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O que acontece quando nós desfazemos o mundo?

“Chuck Coma sofreu uma lesão cerebral por hipóxia depois que seu colega de cela o estrangulou na penitenciária federal em Lewisburg, Pensilvânia, privando seu cérebro de oxigênio. Desde então, ele tem sofrido de perda de memória, alterações extremas de humor e tremores ocasionais. No momento de sua prisão, Coma estava lutando contra um grave PTSD devido ao serviço militar no Panamá e na Guerra do Golfo. Antes das guerras, ele era um pouco encrenqueiro, mas não tinha problemas sérios com a lei. Quando ele deixou o serviço, não conseguiu segurar um emprego e começou a assaltar bancos”. Shelton, Washington. EUA. 2019. | Crédito: Peter van Agtmael/Magnum Photos. Cortesia do fotógrafo.
“Chuck Coma sofreu uma lesão cerebral por hipóxia depois que seu colega de cela o estrangulou na penitenciária federal em Lewisburg, Pensilvânia, privando seu cérebro de oxigênio. Desde então, ele tem sofrido de perda de memória, alterações extremas de humor e tremores ocasionais. No momento de sua prisão, Coma estava lutando contra um grave PTSD devido ao serviço militar no Panamá e na Guerra do Golfo. Antes das guerras, ele era um pouco encrenqueiro, mas não tinha problemas sérios com a lei. Quando ele deixou o serviço, não conseguiu segurar um emprego e começou a assaltar bancos”. Shelton, Washington. EUA. 2019. | Crédito: Peter van Agtmael/Magnum Photos. Cortesia do fotógrafo.

Em 13 de novembro de 2015, o fotógrafo estadunidense Peter van Agtmael estava em Paris durante um ataque terrorista massivo efetuado pelo grupo Estado Islâmico (EI). À noite, ao retornar para o quarto de hotel, Peter se sentiu paranóico pela primeira vez em muito tempo. “Eu já havia coberto conflitos por dez anos e sempre tinha sido capaz de me preparar [psicologicamente] para a experiência. Naquela vez, pego de surpresa, fiquei meio acordado a noite toda”, conta. O choque continuou a reverberar, mesmo após o fotógrafo retornar para casa, em Nova York. Até lá, ao usar o metrô, Peter se via mantendo as costas contra a parede, quando possível, e examinando cada rosto, ao mesmo tempo que mapeava suas rotas de fuga. “Sempre fui um visitante dos conflitos de outras pessoas, mas em Paris, quando a violência chegou tão repentinamente em um espaço que eu associava com conforto e santuário, tive uma pequena compreensão do que as pessoas comuns que vivem em uma guerra sentem todos os dias. Dez anos de trabalho em conflito e eu havia perdido uma das lições mais fundamentais”.

Tal dissonância entre as percepções, dos estadunidenses, quanto às guerras pós 11 de setembro  e a violência vivida por pessoas presas em zonas de conflito é o pilar narrativo do mais recente projeto de Peter, Sorry for the War (Nos perdoem pela guerra, em tradução livre). Nele, as fotos sequenciadas de forma não linear entrelaçam e costuram a guerra no Iraque durante o tempo do EI, o êxodo em massa de refugiados para a Europa, militarismo, terrorismo, nacionalismo, criação de mitos e a propaganda de guerra. O material reunido em Sorry for the War (cujos textos e legendas vêm escritos em inglês e árabe) nos lembra que, embora as guerras recentes dos Estados Unidos tenham sido praticamente esquecidas, suas consequências continuam a reverberar, como nota o autor.

“Jennie Taylor mede uma lápide para o túmulo de seu marido, Brent. Ela não estava em casa quando a equipe de notificação de vítimas chegou à sua porta e recebeu um telefonema para ir ao quartel-general da Guarda Nacional. Enquanto sua irmã a conduzia, ela pensou: ‘Se ele está morto, tenho que processar isso. Eu não tenho escolha. Eu não posso desmoronar. Meus filhos são o que mais importa’. Jennie disse que sabia que ele tinha morrido quando ela chegou lá e ninguém iria olhar nos olhos dela”. North Ogden, Utah. EUA. 2019. | Crédito: Peter van Agtmael/Magnum Photos. Cortesia do fotógrafo.
“Jennie Taylor mede uma lápide para o túmulo de seu marido, Brent. Ela não estava em casa quando a equipe de notificação de vítimas chegou à sua porta e recebeu um telefonema para ir ao quartel-general da Guarda Nacional. Enquanto sua irmã a conduzia, ela pensou: ‘Se ele está morto, tenho que processar isso. Eu não tenho escolha. Eu não posso desmoronar. Meus filhos são o que mais importa’. Jennie disse que sabia que ele tinha morrido quando ela chegou lá e ninguém iria olhar nos olhos dela”. North Ogden, Utah. EUA. 2019. | Crédito: Peter van Agtmael/Magnum Photos. Cortesia do fotógrafo.

Os registros perturbadores, de humor ácido (acentuado pela plasticidade trazida no uso do flash e pela ordenação astuta das imagens no livro), contraditórios, misteriosos e, por vezes, condenatórios, são articulados por Peter para estudar a construção da ideia de uma guerra sem fim. Embora mostre um mundo pós 11 de setembro – “ataque que ‘nos deu licença’ para usar nossos medos como desculpa para qualquer coisa” -, Sorry for the War cumpre o dever de utilizar a história recente como guia, mas não limitar-se a ela, já que “também deve-se olhar para a totalidade da história americana como uma estrutura: as coisas não acontecem apenas por causa de um evento, elas acontecem como parte do continuum da história”. Fora do front, o fotógrafo foca nas sequelas dessa cultura, “servindo tanto como evidência quanto interpretação de um país à deriva, com consequências muitas vezes desastrosas”, e incluindo a noção de guerra eterna, exemplificada muito bem em quatro registros de discursos televisionados dos últimos presidentes dos EUA (Bush pai e filho, Obama e Trump; com exceção de Bill Clinton), cujas falas deveriam anunciar o fim de determinados conflitos e acabam por reforçar, nesses trechos congelados por Peter, o oposto.

O título do livro, encontrado em um post-it rosa choque na capa da publicação, vem de uma fotografia tirada por Peter de uma ação, com o nome de Balloons for Kabul (Balões para Cabul, em tradução livre), em uma galeria de arte em Nova York. “Os nova-iorquinos escreveram notas para o povo de Cabul que seriam entregues a eles com balões cor-de-rosa durante seu trajeto matinal. Foi uma resposta bem intencionada, mas totalmente inacessível a um conflito que já durava uma década. Muito do trabalho que faço é sobre a desconexão entre os EUA e as consequências de suas – ou de nossas – ações imperiais no exterior. Aquela nota e aquele evento pareciam simbolizar muito da desconfiança e cinismo que eu nutria por nossa ideia distorcida de empatia coletiva”, ele conta à também fotógrafa Tanya Habjouqa. “Essa nota parecia apropriada porque este livro é meu pedido de desculpas e uma declaração de desamparo sobre o que aconteceu nas últimas duas décadas. Não posso mudar nenhum resultado, mas certamente posso criar um documento rigoroso interpretando o que está acontecendo. E eu acho que é em parte por isso que o olhar sobre os estadunidenses neste livro é meio brutal e sarcástico. Eu conheci a generosidade e a graça no coração dos Estados Unidos. Da mesma forma, conheci muito bem a violência incessante”, complementa o fotógrafo.

A escolha da sátira como veículo da crítica – ao invés do uso deliberado do choque – mostra não só sua experiência (vasta para um profissional tão jovem), mas delineia um caminho contrário ao do mercado de notícias, como explica Susan Sontag no livro Diante da Dor dos Outros: “A busca por imagens mais dramáticas (como elas são descritas frequentemente) guia a produção de fotografias, e é parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo de consumo e fonte de valor”. Sobre as fotos-choque (como chamou Roland Barthes), Sontag questionaria: “Você pode olhar para isso?”. “Existe uma satisfação em ser capaz de ver a imagem sem fechar os olhos. [Mas também] existe o prazer de fechar os olhos diante do horror”, pontua. Seja pela indignação, pelo mistério ou pela sátira, Peter consegue manter, através de Sorry for the War, a prevalência do “por que?”. “Por que essa face em Guantánamo foi escondida?”; “por que as pessoas vão a museus olhar drones?”; “por que o cenário atrás dessa criança está em ruínas?”; “por que há uma enorme celebração esportiva no meio de um livro sobre conflito?”.

Visualizando a guerra?

Em uma época na qual política é frequentemente consumida pelos cidadãos de maneira visual – por meio das mídias sociais, coberturas noticiosas em vídeo ou cultura popular -, a necessidade de tomar consciência do peso da comunicação visual é cada vez mais premente. “Essa necessidade se torna ainda maior ao considerarmos que tão poucos de nós [habitantes de áreas isentas de conflito] têm, agora, experiência direta na guerra ou com o exército”, assim argumentam Nick Robinson e Marcus Schulzke no estudo Visualizing War? Towards a Visual Analysis of Videogames and Social Media. Segundo os autores, ao ser vivenciada cada vez mais remotamente pelos cidadãos, a guerra acaba sendo apresentada como um espetáculo centrado no uso de artilharia remota cada vez mais poderosa e tecnologicamente sofisticada (a exemplo das imagens recentes demonstrando o poderio do Domo de Ferro, em Israel, ora parecidas com cenas de Star Wars, outras com fogos de artifício). 

Robinson e Schulzke apontam que: “As consequências desse retrato crescente da guerra como entretenimento podem sugerir um movimento em direção a uma cidadania cada vez mais soporífera que se torna progressivamente desengajada, não questionando mais por que lutamos, ao invés disso se perdendo ‘no fato de que lutamos”’. Os pesquisadores complementam que é possível observar uma variedade de respostas dos cidadãos a essa espécie de conteúdo “de distração, deslumbramento e voyeurismo” a ser “positivamente mobilizado para apoiar ativamente a ação militar”.

Uma observação importante feita em Visualizing War é que uma amostra considerável dos estudos acerca do militarismo “enfatizam as maneiras pelas quais temas nacionalistas e militaristas surgem em conjunto”, no interesse do Estado e de suas forças armadas. Utilizando os Estados Unidos como estudo de caso, Robinson e Schulzke afirmam que “a recente desilusão com as guerras no Iraque e no Afeganistão, combinada com uma demanda de ‘apoiar as tropas’ em todos os momentos, levou a um subgênero de meios de comunicação de guerra que demonstram isso”. Tal fenômeno também é descrito por Peter:

Nos últimos anos, tivemos [nos EUA] um presidente que criou uma atmosfera de profundo medo ao explorar a ideia de ameaças a este país, nossa liberdade, nossa segurança. Então, quando eu olho para a presidência de Trump, vejo o mundo pós 11 de setembro escrito por toda parte. O ano de 2020 foi, para mim, o ápice da história americana recente. Ele incorporou todas as forças políticas que estiveram em movimento nas últimas décadas.

O estudo também chama atenção para as imagens de conflito criadas para videogames e as envolvidas em sua divulgação. É estimado que o jogo Call of Duty, por exemplo, tenha aproximadamente 100 milhões de participantes mundialmente e que as vendas dos produtos premium englobados pela franquia tenham ultrapassado 400 milhões de dólares, desde seu lançamento em outubro de 2003. Esse não é um caso isolado, no entanto. Como o professor associado de Ciências da Comunicação da Universidade da Georgia, Roger Stahl, identificou: “11 de setembro de 2001 e as guerras que se seguiram no Afeganistão e no Iraque deram início a um boom nas vendas de videogames com tema de guerra”.

Citando o trabalho de Vit Šisler, pesquisador da intersecção de cultura e mídia digital e professor assistente da Charles University, em Praga, o estudo ressalta que os jogos militares normalmente contêm representações estereotipadas dos muçulmanos. Šisler argumenta que “o inimigo” é coletivizado e linguisticamente identificado como “grupos terroristas”, “militantes”, e “insurgentes”, enquanto as tropas americanas ou aliadas são humanizadas e individualizadas, com personagens jogáveis e não jogáveis “retratados com apelidos ou características visuais específicas”. Além disso, as “forças aliadas” também são mostradas como parte de uma ação multilateral, o que justificaria “a retórica de uma guerra contra o terrorismo, com o inimigo do Oriente Médio, exigindo contenção e intervenção militar quase contínua”. Mas não só: tomando como ponto de partida tais representações, é possível supor, controvertidamente, que problemas sociais e políticos complexos podem ser resolvidos de forma tão somente militar. Em renitência a essa tipificação visual, Peter van Agtmael relata a Tanya Habjouqa: “Quando meus olhos estão voltados para os iraquianos, afegãos e sírios pegos no meio desse caos, é muito mais gentil. E isso é em parte porque tenho um maior grau de simpatia pelas verdadeiras vítimas deste conflito. Uma reação ao fato de que esses grupos geralmente foram marginalizados visualmente e apenas vistos em momentos de extrema violência e tristeza ao longo da história da fotografia”.

Mesmo que, como dito acima, seu olhar sobre os estadunidenses seja mais analítico, em Sorry for the War, Peter direciona sua crítica pungente ao Estado e ao imperialismo, retratando soldados de sua terra natal com humanidade também. Alguns desses personagens lidam com sequelas físicas do seu tempo em combate, outros psicológicas, ou ainda, criminalidade em decorrência do desemprego.

“Chuck Coma sofreu uma lesão cerebral por hipóxia depois que seu colega de cela o estrangulou na penitenciária federal em Lewisburg, Pensilvânia, privando seu cérebro de oxigênio. Desde então, ele tem sofrido de perda de memória, alterações extremas de humor e tremores ocasionais. No momento de sua prisão, Coma estava lutando contra um grave PTSD devido ao serviço militar no Panamá e na Guerra do Golfo. Antes das guerras, ele era um pouco encrenqueiro, mas não tinha problemas sérios com a lei. Quando ele deixou o serviço, não conseguiu segurar um emprego e começou a assaltar bancos”. Shelton, Washington. EUA. 2019. | Crédito: Peter van Agtmael/Magnum Photos. Cortesia do fotógrafo.
“Chuck Coma sofreu uma lesão cerebral por hipóxia depois que seu colega de cela o estrangulou na penitenciária federal em Lewisburg, Pensilvânia, privando seu cérebro de oxigênio. Desde então, ele tem sofrido de perda de memória, alterações extremas de humor e tremores ocasionais. No momento de sua prisão, Coma estava lutando contra um grave PTSD devido ao serviço militar no Panamá e na Guerra do Golfo. Antes das guerras, ele era um pouco encrenqueiro, mas não tinha problemas sérios com a lei. Quando ele deixou o serviço, não conseguiu segurar um emprego e começou a assaltar bancos”. Shelton, Washington. EUA. 2019. | Crédito: Peter van Agtmael/Magnum Photos. Cortesia do fotógrafo.

Meredith Kleykamp, diretora do Center for Research on Military Organization, da Universidade de Maryland, salienta que as taxas de desemprego são mais altas entre os veteranos, em comparação aos não veteranos, com a maior disparidade ocorrendo entre as mulheres. No estudo Unemployment, earnings and enrollment among post 9/11 veterans, Kleykamp indica que, em 2011, aproximadamente 12% de todos os veteranos pós 11 de setembro e quase 30% daqueles com idade entre 18 e 24 anos estavam desempregados. Dado que os veteranos de hoje são mais propensos, que seus pares de gerações anteriores, a casar e ter filhos, os efeitos da transição entre vida militar e civil apresentam reveses que se estendem aos seus cônjuges, crianças e comunidades. Em pesquisa anterior, ela aponta que nem todos os soldados entram na vida militar com ensejos de crescimento no exército. “Os jovens com nível socioeconômico mais baixo tinham quase metade da probabilidade – do que seus pares de origens mais favorecidas – de se matricular na faculdade em vez de se alistar nas forças armadas”, explica. Os resultados de sua análise mostram que as metas educacionais desempenham um papel importante na decisão de se alistar nas forças armadas nos Estados Unidos, ainda mais com a chamada “Post 9/11 GI Bill”, lançada em agosto de 2009, que paga as mensalidades e taxas de escolas estaduais.

Army Dreamers

“Luto no aeródromo. O clima está mais quente, ele está mais frio. Quatro homens de uniforme para levar para casa o meu pequeno soldado”, canta Kate Bush em Army Dreamers, uma das 68 músicas consideradas “inapropriadas” para tocar na BBC, a corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido, durante a Guerra do Golfo, para a qual foi mobilizado pelos ingleses o maior contingente de soldados entre qualquer estado europeu que participou das operações de combate.

Pouco mais de uma década depois, o Reino Unido se envolveu na Guerra do Iraque, iniciada em 2003 e finalizada em 2011, com o encerramento oficial das operações de combate inglesas em 30 de abril de 2009.

No decorrer do conflito, Steve McQueen foi selecionado pelo programa oficial de artistas do Museu Imperial da Guerra para produzir uma obra de arte sobre as Forças Armadas Britânicas. Em 2006, viajou para Baçorá, uma das três maiores cidades do Iraque, onde passou seis dias integrado com as tropas britânicas. Tendo trabalhado com vídeo arte por pelo menos uma década neste ponto, McQueen planejava produzir um filme testemunho sobre as tropas servindo no Iraque; no entanto, mesmo integrado aos combatentes, ele foi submetido a restrições de movimento que deixaram-no frustrado e anularam seus planos. Mais tarde, em sua casa em Amsterdã, McQueen estava postando sua declaração de imposto de renda quando percebeu que o selo no envelope tinha um retrato de Vincent van Gogh. As proporções do retrato no selo e o fato de que eles podem chegar aos diversos cantos do mundo, fizeram com que a ideia soasse promissora ao artista. Estampando os selos estariam, então, retratos de soldados que haviam morrido em combate, como uma forma de homenagem. McQueen declarou: “Um conjunto oficial de selos do Royal Mail me pareceu uma forma íntima, porém distinta de destacar o sacrifício de indivíduos em defesa de nossos ideais nacionais. Os selos se concentrariam na experiência individual sem eufemismos. Seria um reflexo íntimo da perda nacional, isso envolveria as famílias dos mortos e permearia o dia a dia – cada casa e cada escritório”.

Diante do desinteresse mostrado pelo Ministério de Defesa quando McQueen apresentou seu projeto, o artista contratou um pesquisador para entrar em contato com cada uma das famílias que haviam perdido entes queridos no Iraque e solicitar uma imagem deles, já que o ministério também havia se recusado a fornecer os retratos. Inicialmente foram contatadas 115 famílias, das quais 102 responderam e, dessas, 98 concordaram em participar. Desde o início do projeto, no entanto, mais baixas ocorreram e, da mesma forma, todas as famílias foram convidadas pelo artista a participar do projeto e honrar seus entes em Queen and Country (Pela Rainha e pela pátria, em tradução livre).

"Queen and Country", 2007. Cabinet with facsimile postage sheets commemorating the British Servicemen and women killed during the conflict in Iraq. Co-comission between Manchester International Festival and Imperial War Museum. Courtesy of the artist and Marian Goodman Gallery. Copyright: Steve McQueen
“Queen and Country”, 2007. Gabinete com fac-símile de folhas de correio homenageando os militares britânicos mortos durante o conflito no Iraque. Co-comissão entre o Manchester International Festival e o Imperial War Museum. Cortesia do artista e da Galeria Marian Goodman. Copyright: Steve McQueen

Para a versão final do trabalho, McQueen criou um gabinete de carvalho contendo 120 painéis verticais de dupla face, que podem ser retirados para visualização, e nos quais são exibidas 160 folhas de selos com os retratos dos militares britânicos que morreram em serviço no Iraque. Cada folha contém detalhes como nome, regimento, idade e data da morte impressos em sua margem. No gabinete, as folhas estão colocadas em ordem cronológica, das sete baixas em 21 de março de 2003, até o sargento “Baz” Barwood, da RAF, morto em 29 de fevereiro de 2008. Para Jo O’Connor, da BBC, Steve McQueen afirmou que tinha esperanças que a exposição permitisse às pessoas a reflexão sobre as vítimas da guerra. “Mais de 650.000 homens, mulheres e crianças iraquianos também morreram neste conflito e espero que, ao permitir que as pessoas se identifiquem com os soldados britânicos que morreram, também pensem nas pessoas no Iraque”, disse o cineasta.

De acordo com o artista, Queen and Country nunca poderá ser completa até que o Royal Mail permita o uso geral dos selos. O serviço de correio inglês negou a proposta de McQueen justificando que as famílias dos mortos e o público achariam os selos “angustiantes e desrespeitosos”, apesar do sólido apoio demonstrado pelas famílias, pelas forças armadas e, também, pelo público, que juntou 26.673 assinaturas em uma petição para apoiar o projeto, quando Queen and Country terminou sua exibição pelo país em 2010.

Se eu pudesse fazer alguma coisa por você

Para o curador de arte Moacir dos Anjos, em Introdução à Estética: Uma conversa entre arte, filosofia e psicanálise, os trabalhos de Steve McQueen e Emily Jacir sofrem uma polinização cruzada quando se referem ao luto e às consequências brutais dos conflitos; em especial, Moacir cita a instalação fotográfica Where We Come From, da palestina Jacir.

Em julho de 1950, a Lei do Retorno foi adotada pelo Knesset, em Israel, segundo a qual, todo judeu – não importando sua origem no mundo – poderia clamar o direito a cidadania e residência no Estado de Israel. Em contrapartida, mais de 700.000 palestinos foram expulsos ou fugiram da região durante sua fundação. O exílio pelos exilados. Peter Beinart, em artigo de opinião para o The New York Times, sugere que “reconhecer e começar a remediar essa expulsão – permitindo o retorno dos refugiados palestinos – exige imaginar um tipo diferente de país, onde os palestinos são considerados cidadãos iguais, não uma ameaça demográfica. Para evitar esse ajuste de contas, o governo israelense e seus aliados insistem que os refugiados palestinos abandonem a esperança de retornar à sua terra natal”.

Para Edward Said, cujo texto Orientalismo é considerado um dos fundadores do pensamento pós-colonialista, “é como se a experiência coletiva judaica reconstruída, representada por Israel e o sionismo moderno, não pudesse tolerar que outra história de expropriação e perda existisse ao lado dela – uma intolerância constantemente reforçada pela hostilidade israelense ao nacionalismo dos palestinos, que têm reconstruído dolorosamente uma identidade nacional no exílio”.

Nesse contexto, aproveitando sua capacidade de se mover com relativa liberdade em Israel com um passaporte americano, Emily Jacir propôs a seguinte questão a outros palestinos: “Se eu pudesse fazer qualquer coisa por você, em qualquer lugar da Palestina, o que seria?”. Em uma troca não material, eles fornecem seus desejos, saudades e sonhos, e ela promete realizá-los. “Ela faz do corpo dela uma extensão do corpo dessas pessoas para realizar os seus desejos”, como coloca Moacir dos Anjos.

Na apresentação de Where We Come From (De Onde Nós Viemos, em tradução livre), contra painéis brancos, letras pretas descrevem os pedidos feitos a Jacir (transcritos em inglês e árabe) e imediatamente ao seu lado, a artista insere fotos coloridas como atualização documental de sua missão. Em alguns casos, como o de Rizek, ela acrescenta notas próprias abaixo do pedido. “Vá até Bayt Lahia e traga uma foto da minha família, especialmente dos filhos do meu irmão. Faz três anos que estudo na Universidade de Birzeit e não consigo permissão para ir a Gaza ver minha família. Não tenho permissão para estar na Cisjordânia como um cidadão de Gaza; assim, estou confinado a Birzeit até terminar meus estudos”, pediu Rizek. Em sua nota, Jacir relata que “sua família ficou muito feliz por eu poder trazer limões e morangos plantados por eles. Eles me levaram à sua plantação e colhemos limões e morangos para Rizek. Também trouxe para ele o ma’amoul que sua mãe fez, um par de botas, dois cintos e nozes”. Quatro fotografias mostram a família de Rizek e os filhos de seu irmão colhendo os frutos que Jacir cita.

Detalhe de Where We Come From 2001-2003 (Rizek). Foto: John Sherman. Crédito: Emily Jacir, cortesia da galeria Alexander and Bonin, New York.
Detalhe de Where We Come From 2001-2003 (Rizek). Foto: John Sherman. Crédito: Emily Jacir, cortesia da galeria Alexander and Bonin, New York.

As descrições envolvem coisas que geralmente tomamos como certas, como garantidas: visitar nossa família, jogar futebol, rever a casa da nossa infância. Este último foi o caso de Ibrahim. “Vá a Jaffa, encontre a casa de minha família e tire uma foto. Como refugiado, sou proibido de visitar meu país pelas autoridades israelenses, que controlam todas as fronteiras em desafio às resoluções da ONU”. Ao tecer sua resposta, a artista admite a falha em conseguir o que havia prometido em troca: “Depois de passar duas tardes em Jaffa, não consegui encontrar a casa. Os nomes das ruas, agora, são em hebraico. Perguntei às pessoas e conversei com quatro dos moradores mais velhos de Jaffa, mas eles não lembravam onde ficava a casa. Recordavam-se muito bem do nome da família e sabiam que era de Jaffa”. Nessa peça, a parte destinada ao registro fotográfico está em branco.

“No entanto, é apenas essa tradução, escrita em linguagem clara e depois realizada fotograficamente, que para muitos é intransponível. Ir da descrição escrita à atualização fotográfica pode ser fácil para alguns, como Jacir, que tem passaportes americanos. Mas para outros desafortunados envolvidos na política do conflito israelense-palestino que vem ocorrendo desde 1948, o terreno entre texto e fotografia, descrição e realização, representa um abismo intransponível, uma impossibilidade na qual um complexo de desejo é construído”, escreve o historiador e crítico cultural T. J. Demos em um ensaio sobre a obra. “Essas peças encenam uma desigualdade perversa entre as coisas e as pessoas. Essa desigualdade é a capacidade das mercadorias de se moverem com relativa liberdade nos mercados globais e nas fronteiras nacionais, ao passo que as pessoas são restritas física e geograficamente. Pessoas, não coisas, têm a entrada negada em certos territórios ou nações, arregimentados de maneiras que são politicamente instrumentais para manter corpos políticos, agrupamentos econômicos e identidades étnicas”, completa Demos.

Where We Come From foi realizado de 2001 a 2003. Moacir lembra que, no ano seguinte, Jacir emitiu uma nota esclarecendo que não conseguiria mais realizar o projeto, “não tenho mais permissão para entrar em Gaza e em certas cidades palestinas na Cisjordânia”, conta ela. “Palestinos com passaportes estrangeiros estão cada vez mais sendo impedidos de entrar no país em todas as travessias de fronteira e sendo forçados a emigrar. Israel decidiu que a ‘liberdade de movimento’ não é mais um direito dos titulares de passaportes americanos e criou medidas para garantir isso”, escreve a artista na nota.

Mesmo que transitem entre meios e campos diferentes – da instalação à fotografia documental – os quatro trabalhos referidos neste artigo compartilham o fato de serem documentos de sofrimento, e como escrito por Susie Linfield, “documentos de sofrimento são documentos de protesto: eles nos mostram o que acontece quando nós desfazemos o mundo”.

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Colaboradores da edição #55

Daniel Lima é artista, curador, editor e pesquisador. Bacharel em Artes Plásticas, mestre em Psicologia Clínica e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo. Desde 2001, pesquisa mídia, questões raciais e resistências coletivas. Dirige a editora Invisíveis Produções. Nesta edição, escreveu sobre a mostra de Sidney Amaral.


Giulia Garcia é jornalista graduada pela Faculdade Cásper Líbero e atriz, com formação técnica pelo Senac-SP. Pesquisadora de Arte e Comunicação, é membro do Grupo de Pesquisa CNPq Comunicação e Sociedade do Espetáculo. Já atuou como repórter nas revistas Trip e Tpm e, desde agosto de 2020, integra o time da arte!brasileiros. Nesta edição escreve sobre a Frestas – Trienal de Artes.


Marcos Grinspum Ferraz é jornalista. Formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou entre 2009 e 2012 no jornal Folha de S.Paulo e entre 2013 e 2017 na Editora Brasileiros, sempre cobrindo a área cultural. Estudou Antropologia Visual na Universidade Nova de Lisboa, em 2017, e há dois anos voltou ao time da arte!brasileiros. Nesta edição escreve sobre Paulo Mendes da Rocha, Bienal de Arte paiz e a publicação Presente.


Simonetta Persichetti é jornalista e crítica de fotografia. Mestre em Comunicação e Artes (Mackenzie), doutora em Psicologia Social (PUC-SP) e pós-doutora pela ECA-USP, leciona na Faculdade Cásper Líbero e é membro do Conselho Editorial da arte!brasileiros. Organizou a coleção Senac de Fotografia, atuou como curadora da Arte Plural Galeria e publicou 23 livros sobre fotógrafos brasileiros. Ganhou o prêmio Jabuti de Reportagem com o livro Imagens da Fotografia Brasileira.


Tiago Gualberto é mestre em artes visuais e bacharel em Têxtil e Moda pela Universidade de São Paulo. Desde 2004, realiza ações de pesquisa, educação e produção artística com enfoque em justiça social, arte contemporânea e cidadania, onde incorpora temas relacionados a cultura afro-brasileira, memória, história e reescrita de narrativas.


Fotos: arquivo pessoal

Editorial: Em luto, eu luto

Em luto, eu luto - "O mundo é nosso”, 2018-2019, da série "Pardo é papel", capa da arte!brasileiros #55. Foto: Gabi Carrera/ Divulgação
"O mundo é nosso”, 2018-2019, da série "Pardo é papel", capa da arte!brasileiros #55. Foto: Gabi Carrera/ Divulgação

Estamos de LUTO.

Nestes meses, vários pensadores da cultura brasileira morreram, após anos construindo uma obra grandiosa. O fotógrafo German Lorca, o arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha, quase centenários, fizeram parte da nata do pensamento moderno.

Mas, não bastasse estarmos atravessados pelas perdas de amigos, colegas e familiares, estamos atravessados pela morte de perto de meio milhão de cidadãos brasileiros. Vítimas do Covid-19, um vírus feroz mal e porcamente combatido no Brasil.

Estamos atravessados pela inevitável consciência da perda dos valores de nossa sociedade, que está em colapso. Dividida de tal forma, onde só se agudiza a violência.

Não é exagero dizer, citando palavras do escritor Bernardo Carvalho, que vivemos um momento em que se insufla a barbárie. Amplos setores da população mobilizados para negar o avanço que a pesquisa, o estudo e a ciência nos trouxeram ao longo dos últimos séculos apenas colaboraram com o avanço das doenças. Provocações contra os cuidados necessários! Provocações explícitas, em prol da “liberdade individual” e, de preferência, armada.

Instituições públicas arrasadas por profissionais fantoches, uma gangue onde todos mentem e se defendem entre si. Um país rendido a um projeto perverso, onde grandes setores da população ainda acreditam num modelo de poder, o poder da exclusão. Da punição. Religiosa, política, física, de gênero. Gente que mata gente. Sim, com balas perdidas e balas dirigidas… Voltadas a mulheres, a negros, a quem resiste.

Nós somos naturalmente frágeis. Mas essa fragilidade se acentua na medida em que amplos setores da sociedade são abandonados por esse projeto de poder, o que os torna cada vez mais despossuídos. Está se negando o básico: a comida, a educação, a saúde, a cultura.

Nessas, onde sobra a ARTE? Onde está? Já que não morreu. Mas não porque o que morre com o passar do tempo são movimentos, estilos, vanguardas; e sim porque hoje, aqui, nem todos estamos mortos. Ou porque, como diria a artista Jota Mombaça em uma das suas obras, que já capa desta revista, A Gente Combinamos de Não Morrer. 

Estamos de luto, sim, mas este, como na história de todas as culturas, é um processo necessário para homenagear o que perdemos e, apesar da dor, sermos capazes de reinvestir nossa energia e força psíquica para seguir adiante.

Cuidar-nos e cuidarmos uns aos outros, estarmos vivos, ouvindo e acompanhando onde está se produzindo, no meio a esta debacle. É necessário ler, escrever, pensar, pintar, instalar. É necessário produzir arte, garantir um corpo pulsional que, afetado pelo seu entorno, seja capaz de gritar, afetar o outro e o corpo social.

Assim, em nossas páginas a forma de fazer o luto é homenageando os  artistas, pesquisadores e editores da Enciclopédia Negra (Cia. Das Letras), que trabalharam exaustivamente para reparar, em resposta às enciclopédias clássicas do Iluminismo – que durante mais de 200 anos só reproduziram e preconizaram modelos brancos e europeus de dominação -, a ausência de centenas de homens e mulheres negros invisibilizados.

Tratamos também de várias exposições montadas por artistas e grupos sociais que não deixaram de se encontrar virtualmente. Fabio Cypriano homenageia o centenário de Joseph Beuys, um artista central na história da arte contemporânea, e ouve como exposições tradicionais, como a documenta de Kassel, se preparam para mudar completamente suas estratégias expositivas.

Há, ainda, a reportagem que está nas mãos do jovem jornalista Miguel Groisman dedicada a pesquisar artistas que documentam conflitos.

Enfim, estamos aqui e, fazendo nosso luto, lutamos.

Coletivos de artistas refletem espírito do tempo

Imagem horizontal colorida. Um coletivo de artistas sentados em torno de duas mesas no ateliê do JAMAC conversam. Algumas folhas de papel sobre as mesas.
Ateliê do Jardim Miriam Arte Clube - JAMAC. Foto: Cortesia JAMAC

Tanto a escolha de cinco coletivos como indicados para o Turner Prize, em 2021, como o anúncio de 14 coletivos como primeiros participantes da documenta quinze indicam um momento de inflexão importante na prática artística, que revela o espírito do tempo: a passagem do isolamento do chamado artista plástico em seu ateliê para uma ação de caráter solidária e sustentável, que visa novas formas de ação do mundo. Finalmente.

Em outras áreas artísticas, como o teatro, a dança e a música, por exemplo, a experiência coletiva sempre esteve presente. Nas artes visuais, muito pouco, apesar de vários casos históricos isolados. Contudo, desde o início do século 21, vêm crescendo iniciativas que não deixaram de ser mapeadas em mostras importantes como o Panorama da Arte Brasileira de 2001, com curadoria de Paulo Reis, Ricardo Basbaum e Ricardo Resende, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

Entre os grupos lá selecionados estavam Atrocidades Maravilhosas, Mico e Clube da Lata, que há vinte anos já buscavam uma nova forma de agenciamento no cenário artístico. Também participou daquela edição do Panorama a artista Mônica Nador, com o projeto Paredes Pinturas, embrião do Jamac – Jardim Miriam Arte Clube, que cinco anos depois participou da 27ª Bienal de São Paulo, em 2006.

Com curadoria geral de Lisette Lagnado, a edição, intitulada Como Viver Junto, trouxe de fato mais coletivos além do próprio Jamac, como o argentino Eloisa Cartonera e o chinês Long March Project. Já oito anos depois, na 31ª edição, um grupo de curadores selecionados por Charles Esche novamente deu foco a coletivos, como o próprio ruangrupa, que agora dirige a documenta quinze, mas também o boliviano Mujeres Creando, o russo Chto Delat ou o argentino Etcetera e o brasileiro Grupo Contrafilé.

Foto horizontal, colorida. Nove membros do coletivo de artistas ruangrupa reunidos
ruangrupa, 2019. Foto: Jin Panji

Não deixa de ser irônico que esse crescimento de coletivos tenha surgido durante o fenômeno da expansão das feiras de arte que, por seu perfil essencialmente comercial, trouxe de volta um caráter um tanto fetichista do artista e sua obra, além de elevar a figura do colecionador como o principal legitimador do circuito – só o que vende deve ser considerado.

Como uma espécie de antídoto a esse sistema, que já demonstrava decadência há alguns anos, esses coletivos buscaram novas práticas, quase sempre longe das feiras e das casas dos colecionadores. Eles estão tanto em instituições como universidades, caso do Forensic Architecture, baseado no Goldsmiths da Universidade de Londres, que aliás foi indicado ao Turner em 2018, ou são apenas grupos informais de artistas, como o #coleraalegria, no Brasil, que vem contribuindo em manifestações políticas relevantes com a criação de um material visual inovador e longe dos clichês sisudos da militância convencional, além de ter forte inserção nas redes sociais.

Não por acaso, em seu recente livro O que vem depois da farsa, o crítico norte-americano Hal Foster aponta que muitos artistas vêm trabalhando na chave da “reconstrução”, isto é, estão buscando sistemas que sirvam como possibilidades alternativas ao mundo em colapso.

O caso do #coleraalegria é exemplar, porque se trata de um agrupamento de militância, onde cada qual segue com seu trabalho individual, mas no coletivo há uma energia que se multiplica pelas singularidades.

Dessa forma, ao contrário do que se convencionou afirmar de que a documenta lança tendências, a próxima edição do evento vai consagrar práticas em construção há mais de duas décadas, que estão reposicionando o sistema das artes.

José Damasceno e o sorriso da Mona Lisa

Foto horizontal, colorida. Vista da exposição MOTO-CONTÍNUO, de José Damasceno, na Estação Pinacoteca. Ao fundo, TRILHA SONORA, que com centenas de martelos pendurados em pregos na parede, cria a representação de montanhas. A frente, diversas colunas de estrutura do edifício. Entre elas, vê-se parcialmente duas obras de José Damasceno. À direita, SNOOKER, a esquerda obra mais baixa, no nível do chão.
Vista da exposição. Foto: Isabella Matheus/Pinacoteca de São Paulo

Dá um certo alívio em adentrar a mostra de José Damasceno, Moto-contínuo, na Estação Pinacoteca, em um contexto tão desfavorável, quando uma CPI descortina todos os atos estapafúrdios de um governo que colaborou para as quase 500 mil mortes em decorrência da Covid-19 no país.

A diversidade de procedimentos, de magnânimas instalações a delicados desenhos, a disparidade entre materiais usados, do nobre mármore ao decadente e perecível cigarro, e a ausência de uma temática explícita, podem apontar para como uma exposição que lida em seu limite com a arte como um “exercício experimental da liberdade”, na definição do crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981). Em tempos de pandemia, liberdade pode ser tudo.

Como aponta a curadora norte-americana Lynn Zelevansky no catálogo da mostra para descrever uma das obras do artista, mas que serve para a exposição como um todo, Damasceno cria “um mundo próprio, habitado por criaturas estranhas”.

Entre as mais de 70 peças expostas, realizadas entre 1989 e 2021, algumas das obras que ajudam nesse sentimento de desconexão com o contexto são aquelas que, por sua dimensão e serialidade, criam estranhas paisagens, como Trilha Sonora, com centenas de martelos que pendurados em pregos criam a representação de montanhas, e Snooker, uma mesa de sinuca recoberta de fios de lã que saem das luminárias dispostas acima dela. O mesmo princípio é visto em Paisagem crescendo, onde centenas de cigarros que parecem pontos da parede criam imagens de árvores.

Trata-se aí de um conjunto de trabalhos que seduzem pelos truques de suas composições e provocam aquele sorriso de Mona Lisa, pela sua engenhosidade e originalidade. Em seu texto, Zelevansky busca valorizar essa estratégia apontando que existe uma “dimensão psicológica na obra de Damasceno que beira o surreal” e cita autores favoritos do artista como William James, Edgar Allan Poe e Jorge Luis Borges como possíveis diálogos com sua obra.

De fato, as obras já citadas possuem dimensões surreais, já que seus processos construtivos inusitados, das montanhas feitas por pregos e martelos às luzes compostas por fios de lã, resultam em imagens que se assemelham a colagens de elementos contraditórios. Contudo, ao contrário dos múltiplos significados possíveis das obras surrealistas, não há nada muito além do que são os próprios elementos das obras. Os martelos seguem martelos, os fios de lã seguem fios de lã, o que leva a arte contemporânea a um mero exercício formalista.

Outro conjunto da exposição que aponta para essa superficialidade são as chamadas Esculturas Borracha, realizadas em mármore que hiperdimensionam objetos comuns do cotidiano, como o material escolar que dá título às obras.

Quando o espectador se dá conta dessa falta de profundidade, o alívio se transforma em irritação, porque o virtuosismo da mostra aponta para uma total falta de ligação a qualquer contexto, que não o da própria arte, e a única lente possível para se observar o conjunto é pensando em categorias da própria arte. Não por acaso, o texto de Zelevansky no catálogo se desenvolve em torno da técnica do desenho.

Em uma sociedade tão polarizada, conflituosa, preconceituosa, e pode-se dizer tantos outros termos que apontam para uma falência de qualquer pensamento humanista, a exposição com curadoria de José Augusto Ribeiro traz uma seleção e uma disposição dos trabalhos altamente estetizados, um conjunto que revela uma beleza fria e distante, cheia de trocadilhos como Can you hear me? (você consegue me escutar?), com dois trompetes unidos pela boca.

Curiosamente, o catálogo de Moto-contínuo vai em sentido oposto, praticamente um livro de artista, já que a maior parte dele é composta por fotos de um lambe-lambe com a imagem da efígie da República que ilustra as notas de um real coladas em muros da cidade, a maioria em locais decadentes e empobrecidos, e em alguns deles podem ser lidas manifestações políticas como “Fora Temer”, dando aí uma noção do contexto e tornando-se uma documentação de uma potente instalação pública.

É essa vitalidade que falta na exposição em si, que se revela monótona demais de tão bela e perfeita. Sair do prédio na zona da cracolândia é de um contraste chocante, mas acaba sendo mesmo um alívio voltar à feiura e as dificuldades do mundo real, com todo seu dinamismo e potencialidades.

JOSÉ DAMASCENO: MOTO-CONTÍNUO
ONDE: Estação Pinacoteca (Largo General Osório, 66 – Santa Ifigênia)
QUANDO: 24 de abril de 2021 a 30 de agosto de 2021
Ingressos gratuitos, visita mediante agendamento prévio.

O olhar inquieto e incansável de German Lorca 

"A Procura de Emprego", 1948. Cortesia Galeria Utópica.
"À Procura de Emprego", 1948. Cortesia Utópica.

Em quase todos os fotógrafos existe uma alma flâneur, o prazer de vagar pelas cidades, olhar com olhos atentos e fazer descobertas. O flâneur guardava estas imagens em sua memória, o fotógrafo nos devolve suas impressões em uma fotografia. Narrar a vida cotidiana, apontar o que merece ser visto, parar para observar mínimos detalhes, situações para as quais ninguém daria a mínima bola. É desta forma que German Lorca (1922-2021) desfila suas fotografias sob nossos olhos. Um olhar atento, crítico e, muitas vezes, irônico. 

German Lorca fotografado em 2018 pelo filho, José Henrique Lorca. Cortesia do autor.
German Lorca fotografado em 2018 pelo filho, José Henrique Lorca. Cortesia do autor.

Nascido em 1922 – teoricamente o ano em que explode o modernismo no Brasil -, este paulistano da gema do Brás, filho de imigrantes espanhóis, de andar inquieto e sorriso fácil, conheceu o mundo pelas fotografias que via na imprensa, nos jornais, nas revistas. Em 1940 formou-se em contabilidade, uma profissão que parecia apertada para ele. Queria vagar, fotografar, andar por aquela cidade dos anos 1940 que se modernizava, que crescia. Queria seus reflexos, suas luzes, suas narrativas. E foi num desses seus passeios que realizou uma primeira fotografia de impacto, em 1947: um flagrante de um protesto contra o aumento dos bondes em São Paulo. Se encantou com seu registro. Dois anos depois passou a fazer parte do Foto Cine Clube Bandeirante, que ficou conhecido por trazer a modernidade para a fotografia brasileira. Foi no Foto Cine Clube Bandeirante que nomes como Thomaz Farkas, Marcel Giró, Geraldo de Barros e Gaspar Gasparian iniciaram o experimentalismo, a quebrar fronteiras e trazer uma imagem que brincava o tempo todo com as vanguardas europeias, com o surrealismo, com as técnicas fotográficas, além de ser um centro de discussão e difusão da fotografia. Foi neste ambiente que German Lorca decidiu se dedicar totalmente à fotografia. 

Nas suas primeiras imagens, a cidade de São Paulo continuava sendo a principal busca. Tão pouco fotografada em sua imensidade, muito julgada em sua aparência. Quem a define feia não a conhece. Quem a define enigmática se sente por ela atraído e procura de alguma forma compreendê-la. Pode ser via música, verso, literatura, mas sem dúvida nenhuma a imagem lhe rende a melhor homenagem. Muito já foi mostrada, poucas vezes foi compreendida. Muitas vezes definida como cidade de pedra, cidade cinza, da chuva e da garoa. Cidade amada, cidade odiada. Mas foi em seus recantos e esquinas que Lorca a descobre e redescobre. Uma cidade que ele sempre fotografou. 

German Lorca: "São Paulo Crescendo", 1965. Cortesia Galeria Utópica.
“São Paulo Crescendo”, 1965. Cortesia Utópica.

No início dos anos 1950, abre seu estúdio fotográfico, afastando-se do Foto Cine Clube Bandeirante para profissionalizar-se como fotógrafo publicitário. Dois anos depois foi o fotógrafo oficial do IV Centenário da Cidade de São Paulo.

Na publicidade, levou seu olhar aguçado, educado e sempre irreverente. Perceber a força dos objetos banais e tornar esta aparente banalidade em uma imagem que merecia ser vista. E, assim como fazia quando andava pelas ruas, utilizava a imagem publicitária para questionar suas características realistas. Brincava com a imagem. Criava uma dúvida, em uma época em que ninguém falava em pós-produção, mas mesmo assim ele desconcertava o olhar do espectador. Brincadeiras estéticas, jogos de olhares, alusões e citações. Criava e se divertia. Tudo isso aliado a novas possibilidades técnicas e a liberdade com a qual costumava trabalhar. E foi assim também com seus autorretratos e fotografias artísticas.

Mas a cidade continuava a encantá-lo e, incansável, ele continuava a fotografá-la. No final dos anos 1990 deixa seu estúdio sob a responsabilidade dos filhos e retorna ao seu caminhar. Em 2002 realiza um ensaio no Ibirapuera, que ele havia fotografado em 1954 e em 2009 retorna para o centro da cidade.

Incansável, se encanta com a pós-produção, com o poder de transformar suas imagens no computador, recriá-las e revisitar seu arquivo. Descobre o poder da cor para o seu trabalho artístico. Fazer, refazer, rever, sempre foram seus lemas. E foi por isso que em 2016, aos 94 anos, resolveu ir até Nova York, depois do MoMA ter comprado parte de suas imagens juntamente com a de outros fotógrafos modernistas brasileiros, num momento de renascimento dessa estética. Lá resolveu retomar um ensaio realizado nos anos 1960 e 1980, mais especificamente no Central Park, já pensando na pós-produção contemporânea. Sua última exposição aconteceu em 2018 no Itaú Cultural, em São Paulo, com curadoria do Rubens Fernandes Junior e de José Henrique Lorca, seu filho.

"Aeroporto de São Paulo", 1965. Cortesia Galeria Utópica.
“Aeroporto de São Paulo”, 1965. Cortesia Utópica.

German Lorca morreu aos 99 anos, em 8 de maio, dia em que o MoMA de Nova York abriu a mostra Fotoclubismo: Brazilian Modernist Photography and the Foto-Cine Clube Brandeirante, 1946-1964, da qual ele é um dos autores. E nos deixou mais de 70 anos de experiências fotográficas, de possibilidades criativas, de olhares que se renovam. 

 

Galleries Curate: nova forma de criar mercado

Monster Chetwynd, "Hokusai’s Octapai", 2004, instalação na galeria Tanya Leighton, como parte do Galleries Curate
Monster Chetwynd, "Hokusai’s Octapai", 2004, instalação na galeria Tanya Leighton (Berlim). Foto: Cortesia Tanya Leighton Gallery

O impacto causado pela pandemia do Covid-19 tem provocado mudanças inimaginadas. A perplexidade do presente, decorrente dos protocolos de reclusão e de fechamentos temporários de galerias, museus, feiras e bienais, sacudiu o sistema de arte desde o início do ano passado. Neste contexto, o desafio de vencer a crise e buscar saída para o inesperado colapso provocou a criação da plataforma colaborativa Galleries Curate: RHE. A ideia partiu de um grupo de galeristas ligados ao comitê das três feiras Basel – Miami, Hong Kong e Basileia – com a ideia de promover exposições virtuais simultâneas em galerias dos quatro cantos do mundo, em apoio à comunidade.

A primeira exposição tem a água como tema e foi sugerida pela galerista Chantal Crousel, de Paris, uma das primeiras a abraçar a ideia. O grupo evidenciou as inegáveis limitações que seus espaços viviam naquele momento e decidiu mudar o cenário com um diálogo virtual dinâmico entre os programas individuais de cada galeria, fosse ela de Jacarta, Bruxelas, Singapura, Nova York, Rio de Janeiro, Tóquio, ou Paris.

A única galeria brasileira integrante deste pool internacional é A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, dirigida por Márcio Botner, um de seus proprietários. Engajado no comitê de Basel Miami, ele é um globetrotter do circuito, ligado a vários projetos pelo mundo e um dos mais animados com a Galleries Curate. “A ideia nasceu dos contatos virtuais de um grupo de 12 pessoas e me impressionou quando logo chegamos a 21 participantes”. Envolvido em tantos projetos, ele acredita na colaboração horizontal entre artistas, galeristas e críticos, unindo pessoas que pensam próximo aos objetivos do grupo. Cada galeria propôs o que queria mostrar e eles deram início às exposições no começo deste ano. “O que está acontecendo é algo especial. Ao mesmo tempo que temos galeristas consagrados, contamos com jovens entusiastas com menos tempo no mercado. A plataforma começou a ser pensada publicamente neste ano e as pessoas agora estão conhecendo melhor o projeto.”

O francês Clément Delépine, jovem coordenador da Galleries Curate: RHE e codiretor da feira Paris Internationale, também intermedia parte das lives do projeto. Para ele, desde as primeiras tratativas, essas conversas se constituem como uma terapia de grupo. “O projeto traz no título o enigmático símbolo RHE, medida de unidade e impermanência, definida por duas palavras gregas: panta rei, que significa ‘tudo se move’.” Delépine faz uma analogia entre o elemento água, fundamental em nossas vidas, e o esforço deles para criar alternativas na crise global. O trabalho transcende sediar exposições online, plataforma digital, pois há também a preocupação de arquivar materiais referentes às obras em exibição. Ao serem adicionados novos conteúdos, projetos passados e atuais são mixados.
As exposições têm temas múltiplos e a maioria fala do meio ambiente. Na coletiva Tempest, da galeria Tanya Leighton de Berlim, a artista Monster Chetwynd se destaca ao moldar a figura de um polvo enorme executado em látex, pintado e colocado lascivamente sobre o piso. A instalação se completa com a xilogravura ampliada em xerox e fixada na parede de um exemplar da série erótica O Sonho da Esposa do Pescador (Kinoe no komatsu), do artista Katsushika Hokusai, executada em impressão popular shunga no século 19. O trabalho e a vida de Monster Chetwynd tangenciam a performance, poética com a qual ela se identifica. Num jogo de identidades, a artista de Glasgow muda seu nome de quando em quando, assim como fazia Hokusai, artista que ela reverencia e que ao longo da vida teve mais de 30 nomes. A água aqui se apresenta como metáfora, sonho ou delírio mítico de um gozo nunca vivenciado.

Numa perspectiva mais programática do movimento ecológico, a Galleria Franco Noero, de Turim, exibe o filme de Simon Starling, Projeto para uma travessia do Vale do Rift. O still, composto de imagens paradisíacas, registra poeticamente uma canoa, construída com magnésio extraído das águas do Mar Morto usada em 2016, numa tentativa de atravessá-lo, partindo de Israel à Jordânia. A experiência avança em vários sentidos e revela que neste trecho, localizado no Vale do Rift, a água é altamente salgada e que o lugar se destaca por ser o mais baixo do planeta – está a 427 metros abaixo do nível do mar. Ainda alerta que a região é muito explorada por guardar riquezas minerais especiais: um litro de água contém 45 gramas de magnésio.

Há trabalhos filosoficamente engajados no simbolismo do tempo e sua duração. A galeria Jean Mot, de Bruxelas, mostra o filme Canção para Lupita, de Francis Alÿs, de 1998, uma animação em 16mm. A água se desloca no itinerário poético de Alÿs ao longo de toda a película. Uma mulher despeja água de um copo para outro repetidamente. A ação de fazer e desfazer é acompanhada por uma música cuja frase Mañana, mañana és breve para mi pode sugerir um prolongamento ou esperança contínua para o futuro.

A galeria A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, ancoradouro de fantasias astrais e experiências renovadoras, mostra Descompasso Atlântico, de Arjan Martins, que acontece em dois locais e com poéticas diferentes. No interior da galeria, as pinturas mantêm foco narrativo tanto na herança escravagista como na atual situação da população negra. A céu aberto, em plena praia de Ipanema, Arjan Martins realiza uma instalação colorida de inspiração geométrica que conversa com o oceano Atlântico, antiga rota dos navios negreiros. Composta por cinco birutas, objetos normalmente usados em aeroportos para controle do vento, a instalação traz em cada um deles um símbolo dos avisos marítimos: homem ao mar, carga perigosa etc. Propositalmente, a galeria abriu a exposição em 22 de abril, dia em que no ano de 1500 os colonizadores portugueses desembarcaram no Brasil. A ideologia da sobrevivência atravessada por Galleries Curate: RHE faz das declarações de intenções desse grupo um espaço ampliado de ver e registrar o novo normal.

Instalação de Birutas, 2021, de Arjan Martins, com símbolos da sinalização entre embarcações e o porto, parte do Galleries Curate
Instalação de Birutas, 2021, de Arjan Martins, com símbolos da sinalização entre embarcações e o porto. Foto: Fagner França

Repaginado, Museu da Língua renasce no centro de São Paulo

Estação da Luz, sede do Museu da Língua Portuguesa. Foto: Joca Duarte / Divulgação
Estação da Luz. Foto: Joca Duarte / Divulgação

Totalmente pronto para ser reinaugurado após seis anos de reformas, o Museu da Língua Portuguesa (MLP) já começou a aquecer os motores na expectativa de finalmente poder abrir suas portas, o que deve ocorrer no final de julho ou assim que a pandemia permitir. Além da reedificação física, que remontou a estrutura destruída por um incêndio em 2015, a instituição aproveitou a oportunidade para reorganizar-se conceitualmente e atualizar conteúdos e estratégias de comunicação com o público. De forma geral, o conceito do projeto permanece o mesmo, baseado numa perspectiva antropológica, histórica e social da língua, tal como alinhavado há quase 20 anos. 

Como trata-se de um acervo basicamente virtual, os arquivos não foram destruídos pelo fogo e foi possível remontar grande parte da mostra original. A possibilidade – e necessidade – de refazer a exposição do zero trouxe, no entanto, a oportunidade de aperfeiçoar a mostra permanente e atualizar aspectos importantes, incorporando transformações pelas quais a língua passou no período e propondo uma reflexão sobre debates contemporâneos ligados a questões identitárias, que vem mobilizando intensamente o debate nos últimos anos. 

No Museu da Língua Portuguesa: As instalações "Palavras Cruzadas", em primeiro plano, e "O português do Brasil", ao fundo. Foto: Joca Duarte / Divulgação.
As instalações “Palavras Cruzadas”, em primeiro plano, e “O português do Brasil”, ao fundo. Foto: Joca Duarte / Divulgação.

A instituição também abriu espaço para um diálogo mais intenso com variados campos da cultura, para além de sua íntima relação com a literatura, incorporando novas formas de pensar a língua também a partir de elementos do cotidiano e de outras formas de expressão, como as artes visuais. O resultado dessa nova abordagem é a primeira mostra temporária do museu, já acessível a grupos pequenos de visitantes, intitulada Língua Solta (ler aqui). “Desde lá atrás queríamos trazer objetos atravessados pela língua”, explica a curadora especial da instituição, Isa Grinspum Ferraz. Afinal, como diz o escritor moçambicano Mia Couto, em live organizada pela instituição, “a língua portuguesa não funciona em abstrato”.

Dentre as novidades trazidas pelo museu nessa nova roupagem estão também a incrementação da linha do tempo, que percorre a história da língua portuguesa desde o Lácio, na antiga Roma, até os dias de hoje, com a problematização de momentos fundamentais dessa trajetória, como o ano de 1500 – no qual foram inseridos depoimentos de líderes indígenas como Davi Kopenawa e Ailton Krenak questionando a ideia de descoberta e explicitando o processo de invasão de terras já habitadas. Em sentido quase oposto, a instalação Nós da Língua Portuguesa (“nós” tanto em termos de entrelaçamento, como de pronome que indica uma coletividade) ressalta a importância do português como língua de libertação dos países africanos, permitindo uma confluência de diferentes povos e dialetos em um projeto comum, vivenciado em países como Moçambique, Angola e Cabo Verde. Por último, dentre as novidades, Isa Grinspum destaca a nova instalação Falares, curada por Marcelino Freire e Roberta Estrela D’Alva, que cria um bosque de telas nos quais é possível perfazer um passeio, assistindo uma trama de depoimentos, de falares icônicos, sotaques e tribos do português. 

Museu da Língua
Área expositiva do Museu da Língua Portuguesa. Foto: Governo do Estado de São Paulo

Quando inaugurou, em 2006, o uso massivo da tecnologia virtual era uma das marcas fortes do MLP. Hoje, com uma maior familiaridade das pessoas com esse tipo de recurso e o aprimoramento dos equipamentos, seu protagonismo parece mais diluído. “A tecnologia veio a serviço, para contar uma história. Como a língua é impalpável, imagens e sons são muito úteis. Não buscamos a interatividade pela interatividade”, pontua a curadora. Segundo ela, o que importa é estimular ao máximo o interesse do visitante, fazendo com que saia do museu com mais perguntas do que entrou. 

Diante dos desafios impostos pela pandemia – que vem adiando sua reabertura e impõe a necessidade de encontrar novas formas de contato com os potenciais visitantes –, o museu também vem aproveitando para desenvolver novas formas de interação virtual com o público. Aproveitou o dia internacional da língua portuguesa para mostrar um pouco de sua nova cara, realizando uma série de conversas e apresentações online, que já foram vistas por mais de 15 mil espectadores, com figuras de grande relevância no pensamento do papel da língua, como Mia Couto, José Eduardo Agualusa e José Miguel Wisnik. Lançou também ciclos de palestras virtuais e pretende estabelecer ciclos de debates, formação de professores, mostras de cinema, saraus, e outras atividades capazes de espraiar essa produção para além do espaço físico. 

Ir para fora é, aliás, um dos motes do Museu da Língua Portuguesa, seja em termos de conteúdo (no que a comunicação digital pode contribuir muito) seja em termos espaciais, conectando-se de forma mais intensa com o entorno de sua sede na Estação da Luz, por onde transitam centenas de milhares de pessoas, todos os dias. 

 

Maxwell Alexandre: ‘Pardo é Papel’ ou a grandeza épica de um povo em formação

Os responsáveis pela programação do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, fizeram coincidir nas suas galerias as exposições de dois artistas afro-descendentes: Pardo é Papel, mostra itinerante do artista carioca Maxwell Alexandre; e Di Cavalcanti – Muralista, mostra do consagrado pintor modernista, curada por Ivo Mesquita. Este “encontro” nos permite acompanhar a força da história da pintura afro-brasileira em dois momentos diferentes e desde perspectivas pictóricas distantes, porém entrelaçadas. Um olhar mais paciente talvez perceberia coincidências narrativas importantes entre esses universos aparentemente dispares, mas, aqui, vamos nos concentrar neste jovem artista negro que irrompeu na cena nacional e internacional com força peculiar.

Desde o fim do século 19, no ocidente, as academias de arte estabeleceram cânones que emprestaram importância – relativa – aos variados gêneros de pintura. Desse modo, mais meritórios e dignos de consideração (e consumo) seriam os processos que resultassem em obras dedicadas à afirmação das elites de plantão, fossem elas eclesiásticas ou não. As obras que retratassem essas aristocracias estariam garantidas no topo de uma pirâmide hierárquica de valores estéticos e políticos. 

Fazer-se representar era imperioso e, na ausência do monarca, reverenciava-se a figura e autoridade expressa pela pintura ou escultura. As representações do rei ou dos nobres projetavam simbolicamente os seus poderes e, por isso, eram copiosamente realizadas e distribuídas. Da mesma forma, seus feitos recebiam grande atenção, já que a partir das pinturas de caráter histórico divulgavam-se façanhas guerreiras ou piedosas dos monarcas e seus congêneres. 

Entre nós essa pintura de tipo histórico, que resulta quase que obrigatoriamente épica na sua aparência e pretensão, foi também praticada e algumas destas obras ocupam ainda hoje um lugar central nas narrativas que vaticinam o nascimento do Estado e nação brasileiros.

UM CIGARRO E A VIDA PELA JANELA, de Maxwell Alexandre
“Um cigarro e a vida pela janela”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

No nosso caso, obedecendo aos cânones acadêmicos herdados e colonialmente impostos, essas pinturas apresentam heróis em ação, como aquela Independência ou Morte, realizada em 1888 pelo paraibano Pedro Américo (1843-1905) e hoje pertencente ao acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, onde se vê o ainda príncipe Pedro ladeado por uma comitiva e escoltado por cavalarianos erguendo a espada e decretando a independência brasileira de Portugal. 

A outra, Batalha do Avaí, também de Américo, foi concluída em 1877 e pode ser visitada no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Nela está representa uma verdadeira multidão de soldados engalfinhados em renhida batalha e que tem ao fundo um Duque, aliás, Caxias, cuja farda está aberta – ao que consta, isso provocou o desagrado do retratado -, que montado em seu cavalo branco coordena altivo e distante os movimentos da “sua” tropa fatalmente vitoriosa.  

Essas obras têm em comum as dimensões gigantescas, o profuso número de militares que protagonizam ou apoiam as ações descritas e, sobretudo, o papel subalterno e periférico dos personagens representativos da fração popular daquela sociedade, sejam negros, mulheres, indígenas ou brancos miseráveis.

A Batalha do Avaí é notória pelo número de personagens nela representados, pelo prodígio técnico implicado na sua realização e claro, pela impressionante descrição que faz de um momento crucial da batalha que descreve. Naquela profusão de personagens, de corpos em dinâmico e dramático choque, num primeiro plano central e aos pés da cena vemos o corpo de um soldado negro que jaz com a cabeça ferida – do crânio fendido escapa a massa encefálica. Os negros representados nessa batalha lutam pela soberania do país que os mantinha escravizados. No entanto, o corpo desumanizado pela escravidão é o mesmo que verte sangue e vísceras naquele combate titânico apresentado por Pedro Américo.

A LUA QUER SER PRETA, SE PINTA NO ECLIPSE, de Maxwell Alexandre
“A lua quer ser preta, se pinta no eclipse”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

As pinturas de Maxwell Alexandre expostas na mostra Pardo é papel – inicialmente mostradas no Museu de Arte Contemporânea de Lyon (França), em 2019, e depois no Museu de Arte do Rio (MAR) e na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre – também possuem um caráter épico, grandioso, consagrador e, certamente histórico. 

Elas não foram realizadas na Europa como aquela de Américo. Não são resultado de uma solicitação do Estado, nem foram pintadas em fino linho. Também não ostentam uma rebuscada moldura dourada que exibe as armas do império. Pelo contrário, as pinturas de Alexandre expostas no Instituto Tomie Ohtake foram realizadas num suporte frágil que sequer é sustentado por um chassi. A fragilidade desse suporte, o papel, é facilmente detectada e percebida nos rasgos que foram incorporados à pintura. A Arte Povera, pobre, surgida na Itália dos anos 1950 e 1960 também fazia elogio ao material barato empregado pelos artistas que aderiram a essa estética. Lá como aqui, essa escolha destaca uma atitude política. 

Assim como nos clássicos, a pintura de Maxwell Alexandre trás também multidões num movimento dinâmico. Mas, à diferença de outras obras, propositalmente os corpos ali apresentados são todos negros, inequivocamente negros, e pintados em situações corriqueiras do seu dia a dia. E não são anônimos. Apesar de não terem seus rostos esboçados, é possível identificar o poeta e sambista Cartola, o demiurgo Arthur Bispo do Rosário ou Jean-Michel Basquiat, que se aglutinam à miríade dos outros sujeitos dessa cena negra feérica que só na superfície plana do papel parece caótica, já que o espaço projetado é bem composto por cores sólidas ornadas de dourado. 

Sem título, da série Novo Poder, Maxwell Alexandre, 2019. Gabi Carrera / Divulgação

Na entrada da galeria que abriga a mostra há uma enorme pintura que representa um grupo de pessoas negras observando e comentando uma pintura apresentada como um painel, bege, ou pardo, um grande e vazio retângulo amarelo Nápoles, um amarelo muito pálido. Ali é pintura dentro da pintura, meta-pintura. Maxwell Alexandre nos faz contemplar pessoas que, por sua vez, observam um painel (dentro do painel) onde se enxerga uma única cor. Um ácido e inteligente comentário sobre o cubo branco, sobre a instituição cultural que o projeta e que reflete de maneira narcísica só a cor do branco admitido neste espaço, sem espelhar os pretos que também o ocupam. Se há referências a Basquiat na pintura de Alexandre, essa influência não tira a potência das obras do artista e, além do mais, apresenta-se legítima. Não deixa de ser consagrador que jovens artistas negros e negras possam referir-se a outros igualmente pretos, excelentes como suas influências.

A opulência do dourado sobre o azul, ouro iridescente sobre vermelho, ouro cintilante sobre o verde, estão presentes à composição dessas pinturas quase como lembrança do metal precioso que, prospectado pelos escravizados nos garimpos de Minas Gerais, fez a riqueza de muitos – menos daqueles que o extraiam. O dourado emoldura os elementos da cultura pop, do consumo, os símbolos da ascensão social promovida pelo esporte, pelo trabalho, pela arte e pela delinquência às vezes inevitável no caminho do excluído.

ÉRAMOS AS CINZA E AGORA SOMOS FOGO, de Maxwell Alexandre
“Éramos as cinzas e agora somos o fogo”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

Pode ser que identifiquemos nas pinturas de Maxwell Alexandre algum caráter festivo, de festa profana e sacra. Nesse caso é preciso compreender o quanto a festa se traduz em resistência para aquela parcela da população que é o alvo preferencial das “balas perdidas”, das munições da necropolítica que mutilam famílias e liquidam vidas jovens ou ainda no ventre das jovens mães, mas que não contém nem dissipam o gênio insubmisso dessa insurgente arte contemporânea preta brasileira. 

Instituto Transarte: por um um futuro LGBTQ+

Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte
Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte

As velhas certezas, ainda presentes no sistema brasileiro de arte, aos poucos se apagam com iniciativas como a Transarte, galeria pioneira na apresentação de artistas com temática LGBTQ+ e que agora vira instituto. Desde que apareceu no circuito de arte, experimenta transmutações físicas e conceituais. Agora deixa a boêmia Vila Madalena e se instala, em sede definitiva, na Gabriel Monteiro da Silva, reduto da classe alta paulistana, com outros desafios.

Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte
Iwajla Klinke, sem título, da série “Ritual Memories”. Foto: Transarte

Qualquer situação nova, que se acrescente a outras, chega para oxigenar um sentido de futuro. Concebida por Maria Helena Peres Oliveira, a Transarte abriu suas portas em 2012 mostrando a que veio. Expôs obras do enigmático artista norte-americano Timothy Cummings, resultado da residência de um ano realizada em São Paulo. Nenhum travelling de recuo ou de avanço conseguirá desvendar sua atormentada obra e nem mesmo os autorretratos deixam uma pista. Para Catharine Clark, galerista de San Francisco, “o trabalho de Cummings é ao mesmo tempo clássico e subversivo, formalmente lindo e tematicamente assustador”. Para Maria Helena, a fotógrafa Iwajla Klinke, de Berlim, tem qualidade insuspeita e por isso também foi convidada. Ela trabalha o feixe de luz natural como instrumento narrativo. A série Ritual Memories, com dorsos nus de jovens, mistura estranheza e sensualidade com takes sequenciais: homem só, homem espelho, homem narciso, homem viado. A operação é fluída, mas oposta à espontaneidade. Klinke os adorna ora com ratos e sapos pendurados no pescoço, ora com leves petecas de plástico ou rendas delicadas.

Na outra margem do oceano, a jovem brasileira Bia Leite descobriu muito cedo que os sonhos e a percepção se constroem no corpo a corpo com a vida. Aprendeu a desarmar seus agressores com uma pintura denunciadora. Premiada no edital Transarte LGBTQ+ com a tela Born to ahazar, que ficou conhecida por Criança Viada, ela ganhou notoriedade ao grafitar sobre a pintura xingamentos preconceituosos sofridos pelos homossexuais desde a infância. Bia tenta se desvencilhar do monstro que cresceu dentro dela, decorrente do bullying que sofre. O quadro participou da coletiva Queermuseum, no Centro Cultural Santander, em Porto Alegre, quando foi alvo de protestos, censura e tornou-se um dos vértices da alienação cultural insana do momento. Delicadeza também pode ser um ato de resistência. Silva M trabalha objetos encontrados ao acaso e, aleatoriamente constrói esculturas cuja superfície se assemelha à xilogravura. A jovem inventa resposta ativa para esse mundo disperso e abandonado, tecendo fragmentos com delicadeza desconcertante repleta de finas suturas que chegam às bordas e às reentrâncias, como um socorro dérmico.

“Sai Hétero”, de Bia Leite (2017). Foto: Transarte

A Transarte se reinventa, mas as residências permanecem nas perspectivas futuras que ocorrerão na nova sede, a casa que Maria Helena ganhou do avô quando tinha apenas 12 anos. Desde sua criação, a Transarte funciona com recursos próprios, sem apoio de leis de incentivos, por isso Maria Helena e sua companheira Maria Bonomi não pensaram em uma fundação.

A paisagem da arte é urbana e marcada pela vigilância. Para garantir espaço definitivo e legítimo para os artistas, está prevista a organização de uma iniciativa privada de longa duração para que o Instituto sobreviva depois da morte das proprietárias e já há dinheiro para isso. “Tivemos momento de avanço com a aprovação do STF de casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas agora piorou muito”, afirma Maria Helena. Expandindo o arco de ações, elas farão parcerias com residências como a Casa Florescer ou com outras instituições que também acolhem pessoas LGBTQ+ com traumas e de todas as idades. 

Os relatos dos artistas têm intensidade social e psíquica aterradoras. “Muita gente foge de seu local de origem, outros deixam a casa dos pais por ameaças ou abandonam as ruas pelos espancamentos, todos sem ter para onde ir”. Maria Helena quer propor também algo como arte-educação em forma de distração ou como suporte para as pessoas traumatizadas. Dessa forma a arte parece não ter sentido em si, mas na verdade é atravessada por outras potências, saberes, afetos, descobertas, que farão parte do conteúdo do Instituto. Será constituído um conselho com pessoas de várias áreas, não só para introduzir artistas e obras na circulação expositiva, mas também para pensar a pluralidade de projetos a serem gerados. O Instituto Transarte vai continuar contemplando exposições, editais, publicações de livros e residências artísticas. “Estamos falando de Instituto, mas seria uma ONG, sem fins lucrativos. Nossa proposta é de antimercado, começamos comercializando com preço baixo entre três e cinco mil reais, divididos em até 10 vezes, e o artista ainda pode receber adiantado, salvo as obras de estrangeiros.”

"Pyre of Persona", de Timothy Cummings (2012-2013). Foto: Transarte
“Pyre of Persona”, de Timothy Cummings (2012-2013). Foto: Transarte

O atrevimento de Maria Helena na adolescência, vivendo numa sociedade conservadora, parece ser o alicerce de sua forte e determinada personalidade de hoje. Nascida e sociabilizada numa família de elite, ela sempre se envolveu com arte, por influência da relação estreita com o tio Arthur Luiz Piza e pelo casamento com Maria Bonomi, ambos gravadores emblemáticos da história da arte brasileira. Maria Helena lembra a época dos delírios, das privações amorosas, quando um beijo em outra adolescente só era possível dentro de um elevador. Sua fala parte de um vazio que só foi preenchido depois que deixou São Paulo para se fixar em San Francisco, cidade de regras sociais pouco rígidas e onde ela se aproximou ainda mais da arte. Formada em química e com MBA na FGV, Maria Helena completou seus estudos nos Estados Unidos com mestrados em Marketing e em Arts Administration, trabalho no SFMOMA, na San Francisco Opera House e na galeria Catharine Clark.

Voltou ao Brasil em 2002 e faz produção e coordenação de exposições em vários museus. Todo esse aprendizado foi potencializado com outras iniciativas permeadas de questões sociais e políticas. No ano passado, com a pandemia do Covid-19 avançando, a Transarte buscou resposta da arte para o tema, produzindo o edital quarANTENA, que somou 400 inscrições e distribuiu seis prêmios de R$1200. Os artistas responderam à altura do chamado com trabalhos sobre esse tempo cruel de exclusão física. O Instituto Transarte surge no momento de desmonte da cultura no Brasil. O prognóstico é que esse projeto pioneiro, desafiador, de impacto artístico e social, sobreviva na direção de transformações há muito reivindicadas.