Visão geral da exposição "Língua Solta", em primeiro plano "Olha minha língua", de Alex dos Santos. Foto: Ciete Silverio / Divulgação.
A presença generalizada da palavra no mundo das coisas, tão evidente e tão pouco retratada, é o mote da mostra Língua Solta, instalada no Museu da Língua Portuguesa (MLP) até o próximo mês de outubro. Mesclando propositalmente categorias estanques, como alta cultura e cultura popular, arte contemporânea e cultura de massas, a exposição combina num mesmo espaço e de forma não ordenada um conjunto amplo e significativo de obras de arte contemporâneas – já referendadas pelo mercado e pelo circuito – e uma vasta seleção de objetos, cartazes, embalagens, faixas comerciais ou de protesto e outros elementos da vida cotidiana. Em ambos, o foco está na língua potencializada enquanto signo. “Olhando para o entorno, procuramos reconhecer que é a língua que anima muitos dos objetos ao nosso redor”, descreve Moacir dos Anjos, que assina a curadoria juntamente com Fabiana Moraes.
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Faixa de Marta Neves. Foto: Divulgação.
Meme produzido pelo coletivo "Saquinho de Lixo". Foto: Divulgação.
Não há na seleção feita pela dupla nenhuma pretensão universalizante ou enciclopédica. Afinal, como diz Moacir, “a curadoria é sempre um recorte do mundo”. As escolhas derivam das experiências – objetivas e subjetivas – da dupla no campo da arte e da cultura. O resultado é uma mostra em que a palavra parece ricochetear, indicando diferentes caminhos de apreensão do mundo. Um dos aspectos mais evidentes é a presença clara de um discurso de reivindicação política. “São palavras que expressam desejos, identidades, queixas”, explica Fabiana, enfatizando que não há na exposição nenhum tipo de hierarquização entre uma linguagem voltada ao entretenimento, a sugestão política ou a elucubração poética. Muitas vezes o espectador é colocado diante de manifestos que expressam a urgência dos dias atuais. Há, por exemplo, um conjunto de cartas e desenhos enviados por crianças moradoras da Maré ao Tribunal, com reações à repressão policial. Ou placa em homenagem a vereadora Marielle Franco, cujo assassinato segue impune. “São como gritos”, explica Fabiana.
Mesmo não linear e organizada de forma a promover faíscas entre diferentes formas de lidar com ideias, formas e palavras, a exposição se articula em torno de seis núcleos principais: mídia, resistência, casa, rua, religiosidade e pedagogia são as palavras em torno das quais se aglutinam os vários objetos. Muitos dos trabalhos selecionados pertencem, simultaneamente, a várias dessas categorias. E estabelecem entre si diálogos enriquecedores. Há, por exemplo, uma interessante reverberação entre os slides usados por Paulo Freire nos anos 1960 para alfabetização e a obra ABC da Cana, de Jonathas de Andrade, ou ainda a pintura Esperança, de Leonilson, que também usa o alfabeto como matéria-prima.
Na exposição “Língua Solta”, a obra “ABC da Cana” (2014) de Jonathas de Andrade. Foto: Ciete Silverio / Divulgação.
Slides utilizados pelo método Paulo Freire de alfabetização de adultos nos anos 1960. Foto: Divulgação.
A palavra, onipresente, às vezes cede lugar para aproximações poéticas menos explícitas. É o caso do conjunto formado pelas obras de Lygia Pape, Lenora de Barros, Lia Chaia e Anna Maria Maiolino, no qual o foco se desloca do símbolo escrito para a fisicalidade da língua. A ideia de corte, mácula ou impossibilidade de controle da própria língua, algo comum ao trabalho dessas artistas, torna a aproximação entre elas muito potente.
É grande a lista de artistas representados na exposição, com raríssimas e propositais lacunas, como no caso dos poetas paulistas ligados ao concretismo. “Procuramos evitar um caráter literário, privilegiando a presença da palavra poética no campo artístico”, explica Moacir. Deixando de lado essas exceções, os grandes mestres da arte que se apropriam da palavra estão lá. Autores como Arthur Bispo do Rosário, Mira Schendel, Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Antonio Manuel, Leonilson, Élida Tessler, Vânia Mignone, Marilá Dardot, Ivan Grilo, Jaime Lauriano, dentre outros, comparecem, muitas vezes com mais de um trabalho.
“Você me dá sua palavra?”, de Elida Tessler, na exposição “Língua Solta”. Foto: Ciete Silvério / Divulgação.
Há um esforço permanente, em termos de montagem, de desfazer categorias, de demonstrar que a expressão artística deriva muitas vezes de um olhar atento ao mundo da rua e das coisas, sejam estandartes de maracatu, panos de prato, rótulos de cachaça ou assinaturas de pixo. Um exemplo claro desse hibridismo é o trabalho Você me dá sua palavra?, de Elida Tessler, que promove uma costura por toda a exposição. Por todo o espaço ziguezagueam, sustentados por cordas de secar roupa, milhares de pregadores suspensos. Sobre eles, uma série de pessoas convidadas pela artista escreveu uma palavra que lhe fosse especial. Em apresentação feita por ocasião do dia internacional da língua portuguesa, Tom Zé revelou a sua: “Desobediência”.
Originalmente, a mostra Língua Solta foi pensada como mais um núcleo das atividades permanentes do museu. Mas as dificuldades decorrentes da pandemia, a ausência de condições técnicas na instituição – que não possui nenhum acervo de obras de arte, portanto não conta com equipamentos como reserva técnica, equipe de conservação etc. – e a presença ampla de obras cedidas em empréstimo por coleções particulares e públicas fez com que a seleção passasse a ser exibida em caráter temporário. Em contrapartida, ganhou um espaço três vezes superior ao previsto anteriormente. É a única atividade do MLP que já pode ser vista pelo público e fica acessível a grupos específicos e mediante agendamento, até o final do mês de junho, para reabrir, junto com todo o museu, a partir do final de julho.
Paulo Mendes da Rocha em seu escritório, em 2016, em retrato feito por Luisa Sigulem e publicado agora pela primeira vez. Foto: Luisa Sigulem
Numa tarde de junho de 2016, poucas semanas após ganhar o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) recebeu este repórter em seu escritório, no centro de São Paulo, para conceder uma entrevista à revista Brasileiros. Era mais uma das muitas honrarias internacionais recebidas pelo arquiteto brasileiro nas últimas décadas – como o Pritzker, o Mies Van der Rohe, a medalha de ouro do Real Instituto de Arquitetos Britânicos (Riba) e o Prêmio Imperial do Japão – que coroavam seus cerca de 60 anos de trajetória profissional. O prêmio concedido pelo evento italiano, na verdade, foi apenas o pretexto para uma longa conversa sobre os mais variados temas, desde as percepções do arquiteto sobre as cidades, a arte e a natureza até críticas à construção de Brasília, ao conceito de “habitação popular” ou de “arquitetura verde” e ao sistema educacional no Brasil. Paulo não fazia concessões, era contundente em suas afirmações.
Ao longo de uma hora e meia de entrevista, o arquiteto deixou claro, uma vez mais, que não se pode pensar arquitetura como algo separado da vida cotidiana, da resolução dos problemas das pessoas e da busca pela satisfação das necessidades e desejos humanos. O título da matéria, publicada na edição da Brasileiros daquele mês – “O amplo sentido da arquitetura” – e a chamada na capa – “Paulo Mendes da Rocha: um pensador” – tentavam, minimamente, dar conta desta amplitude do pensamento do arquiteto que, naquele momento, era o último grande nome vivo da arquitetura moderna brasileira.
Agora, cinco anos depois, pouco após a morte de Paulo Mendes da Rocha, aos 92 anos, em decorrência de um câncer de pulmão, a arte!brasileiros relembra alguns dos trechos mais marcantes daquela conversa. O arquiteto, nascido em Vitória e radicado em São Paulo, foi um dos principais nomes da chamada Escola Paulista de Arquitetura – ao lado de seu mestre João Vilanova Artigas. Projetou, entre muitos outros, o Ginásio do clube Paulistano, o MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia), a reforma da Pinacoteca do Estado, a Marquise na Praça do Patriarca, o Museu dos Coches (Lisboa) e o Sesc 24 de Maio. Foi professor da FAU-USP, perseguido pela ditadura civil-militar no fim dos anos 1960, e influenciou de modo marcante o pensamento arquitetônico das gerações que o seguiram. Com ênfase na técnica construtiva, na adoção do concreto armado aparente e na valorização das estruturas das casas e edifícios, suas obras são referência incontornável na arquitetura brasileira.
Mas, para além de suas obras, foram suas ideias e posicionamentos que o tornaram um dos maiores nomes da arquitetura nacional – assim como ocorreu com Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Artigas e Lina Bo Bardi, entre outros. Leia a seguir trechos da entrevista de 2016.
Sobre arquitetura e arte
“Nós estamos aqui, em qualquer das nossas atividades, para resolver problemas. O que há são sempre problemas, pois é muito difícil ser qualquer ente vivo na natureza. Você vê o que as espécies tiveram que inventar, desde uma libélula até uma girafa, o negócio é muito complicado. Visto por esse lado, as coisas ficam até certo ponto estimulantes, porque temos que resolver problemas. Ou, para que isso se configure, precisamos saber formular os nossos problemas”.
“Você não pode resolver problemas, no âmbito da arquitetura, do ponto de vista puramente funcional. Aí você no máximo cria máquinas. Justamente a graça da arquitetura é manter o discurso vivo de que, diante da urgência para fazer algo, já se faz também com altos ideais da visão que temos de nós mesmos. É o que os linguistas chamam de concomitância do surgimento de necessidades e desejos. Você transforma a estrita necessidade, ao mesmo tempo, em desejo. Ou seja, você resolve um problema do ponto de vista prático, quase mecânico, dando uma expressão de que aquilo ainda poderá ser mais bem resolvido no futuro”.
“Hoje em dia, vejo a expressão arte como um tanto reducionista. Não pode ser só arte, e eis aí a graça da arquitetura, que você não sabe bem se é arte, ciência ou técnica. Ou seja, tem que ser tudo isso ao mesmo tempo. É um discurso sobre o conhecimento. A impressão que tenho é que tudo que o homem faz tem uma dimensão artística. A nossa existência exige uma posição daquilo que chamamos de arte, ou de atitude artística. Na fala, no gesto, na expressão, na preocupação com o outro… No fundo, no fundo, arte significa preocupação com o outro”.
“Há um mercado de uma pretensa arquitetura, espalhafatosa, espaventosa, que, como qualquer embalagem, o mercado produz, com um valor fictício, capaz de ser promulgado como valor. A arquitetura como mercadoria é um erro. A arquitetura não é mercadoria, ela é sempre fruto de necessidades”.
“Acho muito bonito usar essa expressão popular “arquitetar”. As pessoas dizem: o que você está arquitetando? E isso é: estar dando forma a uma ideia, a uma vontade, a um desejo. Nós estamos condenados a transformar ideia em coisa, porque senão ninguém conhece a sua ideia. Se você escreve letras em um papel, eis o poema transformado em coisa. Quando estava só na cabeça do poeta, não era nada”.
Paulo Mendes da Rocha. Foto: Luisa Sigulem
Sobre as cidades e o espaço público
“Na verdade, a ideia de cidade não é de amparo físico, no sentido de proteger do vento e da chuva. É a de um lugar onde você possa conversar. A cidade é o laboratório do homem. Ele precisa estar junto. E para viver junto é preciso transporte público, é preciso a escola das crianças etc. Isso não quer dizer que a cidade de São Paulo, com 20 milhões de habitantes, fruto da decadência advinda de uma política colonialista, seja a cidade ideal”.
“Nesses momentos de crise, quando fica explícita a agudeza dos problemas, a cidade se transforma para dizer justamente o que ela pretende ser. Quando se ocupam espaços, quando a rua assume um caráter de assembleia, é também uma visão arquitetônica da transformação. Porque nem sempre arquitetura exige que se construa algo. Ela pode ser realizada com as atitudes humanas simplesmente”.
Sobre o homem e a natureza
“Porque existe essa tendência de pensar que falar em natureza é falar no verde. Não, natureza é, inclusive, a condição masculina e feminina do ser humano, e nunca se enfrentou isso com tanta evidência quanto diante da questão da impossibilidade de uma superpopulação no planeta. Nós não somos nada. Sempre temos que imaginar o que seremos. E quando você indaga isso, eis a dimensão política da nossa existência. O que seremos se pudermos tomar decisões sobre os nossos rumos? É evitar o desastre. No fundo é isso”.
“É preciso encarar o fato de o planeta ser um pequeno calhau desamparado girando no universo, e pela primeira vez o homem não pode negar isso.”
Sobre educação e formação
“O sistema educacional está todo errado. Nós devíamos ensinar física, mecânica elementar junto com a alfabetização. Uma criança brinca com peão na palma da mão, empina papagaio, solta foguete, joga bolinha de gude. Ou seja, ele sabe o que é uma esfera que toca um plano só em um ponto. Não se joga gude com paralelepípedo, mas com esferas perfeitas. E você amarra uma pedra num barbante e qualquer criança vai entender o que é força da gravidade, conservação da energia etc. É mais fácil ensinar física elementar e mecânica a uma criança do que ensinar o que é o Dia das Mães. O difícil, para uma criança, é entender as besteiras que falam. E aí estou falando do mundo inteiro, não só do Brasil. A educação hoje é feita para submeter o camarada aos desfrutes do mercado e da ideologia que está posta aí, de um capitalismo estúpido”.
“É mais fácil a criança entender o que é um coração se você colocá-la para sentir a pulsação com a mão, no próprio corpo, do que colocá-la para desenhar um negócio vermelho no papel, tão abstrato. O filho do pescador sabe tudo sobre vento, tempo etc. O confronto com a natureza no seu conjunto de fenômenos educa, ainda hoje, de uma maneira que serve um pouco de contraponto a essa educação oficial que temos”.
“Não tenho muita experiência, para mim o mundo é sempre novo. Eu não sei o que foi e o que será. Só sei que não tenho medo das coisas, muito menos do presente, porque ele é tudo o que temos”.
Thiago de Paula Souza, Diane Lima e Beatriz Lemos, the triennial’s curators. Photo: Indiara Duarte
Em meio a um contexto pandêmico e de crise política, quais são as possibilidades curatoriais e expositivas? Essa foi uma das perguntas que guiou meses de trabalho de O rio é uma serpente, terceira edição da Frestas – Trienal de Artes. Organizada pelo Sesc São Paulo, com base na unidade de Sorocaba, ela conta com a curadoria de Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza.
O convite ao trio veio antes da pandemia, possibilitando as primeiras atividades na construção do projeto. Em uma viagem pelo Brasil, os curadores visitaram juntos localidades do Norte e Nordeste: “O mais importante para nós era que a partir desse corpo em movimento e em embate com outros territórios pudéssemos criar um corpo curatorial”, conta Beatriz. Foi nesse movimento que O rio é uma serpente começou a ganhar forma, não como uma temática – o que seria insuficiente para o momento vivido -, mas como uma cosmovisão que reúne os aprendizados de seu processo e que tem em vista a discussão sobre os movimentos contemporâneos, suas geografias e estruturas coloniais.
Mas como a Frestas deságua em Sorocaba? A partir de sequência de encontros de escuta com artistas, produtores, gestores e educadores locais, a equipe buscou entender as necessidades da região e tornou o educativo um dos pilares centrais do pensamento curatorial. “Sempre foi uma preocupação muito grande não sermos como uma nave que pousa na cidade ‘trazendo o conhecimento’ e depois indo embora”, explica Renata Sampaio, coordenadora do educativo. Se o contexto geral parecia tão verticalizado, a proposta aqui era mudar um pouco essa dinâmica. “Não queríamos reproduzir essa visão colonial de quem quer apenas ‘ensinar’ e não construir junto”, completa.
Com a chegada da pandemia de Covid-19, todo o mundo da arte viu a necessidade de repensar suas programações. Com a trienal não foi diferente. A exposição foi adiada seguidas vezes até ser aberta à visitação no dia 21 de agosto de 2021. Para os curadores, essa decisão traz uma provocação sobre suas funções profissionais, lembrando que “talvez a prática curatorial não se limite a uma organização de exposições”, explica Thiago de Paula.
Com isso em mente, mudaram os rumos do projeto e decidiram focar ainda mais nas práticas educativas. Se “o rio é uma serpente porque se esconde e camufla entre o imprevisível e o mistério, cria estratégias para o seu próprio movimento”, como sintetiza o texto curatorial, é com foco no curso e nas curvas deste rio – e nos diálogos que esses promovem – que Frestas decide se construir. “Essa imagem tem nos ajudado a pensar essa cosmovisão e tem nos possibilitado encontrar estratégias e possibilidades para enfrentar o que é curar uma exposição de arte contemporânea nesse momento que o Brasil está vivendo”, explica Diane Lima.
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Vista da exposição da 3a Frestas - Trienal de Artes no Sesc Sorocaba, com instalação de Gê Viana em primeiro plano. Foto: Matheus Jose Maria
Fotografias de ZUMVI Arquivo Afro Fotográfico na Frestas - Trienal de Artes. Foto: Matheus José Maria
Os afluentes
Foi nesse contexto que a ideia do Programa de Estudos ganhou forma. Quinze artistas que têm a vida e a prática diretamente conectadas à violência colonial foram convidados a participar de uma série de encontros virtuais com as equipes de curadoria, produção e educativo da trienal. “A gente teve encontros intensos discutindo projetos, poéticas, práticas e vida”, conta Thiago. Nesse espaço, os artistas puderam elaborar seus próprios projetos artísticos, que virão a compor a exposição.
A partir das vivências e ideias de Castiel Vitorino Brasileiro, Davi de Jesus do Nascimento, Denilson Baniwa, Denise Alves-Rodrigues, Ella Vieira, Gê Viana, Iagor Peres, Jonas Van Holanda, Juliana dos Santos, Laís Machado, Luana Vitra, Pedro Victor Brandão, Rebeca Carapiá, Sallisa Rosa e Ventura Profana, os encontros trouxeram foco para diversas das discussões que permeavam o pensamento curatorial. Com isso, não apenas os artistas saíam das videochamadas com novas provocações, mas os curadores podiam repensar as possibilidades expositivas.
A Lei 11.645, que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena, foi discutida no Programa de Formação, com Ingra Maciel (dir.), Juliana dos Santos (abaixo) e mediação de Renata Sampaio (esq.). Foto: Reprodução
Foi também nessa direção que se deu O rio é uma serpente: tópicos para a diferença e justiça social, programa de formação online de professores, realizado em reuniões semanais entre os meses de outubro e novembro de 2020. “A aprovação foi tão grande que a formação virou um curso oficial do município, contando progressão de carreira aos professores participantes”, conta Renata Sampaio, que liderou o programa.
Em cada encontro, um ou mais palestrantes se unia ao grupo para discutir estratégias para o trabalho em sala de aula. “A ideia não era mostrar ao professor como dar aula, mas sensibilizá-lo sobre assuntos que achamos de suma importância, para que o debate continue, de forma horizontal, na escola”, explica Renata. “O educativo dessa edição de Frestas está trabalhando a partir de perspectivas, agentes e conceitos não hegemônicos, buscando construir relações com outras áreas do conhecimento”, completa.
O online, porém, expandiu as fronteiras geográficas de Frestas. No Programa de Formação, possibilitou a participação de educadores e convidados de diversos lugares do Brasil e a disponibilização desse material de forma online para que mais pessoas fossem impactadas. Num âmbito geral, possibilitou uma troca ainda mais intensa com o cenário internacional, a partir da parceria estabelecida com o coletivo Ayllu, um grupo de ação artístico-política e de pesquisa colaborativa formado por pessoas migrantes, racializadas e dissidentes de gênero e sexualidade das ex-colônias espanholas, sediado em Madri.
Buscando um espaço crítico de pensamento e criação coletiva, o Ayllu desenvolveu o Programa Orientado a Práticas Subalternas (POPS), que nesta edição reuniu cerca de 40 pessoas de oito países latino-americanos para questionarem o racionalismo, o cientificismo e a falsa objetividade do pensamento eurocêntrico. As discussões geraram um fanzine que fará parte da mostra O rio é uma serpente e agregaram outra discussão ao projeto, trazendo o debate para as questões migratórias.
A participação de pessoas de 25 das 27 unidades federativas do Brasil no curso de expografia também dá tom a essa expansão de Frestas. Conduzido por Tiago Guimarães, arquiteto de exposição da própria trienal, o curso visou contribuir para que mais pessoas tivessem acesso a informações sobre a área. Já a Anti-análise, projeto de mentoria de Pêdra Costa, atendeu a 45 artistas de todo o Brasil ao acontecer no ambiente online, o que não seria possível com a realização presencial em Sorocaba, como haviam pensado inicialmente.
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Litografia do coletivo Ayllu apresentada na Bienal de Sidney (2020), e base para uma das palestras de apresentação do POPS. Foto: Cortesia Sesc Sorocaba
Coletivo Ayllu trabalhando para 22a Bienal de Sidney (2020). Foto: Zan Wimberley / Cortesia Sesc Sorocaba
Chegando à foz do rio
Se o objetivo inicial de O rio é uma serpente era levar as discussões do circuito de arte contemporânea brasileiro e mundial para Sorocaba, encontrando caminhos menos violentos, parece que as práticas educativas não só criaram esses pontos de diálogo com a cidade, pelo Programa de Formação, mas propuseram discussões em outros pontos do circuito. Discussões essas que vem a desaguar em Sorocaba na exposição presencial e virtual.
No curso desse rio, não só os artistas e educadores puderam repensar seus processos e refletir sobre as ausências e possibilidades ao seu redor, como também o fizeram a equipe da Trienal e o próprio Sesc. “Torço para que a instituição se reveja em algumas práticas, porque ela é ainda muito branca e isso é algo que é preciso pensar”, pontua Thiago. O foco no processo, a educação como pilar principal do projeto e a construção conjunta de conhecimentos parecem ter sido importantes ferramentas para isso, pois, como conclui Renata Sampaio: “O caminho desse rio foi se fazendo nos encontros, e encontro é algo de mão dupla, todo mundo sai modificado depois dele”.
Lista completa de artistas da 3ª Trienal
A exposição final conta com obras de 53 artistas e coletivos de diferentes nacionalidades, incluindo os 15 participantes do Programa de Estudos, Pêdra Costa e o coletivo Ayllu. Confira a lista completa:
Aimée Zito Lema (Holanda)
Ana Pi e Maria Fernanda Novo (Brasil)
Antonio Társis (Brasil)
Bronwyn Katz (África do Sul)
Carmézia (Brasil)
Castiel Vitorino Brasileiro (Brasil)
ColetivA Ocupação (Brasil)
Colectivo Ayllu
Dalton Paula (Brasil)
Davi de Jesus do Nascimento (Brasil)
Davi Pontes e Wallace Ferreira (Brasil)
Denilson Baniwa (Brasil)
Denise Alves-Rodrigues (Brasil)
Diego Araúja (Brasil)
Ella Vieira (Brasil)
Elvira Espejo (Bolívia)
Engel Leonardo (República Dominicana)
Fernando Palma Rodríguez (México)
Gê Viana (Brasil)
Guerreiro do Divino Amor (Suíça)
Haseeb Ahmed (Estados Unidos)
Iagor Peres (Brasil)
Ivan Henriques (Brasil)
Jaider Esbell (Brasil)
Johanna Unzueta (Chile)
Jonas van Holanda (Brasil)
Jota Mombaça (Brasil)
Juliana dos Santos (Brasil)
Julien Creuzet (França)
Lais Machado (Brasil)
Laura Lima (Brasil)
Lia García (La Novia Sirena) (México)
Luana Vitra (Brasil)
Madalena dos Santos Reinbolt (Brasil)
Marepe (Brasil)
Mário Lopes (Brasil)
Musa Michelle Mattiuzzi (Brasil)
Negalê Jones (Brasil)
Noara Quintana (Brasil)
Nohemí Pérez (Colômbia)
Paulo Nazareth (Brasil)
Pêdra Costa (Brasil)
Pedro Victor Brandão (Brasil)
Rebeca Carapiá (Brasil)
Renata Lucas (Brasil)
Rommulo Conceição (Brasil)
Sabelo Mlangeni (África do Sul)
Sallisa Rosa (Brasil) e Sucata Quântica (Brasil)
Shirley Villavicencio Pizango (Peru)
Tabita Rezaire (França)
Thiago Martins de Melo (Brasil)
Ventura Profana (Brasil)
Vijai Patchineelam (Brasil)
Zumvi Arquivo Fotográfico (Brasil)
“Entidades”, Jaider Esbell. Foto: Matheus José Maria
A exposição de O rio é uma serpente fica em cartaz de 21 de agosto de 2021 a 30 de janeiro de 2022, e a visitação pode ser feita mediante agendamento prévio. As vagas para as sessões são limitadas, para manter o distanciamento seguro entre visitantes, em consonância com os protocolos para a operação segura de museus, exposições e galerias neste momento. (Saiba mais sobre a 3ª edição da Frestas – Trienal de Artes e leia a crítica de Fabio Cypriano sobre a exposição final)
Retratos de Benta Maria, Antonio Dutra e Manuel do Sacramento por Igi Ayedun. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo
*Por Tiago Gualberto
Muitos irão se lembrar das enciclopédias compostas por dezenas de volumes e muitos quilos dispostas elegantemente no ponto mais alto da estante da sala. Além de um investimento na educação dos filhos, a coleção de livros muitas vezes era interpretada como um sinal de boa condição financeira e apreço pelo conhecimento. Um objeto que deveria ser transmitido de geração em geração e consultado por toda a família e, até mesmo, por vizinhos e colegas de escola. As impressões em letras douradas em largas lombadas reforçavam a sua importância e a de seus conteúdos. Uma fonte de informação e conhecimento tomada por inquestionável e garantia de boas notas.
Parte das novas gerações habituadas ao sistema de busca do Google e tantas outras plataformas online disponíveis na internet talvez desconheça o papel que as enciclopédias e sua tradição iluminista ocupou em nossa maneira de interpretar o mundo e o conhecimento. Ao reunir intelectuais e pensadores em torno dos mais variados campos como da filosofia, artes, economia, ciências, política, entre outros, o movimento iluminista francês almejou desafiar os obstáculos à liberdade de pensamento e expressão a partir do século 18. Assim, construiu-se uma das mais eficientes ferramentas ocidentais de compartilhamento do conhecimento acumulado e de formulação de uma organização social guiada pelo farol, pela luz da razão.
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"Daniel de Viana", de Dalton Paula. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo
"Trajano", de Kika Carvalho. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo
Contudo, não precisaremos de fartos exemplos para reconhecer as fragilidades e abusos cometidos em nome deste projeto de acesso ao saber universal por meio da “iluminação” ao longo dos últimos séculos. Por agora, basta lembrarmos as centenas de figuras que ilustravam quaisquer enciclopédias de capas luxuosas, por vezes vendidas de porta em porta. Centenas de homens brancos, europeus e americanos e seus grandes feitos para a “humanidade”. Há poucas décadas, copiar os conteúdos dessas enciclopédias e suas histórias incontestáveis fazia parte de uma agenda escolar baseada na reprodução em detrimento do aprendizado.
Neste contexto, anterior ao mercado das vendas online, as livrarias constituíam espaços de intimidação para uma ampla faixa da população brasileira que se via incluída historicamente em suas prateleiras apenas como objetos de pesquisa. Uma das razões do sucesso dos antigos vendedores de enciclopédia.
Capa de “Enciclopédia Negra”. Foto: Divulgação
O livro Enciclopédia Negra, de autoria do historiador Flávio dos Santos Gomes, do artista visual Jaime Lauriano e da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, publicado em março de 2021 pela Companhia das Letras, apresenta-se como uma alternativa de enfrentamento do racismo estrutural presente em materiais de referência de grande alcance. Trata-se de um levantamento sobre a contribuição e história de importantes personalidades negras no Brasil ao longo dos últimos 400 anos, privilegiando o amplo período da escravidão e pós-abolição. A partir de uma investigação coletiva, marcada pela colaboração de diferentes pesquisadores e especialistas, a publicação reúne 416 verbetes biográficos, individuais e coletivos, a partir da experiência afro-atlântica de cerca de 550 personagens já falecidos. Para os autores, “se o critério para constar neste livro foi a morte, o objetivo é a vida.”
No entanto, estes números não devem ser considerados como representativos da abrangência e diversidade dessas histórias presentes em Enciclopédia Negra. Ao contrário, o livro recusa o uso de estatísticas em prol da afirmação das singularidades desses personagens, destacando o protagonismo através da nomeação, do reconhecimento de feitos, da atualização do valor social e da complexidade da vida desses atores face às condições do nosso passado e presente brasileiro. O resultado é uma narrativa organizada, não exaustiva, capaz de circular por todas as regiões do país, afirmando uma atenção à memória de mulheres e pessoas LGBTQI+ raramente presentes em publicações dedicadas a celebrar contribuições na formação de nossa sociedade.
Neste sentido, além de confrontar a historiografia colonial responsável por negar visibilidade às contribuições de pessoas negras, o livro desempenha um importante papel na reapresentação, organização e divulgação de informações usualmente mantidas em centros de pesquisa, bibliotecas e núcleos especializados. Trata-se da oferta destes saberes para além do espectro universitário. Pesquisadores, professores, alunos de diversas idades encontrarão na Enciclopédia Negra um material de fácil acesso e manuseio, além de indicações de referenciais de pesquisa integrados aos verbetes.
Para isso, os autores nutrem-se dos frutos dos movimentos sociais e do pioneirismo das conquistas intelectuais de diferentes gerações de historiadores, cientistas sociais, artistas e pesquisadores negros e negras. Entre as inúmeras publicações antecessoras utilizadas como referência para Enciclopédia Negra, destacam-se Fala, crioulo: depoimentos (1982), de Haroldo Costa, no qual temos acesso a entrevistas de nomes como Pelé e do ator Milton Gonçalves, mas também a personagens anônimos, donas de casa, garis e cabeleireiros, compartilhando as suas trajetórias e perspectivas sobre o racismo brasileiro. Em outro significativo exemplo, A mão afro-brasileira (1988), livro organizado pelo artista plástico e diretor do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, encontramos o protagonismo negro nas artes visuais, na dança, música, poesia e literatura de várias gerações. Entre tantos outros títulos, Quem é quem na negritude brasileira (1998), do professor e poeta Eduardo de Oliveira, e o Dicionário da Escravidão Negra no Brasil (2004), organizado por Clóvis Moura e Soraya Silva Moura, formam, ao lado das pesquisas e publicações de Nei Lopes, Oswaldo de Camargo, Conceição Evaristo, Fernanda Miranda, Lélia Gonzalez, caminhos para se compreender as contribuições desenvolvidas a partir da África e sua diáspora, dos impactos do colonialismo e da impossibilidade de se compreender o mundo sem estes conhecimentos.
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"Ambrosina", de Renata Felinto. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo
"Catarina Cassage", de Panmela Castro. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo
Portanto, Enciclopédia Negra, em diálogo com estas conquistas intelectuais, não se restringe às abordagens que associam a participação negra na história brasileira aos ciclos econômicos do açúcar, da mineração e do café durante o período da escravidão. Tampouco privilegia as narrativas preconceituosas que reduzem as insurreições negras a simples rebeldia. Somadas à própria experiência dos autores frente aos estudos a respeito da escravidão, pós-abolição e reconstrução de perfis, trajetórias e biografias negras, o livro apresenta sensibilidade na compilação dessa multiplicidade de referências observadas aqui e que, em grande parte, em outras publicações sobre o tema, não são observadas senão em meio a censuras, desatenção e negligências. Esta situação pode, infelizmente, ser observada na restrita seleção de autores presentes nos catálogos de grandes editoras dedicadas apenas a responder às demandas de materiais após a promulgação da lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas.
Assim, os verbetes sobre personagens singulares e coletivos que descrevem tanto experiências individualizadas quanto comunitárias apresentam-se como portas de entrada para diferentes filosofias, religiosidades, práticas corporais, tecnologias, ativismos, mobilizações e empreendedorismos. Também buscam descrever as batalhas diárias e o cotidiano de cada período, assim como suas limitações, suas complexidades e suas contradições. Logo, Chica da Silva, Madame Satã, Abdias do Nascimento, Anastácia, Geraldo Filme e Heitor dos Prazeres compartilham narrativas ao lado de Claudia Ferreira, Robson Cruz, Rosalina, Francisca Luiz e tantos outros ilustres desconhecidos.
A exposição
Neste empenho em alterar a imaginação dos brasileiros quanto ao tema, a realização do projeto Enciclopédia Negra inclui a montagem da exposição de mesmo título no museu Pinacoteca do Estado de São Paulo. A exposição Enciclopédia Negra, aberta ao público a partir do dia 1º de maio de 2021, apresenta 103 trabalhos de 36 artistas contemporâneos. Entre as três salas de exibição, o visitante observa em sua maioria trabalhos bidimensionais, de pequeno e médio formato, entre pinturas, desenhos, aquarelas e objetos de autoria dos artistas Amilton Santos, Antonio Obá, Andressa Monique, Arjan Martins, Ayrson Heráclito, Bruno Baptistelli, Castiel Vitorino, Dalton Paula, Daniel Lima, Desali, Elian Almeida, Hariel Revignet, Heloisa Hariadne, Igi Ayedun, Jackeline Romio, Jaime Lauriano, Juliana dos Santos, Kerolayne Kemblim, Kika Carvalho, Lidia Lisboa, Marcelo D’Salete, Mariana Rodrigues, Micaela Cyrino,Michel Cena, Moisés Patricio, Mônica Ventura, Mulambö, Nadia Taquary, Nathalia Ferreira, Oga Mendonça, Panmela Castro, Rebeca Carapiá, Renata Felinto, Rodrigo Bueno, Sonia Gomes e Tiago Sant’Ana.
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"Mandingueiros", de Ayrson Heráclito. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo
"Caetana nossos nãos", de Juliana dos Santos. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo
Embora todos os trabalhos comissionados não constem na publicação, pois apenas uma obra de autoria de cada um dos 36 artistas está presente no caderno de imagens da Enciclopédia Negra, o conjunto se impõe como um retrato coletivo das variadas proposições e tentativas de compor uma presença institucional do negro nas artes. Para tanto, a doação desses trabalhos, em sua grande maioria retratos figurativos das personagens biografadas, constitui uma intervenção em busca de representatividade.
Logo, ao recuperar vidas marcadas pela morte, o livro Enciclopédia Negra almeja extrapolar a visão do negro como sinônimo de escravizado, subalterno, onde o racismo se constitui como mecanismo de recusa de sua humanidade e legitimação de sua exploração e de seu extermínio, tanto físico, político e simbólico. O filósofo e professor Achille Mbembe nos informa que o reconhecimento e a reparação dessa violência se dá à medida em que desconstruirmos o pensamento colonial e passemos a identificar o negro em sua dimensão universal, humana e múltipla, longe de uma dimensão categórica, responsável pelo jugo que mantém corpos negros como mercadorias. Por isso é preciso dizer: Vidas Negras Importam!
Joseph Beuys, La Rivoluzioni Siamo Noi (1972). Foto: Cortesia Bergamin & Gomide.
O artista Joseph Beuys nasceu no dia 12 de maio de 1921 em Krefeld, na Alemanha, próximo à Holanda. Neste ano pandêmico se celebram, portanto, seus 100 anos de nascimento. Precursor de questões que estamos debatendo de forma sistemática nesses meses de confinamento, como a defesa da natureza, sua figura se destaca também por repensar o sistema da arte. Esse tema foi abordado por mim em uma palestra no Instituto Goethe, em 2011, no Terceiro Ciclo do Pensamento Alemão, que se transformou em um capítulo de um livro com o mesmo nome do evento no ano seguinte. A atualidade do debate se mantém e consideramos pertinente republicar agora o texto, sem grandes modificações.
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Uma das obras mais significativas de Beuys é O fim do século 20 (Das Ende des 20. Jahrhunderts) (1982-83), exibida no museu Hamburger Bahnhof, em Berlim, uma instalação composta por 21 rochas de basalto que podem representar entorpecimento, solidificação ou mesmo um cemitério coletivo. O basalto, é bom lembrar, contém cristais que não são vistos a olho nu. Em cada rocha, o artista fez um buraco circular e dali retirou um cone, reintroduzindo-o novamente, desta vez colado com feltro e barro, como a sinalizar que mesmo o mais sólido e imutável pode sofrer transformações através da ação humana.
Segundo Peter-Klaus Schuster, curador da mostra Um século de arte alemã, que ocorreu em três grandes museus de Berlim, em 1999, e que colocou Beuys como o artista central de sua seleção sobre a arte alemã no século 20, O fim do século 20 trata da “ambivalência das enormes catástrofes do século e, ao mesmo tempo, como uma imagem positiva do valor da vida humana”.
É essa visão essencialmente humanista, que elege todo homem não só como um revolucionário, mas também como um artista, responsável por contribuir na construção de uma nova sociedade, definida por Beuys como “escultura social”, que o coloca como um dos principais pensadores do século 20 e cujas ideias pretendo abordar neste texto O abandono à arte – inspirado em um cartão postal de 1985, intitulado Com isso abandono a arte – para refletir sobre o caráter absolutamente radical de suas proposições.
O título original desse trabalho, aliás, é Hiermit trete ich aus der Kunst aus e a tradução que adotei é a que consta do livro Joseph Beuys, de Alain Borer. Literalmente, ela pode não ser a tradução mais adequada, mas, conceitualmente, como veremos a seguir, ela é totalmente pertinente.
1 – Beuys: o mito
Para compreender o pensamento de Beuys é fundamental conhecer sua própria biografia. Não se trata aqui de justificar sua obra como uma ilustração de sua vida, mas da própria inter-relação que ele buscou entre arte e vida, uma vinculação que se tornou essencial na forma de se conceber a arte nos anos 1960 e 1970, período que tem em Beuys uma de suas principais figuras.
Esse momento particular do século 20 fez com que artistas como Andy Warhol, Hélio Oiticica ou o próprio Beuys criassem em torno de si uma série de lendas, como uma amostra simbólica de suas concepções a respeito da arte. Cada um, à sua maneira, criou sobre si uma série de lendas que, sejam verdadeiras ou falsas, pouco importa, são a maneira como encarnaram sua própria concepção de arte.
No caso de Beuys, seu uniforme foi sempre o de um tipo simples: o chapéu de feltro, a jaqueta de pescador, os jeans e os sapatos pesados, como alguém pronto ao trabalho braçal em uma das mais antigas profissões. A construção de sua figura pública, uma espécie de pescador de almas, relaciona-se ainda diretamente com a lenda que o artista construiu em torno de sua biografia. Como diz Borer, na publicação citada:
Uma lenda não é nem verdadeira nem falsa, ela é, em latim, aquilo que deve ser lido e dito, aquilo que é narrado sobre a obra e seu autor, “o ponto em que a biografia deixa de ser extrínseca”: tudo aquilo com o que a figura legendária contribui e colabora na medida em que o próprio artista vigia zelosamente, e isso em toda obra, o que será dito sobre ela (BORER, 2001, p. 12).
É assim, portanto, que devemos ler a mitológica história de Beuys e sua queda de avião na Criméia: como um preâmbulo à sua obra. Ela é narrada, em sua biografia publicada por Heiner Stachelhaus, da seguinte forma:
Ainda jovem, começou o estudo de medicina, pretendendo devotar-se aos mais humildes. Esse desejo, no entanto, foi destruído quando pilotava o seu Stuka, depois de ingressar na Luftwaffe [a força aérea nazista] em 1941. No ano de 1944, aos 22 anos, ele miraculosamente escapou da morte na Ásia. O seu avião, um JU 87, caiu numa região coberta de neve chamada Crime ou Criméia. Joseph ficou inconsciente por vários dias, semicongelado, foi levado por genuínos tártaros, que cuidaram de suas chagas. O povo, natural do lugar, logo o tomou por um dos seus: “Você não alemão, você tártaro”, e trouxe-o de volta à vida, enrolando-o em seus tradicionais cobertores de feltro e aquecendo-o com gordura animal. Depois de seu retorno, tendo encontrado abrigo em uma fazenda, Joseph enfrentou uma crise profunda, familiar a todos os grandes artistas, que lhe permitiu elaborar os princípios básicos de sua arte (BORER, 2001, p. 13).
Não podemos esquecer que Beuys assume aí que participou da esquadra nazista e seu martírio se torna, assim, uma espécie de redenção, como se ele fosse transformado de maneira tão vital com esse episódio que tivesse uma gênese a partir da ajuda dos tártaros, com seus meios fraternais e primordiais de salvamento.
É a partir dessa história que Beuys justifica não só o caráter de suas proposições artísticas como um campo que deve salvar o ser humano de suas crises, dando a elas um caráter terapêutico; mas também explica os materiais envolvidos em suas obras, especialmente o feltro e a gordura animal, elementos que representam uma forma de proteção, através do calor, como materiais orgânicos que possibilitam uma relação vital à natureza, lembrando como o ser humano é parte integrante dela.
Arte não deve se resumir à retina – por isso estou engajado com a substância, como “um processo do espírito (soul)” (HARLAN, 2004, p. 14).
É como Beuys justifica o uso dos elementos naturais em sua obra. Na versão de Cadeira com gordura,de 1981, (a primeira foi realizada em 1964) ou em Terno de Feltro, de 1970, vemoscomo o artista não está preocupado em criar uma escultura de maneira tradicional, mas em provocar uma reflexão sobre o papel da artista, construindo uma narrativa a partir desses materiais. Assim, Beuys preocupa-se em reorientar o sentido e a função da arte.
Durante o nazismo, a arte moderna foi combatida oficialmente através da mostra Arte Degenerada, uma espécie de manifesto contra os movimentos modernistas como a Bauhaus, o cubismo e o expressionismo alemão, que pregavam na arte uma nova forma de observar o mundo. O que os nazistas defendiam, então, era o retorno das belas artes, das formas clássicas como as mais adequadas à sociedade ariana que se pretendia erigir como soberana.
Arte Degenerada, a exposição que teve início na Haus der Kunst de Munique, em 1937, e depois seguiu para mais 11 cidades na Alemanha e na Áustria, reuniu 650 obras de 112 artistas, entre eles Paul Klee, Kurt Schwitters, Marc Chagall, Mondrian e Lasar Segall. Em quatro meses, em Munique, a mostra reuniu mais de dois milhões de visitantes.
Quase vinte anos depois, em 1955, Arnold Bode criou em Kassel uma exposição, a Documenta, cujo objetivo central foi reapresentar ao público alemão os modernistas censurados no regime nazista. Essa mostra, que se tornaria de periodicidade quinquenal, e hoje funciona como o grande farol da arte contemporânea, foi uma das grandes plataformas usadas por Beuys para suas ideias. Ele participou de quatro de suas edições – em 1964, 1972, 1977 e 1982 -, contribuindo para a reconstrução do pensamento artístico alemão de forma decisiva. E qual foi essa forma? Em Beuys existe uma pergunta essencial: “Qual a necessidade que justifica a criação de algo como arte?”. E sua própria resposta é bastante clara:
Se essa questão não se torna o foco central da pesquisa e isso não é resolvido numa forma verdadeiramente radical, que de fato veja a arte como o ponto de início para produzir alguma coisa, em qualquer campo de trabalho, então qualquer pensamento de desenvolvimentos posteriores é apenas perda de tempo (HARLAN, 2004, p. 10).
Quando Beuys defende que a arte é o ponto de partida para produzir algo em qualquer campo, ele está afinado com aqueles que, nos anos 1960 e 1970, viam na arte o único espaço possível para novas práticas que descondicionassem o ser humano de, ao menos, duas visões então hegemônicas, faces do mesmo processo civilizatório, tal qual descrito por Norbert Elias: o pensamento racionalista e o condicionamento do corpo através de formas de comportamento então vistas como civilizadas, mas que o contrapõe às forças da natureza, como se o homem estivesse delas excluído.
Um dos pontos centrais do pensamento de Beuys é, justamente, a “defesa da natureza”, como prega numa obra, uma fotografia de 1984, numa concepção holística, que se relaciona em grande medida com antroposofia de Rudolf Steiner (1861-1925), ou seja, da necessidade de integração entre homem e natureza. É a partir daí que, explica o artista, sua obra deve ser compreendida.
Meus objetos são para ser vistos como estímulos para a transformação da ideia de escultura, ou da arte em geral. Eles devem provocar pensamentos sobre o que escultura pode ser e como o conceito de escultura pode ser estendido para materiais invisíveis usados por todo mundo:
Formas de pensar – como moldamos nossos pensamentos ou
Formas de falar – como damos forma aos nossos pensamentos ou
ESCULTURA SOCIAL: como moldamos e damos forma
ao mundo em que vivemos:
Escultura como um processo evolutivo;
Todo mundo artista (HARLAN, 2004, p. 9)
Dessa forma, chegamos aqui no cerne da concepção de arte de Beuys: usar a arte como uma plataforma de transformação da sociedade, como um estímulo para a reconstrução do mundo. Como afirma Harlan, em outra publicação:
A principal preocupação de seu trabalho artístico é a reformulação do campo social. Ele chama o organismo social de escultura social (FARKAS, 2010, p. 27).
No entanto, não se trata aqui de uma plataforma meramente política, Beuys não é apenas um militante da transformação no campo social, mas também um revolucionário das formas plásticas, por isso seu discurso e sua prática artística não podem ser separados: “Arte é um tipo de ciência da liberdade” (HARLAN, 2004, p. 10), afirma Beuys, numa concepção muito próxima a defendida pelo crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa, para quem “a arte é o exercício experimental da liberdade, sua ideia mais conhecida e propalada”.
Beuys utilizou diversos meios como instrumentos para a divulgação de suas ideias. Ele foi autor de uma produção monumental, dezenas de obras, mas especialmente múltiplos, que por seu caráter democrático, outra das bandeiras dos anos 1960 e 1970, estavam mais adequados às suas propostas. Entre 1965 e 1986, ele produziu nada menos que 557 múltiplos, alguns com tiragem de 12 mil cópias, como a caixinha de madeira escrita “Intuição!”. Ele também produziu cerca de 300 cartazes, apropriando-se ainda da propaganda como um de seus meios de expressão, o mesmo que fazia o regime nazista, mas, obviamente, com objetivos totalmente distintos.
Joseph Beuys, La Rivoluzioni Siamo Noi (1972). Foto: Cortesia Bergamin & Gomide.
Quando Beuys criou o pôster A revolução somos nós,em Nápoles, no ano de 1971, ele explicou, em entrevista a Giancarlo Politi, da revista Flash Art (n. 168), o sentido do uso desse meio:
Para se comunicar, o homem se serve da linguagem, usa gestos, a escrita, picha um muro, pega a máquina de escrever e extrai letras dela. Em resumo, usa meios. Quais meios usar para uma ação política? Eu escolhi a arte. Fazer arte é, portanto, um meio de trabalhar para o homem, no campo do pensamento. Este é o lado mais importante do meu trabalho. O resto, objetos, desenhos, performances, vêm em segundo lugar. No fundo, não tenho muito a ver com a arte. A arte me interessa apenas enquanto me dá a possibilidade de dialogar com o homem.
Aqui, então, vemos um pouco do sentido de seu postal, que dá título a essa fala, Com isso abandono a arte. A arte, para ele, não estava reduzida aos espaços convencionais, da galeria e do museu, mesmo que ele também ocupasse com regularidade esses locais.
2 – Os lugares de Beuys
2.1 A academia
Para defender suas propostas, Beuys utilizou e problematizou vários campos: a academia, as instituições de arte como museus e galerias, as instituições políticas, chegando a ser um dos fundadores do Partido Verde alemão, em 1980. Sua presença na Academia de Arte de Düsseldorf, por exemplo, foi marcante. Lá ele estudou, tornou-se professor de escultura, em 1961, e permaneceu por dez anos, até 1972. Para ele:
Ser professor é a minha obra de arte mais importante […] o resto é produto descartável. Se você quer se expressar, você precisa apresentar algo tangível. Mas depois de um tempo, isso tem apenas a função de um documento histórico. Objetos não são mais importantes. Eu quero chegar à origem das coisas, ao pensamento por trás delas (Artforum, 1969).
Nesse sentido, Borer afirma que em Beuys, “a fala é escultura”, como se seu pensamento se materializasse na relação dialógica com os alunos.
Suas aulas eram muito disputadas e essa faceta é mote para a mostra Beuys e bem além – Ensinar como arte, organizada pelo Deutsche Bank a partir de sua própria coleção, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake [em 2011], que apresenta também obras de alunos como Blink Palermo, Katharina Sieverding e Lothar Baumgarten, numa aproximação um tanto formalista, o que pretendo abordar mais para frente.
Em Düsseldorf, “as formas tradicionais e fortemente hierárquicas de aula eram substituídas por debates coletivos, nos quais se discutia tanto arte como questões sociais”. Em 1971, Beuys chegou a ocupar a secretaria da Academia de Arte, para protestar contra as restrições na admissão de alunos, fundando, então, a Organização pela Democracia Direta por Referendo Nacional.
Um pouco antes, nesse mesmo ano, ele já havia chegado a admitir em sua classe os 142 candidatos que foram recusados pela Academia, mas esse conjunto de protestos acabou lhe custando o emprego e um processo, que ele venceu em 1978. Fundamental aqui é reforçar o caráter libertário de sua atividade como professor, o que representa possibilitar a cada aluno o desenvolvimento de sua própria obra, independente do seu trabalho, como ele afirmou numa entrevista de 1972:
Diz-se com frequência que nas minhas aulas tudo seria conceitual ou político. Mas para mim é muito importante que resulte em algo sensualmente palpável, com amplos fundamentos epistemológicos. Meu interesse principal aí é começar pela língua e deixar as materializações seguirem como uma correlação de pensamento e ação. O mais importante para mim é que o ser humano, através de seus produtos, experimente modelos de como poder co-atuar na relação com o todo; e não só produza artigos, mas que se torne artista plástico ou arquiteto no organismo social inteiro. A futura ordem social se formará de acordo com os princípios da arte (CHRISTENSEN, 2011, p. 12).
Sua crença no poder da educação institucional não termina com sua saída da Academia de Arte de Düsseldorf, em 1971. Três anos depois, ele fundou a Universidade Livre Internacional (F.I.U. – Freie Internationale Universität), que serviu para o desenvolvimento de muitos de seus projetos, como Sete mil carvalhos, na Documenta de Kassel, em 1982.
Na própria Documenta, mas em 1977, na sua 6a. Edição, a F.I.U. foi a responsável por organizar Bomba de Mel no local de trabalho, uma sala na qual Beuys e seus colaboradores passaram cem dias – o tempo usual de duração da mostra, debatendo a “escultura social”, ou seja, o novo modelo de sociedade. No entanto, a F.I.U. não foi criada como simplesmente uma alternativa ao sistema universitário alemão. Como declarou Beuys, em 1985:
A Universidade Livre Internacional é uma comunidade internacional de pesquisa. Seu círculo de colaboradores é relativamente pequeno. Não é possível frequentar a F.I.U. Trata-se, simplesmente, do projeto de uma nova sociedade, para além do capitalismo e do comunismo. Para realizar essa tarefa, cada um tem de encontrar apoio em si mesmo (FARKAS, 2010, p. 45).
Como em toda obra de Beuys, também a F.I.U. não se constituiu em uma estrutura convencional, de padrões já estabelecidos, mas propôs uma nova possibilidade para divulgar o pensamento do artista de uma forma pragmática. Pensar, em Beuys, é realizar.
2.2 O sistema político
Em 1979, a F.I.U. foi uma das cinco organizações que criaram o Partido Verde, na Alemanha, o que torna Beuys um de seus fundadores. Antes, em 1967, ele já havia criado o Partido dos Estudantes Alemães (Deutsche Studentenpartei), às vésperas das revoluções de Maio de 1968.
Depois, em 1970, ele criou a Organização dos Não Votantes – Plebiscito Livre (Organisation der Nicht Wahler, Freie Volksabstimmung), e em 1971, por conta da crise na Academia de Arte de Dusseldorf, a Organização pela Democracia Direta por Plebiscito (Organisation fur direkte Demokratie durch Volksbastimmung). Todas essas organizações demonstram o quanto Beuys acreditava na transformação pelas vias institucionais, numa época em que a Alemanha era sacudida por agremiações que também buscavam mudanças, mas por vias ilegais, como o grupo guerrilheiro de extrema-esquerda Baader Meinhoff, que existiu entre 1970 e 1988. O uso de instrumentos de democracia direta aponta ainda a importância do pensamento de cada indivíduo, contra os princípios da democracia representativa.
Mesmo assim, Beuys chegou a candidatar-se ao Parlamento Europeu, em 1979, pelo agrupamento Outra Associação Política (Sonstige politische Vereinigung), que no ano seguinte se transformaria em Os Verdes. Naquela ocasião, ele lançou o manifesto “Conclamação à Alternativa”, publicado no jornal Frankfurter Rundschau, em 23/12/1978, e reimpresso em 1979, para a primeira eleição para o Parlamento Europeu. O texto defendia a não violência, a transformação do uso do dinheiro e da organização do Estado, questionando a fuga da realidade e até o uso de drogas. Esse manifesto transformou-se no cartaz que integrou sua participação na 15ª Bienal de São Paulo, com o título Conclamação para uma alternativa global, em 1979.
De 1980 a 1986, os Verdes mantiveram, sob a direção de Johann Stüttgen, um escritório de coordenação na sala 3 da Academia de Dusseldorf, a antiga sala de Beuys.
2.3 O sistema da arte
Em 11 de dezembro de 1964, Beuys apresentou a performance O silêncio de Marcel Duchamp é superestimado (Das Schweigen von Marcel Duchamp wird uberbewertet), ação transmitida ao vivo pela TV alemã ZDF, como membro do grupo Fluxus, usando além da fala, seus materiais típicos como gordura e feltro.
Duchamp foi um indolente que criou belas e interessantes provocações para a burguesia e fez as afrontas brilhantemente na tipologia estética de seu tempo (CHRISTENSEN, 2011, p. 32).
Esse espírito antiburguês na fala de Beuys, é exatamente uma das principais características do grupo Fluxus, criado em 1961 na galeria AG, em Nova York, pelo artista lituano George Maciunas. Com caráter internacional, o Fluxus não se caracterizou por um estilo formal entre seus componentes, mas por um princípio em comum: abolir a questão objetual da arte como primado de sua existência e valorizar o processo em sua constituição.
Beuys entrou para o grupo através do colega Nan June Paik, artista coreano que também era professor em Düsseldorf. Além deles, também participavam dos eventos organizados pelo Fluxus artistas como o músico norte-americano John Cage, cujas experimentações foram decisivas para o grupo, e a japonesa Yoko Ono. Nos festivais do Fluxus, Beuys realizava especialmente ações, antecipando a ideia de performance, que não tinha se caracterizado como uma linguagem.
O Fluxus é vinculado, em geral, ao caráter de anti-arte do movimento Dada, que também se utilizava de elementos do cotidiano e ações efêmeras, questionando o valor comercial da arte. Maciunas, por exemplo, criou vários múltiplos, como as Fluxus Boxes, ideia que depois seria utilizada por Beuys. O uso do vídeo, especialmente por influência de Nan June Paik, também foi recorrente no Fluxus, não só por conta do surgimento do novo meio, mas pelas características que ele propiciava, ou seja, a possibilidade de sua retransmissão, o que também seria muito utilizado por Beuys. No entanto, enquanto o Dada possuía um caráter negativo, como define Giulio Carlo Argan, por “demonstrar a impossibilidade de qualquer relação entre arte e sociedade”, o Fluxus tinha uma visão mais positiva, que buscava vincular vida e arte.
Não deixa de ser notável que a performance O silêncio de Marcel Duchamp é superestimado tenha ocorrido justamente dentro de um evento do Fluxus, porque seus membros tinham grande apreço pelo artista francês idealizador do ready-made. A vinculação de Beuys ao Fluxus foi intensa, mas não durou muito tempo, e a performance mostra como o caráter crítico do artista alemão realizava-se no confronto, dentro do próprio espaço das instituições onde ela atuava.
Essa capacidade de crítica também se verifica na performance Eu gosto da América e a América gosta de mim (I like America and America likes Me), em maio de 1974, por três dias consecutivos, oito horas a cada dia, por ocasião da inauguração da galeria do alemão René Block em Nova York.
Beuys chegou aos EUA de avião e, do aeroporto JFK, partiu em uma ambulância, indo direto para uma jaula construída na galeria, onde conviveu com um coiote, animal considerado sagrado pelos povos nativos dos EUA. Segundo o mito da performance, após três dias, o artista teria sido levado de volta para o aeroporto, sem ter pisado em solo norte-americano.
Beuys trabalhava com Block há muito tempo. Foi em sua galeria que, certa vez, ele cobriu os cantos com gordura, arredondando o formato rígido de sua arquitetura, trazendo a ela um caráter orgânico, que se transformou ao longo dos dias em que a gordura ficou exposta. Aqui percebe-se como Beuys preocupa-se com a questão plástica, mas ela é um veículo para suas ideias.
Em Eu gosto da América… sua ação é mais radical. Ele convive com um animal, enrolado em feltro e, apoiando-se em uma bengala, aborda a interatividade com a natureza, tão importante para a ideia de “escultura social”. A performance, de fato, aponta como o artista vivia sua própria utopia em sua obra, mostrando que a concretização de suas propostas é viável, além de apontar um caráter da arte não objetual, não comercial, anti-representacional. Isso porque Beuys, que se dizia “um homem das cavernas reencarnado” (BORER, 2001, p. 30), estava vivendo suas propostas, não estava criando meras ilustrações para elas. A experiência é parte essencial de suas ações.
Essa ação também é um bom exemplo de como, na concepção de Borer, Beuys pode ser visto como um pastor:
O pastor conduz os seus discípulos a um lugar que só ele conhece – promessa de um estado superior; ele é o homem à procura de um caminho, um caminho mais extenso e vasto do que ele: ele abre passagem (BORER, 2001, p. 23).
Isso ocorre de maneira grandiosa em seu projeto Sete mil carvalhos, que o artista iniciou em 1982, por ocasião da Documenta 7, criado a partir da F.I.U.. Seu objetivo era que 7 mil árvores desse tipo fossem plantadas em toda a cidade, sempre ao lado de uma coluna de basalto. Novamente, vê-se aqui a perspicaz capacidade de Beuys em trabalhar com imagens: até hoje, quem visita Kassel defronta-se com os carvalhos plantados por Beuys e seus colaboradores.
O início simbólico da rearborização vital da Terra deve acontecer em Kassel. […] Trata-se de uma ação de caráter racional; neste caso, do plantio de árvores. […] Deve-se criar primeiramente um entendimento global para – onde quer que isso seja possível – tornar sustentáveis tais processos (FARKAS, 2010, p. 41).
Em Sete mil carvalhos, Beuys concretiza sua ideia de “escultura social” , transformando o meio ambiente. E o faz com a colaboração de quem está disposto, para que cada um, cada pessoa que vive na Terra possa se tornar um criador de formas, um escultor, um desenhista do organismo social.
No entanto, toda a radicalidade que marcou o período de consolidação da obra de Beuys, nos anos 1960 e 1970, com exercício de amplo diálogo com outros artistas e grupos, como o Fluxus, a Arte Povera, na Itália, e a forte presença de artistas da performance, como Marina Abramović e Ulay, vai se transformar na década seguinte.
Joseph Beuys. “Hiermit trete ich aus der Kunst aus” (1985).
Os anos 1980 são marcados pela ideia do “retorno à pintura”, especialmente na Alemanha, com o surgimento dos chamados neoexpressionistas, como Georg Baselitz e Anselm Kiefer. Esse novo contexto, certamente, foi muito desestimulante para Beuys, o que, provavelmente, o levou a criar o postal-múltiplo Com isso abandono a arte, no dia 1 de novembro de 1985, praticamente três meses antes de morrer, em 23 de janeiro de 1986, em decorrência de um ataque cardíaco.
Esse postal faz parte de uma série de nove frases, todas escritas à mão, em giz, sobre fundo escuro, tal qual um quadro negro, material que ele tantas vezes usou em suas obras, relacionadas a sua faceta de professor. É de se notar que, sabendo-se doente – Beuys há muito estava fragilizado em decorrência de seu acidente aéreo -, deixa esse último conjunto de obras onde não há imagem, não há cor, apenas texto. Outro dos textos escritos nessa série de postais é: “O erro já começa quando alguém se prepara para comprar uma tela” (der Fehler fängt schon an, wenn einer sich anschickt, Keilrahmen und Leinwand zu kaufen).
Por isso, a mensagem dos postais é clara: Beuys não via mais possibilidade em veicular suas ideias no campo da arte, nem tomar parte dele. Assim como foi demitido da Academia, e nunca eleito por suas agremiações políticas, o artista constatou que tampouco na arte sua mensagem alcançava a repercussão necessária. Artista emblemático de um período experimental na história da arte, que tem início no pós-Guerra, Beuys chega pessimista na década de 1980, quando o mercado de arte ganha força e poder novamente e as experimentações passam para o segundo plano. É a década do fim da história e, segundo Arthur C. Danto, do fim da arte.
Beuys participou de todas as mostras importantes do circuito da arte: quatro vezes na Documenta; uma vez na Skulptur Münster, em 1977; representou a Alemanha em Veneza, em 1976, com a obra Tram Stop (Parada de Bonde) – Monumento ao Futuro; e em 1980, com Das Kapital Raum 1970-1977; representou ainda a Alemanha em três Bienais de São Paulo (1979, 1985, 1989) e foi consagrado com uma retrospectiva no Guggenheim de Nova York, em 1979, que lhe rendeu grande prestígio nos Estados Unidos.
Seu epitáfio, contudo, aponta que, de fato, essas grandes exposições pouco representaram para Beuys, e que ele já vislumbrava um futuro pouco promissor para a arte. Constatação triste para quem defendia que:
Somente a arte, isto é, a arte concebida ao mesmo tempo como autodeterminação criativa e como processo que gera a criação, é capaz de nos libertar e de nos conduzir rumo a uma sociedade alternativa (BORER, 2001, p. 28).
Bibliografia
CHRISTENSEN, Liz (org.) (2011). Beuys e bem além. Ensinar como arte. Frankfurt: Deutsche Bank. BORER, Alain. (2001). Joseph Beuys. São Paulo: Cosac Naify. FARIAS, Agnaldo. (2001). Bienal 50 anos. São Paulo: Fundação Bienal de SP. FARKAS, Solange (2010). A revolução somos nós. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil/Sesc. HARLAN, Volker (2004). What Is Art?: Conversation with Joseph Beuys. East Sussex: Clairview Books. SCHUSTER, Peter-Klaus (1999). DasXX. Jahrhundert: ein jahr hundert kunst in Deutschland. Berlin: Nicolai.
"Que dia!" (2018), de Anissa Daoud, Aboozar Amini. Foto: Divulgação Mostra de Cinema Árabe Feminino.
Até 27 de junho, a Mostra de Cinema Árabe Feminino traz, toda semana, filmes realizados por mulheres em países como Egito, Líbano, Palestina, Sudão, entre outros. Sob curadoria das brasileiras Analu Bambirra, Carol Almeida e da egípcia Alia Ayman uma seleção de diversos formatos e gêneros que engloba de curtas a médias e longas-metragens, abrangendo a ficção e os documentários também. O festival é completamente gratuito. Como sua programação é separada em mostras menores nomeadas por constelações, dos dias 9 a 15 de junho, com a “Ursa Maior” sete produções inéditas no Brasil serão apresentadas. Confira a programação abaixo:
Em Um Presente do Passado, Mokhtar é um professor de cinema e recebe um presente inesperado de sua filha Kawthar, uma jovem cineasta, em seu 75º aniversário. Com duas passagens aéreas para Roma, ele tem uma segunda chance de buscar seu amor não correspondido, uma italiana que ele abandonou 33 anos atrás com a promessa de voltar para ela, mas nunca cumpriu.
Que Dia! traz um mal-entendido sob quatro pontos de vista diferentes que muda completamente a história de uma família. Já em Ibrahim: Um Destino a Ser Traçado, a diretora Lina Al Abed busca por traços de seu pai desaparecido: um homem aparentemente comum de família que, na verdade, era um membro secreto de uma facção militante.
Através das lentes de um celular, Lavando A Boca conta a história da cidade de Mosul durante o Estado Islâmico. O curta mostra o dia-a-dia de uma família iraquiana em York pelas mensagens de voz trocadas com seus parentes em Mosul. Ambas as famílias tentam trazer sentido para a incerteza dos eventos políticos entre junho e setembro de 2014.
No curta Rosa, a personagem que dá nome ao filme, enquanto trabalha na floricultura de sua tia, assume o trabalho dela abaixo da terra quando tem início um empreendimento de enviar corpos não-documentados para serem enterrados em seus países natais.
Você Vem de Muito Longe retrata a trajetória de uma família palestina que foi dispersa por várias turbulências: da guerra civil espanhola na qual o pai Najati Sidki lutou contra Franco até a 2ª Guerra Mundial, a Nakba e a guerra civil libanesa.
CineSesc
Denise Weinberg em “Greta” (2019), de Armando Praça. Foto: Divulgação.
Na série #EmCasaComSesc é possível encontrar os filmes de temática LGBTQIA+ do especial “Legítima Diferença”: Um Belo Verão, de Catherine Corsini; Tangerine, de Sean Baker; Greta, de Armando Praça; e Corpo Elétrico, de Marcelo Caetano. Na plataforma, em 10 de junho, estreia o documentário Onde a Terra Acabar, de Sérgio Machado. Nele é apresentada uma homenagem ao diretor Mário Peixoto. Em tom autobiográfico, o filme conta a história do cineasta com uma montagem de trechos de diários, entrevistas e cartas de próprio punho do mesmo. Ainda disponíveis, valem ser conferidos os Contos das 4 Estações, de Éric Rohmer, e Maya, de Mia Hansen-Løve.
In-Edit
Yamandu Costa e o guitarrista argentino Lúcio Yanel em “Dois Tempos” (2021), de Pablo Francischelli. Foto: Divulgação.
Já o In-Edit, festival de documentários centrados na música, ocorre dos dias 16 a 27 de junho, com mais de 50 filmes nacionais e internacionais inéditos no circuito comercial. Toda a programação estará disponível na plataforma do festival, com filmes gratuitos com limite de visualizações. Parte da programação estará disponível também na plataforma do Sesc Digital e na Spcine Play. Nas produções participantes deste ano surgem personagens como João Ricardo (Secos & Molhados), Jair Rodrigues, Chico Mário (irmão de Henfil e Betinho), Alzira Espíndola, o revolucionário maestro e compositor José Siqueira, o rapper Speedfreaks, a banda Made In Brazil, Zeca Baleiro desvendo os sons do Maranhão, entre outros. Destacamos Dois Tempos, o filme de estrada com Yamandu Costa e o guitarrista argentino Lúcio Yanel, que também participou do Festival É Tudo Verdade. No documentário, a bordo de um motor home, com seus violões e suas memórias, mestre e discípulo cruzam a fronteira do Brasil em direção a Corrientes, terra natal do argentino, refletindo sobre as transformações trazidas pelo tempo.
Tarsila do Amaral, "Autorretrato I", 1924, óleo sobre papel-tela, 38.00 cm x 32.50 cm. Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo.
Tarsila do Amaral, “Autorretrato I”, 1924, óleo sobre papel-tela, 38.00 cm x 32.50 cm. Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo.
Em São Paulo, no dia 6 de novembro de 1925, Tarsila do Amaral escreve para o jornalista Joaquim Inojosa, no Recife:
Meu trabalho tem sido enorme, ultimamente. De abril para cá tenho uns 10 quadros novos, quase todos terminados. Já se foi o tempo em que uma Paquita sorria na tela com 8 horas de pinceladas. Trabalho hoje com a paciência de Fra Angélico para que o meu quadro seja lindo, limpo, lustroso como uma Rolls saindo da oficina.[1]
Este parágrafo possui informações interessantes: em primeiro lugar, a referência à rapidez com que antes Tarsila produzia suas paquitas – alusão às “espanholas”, já comentadas em artigo anterior[2] –; em seguida, o tempo que agora demorava para levar a cabo suas novas produções que lhe exigia a perseverança de um artista-frade do século 15.
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Tarsila do Amaral nos anos 1920. Foto: Coleção particular
Tarsila do Amaral, "Autorretrato com flor vermelha", 1922, pastel sobre papel, 39 x 29 cm. Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros - USP, São Paulo, SP.
Essas referências sugerem que, em se tratando de suas primeiras pinturas, Tarsila as produzira com uma rapidez de ação que subjugava a integridade da sua produção a preocupações não propriamente pictóricas. A essa velocidade com que pintou suas paquitas, Tarsila opunha agora a delicadeza artesanal da pintura mais tradicional com o objetivo de, paulatinamente, atualizar sua linguagem, transformando a pintura num objeto “lindo, limpo, lustroso como uma Rolls”.
Pintar como um frade (ou uma freira) do Renascimento e, ao mesmo tempo, associar a ausência deliberada de qualquer índice de manualidade em suas pinturas ao acabamento de um automóvel – a Rolls –, é retirar delas a marca de autoria, igualando a pintura a um produto mecânico, industrial. E tal aspiração, sabe-se, Tarsila absorveu de um dos seus principais parâmetros encontrado em Paris, a produção do pintor francês Fernand Léger que apostava em uma pintura comprometida com os índices da sociedade moderna: o objeto industrial, a vitrine, o cartaz e a fotografia[3].
Tarsila Amaral, “Autorretrato (Manteau Rouge)”, 1923, óleo sobre tela, 73 x 60,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Apesar da carta para Inojosa datar de novembro de 1925, Tarsila não deu início à “limpeza” ali aludida somente a partir daquele ano. A intenção de associar sua pintura a um objeto industrial vem antes, de 1923. E, sendo desse ano seu Autorretrato (manteau rouge)[4], essa obra pode ser entendida como um símbolo de transformação de Tarsila como artista e como mulher: é quando ela deixa de produzir pinturas “modernas”, retratando-se como uma espanhola voluntariosa e passa a projetar-se como uma grande dama a produzir um tipo de pintura especial, uma síntese elegante e contida entre a calma e sobriedade de um Fra Angelico e a assepsia anônima de um objeto industrial.
Tarsila, portanto, não mais elege como projeção de si a paquita audaciosa. Agora que de fato se profissionaliza, o parâmetro torna-se um homem, um homem quase santo, um herói católico, Fra Angelico. Nada de Angelica Kauffmann ou Sofonisba Anguissola, ou qualquer outra pintora profissional do passado (que, muito provavelmente, Tarsila nem conhecida). Nem mesmo Marie Laurencin – uma das artistas mais prestigiadas da cena internacional de então – e sua pintura “tão feminina”, poderiam servir-lhe como parâmetro. O ideal agora era unir a “limpeza” dos produtos industrializados e da pintura modernista de Léger ao ascetismo, à devoção à arte, entendida como uma espécie de religião, digna de Fra Angelico.
Interessante essa nova situação enfrentada por Tarsila: a hora em que, finalmente, entende o que poderia ser a arte do seu tempo – impessoal, lustrosa como um automóvel – seu parâmetro maior torna-se um artista homem do primeiro Renascimento. Por isso é que em Autorretrato (manteau rouge) projeta-se como uma espécie de aparição: distante, hierática, quase uma santa ultramoderna.
Uma imagem ainda assim misteriosa? Sem dúvida, mas agora com um mistério quase divino, não mais inteiramente carnal, como a maioria de seus autorretratos como espanhola. Em Autorretrato (manteau rouge), a opção pelo moderno – verificável nas angulações da imagem – se mistura à sua representação tradicional. Mais do que “cubista” – como chegaram a descrevê-lo – Autorretrato (manteau rouge) é uma típica obra de um realismo sintético, somente possível após a experiência cubista. Um realismo que conta, é verdade, com certa “liberdade” angulosa, mas cuja composição centralizada é devedora da grande tradição do retrato.
Autorretrato (manteau rouge) deve ser entendido como o passaporte para seu ingresso definitivo no ambiente da pintura moderna, por meio de uma obra concebida dentro dos parâmetros, não das vanguardas históricas, mas do Retorno à Ordem internacional: moderno, mas subserviente à dimensão da beleza neoclássica, supostamente atemporal, pautada na “nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na expressão”, como queria o esteta alemão J.J. Winckelmann, ainda no século 18[5].
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Aquela mulher distante e majestosa, representada em Autorretrato (manteau rouge), contrasta e, ao mesmo tempo ecoa as descrições das extravagâncias de Tarsila que, a partir de 1923, começa a usar e abusar da engenhosidade dos estilistas Jean Patou e Paul Poiret, responsáveis pelas vestes mais originais (e caras) de Paris. Em seu livro Tarsila do Amaral, sua obra e seu tempo, Aracy Amaral transcreve alguns depoimentos que atestam o interesse que os trajes de Tarsila – sempre de autoria dos dois estilistas citados –, causavam na cena elegante da capital francesa. Sergio Milliet assim se recordará do sucesso mundano da pintora:
Lembro-me de certa noite em que, no Ballet de Champs Elysées, toda a plateia se voltou para vê-la entrar em seu camarote, com a negra cabeleira lisa descobrindo e valorizando o rosto e os brincos extravagantes quase tocando-lhe os ombros suavemente amorenados.[6]
A própria Tarsila, deslumbrada, relata para a família o seu sucesso parisiense: “Ontem fui com Betita a um baile na Ópera. Fiz sucesso como mulher linda (…)”[7]. Por outro lado, não foi sem um tom de reprovação velada que Georgina Malfatti, irmã de Anita, também depôs sobre a vaidade extravagante de Tarsila:
Lembro-me dela no teatro, no Trocadero, com uma capa escarlate, forrada de cetim branco, um chapéu de vidrilhos, grande e negro. Em Paris, onde as pessoas se vestem discretamente, era uma sensação a vaidade de Tarsila vestida por Poiret, ao seu lado Oswald, de camisa roxa.[8]
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Tarsila (terceira à esquerda), a bordo do Frísia de volta ao Brasil depois de temporada europeia. Foto: Reprodução
Tarsila na Fazenda durante a Revolução de Isidoro. Foto: Reprodução
Tarsila do Amaral. Paris Galeria Percier, 1926. Foto: Reprodução
Tarsila proferindo conferência sobre cartazes Soviéticos, 1933. Clube dos Artistas Modernos (CAM), SP. Foto: Reprodução
Apesar da fama alcançada por Tarsila por ter assumido uma persona extravagante, chamando a atenção para suas roupas e adereços, não devemos esquecer que, a partir de 1923 – e com a única exceção conhecida de uma foto no Cap. Pollonio, de 1925[9] –, a maioria das fotografias que se conhece da artista até o final daquela década, atesta o surgimento de uma imagem pública de extrema elegância. Uma elegância distante, tanto da excessiva simplicidade com que aparece em cenas prosaicas de seu cotidiano em anos anteriores, quanto de sua “versão espanhola”, visível em alguns de seus retratos fotográficos quanto em seus autorretratos. Por outro lado, também observando as fotografias não é possível atestar toda sua extravagância, tão comentada.
Em uma fotografia de grupo realizada a bordo do navio Frísia, em dezembro de 1923, Tarsila é vista sorridente entre brincos enormes, cabelos presos, vestindo um traje elegante e discretamente sofisticado. Durante a Revolução de 1924, na Fazenda Sertão, a pintora aparece em uma foto usando o mesmo traje com que foi fotografada a bordo do navio, meses antes. Essa prática de repetir roupas aparecerá documentada novamente em fotografias: em 1926, na foto promocional de sua individual em Paris, a pintora surge com o mesmo vestido que usaria sete anos depois, quando de sua conferência no Clube de Artistas Modernos de São Paulo, sobre a cartazística soviética.
Essa repetição de trajes borra a imagem de uma Tarsila apenas exibicionista e perdulária. Apesar das posses da família e do acesso ao que mais sofisticado havia em bens de consumo na época, a partir de 1923 as fotos passam a documentar o interesse da artista em encontrar o equilíbrio entre ostentação e discrição, sinalizando para algo que começava a se tornar cada vez mais importante para ela: sua produção como pintora e o papel que ela deveria e poderia exercer no ambiente artístico brasileiro. Essa repetição de trajes indica que passa a se afirmar na pintora uma atitude menos titubeante que, ao invés de continuar oscilando entre a simplicidade doméstica do vestir e suas encarnações de paquita fantasiosa, opta por exercer sua condição de milionária de gosto requintado e de artista segura de seu talento direcionado agora para a constituição de uma obra pictórica ao mesmo tempo, moderna, brasileira e “clássica”.
Tarsila, tanto na arte como na vida parece ter atentado para a advertência que seu amigo Mário de Andrade lhe fez numa das cartas que lhe escreveu em 1923: “Creio que não cairás no cubismo. Aproveite deste apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato”.[10]
Se tais diretrizes são visíveis na produção da artista a partir de 1923, o mesmo se nota em sua nova persona, com exceção, talvez, de uma ou outra ocasião em que a sobriedade é substituída pelo desejo de ostentação.
É interessante como naquele período, Tarsila constrói um eu especial, pautado em suas próprias expectativas e naquelas que nela eram projetadas pelo meio social e artístico que passara a frequentar. Uma nova persona que, embora não tenha superado a dependência, tanto econômica como afetiva dos pais, parece se estabelecer dentro de uma crescente autoestima como mulher e artista.
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Em 1924 Tarsila produzirá a primeira versão de seu Autorretrato[11].
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Tarsila do Amaral, "Autorretrato I", 1924, óleo sobre papel-tela, 38.00 cm x 32.50 cm. Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo.
Retrato de Tarsila, s. d. De J.B. Duarte. A artista teria se válido deste retrato para produzir "Autorretrato 1", 1924. Foto: Reprodução
Josephine Baker, anos 1920. Foto: Reprodução
Joan Crawford, 1929. Foto: Ruth Harriet/ Reprodução
Mirna Loy, anos 1920. Foto: Reprodução
Gloria Swanson, 1924. Foto: Reprodução
Cartaz dos anos 1920. Foto: Reprodução
Alguns autores que se debruçaram sobre essa pintura foram unânimes em associá-la a certas esculturas de Constantin Brancusi e a fotos promocionais da cantora e dançarina norte-americana Josephine Baker[12]. Mas essa imagem também pode ser associada `a cartazística da época, que exaltava a mulher moderna – a nova consumidora –, e também às fotos promocionais de atrizes de Hollywood dos anos 1920 – como Gloria Swanson, Joan Crawford e Mirna Loy, entre outras.
Se tomarmos Danaïde, 1909-1910 ou mesmo Mademoiselle Pagany II, 1920, obras produzidas por Brancusi[13], os pontos de contato entre essas esculturas e o autorretrato de Tarsila são, por um lado, a ausência de textura ou gestos ali impressos (neste sentido também lembram a Rolls) e a extrema síntese formal que, no limite, transforma, tanto a cabeça da artista quanto as peças citadas de Brancusi numa espécie de forma ovoide primordial, arquetípica.
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"Danaïde", 1918, de Constantin Brancusi, no acervo da Tate Liverpool. Foto: Reprodução
"Mademoiselle Pogany", Constantin Brancusi, do acervo do MAM Rio. Foto: Reprodução
O mesmo pode ser dito se compararmos o Autorretrato da pintora com as fotografias de Josephine Baker e das atrizes de Hollywood. Em todas igualmente são privilegiadas, tanto a superfície “linda, limpa e lustrosa” da fotografia quanto a forma ovoide do rosto, em closes que ecoam e podem fazer reviver a Femme fatale do final do século 19. Porém, se a maioria dessas imagens exibe o rosto e o colo da retratada, ambos envoltos por outros elementos, como joias, mãos etc., o que chama a atenção em Autorretrato é que apenas o rosto ovoide de Tarsila se encontra na tela, centralizado entre brincos, rodeado pelo branco do tecido.
Uma composição que, antes de ser associada às esculturas de Brancusi e/ou às beldades de Hollywood e da Broadway estabelece vínculos diretos com um dos padrões iconográficos utilizados pela tradição para fixar a “verdadeira imagem” de Jesus Cristo: o Véu de Verônica, o Vera Icona.
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Existem algumas lendas que tratam da origem dessa “verdadeira imagem” – surgida por milagre sobre o lenço – e sobre muitos dos tecidos que reivindicam ser portadores da imagem milagrosa original – imagem produzida por contato da face do filho de Deus sobre o pano. Uma delas afirma que esse retrato tão especial teria surgido em Edessa, no norte da Síria, durante o reinado do rei Abgar. Existem duas versões para essa lenda, apontadas pelo estudioso alemão Hans Belting:
Por um lado se afirma que o rei Abgar ordenou que seu pintor realizasse um retrato exato segundo o modelo vivo, retrato que recebeu junto com uma carta manuscrita de Cristo. Por outro, é dito que o trabalho do pintor foi concluído de maneira milagrosa pelo próprio Cristo, que deixou seu rosto impresso no tecido[14].
A versão que acabou prosperando foi a segunda e este fato estaria ligado à importância que se dava à constituição da imagem de Cristo não produzida por mãos humanas – non manufactum em latim e acheiropoietos, em grego[15] – como uma estratégia para, também, segundo Belting, diferenciar as imagens de Cristo dos deuses pagãos, produzidos por mão humanas[16].
Outra lenda também importante é aquela que credita a uma mulher piedosa ter dado a Jesus, durante sua Via Crucis, um véu para que ele enxugasse seu rosto. Milagrosamente, quando a senhora – Santa Verônica – recebe de volta o véu, está estampado nele o semblante de Cristo.
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Por mais interessantes que sejam as várias lendas envolvendo as imagens “achiropitas” de Cristo, aqui nos interessa atentar para aquela que, surgida na Síria, foi depois enviada para Constantinopla, onde sumiu durante o saque da cidade em 1204. Após esse desaparecimento no século 13, várias pretensas reaparições da mesma imagem ocorrerão na Europa e mesmo em Constantinopla. Hoje acredita-se que ela é a versão que se encontra no Vaticano ou então na Igreja de S. Bartolomeo, em Gênova[17].
“O véu de Verônica”, Vaticano s.d. Foto: Reprodução
De fato, o que nos interessa sublinhar é a descrição que Belting faz dessa imagem de Cristo. Segundo o estudioso:
A tela […] do rei Abgar se difundiu em inumeráveis cópias e paráfrases. Todas elas coincidiam na ideia, mas na prática apenas compartilham um esquema básico que oferece ampla margem às variações. Ela poderia se caracterizar do seguinte modo: […] as imagens de Abgar são reduzidas à impressão do rosto e do cabelo sobre um espaço vazio que o tecido simboliza[18]
Como afirma o autor, esse padrão iconográfico irá reverberar por séculos, no âmbito da pintura ocidental, com variações significativas sem perder, no entanto, as características fundamentais: um rosto de homem com barba (longa ou não), quase sempre com cabelos compridos escorridos ao lado da forma ovoide. Um dado importante: na imagem “original” o rosto de Cristo está sem a coroa de espinhos. Isto não impediu, no entanto, que vários artistas produzissem o semblante de Cristo com aquele instrumento de tortura.
A partir da Idade Média esse padrão iconográfico se espalha produzindo variantes distintas e, muitas vezes, entrelaçando lendas sobre a origem do Véu. Duas obras com o título Véu de Verônica – do italiano Bernardino Zanganelli, produzida em 1500, hoje no Philadelphia Museum of Art, e aquele atribuído a Philippe de Champagne (1640c.), do Musée de Beaux-Art de Caen – apresentam o mesmo padrão iconográfico, sendo que o primeiro acrescenta uma coroa de espinhos e uma cruz atrás da cabeça retratada.
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"O véu de Verônica", Bernardino Zangarelli, 1500c. Foto: Philadephia Museum of Art/ Reprodução
"O Véu de Verônica", 1640c., atribuído a Philippe de Champagne. Foto: Musée de Beaux- Art, Caen/ Reprodução
Muitos artistas, por outro lado, associaram a “verdadeira imagem” de Cristotambém à representação de Santa Verônica segurando o tecido com que teria enxugado o rosto santo. Uma pintura anônima alemã, da primeira metade do século 15 – hoje na Alte Pinakotheke de Berlim, representa a Santa mostrando a imagem de Cristo aos anjos. Nesta obra chama a atenção como o artista tem como modelo a cabeça da obra conservada no Vaticano. El Greco, por sua vez, na segunda metade do século 16 também pintou uma obra do mesmo tema, hoje no Museu de Santa Cruz, em Toledo, Espanha.
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"Véu de Verônica e o Santo Sudário", 1420c. Anônimo. Foto: Reprodução
"O véu de Verônica", El Greco, 1580. Foto: Museo de Santa Cruz (Toledo, Espanha)/ Reprodução
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Desde o final da Idade Média e início do Renascimento, artistas, ao representarem o rosto de Cristo, produziram autorretratos de interesse. Albrecht Dürer, em 1500, realizou Autorretrato como Cristo, também pertencente ao acervo da Alte Pinakothek. Se Dürer não foi o primeiro a associar sua própria imagem ao Filho de Deus, com certeza, até hoje, sua obra é a mais reconhecida. Além dessa obra emblemática da pintura ocidental, atento para o fato de que alguns artistas, via fotografia, também se utilizaram da iconografia do Filho de Deus para desenvolverem autorretratos que devem ser entendidos como foto-performances. Dentre eles, talvez o mais antigo seja o fotógrafo norte-americano Fred Holland Day que, em 1898, produziu a sequência As sete últimas palavras de Cristo, hoje no Metropolitan Museum of Art, de Nova York. Mais recentemente, em 1972, o artista plástico e performer italiano Luigi Ontani produziu a foto-performance Ecce Homo d’aprés Guido Reni, pertencente a uma coleção particular em Modena. No Brasil, ao que se conhece, o artista Rogério Ghomes teria sido o único a associar, em 1996, sua própria imagem ao Santo Sudário, em uma instalação intitulada Profano Sudário, hoje pertencente à Fundação Cultural de Curitiba[19].
“Autorretrato como Cristo”, 1500. Albrecht Dürer. Foto: Reprodução
Fora do âmbito da pintura e da foto-performance, nos últimos anos, no teatro ou em outras manifestações, atores negros e atrizes trans têm representado a figura de Cristo – um fenômeno artístico e cultural que deve ser aprofundado[20].
Do levantamento realizado no âmbito da pintura, a única artista a se retratar como Jesus Cristo foi a norte-americana Erwin Gaela que, em 2003, produziu Autorretrato como Jesus Cristo, um díptico em óleo sobre tela, pertencente à coleção da artista.
Se Gaela foi a única artista mulher a se retratar como Jesus, não foi possível encontrar neste rastreamento iconográfico qualquer artista – de qualquer gênero – a se autorretratar como o Véu de Verônica, o que faz com que o Autorretrato de Tarsila do Amaral se torne ainda mais especial, não apenas no campo da arte brasileira, mas da arte internacional como um todo.
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"As sete últimas palavras de Cristo" (detalhe), 1898, Fred Holland Day. Foto: Metropolitan Museum of Art/ Reprodução
"Ecce Homo d’aprés Guido Reni", 1972, Luigi Ontani. Foto: Coleção Particular, Modena/ Reprodução
"Profano Sudário", 1996, Rogério Ghomes. Foto: Coleção Fundação Cultural de Curitiba/ Reprodução
"Autorretrato como Cristo", 2003, Erwin Gaela. Foto: Coleção da artista
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O fato do Véu de Verônica guardar uma imagem produzida por contato nos remete à fotografia e sobre como ela era vista a partir do século 19, como que constituída a partir apenas do toque mecânico da luz sobre o objeto, sem mãos humanas – uma espécie de milagre. O estudioso francês Philippe Dubois, ao explicar a crença sobre a dimensão mimética da fotografia, durante o século 19, estabelece uma relação interessante entre ela e o Véu de Verônica:
A fotografia nelas [nas concepções da fotografia durante o século 19] é considerada como a imitação mais perfeita da realidade. E, de acordo com os discursos da época, essa capacidade mimética procede de sua própria natureza técnica, de seu procedimento mecânico, que permite fazer aparecer uma imagem de maneira “automática”, “objetiva”, quase “natural” (segundo tão-somente as leis da ótica e da química), sem que a mão do artista intervenha diretamente. Nisso, essa imagem “aquiropita” (sine manu facta, como o véu de Verônica) se opõe à obra de arte, produto do trabalho, do gênio e do talento manual do artista.[21].
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Aracy Amaral, no livro citado, antes de se posicionar diretamente sobre o hábito de Tarsila copiar suas pinturas para eventualmente refazê-las (caso do Autorretrato de 1924), atenta para o gosto e prática da artista em copiar suas pinturas, guardando-lhes o “risco”. A autora reflete sobre a prática de muitos artistas desenvolverem “autocópias”, trabalhos em série ou mesmo obras com diferenciação progressiva. Para ela, Tarsila não se encontrava em nenhum desses grupos: “Tarsila, entretanto, […], não se enquadra, nem dentro do que se poderia definir como “série de trabalhos” nem como trabalhos em processo […]. O que nela notamos mais é um apego a determinadas formas […] ou determinadas estruturas […][22].
Esse interesse de Tarsila por formas que houvesse criado em um ou outro trabalho, ou por estruturas de ocupação do campo plástico que conseguira na concepção/produção de uma ou outra obra, fará com que ela não copie apenas aqueles trabalhos que mais a interessara, mas a maioria deles. Assim Aracy Amaral se pronuncia sobre o caso:
Além das autocópias em Tarsila, o fenômeno “decalque”, hábito que lhe vem do tempo do desconhecimento do desenho (anterior ao estudo com Pedro Alexandrino) não deixa de aparecer como um recurso de que a artista lança mão para preservar desenhos e quadros que se vendem e que guarda consigo, como uma menina guardava antigamente um “risco” de bordado a repetir eventualmente.[23]
Sem aprofundar as aparentemente óbvias relações entre a prática do “decalque” com as prendas de uma moça casadoura, levantadas por Aracy, chamo a atenção para a relação possível entre a fotografia e o decalque para se tirar o “risco” de uma imagem. Afinal, ambos os procedimentos se configuram por meio de contato. E o interessante é que Autorretrato parece ter sido produzido a partir da cópia do retrato fotográfico da artista, sobre a qual ela se debruçou para copiá-la em um papel de seda, para depois ampliar a imagem em uma folha de papel e, depois, sobre a tela definitiva.
Suponho que já nesse processo de passagem da fotografia para a pintura, a artista praticou um saber que deve ter adquirido por leituras ou conversas com artistas mais experientes: o fato de que, na tradução da fotografia para a pintura, o “correto” é deixar de lado o aspecto descritivo da imagem fotográfica para investir apenas em sua síntese – questão que, na década de 1930, Tarsila explicitará em uma crônica[24].
Mas não devemos esquecer: se o retrato de Tarsila possuía índices descritivos, sendo uma fotografia, ele mantinha as mesmas qualidades de uma Rolls: era linda, limpa e lustrosa. Guardava essas características de um objeto industrializado. Tarsila secou a dimensão descritiva do retrato fotográfico, mas passou para a tela a limpeza da superfície fotográfica: em Autorretrato o que vemos é uma imagem sintética e centralizada, sem nenhum índice mais evidente da “mão” da artista. Ou seja, de mão humana, o que significa que, em termos visuais, Autorretrato funciona como uma imagem que não é produto de mãos humanas, uma imagem achiropita.
Como mencionado, essas evidentes relações entre o Autorretrato de Tarsila e o “Verdadeiro Ícone” não foram detectadas pelos estudiosos da obra da artista. Mesmo Aracy Amaral, quando reflete sobre essa pintura, parece descrever uma fotografia, embora afirme que Tarsila “fuja” da fotografia quando produz sua obra. Uma fotografia ou o Véu de Verônica:
Mas, nessa repetição do autorretrato está também implícito um certo narcisismo, um “se querer bem” que também é característico de Tarsila. Autorretrato – sempre capa de seus catálogos – foge entretanto à doçura da expressão natural da foto e transpõe uma imagem transfigurada, figée na forma elíptica do rosto de colorido frio e irreal, quase uma máscara de beleza intocada e preservada.[25]
Tarsila do Amaral deve ter percebido a semelhança entre o resultado de sua pintura e o Santo Sudário que ela, como católica, conhecia. Ver a si mesma como Cristo pode tê-la enchido de um orgulho narcísico porque, de alguma maneira aquele autorretrato significava uma “evolução” de sua autoimagem: de uma Paquita inconsistente a uma monja, uma santa ultramoderna dedicada à causa da arte. E da santa suntuosa para o próprio Cristo, encarnação de Deus pictor.
Referências bibliográficas
Livros – AMARAL, Aracy. Tarsila sua obra e seu tempo. São Paulo: Editora Perspectiva/Edusp, 1975. Vol.1.
– AMARAL, Aracy. Tarsila do Amaral. Buenos Aires: Fundação Finambrás, 1998.
– AMARAL, Tarsila do Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral (org.: Laura Taddei Brandini. Campinas: Editora Unicamp, 2008.
-BELTING, Hans. Imagen y culto. Una historia de la imagen anterior a la edad del arte. Madrid: Akel S.A., 2009
– DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994.
– GOTLIB, Nadia Battella. Tarsila do Amaral a modernista, 2ª. São Paulo: Editora Senac,2000.
– MICELI, Sergio. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
– POLLOCK, Griselda. Visión y diferencia. Feminismo, feminidad e historias del arte. Buenos Aires: Fiordo, 2015.
– SARTUNI, Maria Eugênia (Coord.Ed.). Tarsila. Catálogo Raisonné. São Paulo: Base 7 Projetos Culturais/Pinacoteca de São Paulo, 2008. 3 Vol.
– WINCKELMANN, JJ. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Movimento; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975, p. 53.
[10] – Mário de Andrade. Carta a Tarsila do Amaral, em 16 de junho de 1923. IN AMARAL, Aracy. Op. cit.368. Se atentarmos para toda a fase pau-brasil de Tarsila, será visto que ela obedeceu ao amigo, na medida em que Tarsila constitui as pinturas daquela fase buscando sempre o equilíbrio, a construção e a sobriedade. Por outro lado, e dentro desse universo “clássico-moderno” tão caro ao modernismo paulistano. Segundo ainda Aracy Amaral (op. cit. p.121) em 1929, assim a artista iria se referir à sua viagem a Minas: “… Senti um deslumbramento diante das decorações populares das casas de moradia de S. João del Rei […] e outras pequenas cidades de Minas, cheias de poesia popular. Retorno à tradição, à simplicidade”.
[11] – Existem três versões desse autorretrato. O Autorretrato I, pintura, Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo; Autorretrato II,1926, pintura, Coleção particular, São Paulo e Autorretrato III, 1924, grafite e tinta ferro gálica sobre papel, Coleção particular, São Paulo.
[12] – Chamo a atenção para o texto já citado de Aracy Amaral e para Nacional Estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico e São Paulo, Sergio Miceli (São Paulo: Cia das Letras, 2003).
[13] – Danaïd pertence à coleção da Tate Liverpool e Mademoiselle Pagany II ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
[14] – BELTING, Hans. Imagen y culto. Una historia de la imagen anterior a la edad del arte. Madrid: Akel S.A., 2009Op.cit. p.278.
[15] – Em português seria Aquiropita ou Achiropita. Como se sabe, na cidade de São Paulo existe uma igreja de nome Nossa Senhora Achiropita. Ela faz referência à imagem milagrosa da Virgem Maria, também não produzida por mãos humanas, que teria aparecido em Rossano no sul da Itália. Sobre o assunto ler: https://www.achiropita.org.br/a-paroquia/historia-da-paroquia/porque-achiropita
[19] – Em 1997, por ocasião da participação de Rogério Ghomes na sétima edição da Bienal de Arte de Havana, escrevi para o catálogo do artista o seguinte texto, “O Profano Sudário: a produção de Rogério Ghomes no contexto da fotografia contemporânea brasileira”, posteriormente republicado em: GHOMES, Rogério. Preciso acreditar que ao fechar os olhos o mundo continua aqui. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2017
[20] – Nos terrenos da performance e do teatro, nos últimos anos o Brasil assistiu a uma escalada de preconceito (e agressões, inclusive física) a atrizes trans que interpretaram Jesus Cristo, como foi o caso de Viviany Beleboni que na Parada Gay de São Paulo, em 2015, performou a figura de Jesus. Renata Carvalho, atriz principal da peça “Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, da autora britânica Jo Clifford, no final da última década foi impedida de levar seu espetáculo em algumas cidades brasileiras. Sobre o assunto ler: ego,globo.com/famosos/noticia/2015/09/Viviany-beleboni-e-esfaqueada-e-assustada-fala-em-suicidio e entretenimento.uol.com.br/noticias/redação/2018/04/05/quem-e-renata-carvalho-a-atriz-trans-que-ousou-encarnar-jesus-cristo.htm. A representação de Jesus como mulher e também como um jovem negro causou protestos no Carnaval carioca de 2020, quando a rainha de bateria da Mangueira,…., desfilou como Jesus mulher no mesmo desfile em que a Escola apresentava um carro alegórico com a imagem de um Jesus como um jovem negro. hypeness.com.br/2020/02/mangueira-e-grande-rio-se-destacam-com-jesus-negro-e-defesa-do-candomle/
[21] – DUBOIS, Phillippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994, p. 27. (Os itálicos são do autor do livro). Em tempo: Dubois, em nota, aprofunda um pouco mais a relação entre a imagem “aquiropita” e a fotografia: “Lembremos que o Véu de Verônica (ou, caso se prefira ser mais histórico, o Santo Sudário de Turim) pode ser considerado, com sua “impressão em negativo”, com seu “efeito impressionante de realismo”, com seu valor de relíquia e de fetiche, como uma espécie de protótipo da fotografia: uma imagem obtida por impregnação direta do modelo no suporte, sem qualquer intervenção da mão no surgimento da representação (…)” – p. 54, nota 5. Em tempo: não por nada, em países católicos, Santa Verônica disputa com Santa Luzia o posto de padroeira dos fotógrafos.
[24] – Em 1936 Tarsila reflete sobre as diferenças entre a pintura e a fotografia e sobre como o pintor deveria discernir os detalhes da imagem fotográfica que deveriam ser transferidos para a pintura e aqueles que precisavam ser suprimidos. “Pedro Alexandrino”. Diário de S. Paulo, 17, novembro, 1936. In AMARAL, Tarsila. Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral. Organização Laura Taddei Brandini. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. pág. 163 e segs.
Vista da exposição "Países espelhados", em cartaz no Sesc Consolação. Foto: Kazuo Kajihara
As tramas em palha de palmeira piaçava no litoral Norte da Bahia criam um diálogo claro com a cestaria feita no litoral Norte de Cabo Delgado, em Moçambique, bem como os grafismos da cestaria tradicional dos povos Baniwa, da Amazônia, se encontram com os desenhos produzidos pela artesã Makeba em São Tomé e Príncipe. As esculturas Makonde remetem aos trabalhos do escultor popular GTO, de Minas Gerais, e os tecidos feitos nos teares de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe parecem contar uma história conjunta com aqueles produzidos e bordados em diversos Estados brasileiros. Esses são alguns dos vários encontros culturais que formam Países Espelhados: objetos, imagens, sabores, memórias, em cartaz no Sesc Consolação.
Com curadoria de Renato Imbroisi, a exposição reflete sobre as semelhanças entre o Brasil e os cinco países africanos que também foram colonizados por portugueses: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Reunindo artesanatos de cada uma dessas nações, a mostra busca celebrar os traços comuns e revelar as possibilidades de se reconhecer no outro.
“Na primeira vez que eu pisei no continente africano, em Moçambique, parecia que eu estava em casa”, conta o curador. Suas visitas à África foram sistemáticas. Imbroisi já tinha uma vasta experiência com projetos de design e artesanato no Brasil e, entre 2003 e 2019, desenvolveu com outros profissionais uma série de oficinas em diferentes países africanos, visando fomentar e revitalizar o artesanato local, gerando também renda para pessoas dessas comunidades. Ali, deparou-se com as semelhanças e pôde conhecer artistas e artesãos que hoje formam Países Espelhados.
A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com o curador sobre a história e os conceitos que a permeiam. Assista ao vídeo:
Países Espelhados fica aberta até 26 de junho e pode ser visitada gratuitamente de terça a sexta, das 15h às 21h, e aos sábados, das 10h às 14h, mediante agendamento prévio pelo site do Sesc Consolação. A permanência máxima na unidade é de 60 minutos e o uso de máscara facial é obrigatório para todas as pessoas durante toda a visita.
"Green Wolf", 2011, de Osvaldo Carvalho, na galeria Janaina Torres, que participa da SP-Arte. Foto: Divulgação
Com evento presencial marcado para o mês de agosto, entre os dias 18 e 22, a SP-Arte realiza esta semana a segunda edição de seu evento virtual, o SP-Arte Viewing Room. Com cerca de 120 participantes nacionais e internacionais – entre galerias de arte e de design, editoras e projetos independentes – a feira acontece entre quarta-feira, dia 9, e domingo, dia 13 de junho.
Para a diretora e fundadora da feira, Fernanda Feitosa, em texto de divulgação: “O avanço do digital é inegável e irreversível. As plataformas digitais irão, cada vez mais, potencializar o alcance do mercado como um todo, abrindo ainda mais as portas para o cenário internacional ou mesmo aproximando novos colecionadores, que se sintam mais à vontade no ambiente online. O digital, é claro, não substitui o contato físico, a sensação de ver uma obra presencialmente, mas traz uma experiência que pode ser um complemento à experiência presencial”.
Na página de cada galeria, o visitante do SP-Arte Viewing Room pode percorrer um projeto expositivo com até 20 obras de um ou mais artistas. O público pode conferir as obras por meio de vídeos e áudios que criam uma narrativa em torno da exposição digital, enriquecendo a experiência do usuário. Caso haja o interesse por algum trabalho disponível no site, apenas um clique em “Contactar galeria” já permite que o expositor e o potencial comprador iniciem uma conversa por meio de um chat da plataforma, Whatsapp ou e-mail.
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"Aeroporto de São Paulo", 1965, de German Lorca, na Galeria Utópica. Foto: Divulgação
Obra de Manabu Mabe na galeria Pinakotheke. Foto: Divulgação
"Agbara awọn irin ogun pẹlu konge ti aaki", de Antonio Oloxede, na 01.01 Art Platform. Foto: Divulgação
Obra de Detánico & Lain na Galeria Vermelho, no SP-Arte Viewing Room. Foto: Divulgação
Obra de José Antônio da Silva na Galeria Estação. Foto: João Liberato/ Divulgação
"Fontana", 2016, de Waltercio Caldas, na Galeria Raquel Arnaud. Foto: Daniel de Lavor/ Divulgação
"Escombros", 2019, de Talita Hoffmann , na Galeria Aura. Foto: Divulgação
"Projeto para uma auto-estrada", 1970, de Sergio Augusto Porto, na Central Galeria. Foto: Gabriel de Souza/ Central Galeria
Paralelamente à feira e integrada a sua realização, acontece a partir de quarta-feira, dia 8, o Gallery Week, com atividades presenciais realizadas dentro e no entorno das galerias de arte de São Paulo. A ação é realizada pela SP-Arte em parceria com a ABACT e com o Iguatemi.
Neste período (de 8 a 12 de junho), as casas participantes estarão abertas das 11h às 19h, realizando visitas guiadas, conversas com artistas/curadores, talks virtuais e/ou intervenções urbanas, sempre respeitando os protocolos vigentes de segurança por conta da pandemia de Covid-19. Todas as visitas serão realizadas mediante agendamento prévio. Confira aqui as galerias que participam.
Chico Mendes na sua casa em Xapuri, Acre, em 1988. Foto: Miranda Smith/Creative Commons.
A Mostra Ecofalante de 2021 ocorre no âmbito da Semana Nacional do Meio Ambiente, instituída em 1981 com o objetivo de promover a participação da comunidade na preservação do patrimônio natural do Brasil. Assim, de 2 a 9 de junho, o evento disponibiliza gratuitamente 16 filmes e duas séries ao redor dessa temática. Os filmes poderão ser acessados no site da mostra e na plataforma parceira Belas Artes à La Carte.
Chico Mendes na sua casa em Xapuri, Acre, em 1988. Foto: Miranda Smith/Creative Commons.
Um dos destaques do festival é o longa-metragem BR Acima de Tudo, que fará sua pré-estreia mundial. Realizada com o apoio do Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center, o filme dirigido por Fred Rahal Mauro trata dos impactos da possível expansão da rodovia BR-163, cujo traçado corta a floresta amazônica em direção à fronteira com o Suriname, projeto gestado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Já a série A Década da Destruição, de Adrian Cowell e Vicente Rios e considerada um marco no documentário ambiental tem seis episódios na programação. Dirigida entre 1980 e 1990, a produção apresenta a realidade amazônica, em especial a luta pela terra e a violência de fazendeiros contra trabalhadores rurais, bem como o conflito entre a antiga mineradora CVRD (atual Vale S/A) e garimpeiros. O episódio “Chico Mendes – Eu Quero Viver” foca na trajetória do sindicalista, ativista político e ambientalista e destaca sua luta a favor dos seringueiros da Amazônia.
Confira a programação
Na grade de filmes estão presentes obras assinadas por Wolney Oliveira (Soldados de Borracha), Eryk Rocha (Edna), Luiz Bolognesi (A Última Floresta), Estevão Ciavatta (Amazônia Sociedade Anônima), Belisario Franca (Amazônia Eterna), Victor Lopes (Serra Pelada: A Lenda da Montanha de Ouro), Christiane Torloni e Miguel Przewodowski (Amazônia, o Despertar da Florestania), Fernando Segtowick (O Reflexo do Lago), Julia Mariano (Ameaçados), Márcio Isensee e Sá (Sob a Pata do Boi), Daniel Junge (Mataram Irmã Dorothy), Heidi Brandenburg Sierralta e Mathew Orzel (Quando Dois Mundos Colidem).
A Última Floresta, do diretor Luiz Bolognesi, foi o filme de encerramento do Festival É Tudo Verdade em 2021 e teve sua estreia mundial na Mostra Panorama do consagrado Festival de Berlim (arte!brasileiros conferiu o filme e você pode ler nossas impressões aqui). Outro filme que, anteriormente, também havia sido exibido na Berlinale é O Reflexo no Lago, de Fernando Segtowick, obra que trata de comunidades ribeirinhas localizadas próximas da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. Já Quando Dois Mundos Colidem, de Heidi Brandenburg Sierralta e Mathew Orzel, conquistou o prêmio especial do júri no Festival de Sundance. A obra investiga o violento conflito desencadeado na Amazônia peruana por um projeto de extração de petróleo, minério e gás, que vitimou os povos indígenas ali residentes.
Cena de “A Última Floresta”. Foto: Pedro Márquez / Divulgação.
Além disso, a Mostra Ecofalante relembra documentários premiados em suas edições passadas. É o caso de Sob a Pata do Boi, de Márcio Isensee e Sá, e do curta-metragem Ameaçados, de Julia Mariano. O primeiro foca na relação da pecuária com a Amazônia, enquanto o segundo mostra a luta de pequenos agricultores do sul e sudeste do Pará.
O festival apresenta ainda três dos mais importantes filmes assinados por Jorge Bodanzky: Iracema, Uma Transa Amazônica (1974), codirigido por Orlando Senna, Jari (1979) e Terceiro Milênio (1981), ambos codirigidos por Wolf Gauer.
Agenda de debates
3 de junho, quinta-feira, às 19h
Acontece o debate “Para Onde Leva a Transamazônica?”, no qual participam os diretores da série Transamazônica: Uma Estrada Para o Passado Jorge Bodanzky e Fabiano Maciel, o documentarista João Moreira Salles, Alessandra Munduruku (a confirmar) e Danicley de Aguiar, do Greenpeace Brasil. A jornalista Flavia Guerra faz a mediação.
4 de junho, sexta-feira, às 19h
“Amazônia: Uma Questão de Terra(s)” é o tema do debate agendado para 4 de junho. São várias as atividades econômicas que fazem pressão sobre a maior floresta tropical do mundo e os povos tradicionais que lá vivem. Atualmente, uma série de leis em tramitação procura regular tais atividades. Quais são os principais beneficiários dessas leis? Participam do encontro Brenda Brito, pesquisadora do Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia), Marcello Brito, presidente da ABAG (Associação Brasileira do Agronegócio) e Sônia Guajajara, líder indígena nacional (APIB). O jornalista acreano Fábio Pontes faz a mediação.
7 de junho, segunda-feira, às 19h
Acontece o debate “Amazônia: Infraestrutura Para Quem?”. A Amazônia é palco de atividades econômicas desde o Brasil Colônia, mas foi só na ditadura militar que os projetos de desenvolvimento em grande escala surgiram, trazendo consigo uma ocupação desordenada e um forte desmatamento. Hoje, fala-se muito na necessidade de infraestrutura na região para alavancar a economia e apoiar um projeto de desenvolvimento sustentável. Como resolver o gargalo sem ampliar a destruição? Será necessário uma nova compreensão do território para alcançar esse objetivo? Integram a mesa Ana Cristina Barros, pesquisadora do CPI – Climate Policy Initiative, Suely Araújo, especialista-sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do IBAMA, e Simão Jatene, ex-governador do Pará. Sérgio Leitão, diretor do Instituto Escolhas, faz a mediação.
8 de junho, terça-feira, às 19h
“Raízes da Amazônia: Projetando o Futuro” é o debate do dia 8 de junho. Quando o tema é o futuro da Amazônia, fala-se em bioeconomia, mercado de carbono, valorização da floresta em pé, inúmeros projetos que contemplam a biodiversidade da maior floresta do mundo e os ‘serviços ambientais’ não contabilizados que ela presta. Por outro lado, há também uma efervescência cultural – nas artes, na gastronomia, no pensamento e conhecimento milenar das múltiplas culturas da Amazônia que necessitam de reconhecimento. O debate propõe um novo olhar sobre a Amazônia, seu enorme potencial e a contribuição de seus povos. Participam Ricardo Abramovay, professor sênior do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE/USP) e autor de Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza, a Secretária de Ciências e Tecnologia do Amazonas Tatiana Schor e Eliakin Rufino, compositor e produtor musical de Roraima. Mariano Cenamo, diretor do Idesam/AMAZ faz a mediação.
9 de junho, quarta-feira, às 19h
O evento “Amazônia e os Futuros Possíveis” encerra o ciclo de debates. Trata-se de uma conversa sobre o documentário BR Acima de Tudo, que retrata a diversidade socioambiental em uma das partes mais preservadas da floresta brasileira, e as perspectivas da chegada de uma rodovia na região. Participam da mesa Fred Rahal Mauro, diretor do filme, Angela Kaxuyana (a confirmar), da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, e Carlos Printes, da ARQMO – Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná.
Para saber mais sobre as atividades paralelas do festival, como o webinário e a masterclass com Jorge Bodanzky, acesse este link.