que se recusa a enxergar o óbvio (Supernova, de Felipe Cruz).
Essa enorme oferta e a diversidade de caminhos adotados só mostra que, em meio à ansiedade pela retomada, é preciso parar para pensar, manter olhos e ouvidos abertos para murmúrios menos espetaculosos, mas talvez mais organizadamente conectados com a traumática experiência dos últimos meses, observar atentamente processos, reflexões, escritas, criações que nasceram desse período de quarentena, ameaça e isolamento.
Sem título (série “Bíblia”). Desenho do Duomo de Pisa sobreposto por gravura da escola moderna de Ukiyo-e e Jeová de Rafael Sanzio. Fotos: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari
No ano em que León Ferrari completaria 100 anos, escolho a série Bíblia, de 1989, como objeto de reflexão. Com essas obras ele conclui sua ponte para o inferno, iniciada em 1965 com a obra seminal La Civilización occidental y Cristiana, estopim do seu embate com a igreja católica. Mais de vinte anos depois Ferrari retomou o tema religioso com mais de cem colagens realizadas com variantes híbridas, misturando textos e imagens da escritura sagrada com obras de Michelangelo, Dürer, Goya, Da Vinci, Rafael, notícias de jornais e gravuras orientais, de elegância formal e erotismo à flor da pele. Bíblia é o balizamento da arte total de Ferrari e com ela desencadeia vários comentários verticais sobre a Escritura Sagrada, que vão de Deus a moradores da periferia fuzilados pelo esquadrão da morte na ditadura dos anos de 1970.
Dezenas dessas colagens estão reunidas no livro Bíblia, considerado um dos marcos de pensamento transgressor, com apresentação do poeta Regis Bonvicino. As imagens xerocadas, opacas, trabalhadas em branco e preto lembram o processo gráfico dos jornais sindicais ativistas. Max Ernst define colagem como “o encontro de duas realidades distantes em um plano estranho a ambas”. Usando apenas a imagem de um pênis, que representa a Divindade fálica oriental Go-Shintai, do século 17, e uma gravura de anjo com espada, retirado da Bíblia Shnorr, de 1860, Ferrari reitera o pensamento de Max Ernst e cria uma obra de poética iluminada pelo contrassenso. Ele não se constrange com a moral comum dos preceitos seguidos pela maioria. Utilizar os textos da Bíblia é parte de seu pensamento anárquico, com a intenção de libertar a iconografia presa em livros e lhes dar vida justapondo e superpondo-a em trabalhos próximos à fotomontagem. O oriente e o ocidente coexistem no provérbio visual de Ferrari, um inventário encadeado por uma narrativa de textos e imagens que anunciam contrariedades. Ao confrontar diferenças de sexualidade em outras culturas ele chega a um trabalho desafiador. Apropria-se do desenho do Duomo de Pisa e o contrapõe à gravura Ukiyo-e, de 1910, e a Jeová, de Rafael Sanzio, século XVI, precedida do comentário bíblico: “Se a filha de um sacerdote for apanhada em estupro e desonrar o nome do pai, será entregue às chamas (Levítio21,9)”. A contra leitura que se instala em torno das obras dessa série se compõe de camadas de interpretações.
Sem título (série “Bíblia”), xilogravura de Hishikawa Moronobu sobreposta à “Última Ceia”, de Dürer.
Com o desaparecimento de seu filho pela ditadura militar, em 1976, Ferrari deixa a Argentina e se fixa em São Paulo. Presença/ausência é o espectro que o acompanha no exílio e o atormenta até o fim de sua vida. Ferrari opera no vazio que existe entre a arte e a vida, desarruma o sistema, escancara a lógica da dominação com personagens coletivos que contestam, interrompem e colocam em xeque a história.
As indagações constantes sobre as Escrituras não se refletem apenas na arte, mas contaminam toda sua forma de viver. Em uma carta à sua irmã Suzana escrita em 1984 ele comenta: tirar do inferno o “pecado” ou, melhor, converter o inferno em um jardim cheio de flores, como o é em realidade, pode ser um bom caminho para limpar ou começar a limpar nossas cabeças dos versículos da Bíblia e seus congêneres.
Ferrari desobedece e rejeita todo projeto genocida do poder. Na década de 1980, vi alguns rascunhos dessa série em seu ateliê paulistano e me chamou a atenção que os personagens bíblicos flutuavam no alto das lâminas/folhas. Deus, santos, anjos pareciam denunciar o céu religioso como um lugar de vigilância da ordem, que se remete a Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir.
À dir., Divindade fálica oriental Go-Shintai com anjo com espada, retirado da Bíblia Shnorr. Foto: Cortesia Fundación Augusto y Leon Ferrari
Em 2004 ele sofre uma nova investida da igreja e do sistema quando sua exposição Infernos e idolatrias, no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, é invadida por fanáticos católicos que incendiaram algumas obras. Na ocasião, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa Francisco, entrou em confronto com ele chamando-o de “blasfemo”. Ferrari nunca negociou sua liberdade de expressão com nenhum poder estabelecido, seja da Igreja ou do Estado. Ao contrário, deu continuidade e alargou seu repertório de concepção catártica, ao desenvolver novos processos simbólicos contra os arbítrios.
Ferrari incomodou e muito pela forma livre com que sempre trabalhou, na contramão do circuito de arte, que costuma se alinhar ao sistema. Em 1989, depois de ser convidado a participar da coletiva Art in Latin América, na galeria Hayward de Londres pela curadora Dawn Ades, sua obra foi censurada e cortada da coletiva. Em 2013, como uma resposta a todas as censuras que sofreu ao longo dos anos, ele faz um pronunciamento definitivo: “A liberdade de consciência, o direito de crer em qualquer deus, ou em nenhum, implica também, para alguns, o direito de cada um estudar, defender, criticar, fazer arte, humor, cinema, teatro, literatura, com qualquer das crenças”.
"Wind", de Joan Jonas, 1968, no Pavilhão da Bienal. Foto: Cortesia Bienal de São Paulo
Adentrar o Pavilhão Ciccillo Matarazzo para visitar Vento, na primeira saída de casa desde meados de março, provocou dois estranhamentos: um, de voltar, em pessoa, ao circuito das artes; outro, de procurar – em um costume programático – uma imensidão de obras e ser recebido por peças selecionadas, dispostas entre os silêncios arquitetônicos do pavilhão, a casa da Bienal de São Paulo desde 1957. Ora, Vento conta com apenas 21 artistas da 34ª edição, em uma exposição que não estava prevista.
No ano infernal, a organização do evento teve que dançar a dança de 2020 e fazer alterações no que fora inicialmente imaginado. Mesmo assim, a 34ª Bienal já havia sido concebida como uma espécie de ensaio aberto, uma exposição em processo; dessa forma, Vento não é um corpo alienígena dentro do conceito de uma mostra constantemente em construção, que “reflete sobre si mesma publicamente”. Aliás, após o curto período de estranhamento com os vazios, o esquema da exposição se revela orgânico e despista a suspeita do provisório.
Em Vento é proposta a ocupação do edifício sem o uso de nenhuma divisória construída, sem a inserção de espaços intermediários, mas em contato direto com a amplitude, monumentalidade e transparência do Pavilhão. As obras – quase dois terços delas sendo instalações sonoras e vídeos – “criam âncoras no espaço que nos convidam a ressignificar a ideia de espera, distância, vazio e perda, que está ao nosso redor. Elas crescem neste espaço criando caminhadas de reflexão, caminhadas de digestão das provocações trazidas pelos artistas”, como afirma o curador adjunto da Bienal, Paulo Miyada.
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Série "Dilatáveis", de Regina Silbeira. Foto: Cortesia Bienal de São Paulo
Obra em vídeo de Deana Lawson na mostra "Vento. Foto: Cortesia Bienal de São Paulo.
Nessa superfície indivisível, os sons acompanham o visitante pelas obras desmaterializadas, anunciam a chegada de algumas delas e, às vezes, também brigam entre si, se sobrepõem e disputam a concentração do visitante. São eles que ajudam a combater a melancolia das vacâncias e do distanciamento social necessário. Em um momento em que a segunda onda de Covid-19 era negada pela prefeitura e o status da crise, do dia para a noite, tinha sua gravidade alterada, de amarelo para verde e vice-versa, foi tranquilizante perceber que a Bienal havia respeitado as recomendações sanitárias; afinal o medo do invisível não vai embora tão cedo, mesmo inserto na contemplação das obras apresentadas em Vento.
O título da mostra vem do filme Wind, de Joan Jonas, que tenta fazer desse invisível, visível. Nele, a artista estadunidense registrou os esforços de um grupo de dançarinos para executar uma coreografia na praia de Long Island, em Nova York, em um dos dias mais frios de 1968. Ao mesmo tempo que executam seus movimentos, eles também resistem ao vento forte que se impõe contra seus corpos. Assim, o filme de Jonas mostra o invisível pelo contraste, colocando algo no vazio para revelá-lo.
Still de “Wind” (1968), de Joan Jonas. Cortesia da Bienal de São Paulo
“O vento carrega o eco, que é ao mesmo tempo a lembrança do que foi dito e sua reverberação futuro adentro. Vento, analogamente, funciona como o índice desta edição da bienal, no sentido de que aponta alguns dos temas que voltarão expandidos na exposição de setembro do ano que vem, e ao mesmo tempo se refere ao que já aconteceu”, escreveu Jacopo Crivelli Visconti, curador geral da edição, em uma das correspondências publicadas no site da 34ª Bienal.
A exemplo das palavras de Visconti, a obra Insurgencias botánicas, de Ximena Garrido-Lecca, que está em Vento, foi mostrada pela primeira vez na abertura da 34ª Bienal, em fevereiro, inaugurada com uma performance do sul-africano Neo Muyanga. Nela, a elaboração de um sistema de cultivo hidropônico que permite que as plantas cresçam ao longo do ano oferece ao público a oportunidade de acompanhar os diferentes momentos da transformação da instalação e confere longevidade ao trabalho.
“Insurgências Botánicas” (2017-2020), de Ximena Garrido-Lecca. Foto: Cortesia Bienal de São Paulo.
O trabalho de Garrido-Lecca é feito com sementes de feijão que eram utilizadas pela civilização pré-incaica moche em seu sistema de comunicação escrita (algo registrado nas cerâmicas deste povo). Essa mesma civilização desenvolveu entre os anos 100 e 850 um avançado sistema de irrigação ao qual a obra também se relaciona. O desenvolvimento ininterrupto da obra enfatiza o esforço curatorial da bienal de ser concebida como um processo: “A luz de novembro não é a mesma de fevereiro; agora cantos tikmũ’ũn ressoam ao redor das plantas, que cresceram, murcharam e voltaram a crescer”, afirma a organização.
A repetição e a recombinação não são por acaso. Ambas foram incorporadas desde os primeiros estágios do evento como uma estratégia conceitual para demonstrar que osignificado de uma obra se transforma, se multiplica, conforme são alterados os contextos sensíveis e sociais. Isso fica latente tendo em vista da revisitação à série Dilatáveis, de Regina Silveira, produzida durante a ditadura civil-militar brasileira, e à gravação de Palabras Ajenas, de León Ferrari, que se comunica, agora, com a manipulação de informações na era da internet das coisas.
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Still do trabalho em vídeo de Deana Lawson, presente na mostra "Vento". Cortesia Bienal de São Paulo
Still do trabalho em vídeo de Deana Lawson, presente na mostra "Vento". Cortesia da Bienal de São Paulo
Já a obra de Deana Lawson apresentada em Vento fará o percurso oposto, seguindo esse esquema de reincidências. Apresentada pela primeira vez agora, ela retornará para a mostra da artista no evento principal da bienal, programado para 2021. Neste trabalho em vídeo, a artista evidencia âmbitos distintos da cultura negra ao intercalar e sobrepor imagens de rituais religiosos no continente africano e registros de grandes eventos esportivos e musicais nos Estados Unidos. Como em suas fotografias, a observação da artista tem, ao mesmo tempo, o olhar de um insider e de um voyeur. Da mesma forma, ela também caminha entre o registro documental e uma perspectiva mística ou onírica, na qual o tempo pode até mesmo retroceder.
De modo geral, os trabalhos dentro da curadoria de Vento reforçam uma resistência não opcional refletida no título da 34ª Bienal: Faz escuro mas eu canto. Além da pandemia, para os brasileiros 2020 contou com incêndios criminosos no Pantanal, um apagão de 22 dias no Amapá e os desastres políticos intensificados pela caminhada das guerras culturais. Perto desse escuro, as adaptações da bienal não parecem trágicas. Como diria Joan Didion, “em um mundo perfeito, podemos ter escolhas perfeitas; no mundo real, temos escolhas reais, e as tomamos, e medimos as perdas contra o que poderiam ter sido os ganhos”.
Sem título (série Nunca Mais), 1995. Videla, Masseray Agosti com Monsenhor Tortolo, Vigário das Forças Armadas (Foto: A. Kacero) e Julgamento Final de Giotto, Capella degli Scrovegni, Pádua 1306. Ilustração da edição dos fascículos do livro Nunca Mais da CONADEP. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari
“Inquieto, navegou em todas as águas e experimentou técnicas e suportes diversos como a xerox, o videotexto, a arte postal, microfichas, livros de artista, heliografia, uso da letra-set e instalações sonoras”, escreveu a crítica Leonor Amarante sobre o emblemático artista León Ferrari (1920-2013), cujo centenário foi celebrado no dia 3 de setembro.
Sem título (série Nunca Mais), 1995. Videla, Masseray Agosti com Monsenhor Tortolo, Vigário das Forças Armadas (Foto: A. Kacero) e Julgamento Final de Giotto, Capella degli Scrovegni, Pádua 1306. Ilustração da edição dos fascículos do livro Nunca Mais da CONADEP. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari
A propósito da data, a exposição retrospectiva La Bondadosa Crueldad percorrerá dois anos pela Europa. Sua inauguração acontece neste 15 de dezembro de 2020 no Museu Reina Sofía, em Madrid (Espanha) – onde sete salas serão dedicadas à obra de Ferrari -, com sequência no Museu Van Abbe, em Eindhoven (Holanda), onde permanece de 8 de maio a 26 de setembro do próximo ano. O percurso da mostra, na Europa, termina em agosto de 2022, no Centro Georges Pompidou, em Paris (França).
Nesta itinerância, circulam trabalhos que “desmontam as sequências naturalizadas de violência propagadas pela guerra, religião e outros sistemas de poder” e que “convidam quem os olha a parar, refletir e se posicionar”, segundo a Fundación Augusto y León Ferrari-Arte y Acervo. Entre eles, um dos que geram maior inquietação e anseio é La Civilización Occidental y Cristiana, que crucifica uma imagem de Jesus Cristo, comprada no varejo, no topo da recriação de um jato estadunidense de combate.
Hongo nuclear, 2007, León Ferrari. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari
A peça foi criada sob comissão pela premiação argentina do Instituto Di Tella, em meados da década de 1960. Na ocasião, Ferrari produziu uma série de obras que denunciavam a Guerra do Vietnã. Entre elas, vários objetos que ofereciam representações de bombardeios a aldeias vietnamitas, figurando La Civilización Occidental y Cristiana como seu alferes mais visível. A peça central, ou sua reputação, efervesceu o debate público, provocando as já esperadas reações enfáticas que a fizeram ser recolhida antes mesmo da sua exibição oficial.
Em resposta a um artigo assinado pelo crítico Ernesto Ramallo sobre o episódio, o artista escreveu: “Ignoro o valor formal das peças. A única coisa que peço à arte é que me ajude a dizer o que penso da forma mais clara possível, a inventar signos plásticos e críticos que me permitam condenar com a maior eficiência a barbárie do Ocidente; é possível que alguém me mostre que isso não é arte (…) Eu não mudaria meu caminho, me limitaria a mudar seu nome ”.
No final, Ferrari concordou com a retirada para que seus outros trabalhos pudessem permanecer à vista. O momento de seu feitio se encaixa cronologicamente em um período de radicalização do pop art na Argentina; o que é notado pelo amigo de Ferrari, o poeta Rafael Alberti, em uma correspondência ácida e espirituosa enviada de Roma: “Meu caro Leon: eu realmente gosto de seus projetos de pop art anti [Lyndon] Johnson. Avise-me quando o levarem a Martín García para iniciar uma grande campanha internacional por sua libertação”.
A troca entre o poeta e o artista se deu nos meses que antecederam o primeiro de dois regimes militares opressores que assumiram o país – o último resultando, no final dos anos 1970, no refúgio de Ferrari no Brasil e no desaparecimento de seu filho, Ariel. Antes disso, Ferrari sistematizou sua colaboração com Alberti na publicação Escrito en el aire, de 1964, em que cada desenho abstrato de León dialoga com um poema de Rafael, todos dispostos de várias formas no espaço da página, que gera uma continuidade visual entre texto e imagem. “Essa continuidade não é apenas formal, mas temática: os poemas aludem à musicalidade e ao silêncio, sinais, riscados, emaranhados; qualidades que ressoam na abstração de Ferrari”, nota sua fundação sobre a parceria dos dois.
Sem título (série Nunca Mais), 1995. Dilúvio de Doré, 1860 e Junta Militar (Foto: Secretaria de Informação Pública). Ilustração da edição de fascículos do livro Nunca Mais da CONADEP. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari
Hoje, La Civilización Occidental y Cristiana é resguardada pelo Museo Nacional de Bellas Artes, na Argentina, tendo partido de lá apenas para a primeira parada na itinerância de La Bondadosa Crueldad. A obra, no entanto, retorna para o museu ao fim da exposição, representando de forma prática e simbólica o último segmento da retrospectiva, na terra natal do artista. No site do Bellas Artes também pode ser conferido, na íntegra, o filme Civilización, premiado no Festival de Cinema Independente de Buenos Aires em 2012, um ano antes do falecimento de Ferrari. Dirigido por Rubén Guzmán, o documentário registra entrevistas exclusivas e mostra o feitio de uma obra original especialmente para o filme.
Além de obras já emblemáticas, como a citada acima, La Bondadosa Crueldad agrega ainda um número significativo de documentos inéditos disponibilizados pela Fundación Augusto y León Ferrari para apresentar outros pontos de vista sobre sua produção e as várias ações que desenvolveu ao longo da vida. Tal proposta feita pela fundação, de fornecer uma visão alargada acerca da vida de León, foi transportada para suas redes sociais durante o mês de setembro, contando com ciclos de publicações, registros e histórias enviados por amigos e familiares que compartilharam suas experiências com León e seu trabalho.
La Civilización Occidental y Cristiana, 1965, León Ferrari. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari
Embora a mostra comemorativa não venha para o Brasil, o centenário do artista foi celebrado pela 34ª Bienal de São Paulo, com uma montagem da obra Palabras Ajenas, a primeira colagem literária de Ferrari, que compartilha da temática anti-guerra e foi elaborada no apogeu da invasão estadunidense ao Vietnã, entre 1965 e 1967. Sua criação parte da seleção e remontagem de citações textuais de fontes diversas, incluindo agências de notícias, livros de história, a Bíblia – e Deus, como retratado nela – e discursos de figuras políticas e religiosas como o presidente Lyndon B. Johnson, Robert McNamara, o Papa Paulo VI e Adolph Hitler. A partir desse coro reunido por Ferrari, ele pretende expor a relação discursiva belicosa das atrocidades da invasão ao Vietnã e do nazismo com as narrativas de redenção e punição contidas nos textos sagrados, refletindo, em uma camada mais profunda, sobre a violência exercida pelo Ocidente camuflada pela cumplicidade entre o poder político e religioso.
Palabras Ajenas chegou a ser performada parcialmente em público duas vezes (em 1968, no Arts Lab, Londres, e, em 1972, no Teatro Larrañaga, Buenos Aires), e apenas recentemente passou a ser apresentada em sua versão integral (desde sua leitura em inglês em 2017, no REDCAT, Los Angeles, somente uma performance completa foi realizada no Museo Jumex, na Cidade do México, em 2018), tendo em vista que seu texto original se espalha por 250 páginas e requer, em média, um elenco de 30 leitores. Na Bienal de São Paulo, seria realizada a primeira leitura integral de Palabras Ajenas no Brasil; com as restrições sanitárias impostas pela pandemia, no entanto, a organização teve que adaptar o formato de exposição da obra, optando pela exibição de um trecho, apenas, gravado na ocasião da leitura da colagem literária no REDCAT. Dois documentos, dispostos ao lado do monitor que exibe o vídeo, dão um vislumbre do intrincado processo de transposição da colagem para a leitura, são instruções para os performistas e uma impressão do roteiro técnico, “Ato I: Quem ganha ganha”.
Pintura sem título de Heitor dos Prazeres, 1962. Foto: Sérgio Guerini/Cortesia Almeida e Dale Galeria de Arte
Num Brasil profundamente comprometido com seu passado escravagista e, portanto, com o racismo estrutural e as práticas que ele entroniza, do que falamos quando falamos de arte afro-brasileira? Dos circuitos formais de arte que exibiram em suas galerias coleções que confirmavam a opção de certa elite pela perenização das desigualdades de raça e gênero que são a marca indelével da nossa sociedade. Falamos, quem sabe, da necessidade de construção de um novo desenho de história, inclusive de arte, que na sua constituição se alicerce no antirracismo e imponha um debate sobre a branquitude e a responsabilidade de brancas e brancos no processo histórico que alijou pretos e pretas do circuito de arte (e de outros) onde eles são sistematicamente subalternizados e sub-representados. Em nosso país, o avanço civilizatório que vai significar a admissão da produção artística e intelectual de grupos excluídos não pode dispensar a solidariedade, a alteridade e a empatia dos não negros comprometidos, não apenas retoricamente, com o aprofundamento da nossa democracia.
Sem título, Arjan Martins, 2018. Foto: Cortesia FAMA e artista
Apesar do déficit democrático expresso em várias dimensões da nossa sociedade, os grupos oprimidos recusam e resistem historicamente ao genocídio e ao epistemicídio que lhes é imposto, e mesmo vivendo em territórios vulnerabilizados pela ausência do Estado vão viabilizando e tornando visíveis as suas produções simbólicas. Aquelas frações das academias e dos museus comprimidos e sensíveis às demandas sociais do nosso momento procuram assimilar as realizações antes preteridas pelos preconceitos que modulam os discursos hegemônicos. Desse modo, é possível divisar paulatinamente a complexidade da realização artística de pretos e pretas de agora e antes e constatar que sim, há uma história de arte que remonta há séculos e que foi obliterada, tornada invisível, já que admiti-la exigiria reconhecer a humanidade dos escravizados e dos seus descendentes e também dos crimes que contra eles foram e continuam sendo cometidos.
Se a história, a memória, a arte e a ciência dos excluídos, dos divergentes e periféricos, são convocadas a depor sobre o momento de agora, isso denuncia a emergência via insurgência dos atores que exigem protagonismo, mas também aponta a exaustão de um modelo político e econômico que nos seus estertores ameaça a vida no planeta.
As periferias, numa concepção policêntrica e multicultural do mundo, constituem-se em novos centros irradiantes de tudo que as instituições que avalizam a arte só muito lentamente percebem como potência. Mas essa mesma população historicamente abandonada é o vetor da competência e da habilidade que foram capazes de legar ao país as festas que tornaram possível a manutenção das subjetividades dos que as produziram.
Pintura sem título de Heitor dos Prazeres, 1962. Foto: Sérgio Guerini/Cortesia Almeida e Dale Galeria de Arte
Historicamente a festa tem cumprido um papel central na estruturação das comunidades periféricas e na subjetividade dos sujeitos que pertencem a elas. A festa foi uma conquista dos escravizados e o carnaval é um legado extraordinário deles. Não é sem propósito que ela, a festa, seja frequentemente demonizada pela elite branca e econômica – as festas populares elaboradas aqui e ali na obra desses artistas e que deveriam ser incorporadas aos currículos e programações que se pretendam decoloniais. A festa é uma estratégia de sobrevivência dos asfixiados, se exerce nas frestas de uma sociedade opressiva e têm múltiplas dimensões, inclusive religiosa. Ela esta sugerida na obra de um Heitor dos Prazeres (1898-1966), espécie de polímata que certa narrativa em vias de se tornar obsoleta reduziu a “pintor primitivo”, espécie de patriarca daquele mesmo partido que convencionamos chamar “popular” e que hoje acolhe artistas negros e negras como o pintor paulista André Ricardo, a gravadora baiana Eneida Sanches, a multiartista paranaense Lídia Lisboa e o poderoso xilogravador piauiense Santidio Pereira – artistas que embaralham e tornam bastante mais complexa esta categoria. Na realidade, essas e outras produções contestam as dicotomias que contrapõem o erudito ao popular, o centro à periferia e, em alguns casos, até noções de gênero fossilizadas.
Através de suas ações e de rituais cotidianos, a pintora paulista Heloisa Hariadne parece pretender um resgate dos usos e sentidos originais dos alimentos e de seu consumo. Os vegetais que a artista consome são assunto central de suas ações e de sua pintura de extração fauve, algo matissiana e africana. Nas composições diretas de acento pop, corpos negros trabalhados com massa de tinta extraídas de bastões de óleo são contrapostos a essa botânica feérica que ela cultiva, oferece em ritual e consome.
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"Espiral dos afetos que circulam enquanto deixa-se ser vestido e visto por dentro traumas que carregamos", de Heloisa Hariadne. Fotos: Cortesia artista
Xilogravura de Santídio Pereira. Foto: João Liberato/Cortesia Galeria Estação
No caso das famílias brancas, as genealogias de arte e as suas famílias artísticas se estabelecem de modo mais ou menos pacifico; já as famílias artísticas negras perdem seus registros, são impedidas de retê-los e são convocadas em nome de toda a comunidade a inventar suas histórias a cada obra e exposição realizada. Moisés Patrício batizou como Álbum de família a série de retratos realizados em plena pandemia que apresenta os membros de sua família espiritual, isto é, os membros da casa de candomblé frequentada pelo artista. Existe um apelo, aliás, legítimo, que realça no discurso sobre a arte afro-brasileira os aspectos sobre a religiosidade dos seus autores, já que essa religiosidade é pauta frequente e em muitos casos central das suas biografias. Vide os baianos Deoscóredes Maximiliano dos Santos (1917-2013), o mestre Didi, escultor seminal, escritor e sacerdote e o também escultor, pintor, gravador, professor Rubem Valentim (1922-1991) – e o notável artista e professor baiano de Macaúbas, Ayrson Heráclito. No entanto, deve-se admitir que a ascensão desses e de outros artistas foi construída no campo da arte e através do conhecimento adquirido por eles no exercício desse ofício. O que é intrínseco a arte deve interessar tanto quanto o que é externa a ela.
Frame de Sacudimentos, vídeo-instalação de Ayrson Heráclito | Fotos: Reprodução/Videobrasil Online
Essa recorrência à realização de retratos explícita na série de Patrício e tão marcante nas obras de artistas como Sidney Amaral (1970-2017), o performático e acidamente irônico Peter de Brito, o pintor No Martins, todos de São Paulo, e o carioca Arjan Martins, participa da construção de identidades que expressam suas individualidades, mas que também contribuem para a construção de uma autoestima coletiva, pois eles refutam a ideia de coisificação do corpo negro e organizam suas memórias. Além disso, esses retratos mitigam um déficit nas galerias reservadas à exibição desse gênero de pinturas. Pode ser que exista uma ideia qualquer que sugira a ausência de tradições artísticas negras brasileiras, o que não é de modo algum verdadeiro, e isto explicaria a falta de reconhecimento das autorias que fundamentam a construção de uma história de arte e justificaria o espanto de alguns diante do que chamam “moda”, “voga” ou “onda” de arte afro-brasileira. Não é por outro motivo que leva artistas afro-brasileiros como Aline Motta, Heráclito, Janaina Barros, Juliana dos Santos, Rosana Paulino, Marcelo D´Salete e Wagner Viana a serem também profundamente comprometidos com pesquisas nos campos da história e da antropologia.
Então, do que falamos quando falamos de arte afro-brasileira? Discorremos sobre eventos que estão aquém e além das obras que os artistas realizam e que, no entanto, estão contidos nelas. Discorremos sobre aquilo que é interno às obras e sobre aquilo que lhes é externo, do que é intrínseco e do que é extrínseco numa abordagem cujas referências serão também possivelmente iluminadas pela sociologia. Essas referências estão sendo prospectadas e coligidas dentro das academias e fora delas, por instituições de cultura formais e não formais, através da admissão da oralidade e dos conhecimentos construídos em organizações sociais as mais variadas. Elas são necessárias para que nos aproximemos com mais propriedade de produções que nos desafiam a escapar de um cânone exausto.
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Sem título (série "Álbum de Família"), de Moisés Patrício, 2020. Foto: João Liberato/Cortesia Galeria Estação
Sem título, Arjan Martins, 2019. Foto: Cortesia A Gentil Carioca e artista
O pintor, desenhista, escultor e performer Luiz 83, que nasceu e reside na capital do Estado de São Paulo, teve, como vários artistas negros, como No Martins, sua origem nas ruas, praticando a pichação e o grafite. Parece ser daí que tanto o pintor quanto o escultor extraem a noção do espaço que orienta suas composições bi ou tridimensionais de caráter abstrato e concreto. Se as soluções formais de Luiz 83 remetem ao concretismo, essa associação deve ser mediada pela ideia de que há mais de uma matriz do concretismo a ser consagrada, para além daquela que usualmente é mencionada. E essa ideia solicita de nós um deslocamento que a descolonização do olhar obriga – seria possível mencionar referências desse concretismo nas obras de Almandrade, Almir Mavignier (1925-2018), Rubem Valentim e Emanoel Araujo. São matrizes diversas daquelas prospectadas naquele território que conhecíamos como o “centro”, mas mesmo elas não explicariam o projeto desenvolvido por artistas com Luiz 83, pois, nas suas biografias o contato com o saber livresco e acadêmico, não sendo desprezível, é de menor monta.
O sociólogo e jornalista Clovis Moura (1925-2003) em seu Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas, de 1959, comprova que a luta pela emancipação do escravizado teve em negras e negros os seus protagonistas e essa luta é muito anterior a Lei que entre nós aboliu a escravidão. Segundo Moura, foram muitas as estratégias empregadas por homens e mulheres negros desde sempre inconformados com a sua escravização, que no limite apelavam ao suicídio, à interrupção da própria vida pela autoimolação que punha fim ao suplicio; é lícito e justo imaginar que outras estratégias, incluso a já mencionada festa, implicavam na manutenção das subjetividades pelo reforço do poder de Eros, ou de Exu, invocados a contaminar o cotidiano com o erotismo que faculta a vida contra as pulsões de morte orquestrada por Thanatos, o deus grego da morte que saúda e orienta as necropoliticas de ontem e de hoje.
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Sem título (série "Composição"),
de Luiz 83, 2017/2018. Foto: Cortesia artista
Sem título, Luiz 83, 2014. Foto: Cortesia artista
*Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.