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Silvio Frota, diretor do Museu da Fotografia Fortaleza, diz que educação é o grande foco da instituição

Fachada do Museu da Fotografia, em Fortaleza. Foto: Celso Oliveira
O diretor do Museu da Fotografia Fortaleza, Silvio Frota. Foto: Celso Oliveira

Com um acervo de cerca de 3 mil obras, que inclui grandes nomes da fotografia mundial como Man Ray, Otto Stupakoff, Marc Ferrez, Miguel Rio Branco, Robert Capa, Maureen Bisilliat, Claudia Andujar, Henri Cartier-Bresson, Jean Manzon, Pierre Verger, Nobuyoshi Araki, Margaret Bourke-White e Cindy Sherman, entre muitos outros, o Museu da Fotografia Fortaleza (MFF) já surgiu, em 2017, como o maior museu do país exclusivamente dedicado à fotografia. Sede da coleção Paula e Silvio Frota, localizado em um imponente edifício contemporâneo na cidade cearense, o local se tornou ponto de visitação da cidade, atraindo turistas do Brasil e do mundo.

O grande orgulho de seu criador e diretor, o empresário e colecionador Silvio Frota, no entanto, é o trabalho educativo feito pela instituição cearense. “O museu é quase só uma ancora, porque o nosso foco principal é a parte educacional.” De fato, impressiona a amplitude e dedicação de uma instituição que, mesmo sem financiamento público, leva diariamente à sua sede cerca de 200 crianças de escolas públicas, faz trabalhos em comunidades carentes, promove oficinas diárias, realiza trabalhos educativos em diversos hospitais, asilos e unidades correcionais (o equivalente às prisões para menores) e promove sessões de cinema semanais. Tudo é oferecido gratuitamente, inclusive o transporte que leva e traz as crianças.

“Nós decidimos ir até as comunidades para trazer as pessoas mais carentes. Porque se for esperar o poder público fazer isso, infelizmente não faz, e nós já tentamos várias parcerias”, diz Frota. “Pois a Cultura sempre foi o patinho feio, porque não dá voto”, constata. O museu, que fechou as portas em março por conta da pandemia, havia acabado de reformular a mostra permanente, agora com curadoria de Diógenes Moura (a primeira montagem era de Ivo Mesquita), e reabriu no último mês com mostra temporária de Bob Wolfenson.

Frota lamenta a pausa no trabalho educativo, citando as mais de 60 mil crianças que deveriam ter sido atendidas em 2020. Mas afirma que o fechamento era necessário para não colocar em risco público e funcionários – são mais de 50, ao todo, sendo 21 educadores. Em entrevista à arte!brasileiros, o diretor lamenta a falta de investimento no museu, especialmente público, mas também privado, assim como a falta de um olhar para a cultura no país. Empresário bem-sucedido na área da construção civil, ele arca sozinho com cerca de dois terços do orçamento do MFF. Fala também da desigualdade regional entre o Nordeste e as regiões ao sul do Brasil, ressaltando que empresas e bancos que lucram em estados como o Ceará investem em cultura apenas nessas regiões ao sul. Leia abaixo a íntegra da conversa. 

ARTE! – O Museu da Fotografia de Fortaleza abriu as portas no início de 2017 e é um espaço bastante singular no cenário nacional. Para começar, gostaria que você contasse um pouco como surgiu esse projeto, qual o processo que culminou na construção do museu.

Eu sou colecionador de pintura há muito tempo, desde os anos 1980. E nunca tinha olhado para a fotografia. Há cerca de 11 anos eu estava em Houston e fui ver uma exposição do Steve McCurry, na qual gostei especialmente de duas fotos. Uma era a da garota afegã. Quando voltei para o hotel eu comecei a pensar porque é que eu nunca tinha me interessado por fotografia, sendo que eu inclusive tenho um filho fotógrafo. Pouco tempo depois fui para Nova York, e aí já comecei a olhar com mais atenção, ir a museus para ver fotografia, e comecei a frequentar leilões especializados. Então eu passei a comprar em uma velocidade muito grande, e quando a coleção atingiu um tamanho substancial, achei que não era justo ter um acervo como esse e as pessoas não terem acesso. E aí nós começamos a pensar em um espaço. Não ainda em um museu. Só que quando você começa a pensar, o sonho vai aumentando, e acabamos fazendo um museu. O MFF tem 2.500 m2 de área, em cindo pisos: três de exposições, um de auditório e recepção e o subsolo para a parte administrativa.     

Fachada do Museu da Fotografia, em Fortaleza. Foto: Celso Oliveira

ARTE! – Queria que você falasse um pouco então desse acervo do museu, que tem obras importantíssimas de fotógrafos nacionais e estrangeiros. Existe um foco principal, pensando em recortes temáticos ou de época, ou tudo pode entrar nessa coleção?

Eu comecei comprando sem me preocupar, adquirindo o que eu gostava. Quando a gente começou a pensar na questão do museu, aí eu comecei a visitar os grandes museus no mundo para ver como era a parte de fotografia desses museus. Fui ao Moma, ao Met, na Tate, entre outros. E vi que tinha uma coisa que me incomodava: se não fossem fotos icônicas, as pessoas passavam muito rápido. E comecei a pensar qual era a maneira que eu tinha de prender essas pessoas no museu. Uma das maneiras que eu vejo é através do fotojornalismo. Então passei a comprar fotos deste tipo. E elas, ao menos no início, costumavam introduzir a exposição, porque quando as pessoas veem a realidade, a sua realidade, a sua história, elas se atentam mais. E depois, quando chegam em outras obras, fotos mais de arte, percebem que toda foto tem uma história por trás. De qualquer modo, o que eu estava dizendo é que hoje quando eu compro, faço pensando mais no meu público, não apenas no meu gosto pessoal. Então como gestor, não apenas colecionador, você vai aprimorando o seu olhar, e entendendo como vai lidar com o público.       

ARTE! – Existe uma separação entre o que é seu acervo particular e o que está no acervo do museu? Como é essa essa relação?

Nós não somos uma fundação, somos um instituto. É o Instituto Paulo e Silvio Frota, que é um instituto que faz também outros projetos nessa área de difusão da cultura e da arte, de ajuda às pessoas. A coleção inteira está em comodato ao museu. Pertence à pessoa física, mas está em comodato.

ARTE! – E vocês têm sempre uma mostra permanente e as mostras temporárias…

Temos três andares de exposição, dois para a mostra permanente e um de mostras temporárias, que mudamos a cada três meses com novas exposições, tanto de fotógrafos nacionais quanto estrangeiros. Temos também palestras semanalmente, oficinas diariamente, sessões de cinema de arte.

ARTE! – Como são pensadas essas mostras? São fruto de trabalho curatorial do próprio museu ou são trazidas de outras instituições?

Sempre trazemos um curador de fora. Por exemplo, em março, pela primeira vez nós mudamos a exposição da coleção permanente, que estava desde 2017, com curadoria feita pelo Ivo Mesquita. E agora eu convidei o Diógenes Moura, que fez um novo recorte, o olhar dele na coleção permanente. Foi uma pena porque uma semana depois da abertura tivemos que fechar o museu, por causa da pandemia. Então em geral nós convidamos curadores do Brasil e do exterior para fazer curadorias.    

Área expositiva da instituição. Foto: Mariana Parente

ARTE! – E um grande destaque da instituição é o seu trabalho educativo, que é realmente muito forte e feito para além das portas do museu. Você poderia contar um pouco sobre os projetos?

No primeiro dia em que abrimos já começamos a trabalhar na parte educacional. O que é uma coisa rara, porque em geral se espera alguma maturação do museu, até porque o educativo é uma coisa muito cara. Mas não queríamos que o museu fosse estático, como muitos são. Então nós vamos de encontro a comunidade. Hoje – quer dizer, antes da pandemia -, nós trazemos de 200 a 250 crianças por dia. Nós é que pagamos o ônibus – não o município ou o estado, como deveria -, e a entrada é gratuita. Sempre crianças de escolas carentes. Mas nós trabalhamos também dentro das escolas públicas. Nós atendemos duas escolas pela manhã e duas pela tarde, estamos dentro dos currículos delas. Além disso, trabalhamos semanalmente dentro das unidades correcionais, masculinas e femininas, que é um trabalho bastante desafiador.

E também atuamos em uma série de hospitais, com equipes nossas que vão para esses locais. No ano passado nós fizemos uma parceria com o Hapvida, que é um plano de saúde. Nós já atendíamos, com o educativo, cinco hospitais deles, e aí outras unidades de outros estados souberam e pediram para levarmos esse trabalho. Então nós mandamos equipes para Belém, Natal, Recife, Salvador e Feira de Santana, para trabalharem nos locais e ensinarem pessoas de cada lugar a desenvolver esses projetos. O foco nos hospitais é com crianças, mas nós trabalhamos também com asilos de idosos.

E temos trabalhos com crianças de um a quatro anos de idade, que aí é pareceria com a prefeitura – mas mais uma vez quem paga somos nós, inclusive o transporte para levar para o museu. Trabalhamos também em orfanatos, com pessoas com deficiências (cegos, pessoas com síndrome de down, autistas etc), semanalmente. Isso é o que estou lembrando agora, mas tem mais coisas. O trabalho é gigantesco. 

ARTE! – Me parece que isso tem a ver com uma ideia de que o museu não deve ser um lugar apenas de contemplação, mas de participação. É por aí?

Claro. Uma das coisas que perguntam, por exemplo, é o porquê de estarmos levando crianças de um a quatro anos. Porque a gente quer habituar essas crianças desde pequenas a estarem dentro de um ambiente cultural. Então fazemos trabalhos diferentes de acordo com a idade. Já nas escolas, por exemplo, começamos ensinando as crianças a fabricarem a máquina Pinhole. Aí eles fotografam o dia a dia deles dentro da comunidade, depois a gente ensina a revelar, e aí eles fazem uma exposição dentro de suas comunidades. Quando chega o fim do ano a gente faz uma mostra deles dentro do museu, o que é uma coisa linda. Hoje são milhares de crianças. Em 2018 atendemos 98 mil crianças e em 2019 foram 60 mil.

ARTE! – Você sente que de alguma forma todos esses trabalhos vêm para suprir carências do estado?

Olha, isso é uma coisa que acontece no Brasil inteiro. Até São Paulo, que é muito mais rico que o Ceará, tem esse problema, a população carente quase não frequenta os museus. Mas em Sao Paulo, ou mesmo no Rio, você tem um público muito maior nesses lugares, isso é fato. Inclusive, qualquer brasileiro ou estrangeiro que vai para São Paulo vai em alguns museus. E é algo complicado aqui em Fortaleza, sinto que os pais nem pensar em levar os filhos ao museu. Mas quando vão para outras cidades, para o exterior, aí sim, vão ver os museus. E então nós decidimos ir até as comunidade, e nós trazemos as pessoas mais carentes. Porque se for esperar o poder público fazer isso, ele não faz, e nós já tentamos várias parcerias que não deram certo. Nem ônibus para levar crianças ao MFF eles cedem.    

ARTE! – Nesse sentido, como é o financiamento do museu para dar conta de tantos projetos?

Nós temos um terço que vem de parcerias e os outros dois terços nós bancamos do nosso bolso. Porque infelizmente as empresas não se preocupam muito com isso também, com algumas exceções. Mesmo tendo impostos com a lei de incentivo, são poucas as empresas que disponibilizam verbas. Vou te dar um exemplo. Vários bancos, mesmo tendo muitas agências no estado do Ceará e no Nordeste, não investem em cultura aqui. Esse dinheiro que sai daqui vai financiar Lei de Incentivo no Sul e Sudeste do país, não no Nordeste. E isso é um absurdo. Eles deveriam financiar – pelo menos proporcionalmente à arrecadação que eles têm aqui – a área cultural do Nordeste, que inclusive é muito mais carente. E isso acontece com todos os bancos, muitas empresas etc.

Crianças em visitação ao museu. Foto: Mariana Parente/MFF

ARTE! – Falando sobre esse desequilíbrio, me parece que o MFF, apesar de ser reconhecido, tem muito menos destaque nacional do que mereceria, dado seu acervo, exposições e atuação. Você acha que isso se deve à sua localização no Nordeste do país?

Isso é uma coisa clara. Por um lado, eu não posso reclamar, porque a mídia do sudeste inclusive, jornais, canais de TV etc, sempre nos deram destaque, nos ajudaram muito. Mas é obvio que uma coisa é estar nas regiões do Sul, outra é estar no Nordeste.

ARTE! – Bom, esse ano vivemos uma pandemia, uma situação sem precedentes. Enfim, como foi isso para o museu. O que foi possível fazer, como foi o trabalho no meio digital?

Nós tínhamos acabado de abrir duas exposições e fechamos em março. A permanente, como eu te falei, e uma temporária do Bob Wolfenson, que reabriu agora e vai ficar até o início do ano. Nós reabrimos com elas há cerca de um mês, mas infelizmente não estamos fazendo nenhum trabalho educacional, porque eu não vou comprometer nem o nosso pessoal, nem os outros. Nos trabalhos em hospitais, com crianças, não tem como. Então esse é um ano quase morto nesse sentido. Mas estamos fazendo um trabalho através das redes sociais, que diariamente reinventamos. Mas não é a mesma coisa. Esse, inclusive, era um ano em que iríamos levar o museu para o interior. Porque se a capital, Fortaleza, é muito carente de cultura, imagine o interior do Ceará, que é muito pobre. E já estava tudo programado para isso, fazermos exposições em outras cidades levando o pessoal do educativo. Já fizemos isso em uma escala menor, mas agora seria um trabalho muito grande. Então de fato estamos sofrendo muito com isso.

ARTE! – E nem se sabe ainda quando as coisas poderão voltar…

Sim, nós estávamos com as exposições programadas para até o final de 2021, só que agora tive que suspender tudo. Talvez a gente recomece a nova programação em março do próximo ano, mas ainda não há certeza.

ARTE! – Por fim, pensando um pouco no momento político, a gente vive um momento conturbado no país, com um governo federal que parece ver cultura e educação quase como áreas inimigas. Queria saber um pouco como enxerga esse momento e como trabalhar nesse contexto?

Infelizmente, falar disso é quase como chover no molhado. Porque não adianta, sempre foi assim. A cultura sempre foi o patinho feio, porque não dá voto. Então se você for olhar o percentual que o governo federal destina para a cultura, parece uma brincadeira. Se para a educação já é um problema – e estão sempre cortando mais, imagine a cultura. Mas não é só esse governo. Todos os governos nunca se preocuparam com a cultura. Esse está pior, não há a menor dúvida. É uma situação absurda, mas nós vamos tocando em frente. Pode ser que um dia apareça algum governo diferente, que olhe para a educação e para a cultura, até porque eu não conheço nenhum um país que cresceu sem focar em educação e cultura.

ARTE! – Vivemos também, exatamente neste momento, a disputa eleitoral municipal, e Fortaleza terá um segundo turno. Você considera que isso de algum modo interfere no trabalho do museu. Se preocupa com o resultado da eleição?

Como eu não tenho nada com o governo, não me preocupo neste sentido. Me preocupo como cidadão, mas não na questão da gestão do museu. Porque quem banca tudo somos nós. Temos alguns parceiros, que realmente nos ajudam, mas em termos de governo, nada.   

Mural da artista Criola pode ser apagado por decisão judicial em Belo Horizonte

Mural em grafite, feito pela artista Criola, representa simbologias da cultura afro-brasileira
Mural de Criola na empena do edifício Chiquito Lopes foi promovido pelo Circuito Urbano de Arte (CURA) em 2018. Foto: Área de Serviço

Ao sair do aeroporto e se dirigir ao centro da cidade de Belo Horizonte, pela Av. Presidente Antônio Carlos, um prédio ao longe chama a atenção. As cores vibrantes de um mural de 1365 m², na empena do edifício Chiquito Lopes, são visíveis em grande distância, e de vários pontos do centro o grafite pode ser visto perfeitamente. Trata-se de Híbrida Astral – Guardiã Brasileira, obra produzida por Criola em 2018, durante uma das edições do Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte (CURA). 

Hoje, uma disputa judicial decide se o mural deve ou não permanecer no prédio. Um dos moradores é contrário à manutenção da pintura e, desde sua produção, exige o apagamento da mesma. Nesta semana, o processo se tornou de conhecimento público, gerando discussões para além do edifício. 

Desde o abaixo-assinado, criado pelo CURA em defesa da obra, até comentários preconceituosos sobre a temática e iconografia do mural, o caso suscita discussões sobre os limites entre o interesse público e o privado e nos mostra, mais uma vez, demonstrações explícitas de racismo nas redes sociais. 

A artista Criola, sobre um andaime, pintando a empena do edifício Chiquito Lopes com um tom de amarelo
Em 2018, a artista Criola foi uma das participantes do CURA BH e dedicou-se à produção de um mural na empena do edifício Chiquito Lopes. Foto: Área de Serviço

Entre andaimes e tinta

Em 2018, Criola participava do CURA. À artista mineira – hoje responsável por murais em várias cidades do Brasil e em Paris –, foi destinada a empena do edifício Chiquito Lopes, na Rua São Paulo, centro de Belo Horizonte. 

Neivaldo Ramos, síndico do prédio, conta que a proposta do festival surgiu em setembro de 2018. “Tivemos dúvidas no primeiro momento, porque a empena estava bastante degradada, em razão de eventos climáticos. A preservação e conservação demandavam obras necessárias, cujos recursos eram elevados”, explica. Porém, o festival comprometeu-se a fazer a recuperação da fachada cega do prédio, isentando os moradores do valor da reforma. Com isso, a proposta foi levada ao Conselho Consultivo do Condomínio e aprovada de forma unânime. Então, foi comunicada aos demais moradores. “À princípio, o nosso maior interesse era a recuperação física da empena; mas a ideia de participar do projeto – já conhecido na cidade pelas versões anteriores – empolgava a todos, tanto pela visibilidade e valorização, quanto por participar de um evento de natureza cultural”, conta Neivaldo. 

Em outubro de 2018, a obra teve início, e foi então que um morador se opôs à continuidade do mural. Frente à situação, o síndico solicitou uma Assembleia, na qual 55 dos 56 moradores se manifestaram em favor da continuidade do mural. Ainda em 2018, o condômino insatisfeito moveu um processo contra o edifício, para que a obra fosse interrompida. Atualmente, o mesmo processo diz respeito ao apagamento do mural.

O festival de arte urbana, bem como a Criola, se opõe ao apagamento da obra. “É um mural público, voltado pra rua, não está dentro do prédio, ou dentro do apartamento do morador. São tempos estranhíssimos nos quais podemos ser surpreendidas por uma decisão desfavorável à obra e achamos que não cabia mais o silêncio. Por isso, tomamos a decisão de publicizar esse processo”, explica Juliana Flores, uma das idealizadoras do CURA.

Assim, apesar de o processo existir há quase dois anos, foi na última semana que ele se tornou amplamente conhecido. O Circuito Urbano de Arte divulgou um abaixo-assinado  em defesa do mural (acompanhe aqui) e explicitou o caso nas redes sociais. “Nossa ideia é anexar o abaixo-assinado aos autos do processo, porque nosso argumento é que se trata de uma obra de arte pública. Essa obra agora é da cidade de Belo Horizonte. Então, o que queremos mostrar para o juiz é que o interesse público deve prevalecer ao privado”, defende Juliana Flores.

Foto panorâmica do centro de BH, que mostra algumas empenas pintadas nas edições do CURA, inclusa a obra de Criola
O CURA é o maior festival de arte pública de Minas Gerais. Em 2020, o evento chegou à sua 5ª edição, reunindo 18 obras de arte em fachadas e empenas, incluindo o mural mais alto pintado por uma mulher na América Latina, com 56 metros de altura. Foto: Área de Serviço

Em conversa com o síndico, o morador que moveu o processo afirma que a obra é uma “decoração de gosto duvidoso” e parte da Lei nº 4591/1964, na defesa de que a mudança na fachada deveria ser um consenso unânime entre os moradores. Do outro lado, a defesa da obra baseia-se no Código Civil de 2002 e na votação majoritária sobre a manutenção do mural (prevista no art. 1341). Porém, para Criola, artista responsável pela obra, o resultado vai além de uma simples volta à pintura cinza da parede. Em consonância com o restante de sua produção, a obra traz referências à cultura afro-brasileira e indígena e, por isso, para a muralista, seu apagamento tem um fator simbólico: “Nos matam fisicamente e nos matam simbolicamente através do apagamento da nossa cultura e de tudo que gira em torno dela. O gosto estético é uma construção cultural e social e que é moldada massivamente pelo imaginário do colonizador”.

Quem é Híbrida Astral – Guardiã Brasileira?

“Esse mural busca fincar no meio da cidade a lembrança das nossas raízes afro-indígenas. Estamos imersos numa crise enquanto sociedade que é externa e interna. Os hábitos que nos fizeram chegar até aqui não nos levarão mais muito longe, estamos indo em direção ao auto-extermínio”, defende a artista. O trabalho é parte da série de grafites Híbrida Astral, na qual Criola se dedica a retratar as “híbridas”, personagens multidimensionais que ao honrarem a natureza e os animais, os mimetizam, e que fazem parte de mundo simbólico, onde a disputa por superioridade (entre humanos e natureza, entre gêneros e etnias) já foi superada.  

Com os atuais ocorridos relacionados à degradação do meio ambiente e à violência (moral e física) contra minorias, a obra se mostra cada vez mais atual e a temática de extrema importância. “Os povos ancestrais tem uma sabedoria totalmente enraizada na comunhão com a natureza, sentindo-se parte dela e não sugando tudo que ela nos oferece. Para além disso, esse mural [do edifício Chiquito Lopes] aborda o resgate do feminino, da honra às mulheres como fiéis detentoras do portal que nos possibilita chegar no planeta Terra. Não é à toa que tanto às mulheres como os povos afro-indígenas tem sido massacrados, a sociedade precisa se curar desse egoísmo colonizador em achar que tudo que difere de si precisa ser dominado”, conclui Criola.   

Em meio às redes sociais

Foram essas simbologias e reflexões que geraram alvoroço nas redes sociais ao que o caso tornou-se público. Enquanto no perfil de Instagram da artista podem ser lidos comentários de apoio a ela e de defesa do mural, nos comentários das notícias e nas redes sociais dos veículos jornalísticos, outro tipo de manifestação também é comum: “O morador tem razão em não querer uma pintura com energia pesada desse jeito”, “Tem que apagar sim, essa obra demoníaca!!!!”, “Desenho do DEMÔNIO”, “Esse desenho é horrível, nada a ver com cultura”, “Realmente parece imagem de centro de macumba. Horroroso”. 

Para Juliana Flores e Criola, essas opiniões têm um fundamento racista perceptível, partem de um preconceito com religiões de matriz africana. “É a opinião de uma minoria e, infelizmente, acho que está muito ligada ao racismo. Dentro de algumas religiões, há pessoas que entendem elementos religiosos de matriz africana como coisas do diabo, por isso não conseguem entender a manifestação artística como uma manifestação cultural”, diz a idealizadora do CURA. 

“Nós vivemos momentos de muita intolerância, que eu acho que vão passar, porque isso é ignorância, desconhecimento e desvalorização da cultura brasileira. A nossa cultura é diversa, quanto mais a gente abraçar essa diversidade, mais ricos seremos culturalmente”, complementa Juliana Flores. 

Ao lado disso, aparecem comentários sobre o corpo nu representado em Híbrida Astral – Guardiã Brasileira e o útero desenhado ao lado da figura. As demonstrações de nojo e ojeriza frente ao corpo feminino, para a Criola, são uma reflexo da misoginia corrente na sociedade. 

Ela compartilha que essa não é a primeira vez que se vê diante de casos de racismo em decorrência de sua obra, mas que segue tranquila pelo apoio que tem recebido daqueles que admiram seu trabalho e entendem o papel da arte no combate as preconceitos. A organização do CURA vê da mesma forma, e reafirma seu compromisso em ter artistas indígenas e negros em suas edições, para que esses possam se expressar e levar ainda mais representatividade às ruas (leia nossa matéria sobre a última edição do evento).

2010 | A arte popular pelo olhar treinado de um especialista do gênero

Por Mario Gioia

Com a abertura do Pavilhão das Culturas Brasileiras, em São Paulo, a recuperação das peças coletadas por Lina Bo Bardi na Bahia nos anos 1960, e reunidas novamente no Solar do Ferrão, em Salvador, e a visibilidade que o artista acreano Hélio Melo teve na 27a Bienal de São Paulo, a arte popular retoma um papel mais efetivo na cena das artes visuais do Brasil.

Para Roberto Rugiero, um dos mais prestigiados especialistas da área no País e dono da Galeria Brasiliana, encravada em um sobrado no bairro de Pinheiros, em São Paulo, o momento não merece ser tão festejado. “Trabalhar com arte popular no Brasil ainda é muito instável. Já vivemos tempos bem piores, mas o mercado não é muito amplo e o preconceito existe. É como se fosse uma luta de classes. Parte da elite não consegue ver genialidade em autores populares”, afirma, com cautela, o marchand.

E gênios, para Rugiero, não faltam nesse campo. Ranchinho, Antonio Poteiro, José Antônio da Silva, GTO, Fernando Diniz, Agnaldo, Artur Pereira. Nomes conhecidos por poucos críticos, curadores e historiadores de arte, com obra extensa e que se abrem para múltiplas leituras e análises, ainda insuficientes na atual fase da arte brasileira. “Quando estudiosos do porte de Mário de Andrade insistiam na busca de uma identidade brasileira, havia uma análise mais próxima e detida da arte popular, por nomes como Mário Pedrosa e Ferreira Gullar, por exemplo. Hoje, existe um vácuo, desde que nos anos 1970, Nova York e o mercado internacional passaram a ser os únicos faróis da crítica”, diz Rugiero. “É a época da ‘globanalização’.”

Vista geral da galeria. Em destaque as bonecas da artista Marliete.

Rugiero acredita que a terminologia “arte popular” é a mais adequada para englobar “a arte espontânea”. Mas é um segmento tão rico que não cabe em um nome só. No entanto, o galerista é contrário a qualificar artistas de cunho menos erudito de “arte naïf”. “É uma terminologia odiosa, um galicismo inclassificável. O nome surgiu apenas para qualificar uma arte água com açúcar, pretensamente ingênua. Serve apenas para ser vendida a gringos desavisados.”

O galerista e estudioso do gênero remonta ao Brasil Colônia para lembrar das origens da arte popular. “Até o século XIX, a arte brasileira por excelência é o Barroco, que perpassa diferentes épocas e cuja influência é sentida até hoje. Como a população letrada sempre foi minoria até o Brasil industrial – os grandes artistas de uma arte menos elitizada, em geral ligada à religiosidade, eram autodidatas e de origem mais humilde”, explica ele. “As peças barrocas ainda ficaram. Mas perdeu-se muita coisa e de qualidade, como a publicidade do comércio popular de cidades como Olinda. Não sobraram exemplares desse tipo de arte, até para compararmos com o que foi feito mais recentemente.” Para ele, a pintura de tom popular ainda é mais difícil de ser estudada historiograficamente e com variedade, porque é pouco valorizada e tem menos consumo nas regiões de origem. “A produção tridimensional é mais fácil de ser vendida. As pinturas, além da dificuldade em sua comercialização, necessitam de muito mais estudo e de vivência para uma real leitura. Por isso, muitos pintores ditos ingênuos não têm uma obra de qualidade, que acaba sendo incensada inicialmente, mas que não se sustenta mais em longo prazo.”Anos 1940

Depois da Missão de Pesquisas Folclóricas, empreendida por Mário de Andrade em regiões menos conhecidas do Norte e do Nordeste do País, em 1938, Rugiero observa que a década seguinte terá iniciativas que colocarão a arte popular novamente em destaque.

O realismo maneirista de Zezinha com suas figuras femininas

“José Claudino da Nóbrega (1909-1995) vai a Cuiabá e traz à tona o barroco de Cuiabá, que não era visto nem estudado àquela época. Depois, vai à região do São Francisco e descobre Mestre Guarany (1884-1985), um gênio da escultura, com suas carrancas. Na mesma década, Mestre Vitalino (1909-1963) também é descoberto em Caruaru por Augusto Rodrigues e vira uma celebridade, depois de matéria na revista O Cruzeiro. E, no interior de São Paulo, José Antônio da Silva (1909-1996) também tem sua obra reconhecida.” Segundo o galerista, os anos 60 serão outro tempo importante para a arte popular, em especial pela atuação de Lina Bo Bardi (1914-1992) à frente da criação de um museu popular no Solar do Unhão, em Salvador, fechado pelo regime militar e que hoje sedia o MAM baiano.

Para Rugiero, o marco mais recente da valorização da arte popular é a Mostra do Redescobrimento, ocorrida em 2000 e que, em segmento organizado por Emanoel Araújo, colocou em primeiro plano obras feitas por internos de estabelecimentos psiquiátricos, ex-votos e uma variedade de peças criadas em diversas fontes menos eruditas e que, por décadas, passaram à margem do sistema de arte. “O mercado despertou-se novamente para a arte popular”, considera ele.

O galerista acredita que artistas valorizados na cena contemporânea, como Efrain Almeida, já confirmado para a 29a Bienal de São Paulo, exposição que começa em setembro, e Farnese de Andrade (1926-1996), têm um forte lastro no popular, que faz com que a potência da sua obra seja mais perceptível. “E há casos mais antigos de artistas estabelecidos na história da arte brasileira, como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, com forte influência dessa arte espontânea.”

Assista “Amérika – Bahia de las flechas”, de Ana Vaz, no novo Acervo Comentado VB

Still de Amérika - Bahia de las flechas. Foto: Divulgação.
Still de Amérika - Bahia de las flechas. Foto: Divulgação.

Em 1519, Enrique, um dos poucos caciques restantes na República Dominicana, retirou a si mesmo e parte de seu povo do alcance da autoridade espanhola. Por quase uma década e meia, ele e seus seguidores viveram nas remotas montanhas do centro-sul de sua ilha natal, ocasionalmente invadindo assentamentos espanhóis em busca de armas e ferramentas e entrando em confronto com unidades de milícia.

Segundo a pesquisadora Ida Altman, “Enrique evitou as numerosas patrulhas enviadas para erradicar o que se tornou um local teimosamente persistente de desafio à autoridade espanhola que atraiu outros residentes descontentes da ilha, incluindo escravos e servos africanos e indígenas, bem como um pequeno número de índios nominalmente livres”.

De forma curiosa, o Lago Enriquillo acabou sendo nomeado em homenagem ao indivíduo que se rebelou contra um dos protagonistas da “história dos vencedores”: foi nesse lago em que Cristóvão Colombo aportou, em 1492, e confrontou o povo autóctone Taino para estabelecer o primeiro assentamento europeu no nosso continente.

Inspirada nessa história de resistência, a artista Ana Vaz [1] criou Amérika – Bahia de las flechas, cujo subtítulo refere-se a outro episódio emblemático na República Dominicana, da luta dos povos indígenas locais contra a ocupação espanhola. A Baía das Flechas é o antigo nome da atual Samaná, onde a lenda relata que os espanhóis teriam sido recebidos com uma chuva de flechas tão intensa que teria escurecido o céu.

Neste trabalho, Vaz revisita o Lago Enriquillo e usa a câmera como extensão do próprio corpo; com tal observação de cunho etnográfico, a artista evoca a mudança cultural e ecológica sofrida pelo território para fazer a história emergir do próprio cenário.

Em Amérika, a informação escrita e oral convive com a apreciação visual e auditiva do mundo ao redor, talvez até mais constituinte. O debate sobre a suposta oposição entre cultura e natureza incorporado aqui não é novo no trabalho de Vaz, que desde projetos passados estuda outras formas de explorar a história – com certa liberdade poética imbuída pelos artistas que não é comum aos historiadores, por exemplo. Na sua recente exploração, podemos destacar o questionamento dos nomes dos lugares, quais nome eles possuem e seu “porquê”.

Para o Acervo Comentado Videobrasil, a curadora e historiadora da arte Sabrina Moura [2] comenta Amérika, assista abaixo:

Assista aos episódios anteriores do Acervo Comentado

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras (reunido em mais de 30 anos de trajetória). Em todo episódio, uma personalidade diferente – variando de artistas a curadores, de pesquisadores até diplomatas – destrincha a obra ou uma particularidade dela, realçando pontos desses trabalhos que talvez ainda não tivéssemos descoberto. Confira os outros episódios neste link.


[1] É artista visual e cineasta, graduada pelo Royal Melbourne Institute of Technology, Austrália (2009), e mestre em Cinema e Artes Visuais pelo Le Fresnoy Studio des Arts Contemporains, Tourcoing, França (2013). Seus filmes, publicações, performances e videoinstalações refletem sobre a relação entre cinema e linguagem, investigando as relações simbólicas referentes aos legados arquitetônicos, projetos utópicos e relações de poder através de seus vestígios. Realizou as exposições individuais Framing Nature, Vita Kuben, Ümea, Suécia (2017); e Amérika: Bay of Arrows, Ludlow 67, Nova York (2017), e participou das coletivas Excusez-moi de vous avoir dérrangés, Khiasma, Paris (2017); Performing Oppositions, Casa do Povo, São Paulo (2017); Moscow Biennial of Young Art (2016); Obscure Objects of Desire, Paramound Ranch, Los Angeles (2016); e 3rd Dhaka Art Summit, Bangladesh (2016), entre outras. Teve retrospectiva de seus filmes na Melbourne Cinémathèque, Austrália (2013) e na Void Gallery, Irlanda (2014). Vive e trabalha em Lisboa.
[2] Sabrina Moura é curadora e historiadora da arte, doutora pela Unicamp. Foi pesquisadora visitante da Columbia University e curadora de programas públicos dos 18° e 19° Festivais de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Organizou o livro Panoramas do Sul | Leituras | Perspectivas | Para Outras Geografias do Pensamento.

SP-Foto reúne mais de 50 expositores em feira virtual

"Anjo", de Mario Cravo Neto. Cortesia Galeria Paulo Darzé.

Buscando renovar a experiência com o público por meio de diferentes iniciativas, mas mantendo sempre a fotografia como ponto central, a SP-Foto, que acontece presencialmente há 14 anos, realiza seu primeiro Viewing Room. Entre galerias, editoras e projetos independentes, o evento reúne mais de 50 expositores nacionais e internacionais entre os dias 23 e 29 de novembro.

“A cada edição, promovemos um encontro de gerações entre artistas e galerias já consolidadas no circuito e jovens expositores e artistas que estão florescendo agora. São apostas, nomes que acreditamos que vão ascender cada vez mais”, afirma Fernanda Feitosa, fundadora e diretora da SP-Foto.

Nesse contexto, participam do evento galerias de todo o Brasil, instituições – como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM São Paulo), o Instituto Mário Cravo Neto e a Associação Brasileira de Arte Contemporânea (ABACT) -, as editoras Fotô Editorial, Lovely House e Terra Virgem Edições e projetos independentes, que trazem uma seleção minuciosa de fotografia e videoarte. 

Still do vídeo “Cantando na chuva”, de Berna Reale. Foto: Cortesia Clube de Fotografia MAM-SP.

A fim de propiciar uma experiência imersiva no digital, o Viewing Room foi elaborado de forma a permitir que o visitante percorresse os diferentes projetos expositivos. Cada galeria, editora ou projeto ocupará um ambiente – neste caso, online -, no qual poderão ser expostas até 20 obras de um ou mais artistas, e disponibilizados conteúdos em texto, vídeo e áudio, com intuito de propiciar uma narrativa única e enriquecer a mostra. Caso haja o interesse por algum trabalho disponível no site, apenas um clique em “Contatar galeria” já permite que o comprador inicie uma conversa com o expositor.

Diálogos plurais

Um dos destaques desta edição é a participação de projetos independentes. Em diálogo com 01.01 Art Platform (com seu olhar sobre as produções africanas e afrodiaspóricas) e Levante Nacional Trovoa (que se dedica à inserir no circuito das artes a produção mulheres e pessoas não binarias negras, asiáticas e indígenas) – leia a reportagem sobre os dois projetos -, está o nova-iorquino MFON: Women Photographers of the African Diaspora, que participa pela primeira vez de um evento brasileiro, representando a voz de mulheres e não binários afrodescendentes. O coletivo apresenta no SP-Foto Viewing Room obras de artistas como Deborah Willis, Dee Dwyer, Jaimee Todd e Tokie Rome-Taylor em um projeto expositivo que enfatiza a forma diversa como cada uma aborda a ascendência africana e representa sua visão de mundo.

Já a Piscina Art foca em temáticas relacionadas a autoimagem, representação e corpos,  trazendo à feira obras produzidas por jovens artistas mulheres. Por último, entre os espaços independentes, está o Centro Cultural Veras, concebido a partir de uma gestação de vinte anos pelo monge e curador Josué Mattos, que teve a ideia quando vivia em um monastério nas montanhas de Paraty e acabou se especializando em arte na França. As obras trazidas pelo Veras terão sua venda destinada à construção da sua sede física em Florianópolis.

História da fotografia brasileira

Iniciado como um grupo de fotógrafos amadores, o Foto Cine Clube Bandeirantes representou o ápice do movimento fotoclubista no Brasil – que se propagou, nos anos 1940, pelas principais capitais do país. Uns dos fatores marcantes da atuação do grupo foi abrir as portas para a fotografia brasileira mundo afora. Este ano, o Clube é evidenciado na SP-Foto.

Foi pensando na sua importância para a história da fotografia que diversos projetos expositivos decidiram celebrá-lo nesta edição da Feira. Em parceria, as galerias Luciana Brito e Bel Amado exibem uma seleção de obras com alguns dos principais nomes do Foto Cine Clube Bandeirantes, como Gaspar Gasparian, Geraldo de Barros, Gertrudes Altschul,  Marcel Giró, Paulo Pires e Thomaz Farkas. Já a Galeria Almeida & Dale, em Os Frequentadores do Clube, faz uma homenagem ao apresentar trabalhos de artistas já consagrados mundialmente que, em comum, são apaixonados frequentadores do Clube, como Barbara Mors, Ivo Ferreira da Silva, Julio Agostinelli e José Yalenti. A Utópica, por sua vez, põe em foco o integrante German Lorca, que tem suas obras expostas ao lado das fotografias dos modernistas Fernando Lemos, Annemarie Heinrich, Alice Kanji e Dulce Carneiro, em uma experiência que une o visual e o sonoro no espaço expositivo virtual.  

De olho no presente

“Queimada I, Barão de Melgaço, Brasil”, Lalo de Almeida. Cortesia Utópica Photography.

No mesmo evento que nos relembra parte da história da fotografia brasileira, a Documenta Pantanal convida o público a refletir sobre o presente e as questões urgentes do meio ambiente que o envolvem. O faz a partir de fotografias de João Farkas, Luciano Candisani e Araquém Alcântara que buscam documentar a região do Pantanal brasileiro. O assunto se estende para além da exposição, com a conversa entre os fotógrafos João Farkas e Lalo Almeida durante ciclo de debates e palestras da SP-Foto. Com um olhar direcionado às emergências ambientais, ambos comentam suas obras a partir de duas abordagens distintas: o fotojornalismo e o documento. 

Além da exposição virtual

O bate-papo entre os fotógrafos faz parte de uma programação ampla e gratuita com o ciclo de debates e palestras online, os Talks, a fim de completar a experiência da feira. Confira a programação abaixo:

  • 24/11 às 16h: A curadora Luciara Ribeiro conversa com a artista Moara Brasil;
  • 25/11 às 11h: A curadora Luciara Ribeiro conversa com a dupla de artistas Takeuchiss;
  • 26/11 às 11h: O curador Eder Chiodetto conversa com os artistas Ayrson Heráclito e Daniel Jablonski;
  • 26/11 às 16h: Com um olhar direcionado às emergências ambientais, os fotógrafos João Farkas e Lalo Almeida comentam suas obras. 

Se interessou? Para mais informações, acesse o site da SP-Arte clicando aqui.

Mam Rio anuncia Beatriz Lemos como nova curadora adjunta

A curadora Beatriz Lemos. Foto: Juno F. Braga

A pesquisadora e curadora carioca Beatriz Lemos é a nova curadora adjunta do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Lemos foi selecionada a partir de uma chamada aberta que reuniu 139 candidatos e se incorpora à equipe do museu poucos meses após Keyna Eleison e Pablo Lafuente assumirem a diretoria artística da instituição.     

A pesquisadora tem mestrado em História Social da Cultura pela PUC-RJ e é idealizadora e diretora da plataforma Lastro – Intercâmbios Livres em Arte. A partir de perspectivas anticoloniais, ela atua na condução e articulação de processos em rede e transdisciplinares de criação e aprendizagem. Em colaboração com o MAM Rio, Beatriz coordenou o projeto de catalogação dos acervos de obras e documentos de Márcia X (1959-2005), que culminou na exposição monográfica da artista, em 2013.

Segundo o texto divulgado pelo museu, “a Curadoria Adjunta se reporta diretamente à Diretoria Artística e implementa a visão artística e a missão do MAM Rio. É responsável pelo desenvolvimento dos projetos expositivos organizados pelo museu e pelas relações desses projetos com as atividades do Núcleo Artístico, incluindo pesquisa, conservação, educação e formação”.

Para Keyna Eleison, “a escolha de Beatriz Lemos nos enche de mais vontade de troca. É uma profissional de trajetória estruturada, de pesquisa nacional e internacional. Chega com uma inteligência para a construção do nosso projeto e posicionamento do MAM ainda mais rico”, comenta. O processo de reformulação do museu se dá principalmente desde janeiro de 2020, quando Fabio Szwarcwald assumiu a diretoria-executiva.

Lemos foi uma das participantes do “VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros: em defesa da natureza e da cultura”, por conta de seu trabalho como curadora da Frestas – Trienal de Artes (ao lado de Diane Lima e Thiago de Paula Souza). Leia mais aqui.

Biden-Harris vence, qual a reação do mundo das artes?

Eleição EUA Biden Harris
"Shift the culture, end fear", Jenny Holzer. Foto: Mark Rutherford.

No dia 14 de novembro, o presidente-eleito dos Estados Unidos Joe Biden conquistou o estado da Georgia, solidificando sua vitória contra o atual presidente Donald Trump. Dessa forma, Biden torna-se o primeiro candidato democrata a alcançar a maioria dos votos no estado desde 1992, o que projeta sua vitória a 306 votos do colégio eleitoral, enquanto os números de Trump chegam a 232. Apesar das projeções serem sólidas, o próximo presidente dos EUA só será oficialmente anunciado no dia 14 de dezembro. Neste dia, os delegados registram o seu voto, que, por costume, obedece à maioria dos votos da população, embora uma exceção à regra possa ocorrer ocasionando o que os estadunidenses chamam de “voto infiel”.

Mesmo não oficializada ainda, a vitória da chapa Biden-Harris já gerou fortes reações. Até o último domingo, 15 de novembro, Trump se negava a aceitar sua derrota, repetidamente voltando-se para uma (falsa) acusação de fraude eleitoral que instigou seus eleitores a protestarem em marcha por Washington. Para o Brasil, como relata a repórter Julia Moura, “a vitória de Biden, avesso a Jair Bolsonaro e crítico à destruição da Amazônia, pode estremecer as relações comerciais Brasil-EUA em um primeiro momento”.

O evento político vem gerando, desde então, reações no mundo das artes. A própria chapa Biden-Harris, lançou uma campanha inspirada pela obra Art is… (1983/2009) de Lorraine O’Grady, em que a artista foi às ruas do Harlem com uma moldura dourada ornamentada para o Desfile do Dia Afro Americano de Nova York e fez com que os participantes posassem “dentro” delas. Quinze performers vestidos de branco ajudaram a encenar o trabalho, que agora é lembrado principalmente por meio de fotografias que documentam o evento. A campanha do presidente eleito reproduz um quadro semelhante para capturar os cidadãos de todos os Estados Unidos. O’Grady – cujo trabalho será tema de uma retrospectiva do Brooklyn Museum em 2021 – disse que fez Art Is… para contrariar a ideia de que a arte de vanguarda tinha pouco a ver com a comunidade negra. Alexander Gray Associates, a galeria que a representa, deu permissão para a réplica, cujo resultado final gerou reações positivas da artista: “Eu dei a eles e eles me deram de volta”.

Para o The Art Newspaper, a artista Martha Rosler afirmou: “Ainda devemos analisar a extensão em que as estruturas de governança foram danificadas e o próprio governo deslegitimado – desenfreadamente e constantemente – por Donald Trump e os alimentadores de terceira categoria que ele habilitou como seus demolidores”. “Em meio a uma pandemia que se intensifica, os efeitos cada vez mais terríveis do aquecimento global, um colapso econômico multifacetado que afeta as pessoas comuns enquanto as corporações e bilionários prosperam e uma ameaça inegável dos supremacistas brancos, estamos tentando costurar de volta nosso sentido fragmentado de tempo e ser, para nos prepararmos para as tarefas coletivas que temos pela frente”.

Capa da New York Magazine com obra de Barbara Kruger. Foto: Divulgação.

As obras de Barbara Kruger e Zoe Leonard também apareceram no ambiente virtual em meio aos comentários políticos. O crítico de arte Jerry Saltz relembrou uma obra de Kruger que estampou a capa da New York Magazine em 2016. Nela, a face de Trump é imposta pela palavra “perdedor” em inglês. Já Leonard teve mais uma vez sua muito referenciada obra I Want a President (Eu desejo uma presidente) trazida ao debate. O poema visual foi escrito em 1992 em resposta à candidatura presidencial da poetisa Eileen Myles ao lado de George H.W. Bush, Bill Clinton e Ross Perot. O texto é emblemático do envolvimento de Leonard com coletivos ativistas em Nova York na década de 1980, uma época marcada por uma consciência política intensificada devido à enorme perda da epidemia de HIV/AIDS.

Poema de Zoe Leonard no High Line em Nova York, em 2016. Foto: High Line.

O artista William Powhida compartilhou uma imagem de sua instalação Possibilities for Representation (Possibilidades para representação), atualmente em exibição no Aldrich Contemporary Art Museum, em Connecticut, dizendo:”Quando comecei a trabalhar nesta instalação em janeiro, eu sabia que queria criar uma representação visual de quanto tempo as primárias e as eleições seriam em relação à longa história da qual emergiram os candidatos. Na linha do tempo da instalação, os séculos ocupam o mesmo tempo que décadas, depois anos, depois meses e depois o dia da eleição. Estou profundamente aliviado porque minha decisão de dar a Joe Biden e Kamala Harris uma vantagem muito sutil nessa corrida presidencial glacial foi realizada por cerca de 74 milhões de eleitores”. Apesar do alívio, Powhida faz a ressalva que “por melhor que pareça a vitória no momento, meu alívio é temperado pelas realidades preocupantes que nos esperam do outro lado da certificação da eleição e da posse do presidente”. Tal balanço foi feito também pela artista Sue Coe, que reiterou: “Não é exatamente uma revolução 4 a 5 milhões de americanos votaram em Biden-Harris e rejeitaram o fascismo por uma margem tênue, mas nosso sistema eleitoral ainda beneficia senhores cruéis e agressores. A luta continua…”.

O mexicano Pedro Reyes destacou o histórico de Biden com relação a armas como algo positivo, afirmando que “enquanto trabalhava com organizações de controle de armas de base, aprendi que Joe Biden lutou duas vezes – e venceu – contra o NRA. Ainda assim, uma de nossas principais prioridades como planeta é o desarmamento nuclear. Trump prometeu 1,3 trilhão de dólares para novas armas nucleares em 2021, espero que este novo governo possa reverter esse contrato”.

Vale notar os trabalhos de Grayson Perry, compartilhado pela Royal Academy no Twitter, e os letreiros de Jenny Holzer, que durante o período eleitoral levaram às ruas palavras de Stacey Abrams, por exemplo, e agora dizem (como projetado no Detroit Institute of Arts): “Shift the culture, end fear”.

 

A arqueologia do rejeito

Detalhe de Rejeito, de Marcelo Moscheta
Detalhe da instalação "Rejeito", de Marcelo Moscheta, montada a partir de folhas secas feitas de cerâmica. Foto: Filipe Berndt

Caminhando pela Fábrica de Arte Marcos Amaro é possível ver as salas expositivas, esculturas ao ar livre, uma vegetação diversa e muitas folhas secas caídas no chão. Essas últimas podem passar despercebidas aos olhares de alguns, mas foi a partir delas que Marcelo Moscheta decidiu desenvolver um projeto artístico. “A ideia foi trabalhar essas folhas secas, que estavam sendo varridas aqui do espaço, essa natureza que invade a fábrica – que já foi ruína e está em transformação”, conta o artista.

Foi a partir da vegetação seca que Moscheta decidiu refletir sobre outros descartes. A ideia veio logo após a tragédia de Brumadinho, em 2018, quando a lama das barragens assolou a região mineira. Isso acontecia pouco depois do desastre de Mariana, em 2015. A lama que varria vegetação, animais, moradias e vidas humanas tinha nome: rejeito. 

Para o dicionário, “rejeito” pode ser um simples resto, ou aquilo que sobra de qualquer substância submetida a um procedimento e que não pode ser utilizada novamente. Existem rejeitos industriais, nucleares e de mineração. Esse último é o referente aos desastres com as barragens, que carregaram consigo o apagamento de histórias e vidas. É ele também que dá nome ao projeto e à exposição individual de Marcelo Moscheta, Rejeito, na Fábrica de Arte Marcos Amaro.  

Do descarte à memória

“Eu estava muito impactado por aquelas imagens [de Brumadinho], e se falava muito dessa história do rejeito. Pensei em fazer um paralelo entre a história da Fábrica e o que estava sendo o tema do país no momento”. O projeto foi contemplado pelo Prêmio FAMA Museu e Campo da 15ª SP-Arte e o artista passou meses em residência no Museu.  

“Gosto muito de trabalhar essa relação homem-espaço-natureza, como as coisas se dão dentro desse tripé. Então, imaginei que essa ideia do ‘rejeito’, de algo que fosse já descaradamente descartado, pudesse ser invertido em uma aproximação poética aqui para a Fábrica”, explica o artista. Assim, decidiu inverter o sentido do “rejeito”. Se nas tragédias de Brumadinho e Mariana era essa lama que apagava histórias, no projeto artístico era ela quem fazia a arqueologia da FAMA. “É uma ideia de transformação e de tempo. A ideia de uma folha seca condensada em cerâmica – na própria lama -, que é um barro que não encobre a história, mas se torna arqueologia.”

Instalação "Rejeito", de Marcelo Moscheta
Instalação “Rejeito”, de Marcelo Moscheta. Foto: Filipe Berndt

A partir de folhas secas de diferentes plantas, coletadas na Fábrica, Marcelo Moscheta criava moldes em gesso e os transformava em matrizes de silicone. Com auxílio de uma equipe formada por jovens artistas, ele preenchia as matrizes com paper clay – uma mistura de argila com fibra de celulose – e as prensava, formando peças de cerâmica. Elas eram então moldadas, secavam e iam para a queima. O resultado final mimetiza as folhas secas. Ao fim, cerca de 4500 peças foram empilhadas em uma sala, dando origem à instalação Rejeito

Como explica Moscheta, “é uma obra construída a partir de fragmentos mínimos e que toma corpo, volume e presença quando apresentada como acúmulo e aglomeração”. Num mundo em meio à uma pandemia que nos obriga ao isolamento social, isso traz um novo sentido à obra. “Quero falar da força de se estar junto, de aglomerar e marcar presença, mesmo quando, individualmente, parecemos insignificantes, mesmo quando somos o rejeito de um mundo, de um país que tem outros valores e sentidos para o viver”, conclui.

Essa união também esteve presente no processo da obra e da exposição na qual ela se insere. O artista não construiu Rejeito sozinho. “Cada um de nós acaba modelando a folha de uma forma, então cada folha tem a cara de uma pessoa e isso dá uma pluralidade muito grande, por mais que seja a mesma matriz”, diz Eliel Fabro, graduado em Cinema e membro da equipe que auxiliou Moscheta. Ao que a estudante de Cinema Giulia Baptistella complementa: “A gente percebeu que quando moldamos a folha, cada um coloca um pouco de si. Desde abrir a massa, mas principalmente na hora de moldá-la”. 

Em entrevista à arte!brasileiros, os jovens artistas também compartilharam a importância de estarem envolvidos em um projeto como esse: “Foi muito interessante, porque a gente encontra a arte e as suas formas de ser dentro de cada artista, né? Existe uma carga histórica, sentimental e poética que o artista traz consigo”, diz Carlos Mendes. Para o estudante de História, é pela multiplicidade de artistas envolvidos que a “obra transpõe a diversidade de sentimentos, de características, e acaba resultando em um pouquinho de nós dentro da obra do Marcelo”.

Aqui-agora

Porém, essa é uma esfera que não permite tirar de vista a questão ambiental envolvida no projeto e na exposição Rejeito. Em entrevista a arte!brasileiros em março de 2020, Marcelo Moscheta compartilhou sua crença de que esse trabalho seria muito especial para o momento em que vivíamos, “porque trata de alguns pontos que para mim sempre foram importantes, como a ruína, a tensão entre homem e meio ambiente e agora (ainda mais do que antes) essa questão da degradação e da exploração desmedida dos nossos recursos naturais”.

A exposição foi adiada, devido à crise sanitária mundial gerada pelo novo coronavírus, porém isso não tirou a atualidade da proposta artística, já que o assunto não se tornou datado. “Penso que Rejeito se insere temporalmente em um arco que vai de Mariana e Brumadinho até o aumento das queimadas da Amazônia e Pantanal neste ano, passando pela pandemia do Covid-19. Porém, não se prende a eles, uma vez que é universal em seu sentido de tratar de manifestações de preservação da memória da humanidade que nasceram na pré-história e vão continuar ainda sendo mantidas”, explica Moscheta. 

O artista acredita que esse é o início de um novo movimento dentro de suas produções artísticas. “Essa história de um posicionamento um pouco mais crítico frente a essas questões ambientais têm habitado cada vez mais os meus trabalhos”. Assim, a reflexão ecoa pelo restante de sua mostra individual, ocupando a sala com outras produções. Rejeito está em cartaz na Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu, com entrada gratuita e possibilidade de agendamento prévio online.

Assista ao vídeo e entenda mais sobre o processo de criação de “Rejeito”

 

Artistas de ascendência africana na arte brasileira: presença/ausência?

Emanoel Araújo, "Sem Título", 1976, xilogravura a cores s/ papel, 99,3 x 69,4 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo
Emanoel Araújo, “Sem Título”, 1976, xilogravura a cores s/ papel, 99,3 x 69,4 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo

Pelo fato de estudar a questão da identidade nacional da arte produzida no Brasil desde o início de minha carreira como pesquisador, a posição do artista de ascendência africana dentro do segmento hegemônico da arte do país há anos me interessa e preocupa. Assim, em 2015, quando atuava como diretor geral da Pinacoteca de São Paulo, ao me ver responsável pela homenagem a ser feita a Emanoel Araújo – dos principais profissionais a me antecederem na direção daquele museu – ao invés de optar por enaltecer sua importância na reforma do edifício da Pina Luz, ou seu pioneirismo ao levar para a Pinacoteca grandes exposições internacionais, preferi enfatizar sua posição como o primeiro diretor a iniciar uma política de aquisição de obras de artistas de ascendência africana para o acervo. O resultado foi a mostra Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca[1], em que apresentei uma série de obras de jovens artistas negros, recém-adquiridos pela instituição, ao lado de obras de artistas da mesma origem já presentes no acervo.

Ao buscar detectar o que poderia unir as novas obras que chegavam à coleção com aquelas já existentes, percebi que apenas a origem comum de seus produtores as unia. Estou consciente de que essa percepção estava ligada às características das obras de artistas de origem africana pertencente à Pinacoteca, não sendo uma característica de toda a arte produzida por afrodescendentes. De qualquer modo, naquela oportunidade pareceu-me impossível refletir sobre a arte afro-brasileira como um território uno e pleno. Por isso chamei a mostra de “Territórios”, no plural, e não “Território”. E isto porque o máximo que eu conseguia fazer com o acervo de obras de artistas negros da Pina era articulá-las em pequenos grupos, formados por obras que dialogavam entre si e não entre todas as obras escolhidas para a mostra. Assim, acabei dividindo a exposição em três “territórios”: aquele que unia obras que se valiam de matrizes africanas; outro que reunia obras ligadas a matrizes europeias e, por último, obras mais recentes, pautadas por matrizes contemporâneas[2].

Com a exposição montada e inaugurada, comecei a desconfiar daqueles “territórios”, concebidos para agrupar os três conjuntos de obras. No fim, considerei como falsa a impressão de que eles não dialogavam entre si e que eu havia me equivocado ao partir para o meu trabalho de curadoria pautado por uma estratégia anterior à realidade das obras que eu exibia. Ou seja, o conceito de uma arte “afro-brasileira” ou “afrodescendente” tinha colonizado o meu olhar, fazendo com que eu lançasse mãos de categorias tipológicas prévias para agrupar aquelas obras, o que acabara por me impedir, por exemplo, de associar a obra de Sidney Amaral não à produção de Firmino Monteiro, mas àquela de Rosana Paulino.

Sidney Amaral, “Imolação”, 2009-2014, acrílica s/ tela, 80 X 130 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo

Na continuidade desses pensamentos concluí que para um entendimento mais complexo sobre a arte produzida no Brasil, talvez fosse mais produtivo refletir sobre a obra de Emanoel Araújo em relação, por exemplo, àquela de Amílcar de Castro do que em relação apenas à de Rubem Valentim. Tais pensamentos me levaram a perguntar sobre qual a real importância que a noção de arte afro-brasileira poderia ter para pensarmos a arte produzida no Brasil de maneira de fato produtiva.

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As questões levantadas por mim em 2015 e registradas no parágrafo acima não foram desenvolvidas, permanecendo latentes até que, faz algumas semanas, mexendo em meu arquivo, me deparei com um artigo que publiquei em 2010 na Novos Estudos Cebrap, sobre a historiografia artística no Brasil[3]. Ali, a certa altura, comparava o livro A arte brasileira, de Gonzaga-Duque, publicado em 1888[4] com História Geral da Arte no Brasil, coordenado por Walter Zanini e lançado em 1983[5].

Para alguns, esses dois livros são incomparáveis. Afinal, o primeiro é um ensaio sobre a arte produzida no Brasil – um misto de narrativa histórica (desde o período colonial) e breves perfis de alguns artistas citados naquela narrativa – escrito por um só autor. Já o livro coordenado por Zanini tinha como espinha dorsal também a arte produzida no Brasil, desde o período anterior a Cabral, até os anos 1970. Só que essa segunda narrativa fora escrita por oito especialistas especialmente convidados[6]. Porém, apesar da autoria compartilhada e de ser ricamente ilustrado (o que não era o caso do livro de Gonzaga-Duque, sem nenhuma ilustração), ambos traziam narrativas sobre a arte brasileira. Se a primeira, ia da arte colonial até as últimas décadas do século XIX, a segunda expandia essa linha, acrescentando, em seu início, o período anterior à colonização e, no final, “trazendo” a narrativa até os anos 1970.

No entanto, em torno desse grande eixo que também caracterizava a obra coordenada por Zanini, gravitavam ainda outros ensaios que não participavam daquela linha principal[7].

Chamo a atenção para o seguinte fato: se o texto de Darcy Ribeiro, completamente voltado para a análise de produção indígena “pura”, foi editado para permanecer no início daquela espinha dorsal – reconhecendo, assim, a legitimidade dessa produção –, já a arte produzida por artistas de origem africana não teve o mesmo destino, permanecendo no conjunto de ensaios satélites, ao lado de temas como a fotografia, a arte-educação etc.

Hoje em dia pode soar inconcebível para muitos os editores do livro terem deixado todos esses assuntos fora da narrativa principal da arte brasileira. De fato, não é possível pensar a arte no Brasil sem levar em conta, por exemplo, o papel que a fotografia e a imagem fotográfica cumpriram na arte local a partir de meados do século XIX.

Porém, mais grave ainda parece ter sido propor uma reflexão sobre a arte no Brasil que não levava em conta a dimensão fundamental da presença do artista negro dentro dela, relegando esse fenômeno a um texto que, embora com qualidades, não deixava de ser um satélite na economia geral da publicação.

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Comparado ao livro de Gonzaga-Duque, aquele coordenado por Zanini significou uma mudança de mentalidade perante a maneira como os artistas de origem africana eram vistos. Embora tratados fora do eixo principal, o texto de Carneiro da Cunha pensa aquela produção com expertise, inclusive entendendo que estudá-la fechada em si mesma era respeitar-lhe a integridade e especificidade – uma atitude diferente daquela percebida no texto de Gonzaga-Duque, em que a figura do negro foi descrita quase sempre com preconceito.

Moisés Patrício, “Aceita?”, série fotográfica iniciada em 2013, ainda em processo. Impressão digital s/ papel algodão, 10x 10 cm (cada foto). Foto: Coleção Particular

Entretanto, chegando praticamente a quarenta anos de seu lançamento, História Geral da Arte no Brasil demonstra perder fôlego frente à nova complexidade assumida pelo debate artístico brasileiro atual, agora impregnado pela urgência de se repensar o que, há cinco, dez anos, era apenas intuído ou percebido como um problema a ser resolvido[8].

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Mariano Carneiro da Cunha, no texto “A arte afro-brasileira”, publicado em História Geral da Arte no Brasil, estuda as supostas especificidades dessa manifestação e, passados tantos anos, ainda é uma referência para autores mais recentes[9] . Nele, o autor cria quatro divisões para o que poderia ou não ser um artista afro-brasileiro: 1- Aquele que apenas utiliza temas negros incidentalmente; 2 – o que o faz de modo sistemático e consciente; 3 – o que se serve não apenas de temas como também de soluções negras espontâneas e, não raro, inconscientemente; 4 – o artista decididamente ligado a tradições religiosas ancestrais.

Dentro da primeira divisão, Cunha afirma que chamar Tarsila, Segall, Guignard e Portinari de “afro-brasileiros” apenas por eventualmente terem retratado pessoas negras, seria como chamar Picasso de afro-francês ou afro-espanhol por ter feito o mesmo. No segundo time, Cunha situa artistas como Carybé, Mario Cravo Jr., Hansen Bahia e Di Cavalcanti que não poderiam ser entendidos como afro-brasileiros, porque se valeriam de signos vindos da experiência afro-brasileira para desenvolverem seus discursos estéticos individuais[10].

Nesse mesmo bojo, ele situa artistas como Agnaldo Manuel dos Santos e Rubem Valentim pois, mesmo negros, se valiam de signos ligados à visualidade africana ancestral para levarem a cabo soluções plásticas puramente individuais.

Para Carneiro da Cunha estariam no terceiro grupo os artistas comumente classificados como “primitivos” ou “populares”. Nesses, não apenas a temática, mas também as convenções plásticas tenderiam a ser africanas, dentro de vários enfoques. No quarto seriam encontrados os artistas dedicados à arte ritual, que teriam assumido com a ancestralidade africana não apenas uma ligação individual, mas um compromisso mais totalizante. Nele seria destacado o Mestre Didi (Deoscóredes M. dos Santos).

Rubem Valentim, “Objeto emblemático 4”, 1969 tinta acrílica sobre madeira, 206 X 75 X 43,5 cm. Foto: Pinacoteca do Estado de São Paulo

Pela descrição proposta pelo pesquisador, a arte produzida no Brasil, em suas relações com a herança africana, iria, desde um tênue e pouco significativo uso de representações ligadas à negritude, até àqueles produtores que dariam prosseguimento, no Brasil, a uma religiosidade inata da arte e cultura africanas. Portanto, estudar a arte afro-brasileira era detectar em cada artista o que de específico, e não meramente casual, ele poderia usar da tradição africana.

Se, então, o texto de Carneiro da Cunha propunha essa busca incessante de especificidade para a arte afro-brasileira, a presença de artistas de ascendência africana no texto “Arte contemporânea”, publicado por Walter Zanini em História Geral da Arte no Brasil, era diluída. Isso porque para Zanini, a arte moderna e contemporânea se desenvolvia a partir de pressupostos artísticos e estéticos internacionais, sem nenhuma preocupação étnica ou nacional. Como exemplo, cabe lembrar como ele cita a presença da produção de Rubem Valentim na cena brasileira. Ali, nota-se que a relação com a produção que o artista mantinha com os signos de origem africana não parece mais fundamental para o crítico, quanto as “influências parisienses” do artista:

[…] Rubem Valentim (1922) participara do movimento de renovação artística na Bahia em 1945, e sua pintura revela influências parisienses na primeira metade dos anos 50, antes que se decidisse, por inclinação ideológica, pelos signos enraizados na cultura popular afro-brasileira. Vale-se ele de formas emblemáticas, de estudada e rígida ordenação geométrica, para suas pinturas, relevos e objetos tridimensionais […][11]

Se para Carneiro da Cunha a arte afro-brasileira precisava ser vista na sua especificidade, para Zanini tal questão mais parecia uma idiossincrasia “ideológica” de Valentim, nada que merecesse uma atenção especial. Resultado: estabelecida em um nicho, ou diluída como mais uma característica dentre muitas, a arte produzida por artistas de ascendência africana parece ter perdido significação na historiografia artística brasileira por não ser encarada por aquilo que ela de fato é: uma manifestação constitutiva da arte brasileira que jamais será hegemônica, ou seja, que jamais será preponderante enquanto não reconhecermos que ela também se explicita em sua complexidade, na medida em que absorve essa característica fundamental da experiência brasileira: o fato de também ter origem africana.

Da proposta de Carneiro da Cunha, tendo a reconhecer sua reivindicação da “pureza” do quarto tipo de produção artística, aquele mais visceralmente ligado à religiosidade e às tradições africanas. No entanto, isto não significa que o considere mais importante que os demais estágios de sua divisão. Os artistas fundamentalmente religiosos são grandiosos nos resultados que alcançam em sua luta para continuarem desenvolvendo no Brasil as tradições vindas da África. Porém, observar aqueles pertencentes aos outros grupos propostos pelo estudioso amplia de forma desmesurada o interesse da problemática do artista de origem africana no Brasil, não apenas pelo fato de possuir tal herança, mas também de viver com ela em uma sociedade racista como a brasileira.

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Arthur Timótheo (1882-1922), “Autorretrato”, 1908, óleo sobre tela, 41.00 x 33.00 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo

Clarival do Prado Valladares, em outro texto seminal sobre a arte afro-brasileira[12], a certa altura compara um artista negro do interior do Brasil no século XIX e seu colega que vivia nas metrópoles ou em cidades litorâneas:

[…] E, por esta via, pelo sertanismo pastoril goiano, mantêm-se por mais um século a cultura mestiça, o barroco brasileiro de tipologia europeia e de expressividade negra. Este é um capítulo para ser estudado em termos de confronto, análise e reavaliação, em nossa opinião suficiente para uma revisão do barroco universal, por seus aspectos de transculturação.

No outro lado do país, nas metrópoles e cidades do litoral e do interior próximo, a cultura mestiça se diluía e se alienava progressivamente. Numerosos artistas negros e mestiços se educavam e se afirmavam nas profissões tradicionais e nos estilos da civilização coetânea, branca, sem compromissos e sem conotação à cultura negra. Ninguém poderá identificar genuinidade ou remanescência de cultura negra nas obras de Rosalvo Ribeiro, Firmino Monteiro, […] Arthur Timotheo da Costa, Horácio Hora […], ou nos descendentes negroides que produzem em nossos dias, na identidade da arte internacional, comandada pela civilização de fora […][13]

Hoje parece difícil entender como Valladares notava a qualidade da produção goiana do século XIX – para ele uma manifestação clara de originalidade transcultural – ao mesmo tempo que não percebia a mesma potência nas produções de artistas do “litoral”. Repisando o clichê mil vezes utilizado de que a “verdade” da arte e da cultura brasileiras estaria no interior do país, a ele passa despercebido, por exemplo, a força de Arthur Timótheo da Costa, presente em seu autorretrato pertencente à coleção da Pinacoteca de São Paulo.

Essa pintura interessa não apenas pela expressão de profunda concentração expressa no olhar do artista, ou mesmo pela maestria com que ele realiza a obra. O que comove ali é o esforço de Arthur Timótheo da Costa em adaptar toda a sua sensibilidade e subjetividade aos domínios da representação, ou melhor, dos códigos de representação do real e do “eu”, estruturados durante séculos na Europa, por artistas brancos. Ali, naquela pintura, é visível a necessidade consciente do artista deixar-se “colonizar”, de criar condições para absorver todos os paradigmas brancos de representação, uma espécie de teste (coroado de êxito) para ver se era possível expressar a si mesmo, como sujeito negro, pelos moldes de representação branca.

Esse é o trunfo de Arthur Timótheo da Costa: alguém cujos familiares haviam sido escravizados, ou seja, privados do domínio de seus corpos e mentes, torna-se capaz de apropriar-se dos esquemas de representação do opressor, válidos na época, para documentar/expressar a sua própria subjetividade, aquela que havia sido negada aos seus.

Talvez pelo próprio momento histórico em que vivia, preso ainda presa à idealização de uma arte afro-brasileira “pura”, fosse impossível para Valladares entender o que podia estar em jogo na produção de Arthur Timótheo da Costa, na sua luta para se apropriar dos modos de representação daqueles que os subjugava para restituir-lhes uma subjetividade truncada, desenraizada talvez, mas não menos potente e válida.

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A certa altura do texto que Claudinei Roberto da Silva também escreveu para o catálogo da mostra Territórios, da Pina Estação, ele cita o mesmo trecho do texto de Clarival do Prado Valladares, que acabo de citar e se posiciona sobre ele, tendo em vista, porém, a obra de Estevão Silva, outro artista negro, contemporâneo de Arthur T. da Costa. Assim ele se pronuncia:

[…] Apesar de escrito em 1968, o argumento de Valladares é atual e merece ser objeto de reflexão. O crítico afirma […] que na técnica empregada para a realização de algumas obras não se percebe a origem étnica dos artistas. Contudo, observamos diferenças sutis, mas significativas, entre a obra de Estevão Silva e a de artistas seus contemporâneos, como Pedro Alexandrino.

Convergimos aqui obrigatoriamente para uma história da arte que, não preterindo aspectos “estilístico- formais”, valoriza a biografia do autor na análise da obra […]. Mas permanece a pergunta: até que ponto as experiências pessoais, de caráter extra-artístico, são determinantes na construção de uma obra de arte?[14]

Estevão Silva, “Natureza-morta”, 1888, óleo sobre tela, 37 x 48,5 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo

A partir daí, Claudinei Silva analisa as diferenças entre as naturezas-mortas de Estevão Silva e aquelas pintadas por Pedro Alexandrino. Para o autor, ao contrário das naturezas-mortas quase sempre suntuosas de Alexandrino, nas de Estevão Silva o que vemos são:

[…] frutas e hortaliças colhidas na modéstia das hortas domésticas. As frutas apresentadas ainda têm, às vezes, seus talos e galhos partidos indicando proximidade ao local em que foram colhidas. Não raro, estão em adiantado estado de maturação. Soma-se a isso a escala das obras, que são, no caso de Estevão Silva, de proporções muito modestas, em sua maioria […][15]

Para o pesquisador, o formato diminuto das pinturas do artista seria indicativo tanto de sua origem social quanto da destinação daquelas obras: salas mais modestas do que aquelas para onde seguiam as pinturas de Pedro Alexandrino. O autor segue em suas ponderações e, após citar Gonzaga-Duque e José Roberto Teixeira Leite, que, em momentos distintos, também chamaram a atenção para o caráter modesto (porém nem um pouco menor) das pinturas de Estevão Silva, conclui:

[…] Desse modo, a assimilação da técnica europeia não é, a princípio, negação de um valor primevo ou capitulação e submissa adesão à cultura estrangeira. Consiste antes em artifício necessários à sobrevivência num meio hostil e, em alguns casos, estratégias subversivas e prenhas de ironia ou altivez […][16]

Após citar o mesmo autorretrato de Arthur Timótheo da Costa, analisado acima, Claudinei Roberto Silva caminha para a conclusão de seu texto chamando a atenção para um aspecto significativo para entendermos a complexidade daquilo que se convencionou chamar “arte afro-brasileira”:

Existe consenso de que fenômenos culturais de caráter popular, como o samba e o maracatu, são manifestações genuínas da sensibilidade negro-africana no Brasil. Sedimentados os códigos dessas linguagens, apaziguadas as polêmicas sobre suas origens e diferenças regionais e de estilo, foram elas absorvidas e são praticadas por todos e qualquer um no país, não importando a origem étnica do brincante. A arte dos afrodescendentes tem também uma origem, um passado a ser mais bem pesquisado, e um presente comprometido com a complexidade do momento. O futuro será consequência daquilo que hoje pudermos fazer para absorver essa produção e apresentá-la com a dignidade que seus autores há muito fazem por merecer[17] .

E o que poderia significar “apresentá-la com a dignidade que seus autores há muito fazem por merecer”? Estou certo de que o autor não se refere apenas à circunscrição das mesmas a boas exposições em que a produção dos artistas de origem africana possa ser vista com dignidade, dentro dos protocolos exigidos para uma boa exibição de obras de arte. “Apresentá-las com dignidade” é conceder a essa produção o reconhecimento do papel fundamental do papel que ela opera na experiência da arte no Brasil.

Sobretudo para a arte produzida no Brasil a partir de meados do século XIX a contribuição do artista de ascendência africana deve ser analisada naquilo que ela desmente da idealização branca da arte ocidental, naquilo que ela destrói e/ou acrescenta a essa tradição. Apenas quando entendermos que, para pensar a arte e a sociedade brasileiras da passagem do século XIX para o século XX, é tão importante estudarmos os autorretratos de Eliseu Visconti, quanto aquele de Arthur Timótheo da Costa ou as naturezas-mortas de Pedro Alexandrino em relação às de Estevão Silva; apenas quando entendermos que, para pensar a arte e a sociedade brasileiras das primeiras décadas do século XXI, é tão importante estudar a produção de Sidney Amaral, quanto a de Bruno Dunley, assim como a performance de Lia Chaia, quanto as de Moisés Patrício e Renata Felinto, aí sim é que teremos uma história da arte no Brasil menos preconceituosa e mais consciente de sua complexidade.

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[1] – CHIARELLI, Tadeu (cur.). Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. São Paulo: Estação Pinacoteca (Pinacoteca de São Paulo). De 12 de dezembro de 2015 a 27 de junho de 2016.
[2] – “Matrizes africanas”: território composto por obras de Emanoel Araújo, Octávio Araújo, Edival Ramosa e Rubem Valentim; “Matrizes europeias”: território composto por obras de Antonio Bandeira; Rommulo Vieira Conceição; Arthur Timótheo da Costa; João Timótheo da Costa; Miguelzinho Dutra; Maria Lídia Magliani; Firmino Monteiro; Heitor dos Prazeres; Estevão Silva; Genilson Soares e Benedito José Tobias; Mestre Valentin; 3 – “Matrizes contemporâneas”: território composto por obras de Sidney Amaral; Flávio Cerqueira; Jaime Lauriano; Paulo Nazareth e Rosana Paulino.
[3] – “De Anita à Academia: para pensar a História da Arte no Brasil”. Tadeu Chiarelli, in Novos Estudos Cebrap. São Paulo: Centro de Análise e Planejamento (Cebrap). N. 88, Nov. 2010, pág. 113 e segs.
[4] – GONZAGA-DUQUE. 2ª. A arte no Brasil. 2ª. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
[5] – ZANINI, Walter (coord.). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1983, 2 vols.
[6] – “A arte no período pré-colonial”, de Ulpiano Bezerra de Meneses; “Do século XVI ao início do séc. XIX: maneirismo, barroco e rococó”, por Benedito Lima de Toledo; “O século XVII e o Brasil holandês”, por José Luís Mota Menezes; “Os pintores de Nassau”, por José Roberto Teixeira Leite; “Séc. XIX. Transição e início do séc. XX”, por Mário Barata; “Art-noveau, modernismo, ecletismo e industrialismo”, Flávio Motta; “Arte Contemporânea”, por Walter Zanini.
[7] – Inicio a série de ensaios “satélites” da publicação com o texto escrito por Darcy Ribeiro, “Arte índia” que, apesar de ocupar o lugar do segundo item dentro da cronologia principal, ele se caracteriza por discutir as “especificidades” da arte indígena, reconhecendo sua importância, mas retirando-a da linha principal da arte brasileira, como no caso do ensaio de Mariano Carneiro da Cunha, sobre arte afro-brasileira. Os demais ensaios satélites do livro: “Arquitetura contemporânea”, Carlos A.C. Lemos; “Fotografia”, por Boris Kossoy”; “Arte Afro-brasileira”, por Mariano Carneiro da Cunha; “Desenho industrial”, por Júlio Roberto Katinsky; “Comunicação visual”, de Alexandre Wollner; “Artesanato”, Vicente Salles e, por fim, “Arte educação”, por Ana Me Tavares Bastos Barbosa.
[8] – Não podemos esquecer, é claro, que a fundação do Museu Afro em São Paulo, em 2004, por Emanoel Araújo, foi, ao mesmo tempo, tanto um sinal da referida complexidade assumida pelo debate artístico brasileiro, quanto um primeiro resultado desse mesmo debate.
[9] – Lembro aqui dos seguintes textos: “Arte afro-brasileira: o que é afinal?”, de Kabengele Munanga, in AGUILLAR, Nelson (org.). Mostra do redescobrimento. Arte Afro-brasileira. São Paulo: Associação Brasil 500 anos. Artes Visuais, 2000. Pág. 98 e segs.; e CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2007.
[10] – Como visto, Carneiro da Cunha não se ocupa do fato da origem africana de Di Cavalcanti.
[11] – “Arte Contemporânea”, Walter Zanini, IN História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles, vol.2. pág. 682.
[12] – “O negro brasileiro nas artes plásticas”, Clarival do Prado Valladares. IN AGUILAR, Nelson (cur. Geral). Mostra do redescobrimento. Negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. Pág. 426 e segs. (texto publicado originalmente em Cadernos Brasileiros. Rio de Janeiro: ano X, n. 47. Maio-julho, 1968.
[13] – Clarival do Prado Valladares, op.cit. pág. 428.
[14] – “Quem reagiu está vivo. Arte e afrodescendência mapeando territórios”, in CHIARELLI, Tadeu (cur.) Territórios…op. cit. pág. 34.
[15] – Idem.
[16] – Idem.
[17] – Idem.

“Se houvesse um projeto de país, certamente a cultura seria um dos tópicos determinantes”, diz Marcos Amaro

O artista, colecionador e presidente da FAMA, Marcos Amaro
O artista, colecionador e presidente da FAMA, Marcos Amaro. Foto: Divulgação.

Com apenas 36 anos de idade, o artista, colecionador, galerista e gestor cultural Marcos Amaro se tornou nos últimos anos um nome destacado e recorrente nos círculos da arte contemporânea no país. Para além de sua produção artística e de seu vínculo com o mercado através da galeria Kogan Amaro, o que mais chama a atenção é a consolidação, em curto espaço de tempo, da FAMA Museu e Campo – um vasto museu de arte contemporânea e um espaço dedicado a land art – e de uma série de projetos educativos e de fomento à arte contemporânea no país.

Com um acervo de cerca de 2 mil obras de artistas de variados períodos e estilos – comodatadas da coleção pessoal de Amaro -, a Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA), situada em um edifício histórico no centro de Itu, abriu suas portas ao público em 2018. Enquanto organização cultural privada sem fins lucrativos – intitulada Associação para Futura Fundação -, a FMA constituiu um corpo diretor, um conselho consultivo e um time de funcionários de cerca de 40 pessoas. No final de 2019 inaugurou também a FAMA Campo, dedicada à arte contemporânea em grande escala e em espaço aberto (em Mairinque) e, no inicio de 2020, se preparava para a inauguração de uma grande mostra de desenhos de Tarsila do Amaral – recentemente incorporados ao acervo da Fábrica (leia aqui).

Uma semana antes da abertura a instituição teve que fechar as portas por conta da pandemia de coronavírus e, agora, cerca de 8 meses depois, a FAMA reabre as portas com essa e mais duas exposições. Tarsila do Amaral – Estudos e Anotações; a coletiva Ontologias, de Cabral, André Albuquerque (Kandro) e Marcos Amaro; e a individual Rejeito, de Marcelo Moscheta, ocupam os espaços da Fábrica a partir deste sábado, dia 14 de novembro. A FAMA Campo, por sua vez, se prepara para expor, talvez ainda este ano, uma nova obra de Carlito Carvalhosa, comissionada após o artista vencer o Prêmio de Arte Marcos Amaro este ano.

Em conversa com a arte!brasileiros, Amaro falou sobre sua atuação nas diferentes áreas e do desafio de separar os trabalhos, de modo que não haja conflitos de interesses entre eles. “Quando a gente clareia as visões de cada projeto, de cada iniciativa, de partida você já deixa nítido o que pode e o que não pode”, afirma. Enquanto gestor, comemorou também a consolidação do projeto da FAMA – que recebeu 10 mil estudantes em 2019 – e o potencial da instituição: “Em uma região de densidade demográfica muito alta, o museu é um dos poucos, talvez o único, com essa vocação de arte contemporânea. Então isso pode contribuir muito, de forma definitiva, para o percurso das artes visuais nessa região.”

A Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu. Foto: Divulgação

Amaro falou ainda sobre a situação privilegiada da Fundação no cenário nacional, já que ela é financiada com recursos do próprio artista, mas lamentou a contexto para as artes no Brasil: “É triste, como cidadão, pensar que temos um país com tantas oportunidades, diversidade cultural e artística como o Brasil, tantas potências, e isso não ser otimizado e canalizado, inclusive de forma estatal”. Leia abaixo a íntegra da entrevista com Marcos Amaro.

ARTE! – Antes de falar da reabertura da FAMA, seria interessante você contar um pouco do trajeto da instituição. Pode-se dizer que é um espaço que em um período de tempo muito curto se consolidou como uma instituição cultural importante no cenário artístico brasileiro. A que você acha que isso se deve?

Apesar de a FAMA ser relativamente jovem, se você considerar a data de abertura, o projeto da Fundação é mais antigo, de 2012. Então eu diria que essa construção ao longo dos anos, essa edificação conceitual, inclusive, ajudou muito a chegarmos até aqui. E ajudou muito também na impressão causada quando abrimos, o que possibilitou que a gente gradativamente venha se tornando uma instituição cultural importante no Brasil. Então tudo é um processo que vem sendo construído desde 2012. Esse processo passa por uma vocação de artes visuais, por uma vocação de criação – eu como artista – e uma vocação de colecionador. Isso tudo contribui para o fortalecimento do projeto e mais tarde culmina na aquisição da propriedade, da própria Fábrica, como espaço cultural que vem sendo estabelecido.

ARTE! – Ainda no fim do ano passado vcs inauguraram a FAMA Campo, outro passo importante nesta trajetória. Obras em larga escala já eram foco da instituição, mas isso ganha uma outra proporção com o novo espaço…

Sim. O primeiro livro que lançamos, A Força do Tridimensional, que faz um recorte das nossas primeiras exposições na FAMA, ali já na antiga Fábrica São Pedro, apresenta peças de fato em grande escala, com essa peculiaridade do tridimensional. E como é um espaço de 25 mil metros quadrados, muito amplo, a fábrica nos possibilita mostrar trabalhos com uma dimensão maior, que não necessariamente caberiam em um museu tradicional. Existe também esse diálogo entre o contemporâneo e o moderno, no sentido da arquitetura do prédio, que é outro fator de destaque do projeto.

E o FAMA Campo também tem esse fator da grande escala, porém ele valoriza mais o aspecto natural, da paisagem. Então ali a gente sempre vai estar falando de arte na paisagem. A gente não vai levar uma escultura pronta para o espaço. O desafio ali é o artista elaborar projetos específicos para o espaço e que sofram as intempéries do tempo – não projetos que necessariamente tenham essa preocupação museológica, no sentido da conservação. Claro que cada artista tem um tratamento para o projeto que ele realiza, isso é caso a caso.   

Obra de Marcia Pastore na FAMA Campo. Foto: Divulgação

ARTE! – Falando sobre o acervo e a coleção, como se separa o que é sua coleção privada do que é o acervo da FAMA?

As peças do acervo da FAMA são comodatadas. Todas as obras que estão no museu estão em comodato para a FAMA, então não existe uma promiscuidade, no sentido de usar o acervo da instituição para um interesse pessoal. A sinalização de um contrato e um acordo neste aspecto foi justamente para proteger a instituição.

ARTE! – Neste sentido, você é ao mesmo tempo artista, colecionador, galerista e presidente de uma instituição cultural. Como trabalhar sem que haja conflitos de interessa e sem que essas coisas todas se misturem?

Acho que é importante sempre a gente clarear as visões. Quando a gente clareia as visões de cada projeto, de cada iniciativa, de partida você já deixa nítido o que pode e o que não pode. Então, por exemplo, em relação à fábrica, como o projeto nasceu inclusive de um desejo relacionado ao meu ateliê, essa condição minha como artista está muito presente no dia a dia da fábrica. No sentido inclusive da pesquisa, do desenvolvimento e mesmo da difusão do meu trabalho, isso cabe ali. Então isso é uma coisa que já faz parte do cerne inicial do projeto. Acho que uma boa referência nesse aspecto seria a Fundação da Vera Chaves Barcellos. Então é uma Fundação de artista para artista.

Já na galeria (Kogan Amaro), em nenhum momento desde o começo eu tive essa intenção de ser artista da galeria. Para poder trabalhar de forma absolutamente profissional com os outros artistas. Ali não há essa sobreposição. Da mesma maneira que há uma relação de separação entre a galeria e a Fundação, são programas distintos. Eventualmente pode acontecer de a Fundação ter trabalhos de artistas da galeria, porque nós representamos artistas muito bons, que merecem ter um destaque institucional, mas isso não é um projeto. Pode acontecer, mas é algo que é uma consequência do trabalho do artista, que pode estar exposto em qualquer outra instituição.     

ARTE! – Chegando então nesta reabertura, estamos falando de um ano em que vivemos uma pandemia sem precedentes na história. A Fábrica de Arte Marcos Amaro, após quase oito meses fechada, reabre agora suas portas. Pode contar um pouco como foi tomada essa decisão e como será o novo tipo de visitação?

Foi uma decisão muito cautelosa. Do mesmo modo, quando a gente decidiu fechar estávamos a uma semana de abrir a exposição da Tarsila. Então você imagine o quão frustrante foi para todos nós. A exposição estava pronta, com curadoria da Aracy Amaral, que já é nonagenária, e da Regina Teixeira de Barros. Então nós queríamos muito que a mostra acontecesse. Mas o Conselho foi muito sábio. Fomos inclusive a primeira instituição a anunciar o fechamento. Uma decisão difícil, porém necessária. Agora, após conversas com o Conselho, com agentes culturais e com as autoridades da saúde, achamos que seria prudente reabrir, mas com algumas restrições – por exemplo, quanto ao número de visitantes, ao distanciamento social e à todos os protocolos de segurança. Nesse sentido, estamos abrindo de uma forma segura, de modo a garantir a integridade dos visitantes.

E dentro destes oito meses nós também aproveitamos para fazer uma série de reformulações internas no museu, na instituição, no sentido do nosso programa, dos nossos desafios, de onde nós queremos chegar. Então foi um momento de muito fortalecimento interno e de mudanças para a instituição, para podermos sair da pandemia mais fortalecidos, inclusive com um acesso maior no universo virtual.

Vista da exposição "Estudos e Anotações", de Tarsila do Amaral, na Fábrica de Arte Marcos Amaro
A exposição “Estudos e Anotações”, de Tarsila do Amaral. Foto: Filipe Berndt

ARTE! – Sim, vocês tiveram um trabalho que não parou nas redes sociais…

Não paramos. O educativo todo, por exemplo. Felizmente nós não precisamos demitir ninguém, conseguimos manter nossa equipe, e o educativo ficou focado no digital, no desenvolvimento das propostas. 

ARTE! – O foco no trabalho educativo, que tem a ver com uma ideia de participação, não apenas de contemplação, parece ganhar cada vez mais destaque no trabalho de diversas instituições culturais. Ou seja, pensar também não só no número de visitantes, mas na qualidade dessa visitação. Como essa questão é tratada na FAMA?

De partida, acho importante falar da própria diversidade que temos dentro do educativo. Toda essa questão, tão presente no dia a dia dos brasileiros, da inclusão das minorias, isso já se dá de forma clara na constituição do nosso educativo. Questões de gênero e de raça são temas muito caros ao nosso educativo. E daí já nasce essa reflexão sobre diversidade, sobre como lidar com isso, como trabalhar. E um outro ponto que vem se desenvolvendo de maneira importante é a parte de pesquisa e essa questão da qualidade da visitação, de sempre poder oferecer uma interlocução, uma investigação e uma crítica maior para o espectador. De modo que não seja apenas um espaço de contemplação, mas de investigação e de crítica. E isso depende muito da interlocução, então é importante que o educativo cada vez mais se fortaleça, para que possa apresentar debates para o espectador, de modo que as pessoas ampliem suas visões de mundo. Então existe essa missão. E nós estamos, ainda, formando uma biblioteca, que será algo importante nos próximos anos. Uma biblioteca que vai dialogar com o acervo do museu.

ARTE! – Me parece que o fomento, ou seja, o prêmio e as residências também fazem parte dessa ideia de participação…

Com certeza. Temos sempre os artistas residentes, que estabelecem ateliês no espaço, e a gente sempre procura ter essa reciclagem e essa oportunidade. Lançamos recentemente um edital de ocupação, por exemplo, de modo que os artistas venham a ocupar os prédios antigos. Neste momento, uma das mostras que estamos abrindo é do próprio Marcelo Moscheta, que fez parte do prêmio no ano passado. Então o fomento é sim um dos vetores da FAMA, no sentido de poder contribuir neste aspecto não só para as artes visuais, mas também para a região do interior.

ARTE! – Sobre essa relação com o entorno, existe um foco no diálogo com a cidade e com a comunidade. Como se dá esse trabalho?

Materialmente falando, já existe até o projeto do Parque Linear, que fica na Avenida Galileu Bicudo, que é onde nós estamos localizados, e para o qual nós concedemos via empréstimo cinco esculturas. Dali, elas fazem uma ponte com o museu, e isso já é uma situação importante de diálogo, um convite para o museu. E além disso, o próprio programa que temos com as comunidades e as escolas públicas é fundamental. No ano passado foram mais de 10 mil estudantes que visitaram a FAMA, todos do entorno e da região. É interessante pensar que se você pegar Itu, Salto, Sorocaba e a região, são 2,5 milhões de habitantes. É muita gente, uma densidade demográfica muito alta. E o museu é um dos poucos, talvez o único, com essa vocação de arte contemporânea. Então isso pode contribuir muito, de forma definitiva inclusive, para o percurso das artes visuais nessa região. Então nossa ambição cultural passa muito por aí.

ARTE! – Para terminar, é impossível não falar do contexto político em que estamos vivendo. O Brasil vive um período bastante conturbado, em que a área cultural parece ser uma das mais atacadas pelo próprio governo federal. Queria que falasse um pouco como vê a situação e como se dá o trabalho da Fundação neste contexto.

Nós temos uma relativa sorte, porque hoje felizmente eu tenho condições pessoais para fomentar o projeto. Hoje, 100% dos recursos são próprios. É claro que tenho interesse em fazer com que isso mude, gostaria de contar mais com apoios e parcerias tanto da iniciativa privada quanto da iniciativa pública. Então, do ponto de vista de um gestor, há essa preocupação, porque a gente vive nesse ambiente em que a cultura de fato está muito deprimida, digamos assim. E deprimida por uma falta de projeto de país. Se houvesse um projeto de país, certamente a cultura seria um dos tópicos determinantes. Então é triste, como cidadão, pensar que temos um país com tantas oportunidades, diversidade cultural e artística como o Brasil, tantas potências, e isso não ser otimizado e canalizado, inclusive de forma estatal. Ou seja, o Estado não considerar isso um projeto. E entendo que a FAMA se torna também proeminente neste momento por ser uma das poucas instituições que têm essa condição. É um privilégio poder atuar e, de alguma forma, fomentar a cultura, assim como acontece, em diferentes escalas, com Itaú Cultural e Sesc, entre outras.

ARTE! – Instituições que conseguem se proteger, ao menos em parte, desse desmonte na área cultural…

Exato. Mas é claro que eu tenho essa preocupação de longo prazo. Ainda sou jovem e tenho essas condições, mas gostaria que o projeto da Fábrica fosse duradouro, que viesse a se desenvolver de outras maneiras. Então venho pensando em como fazer isso acontecer, com um fundo patrimonial, um endowment, que possa fazer parte da estrutura da organização, para tornar as coisas mais perenes.