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Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi: muito além da história de um casarão

Ioiô, nhô ou nhonhô, segundo o dicionário Houaiss, eram termos utilizadas pelos escravizados e seus descendentes para tratar, com reverência, os homens brancos, especialmente patrões e proprietários. Diminutivo de sinhô, nhonhô se referia mais comumente aos homens mais jovens da casa grande. Mas, apesar de se relacionar a tempos distantes, de escravidão e colonialismo, não se pode dizer que a história e simbologia destas palavras estejam guardadas apenas na memória de um passado longínquo do Brasil. Um dos exemplos disso é a existência, no centro da maior cidade do país, de um palacete chamado, ainda hoje, Casarão de Nhonhô Magalhães, uma mansão que agora inspira o novo trabalho dos artistas Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi, Nhonhô – “esse nome neutralizado no vocabulário comum, cotidiano, como é o colonialismo no Brasil”, afirma Beiguelman.

“A palavra [nhonhô] e as dinâmicas de poder que a atravessam perduram no tempo e nas relações sociais ecoando na história de uma elite europeizada e enriquecida pelo café, que urbanizou São Paulo”, diz o início do texto que percorre o vídeo de cerca de 9 minutos – uma “biografia possível de um palacete”, nas palavras de Solange Farkas, diretora do Videobrasil Online, plataforma onde o trabalho fica exposto até 18 de abril. A história do casarão se mistura à história de Nhonhô Magalhães – o barão do café, banqueiro e empresário Carlos Leôncio de Magalhães (1875-1931) -, mas também nos diz muito sobre a história de São Paulo, de suas elites, e da própria formação do Brasil moderno.

Realizado a partir das técnicas da fotogrametria – um processo de construção de um espaço virtual através de fotografias, como explica Sartuzi – e da modelagem em 3D, somadas à colorização por inteligência artificial e à sonorização composta por algoritmos, o vídeo apresenta, com sua “estética tecnológica”, uma atmosfera permanentemente tensa, elétrica e um tanto fantasmática. Sem corpos ou vozes humanas (a própria narração é feita apenas através de legendas), o clima criado se relaciona diretamente à própria história – um tanto hermética e obscura – do casarão.

Situada no bairro de Higienópolis – a “cidade da higiene” onde a elite paulista se refugiava e buscava recriar o modo de vida das metrópoles europeias -, a mansão foi construída entre os anos 1920 e 1930 por Nhonhô Magalhães para ser sua residência familiar. Com 2.000 m2 e cerca de 40 cômodos, construída no chamado estilo arquitetônico eclético e inspirada em construções francesas, a casa ficou pronta já após a morte do cafeicultor e foi o lar de sua esposa e de cinco de seus filhos. Ao longo das décadas seguintes, o edifício – que para alguns ganhou fama de palacete amaldiçoado – se tornou repartição pública, foi tombado como patrimônio histórico e, em 2005, arrematado pelo Shopping Higienópolis em um leilão, com a condição de que fosse mantida uma área para uso cultural. Em 2020, essa área – com entrada apenas pelos fundos da casa – passou a ser ocupada pelo Paço das Artes.

Segundo os artistas, essa história, aqui brevemente resumida, levanta uma série de discussões sobre a mentalidade das elites patriarcais – coloniais ou burguesas -, as transformações urbanas e sociais da cidade, a promíscua relação entre interesses públicos e privados no país e uma visão da cultura como acessório. Assim, a ideia do vídeo “é tomar a arquitetura como dispositivo, não apenas como um prédio em si. A partir de um instrumento e de uma arquitetura particular, transformar aquilo num enunciado discursivo”, explica Beiguelman.

Presença da ausência 

Mas como fazê-lo quando os artistas se deparam com uma série de lacunas de informações, não só documentais, e com a própria impossibilidade de acessar todo o espaço arquitetônico da casa – seja pelo contexto da pandemia, seja pela falta de autorização dos atuais proprietários do edifício? A solução foi explicitar estas ausências, como conta Beiguelman: “Acho que o vídeo inteiro é uma presença da ausência, em todos os sentidos. Os vazios vistos nas imagens em 3D são também uma presença das interdições. Nós não tivemos acesso à casa”. E ela completa: “Tem ainda a presença da ausência de muitas informações. Foi usado um vasto arquivo de documentos, mas a narrativa inclui lapsos, fantasias e ficções”.

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Cena de “Nhonhô”. Foto: Reprodução

Neste sentido, segundo Sartuzi, o uso da fotogrametria ganha ainda mais sentido: “Pois nessa técnica, quando existem pontos em que falta informação, seja pela luminosidade insuficiente ou por outras ausências, o computador não computa aquele ponto, resultando em uma paisagem fragmentada. E isso entra no nosso vídeo junto a esse fosso de falta de informação, a tudo isso que a gente não teve acesso”.

O uso das tecnologias – com Gabriel Francisco Lemos e Bernardo Fontes na equipe – decorrente das pesquisas artísticas tanto de Beiguelman quanto de Sartuzi, não se dá, portanto, de modo gratuito, mas surge para dar conta desta história complexa que decidiram contar. “A tecnologia faz parte de um método de trabalho nosso que não tem uma relação nem tecnofóbica nem tecnofílica, não tem nada da técnica pela técnica, não é uma moda. Esse uso respondeu, inclusive, às possibilidades de fazermos um vídeo nesse contexto: duas pessoas que nunca trabalharam juntas, em meio à uma pandemia, e que se encontraram fisicamente somente uma vez no casarão”.

A colorização feita a partir da inteligência artificial (IA), por sua vez, resultou em uma paradoxal “tonalidade europeia” para uma história passada no Brasil, o que foi intencionalmente mantido pela dupla. Após pesquisar dezenas de programas de colorização por IA, criados para a reconstituição de imagens do passado, Beiguelman percebeu que o resultado era sempre de cores e luzes encontradas nos países do Norte – “já que todo o treinamento dessas ferramentas é feito com grandes arquivos digitalizados europeus”. “Então o resultado é que migrou para dentro do vídeo uma luz que não é produzida aqui, o que deu essa camada que decidimos manter porque, paradoxalmente, ela reproduz o olhar que essas elites tinham sobre si”. E ela conclui: “A IA entrou como mais uma voz de leitura desse emaranhado de colonialismo, elitismos e estrangeirismos que continuam entre nós”.

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Página do Videobrasil Online, onde está disponível também uma conversa com os artistas. Foto: Reprodução

Acervo de Rossini Perez é foco de nova mostra online do Museu Lasar Segall

Rossini Perez em sua residência e ateliê em Copacabana (Rio de Janeiro), 2019. Foto: Arturo Bonhomme.
Rossini Perez em sua residência e ateliê em Copacabana (Rio de Janeiro), 2019. Foto: Arturo Bonhomme.

Em homenagem ao artista Rossini Perez, falecido aos 89 anos, em março de 2020, o Museu Lasar Segall revela a pluralidade de sua obra, conhecida essencialmente pela gravura, na exposição Arqueologia da Criação: Uma imersão no acervo-ateliê de Rossini Perez.

Realizada em formato online, a retrospectiva poderá ser acessada até 1º de julho de 2021 no site www.arqueologiadacriacao.org. Através de um passeio por suas galerias virtuais, a mostra propõe percursos imersivos, com áudios, vídeos e imagens, “para que o visitante se sinta próximo ao artista, como se estivesse manipulando as gavetas de seu ateliê”, como conta a curadora Sabrina Moura. Arqueologia da Criação, aliás, surge como resultado de um intenso trabalho de pesquisa e de convivência com o artista, iniciado em 2017 por Moura. 

“Eu estava estudando a arte senegalesa dos anos 1970 quando descobri que Rossini ajudou a implantar uma oficina de gravura na Escola Nacional de Belas Artes de Dacar naquela época. Na primeira vez em que visitei seu ateliê, queria conhecer as histórias de sua passagem pelo país africano. Mas ele fez questão de me mostrar as colagens que vinha fazendo”, conta a curadora. “Nos encontros seguintes, apresentou outros trabalhos e materiais que guardava em seu acervo. Quando percebi, já tinha sido pega pela armadilha que é o labirinto da memória e da produção artística de Rossini”, relembra.

Rossini Perez em Paris, 1965. Acervo pessoal
Rossini Perez em Paris, 1965. Acervo pessoal

Rossini Quintas Perez nasceu em 1931, na cidade de Macaíba (Rio Grande do Norte). Ele se mudou em 1942 para o Rio de Janeiro, onde testemunhou importantes acontecimentos da cena artística da então capital federal. Em 1951 frequentou a Associação Brasileira de Desenho e teve aulas com o pintor Ado Malagoli. No ano seguinte, foi aluno de Iberê Camargo e, no próximo, de Fayga Ostrower. Ainda em 1953, participou da 1º Exposição Nacional de Arte Abstrata, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ). Na década de 1960, mudou-se para Paris onde conviveu com a vanguarda dos artistas brasileiros sediados na França. Entre eles, Lygia Clark, Arthur Luiz Piza, Sérgio Camargo, Antônio Bandeira e Frans Krajcberg. De 1970 e 1990, o artista esteve em Portugal, Senegal, México, entre outros países, realizando exposições e montando oficinas de gravura. De volta ao Brasil, foi professor no Centro de Criatividade da Fundação Cultural do Distrito Federal, em Brasília, em 1978, e no Ateliê de Gravura do MAM/RJ, de 1983 a 1986.

Revisitar sua obra, de acordo com Moura, tem “um valor notável para as instituições, que têm buscado rever seus acervos e coleções, pois coloca em xeque a própria ideia de uma modernidade central”. Além disso, “o artista guardava seus registros como um arquivista. Tudo era minuciosamente identificado e ordenado. Essa espécie de ‘febre arquivística’ levanta um debate crucial sobre os acervos brasileiros, num momento em que nossos espaços de memória têm sido fragilizados”, diz a curadora. 

Esse cuidado permitiu que Rossini realizasse, alguns anos antes de falecer, uma série de doações para diversas instituições, como o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o Museu de Arte do Rio (MAR), a Pinacoteca do Estado de São Paulo e a Biblioteca Mário de Andrade, entre outros.

Em 10 de junho será lançada uma publicação criada a partir da organização da mostra que abordará aspectos inéditos sobre a obra de Rossini Perez, com textos de Sabrina Moura, Cláudia Rocha (Museu Nacional de Belas Artes), Maria Luisa Távora (UFRJ), Juliana Maués (Unicamp) e Marisa Ribeiro (UFPB).

Assista aqui ao evento de lançamento da exposição.

Jaider Esbell e uma apresentação através do jenipapo

Jaider Esbell em performance na exposição "Apresentação : Ruku" na Galeria Millan, em São Paulo. Foto: Renata Chebel / Galeria Millan

Como pode uma árvore ser uma pajé? Essa é uma das reflexões que o artista e curador Jaider Esbell busca suscitar em Apresentação : Ruku. Reunindo cerca de 60 obras – entre pinturas, objetos e desenhos- na Galeria Millan, a exposição individual coloca o jenipapo em foco, convida o público a dialogar com os saberes que envolvem a planta e as culturas indígenas que os disseminam, e vai além de uma proposta meramente etnográfica.

Apresentação : Ruku parte da mais recente pesquisa do indígena da etnia Makuxi. “Eu e minha mestre estávamos pesquisando o jenipapo [também conhecido como ruku], antes dela falecer em decorrência do Covid-19. A árvore é comum em grande parte do território brasileiro e tem propriedades medicinais. Além disso, é ela que gera a tinta mais popularmente usada para pintura corporal”, conta. A partir desses estudos, Jaider decidiu experimentar outros suportes para essa tinta: não mais o corpo, mas a tela e o tecido.

O artista acredita que a mostra pode ser um ponto de partida para estabelecer diálogos com o nosso agora, falando de território, identidade e da tradição dentro do contexto contemporâneo, criando também uma conexão entre as diferentes realidades que convivem nesse mundo atual. 

Vista da exposição individual de Jaider Esbell “Apresentação : Ruku”, em cartaz na Galeria Millan. Foto: Felipe Berndt / Galeria Millan

Apresentando tradições 

Como propõe o título da mostra, a coleção de obras exposta no Anexo Millan busca apresentar o ruku. A planta é vista por diversas etnias indígenas como uma árvore-pajé, por seu potencial medicinal, de proteção e cura – física e espiritual. “Ela é uma pajé em si mesma, mas precisa de um mediador para criar conexão conosco, precisa do artista para conectá-la a esses mundos aparentemente apartados”, conta Jaider. E brinca: “A árvore não vai levantar, sair andando e dizer ‘eu sou pajé, tenho conteúdo’, ela precisa das pessoas que conhecem minimamente a sua trajetória para apresentá-la”. 

Porém, para muitos ainda é difícil compreender como uma planta pode ser vista dessa forma. “Para essas pessoas, ela é só uma árvore, que pode dar no máximo frutos, sombra e lenha. Acredito que falar que ruku é uma pajé seja uma forma de convidar as pessoas a ir além das paredes brancas cheias de obras que temos na galeria.” Assim, sugere uma abertura aos saberes dos povos originários.  

A proposta de compartilhar esses conhecimentos aparece em continuidade aos recentes estudos do artista sobre o txaísmo. “Txái, a grosso modo, é uma saudação para acolher uma pessoa em sua família. Ao acolher, você abre seu mundo para ela, partilha seu espaço, sua vida, suas dores e alegrias. Essas partilhas muitas vezes se fazem em volta do trabalho e no feitio das medicinas. Apresentação : Ruku não deixa de ser um txaísmo também, porque é a abertura de uma medicina, e é um convite para o outro – o branco – dialogar com a gente e a gente dialogar com eles”, explica. 

Apresentando identidades

Isso nos leva a uma segunda camada de compreensão da mostra. O jenipapo é popularmente conhecido por fornecer uma tinta usada em pinturas corporais, como forma de expressão e proteção. “Quando a gente aplica nos nossos próprios corpos, está também corporificando uma mensagem: seja de que estamos em luto, em guerra, ou em festa – e se estamos em festa informa se estamos solteiros, casados, a região em que a gente vive etc.”, explica. Se através da arte Jaider apresenta a árvore, é através da tinta gerada por seu fruto que o jenipapo apresenta o artista e algumas das facetas de sua cultura. 

O título da mostra, então, refere-se também à uma outra apresentação, ligada à “nossa necessidade de nos auto apresentarmos enquanto povos originários, usufruindo e ocupando esses lugares de destaque das artes, circulando por esses espaços de potências centrais”, compartilha o artista. 

“A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade”, Jaider Esbell, 2021. Foto: Cortesia Galeria Millan e artista

Para reforçar essa ideia, Jaider assina também a curadoria da mostra, contando com assistência da antropóloga Paula Berbert, com quem desenvolve trabalhos há anos. “O fato de eu assumir a curadoria acaba sendo uma questão também política, para edificar um protagonismo. É muito importante que os povos indígenas protagonizem esses espaços da arte que antes eram impensados e impensáveis para nós – e ainda o são, porque ainda há uma indagação preconceituosa sobre a possibilidade de um índio fazer obra e não só artefato”, afirma. E acrescenta: “Essa é uma forma, no campo da pesquisa prática, de construir evidências midiáticas e gerar precedentes para que nos encorajemos como povos e como artistas, para que saibamos que podemos usufruir plenamente das estruturas de mundo”.

Através da curadoria, Jaider consegue melhor expor ao público os diferentes conceitos que permeiam as obras. Um cuidado essencial, a seu ver, pois “é inegável que esteja havendo uma exposição muito maior da diversidade indígena atualmente, e ela é positiva, mas não deixa também de ser delicada e até perigosa”. Para ele, ainda existe um risco de os artistas indígenas serem tirados de cena pelo sistema da arte dominante. “Por isso temos trabalhado com muito cuidado para não deixar o assunto cair no modismo, não deixar que as instituições de arte continuem com uma função meramente etnográfica, que é simplesmente ir nas aldeias, pegar um cocar e expor sem dizer o que é esse cocar, pra que ele serve, como foi feito, em que ocasião deve ser usado. Pois com essa visão você desconecta mais uma vez as realidades e torna novamente um fetiche que reproduz estereótipos.”

Assim, Apresentação : Ruku busca ser mais do que uma introdução, configurando-se como um convite para o diálogo e para uma nova forma de enxergar o mundo e se relacionar com ele, em especial durante e após esse momento crítico. Como finaliza Jaider Esbell: “Desde antes do tempo vir a ser tempo, as plantas partilham entre si a maestria da vida: são portas para portais de mais mistérios. Hoje em crise, humanos, que nos achamos, ainda temos, talvez, as últimas chances de nos conectarmos ao todo. Uma moita de mato, por menor que seja o ramo, contém ali todo o antídoto para o veneno que é a megalópole. Isso nem deveria ser segredo, embora ainda seja – segregação.”

SERVIÇO
Apresentação : Ruku
Anexo Millan: Rua Fradique Coutinho, 1416, São Paulo, SP
A exposição ficará em cartaz até 10 de abril de 2021*
Segunda a sexta, 10h às 19h, sábado, 11h às 15h

*A exposição está temporariamente fechada, seguindo os protocolos sanitários estabelecidos pelo Governo de São Paulo em decorrência da pandemia de coronavírus.

A Graça da Fé

"Aladas", max wíllà morais. Foto: Guilherme Sorbello/Cortesia Sé Galeria

*Por Claudinei Roberto da Silva

Entre nós, um extenso aparato cultural, ideológico, legislativo, religioso e midiático foi criado para justificar, atender e garantir a permanência de privilégios daquela parcela da população que deles direta ou indiretamente sempre se beneficiaram. E isso, é claro, à custa da desumanização, da coisificação dos que não participam desse grupo, sejam eles negres, indígenas ou os que demonstram identidade de gênero diferente da dominante. Na raiz do reacionarismo brasileiro estão acomodados a heteronormatividade, o machismo tóxico, o ódio de classe, o racismo e a aversão patológica ao diferente, ao corpo divergente que não reflita o ideal que consagra no poder o homem adulto, branco, burguês.
Essa realidade fica explicita em tempos de pandemia e necropolítica, em tempo de contar os mortos que estão na base da pirâmide social brasileira, contabilizar o resultado de séculos de desprezo à vida daqueles que não pertencem ao que entre nós se convencionou chamar “elite”. Mas como escreveu Castro Alves no épico Navio Negreiro: “E existe um povo que a bandeira empresta para cobrir tanta infâmia e covardia”. O poema é de 1868 e o auriverde pendão da nossa terra continua servindo ao povo de mortalha. Contudo, a depender de onde venha, a resposta do excluído tem a força do falo fertilizador de Exu, a vida invoca Eros, recusando o pensamento utilitarista que vê no indígena um preguiçoso e no negro uma besta de carga.

Certo pensamento periférico (periferia aqui é entendida como potência, não carência e estrutura deficitária) sempre enalteceu a festa como lugar privilegiado para elaboração de subjetividades vibrantes. Daí a satanização das festas pelos arautos da necropolitica. A carioca, nascida em 1993, Tadaskia Wíllà Oliveira Morais, mais conhecida como max wíllà morais, é artista visual, escritora, performer, educadora, pesquisadora, mulher trans e negra. Fui apresentado à sua obra pela clarividente curadora pernambucana Clarissa Diniz.

A artista é representada em São Paulo pela Sé Galeria e a conheci pessoalmente no Pivô, onde esteve em residência e participou, a convite da curadora colombiana Catalina Lozano, da mostra coletiva Uma história natural das ruínas – em exibição até 17 de abril. Recentemente alguns de seus trabalhos também estiveram presentes no Auroras, onde através da sensível articulação da curadora Gisela Domschke estiveram em diálogo com obras do cearense José Leonilson. O MAR (Museu de Arte do Rio) também já acolheu sua produção recente.

Vista da exposição “Uma história natural das ruínas”, no Pivô. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sé Galeria e artista

O crescente interesse em torno do trabalho da artista é resultado do avanço das lutas contra a invisibilização e decorrente epistemicídio dos corpos divergentes e é também plenamente justificado pela espessura poética expressa nessa produção. São desenhos, bidimensionais, costuras, pinturas, instalações, fotografias e ações que a artista denomina de “aparições”, que elaboram um universo lastreado no invisível e no visível, isto é, no resgate ritualizado da sua ancestralidade negra, afro-diaspórica, da sua religiosidade sincrética e na organização de um mundo material que dá significado novo e sensual as matérias sobre as quais a artista atua. São particularmente possantes os desenhos a que tive acesso e que podem ser conferidos no Pivô. São, suponho, a expressão de um corpo que não se deixou domesticar, distinguem uma atitude, são fluidos, atmosféricos, às vezes dão a impressão de volatilidade sem, no entanto, serem incorpóreos. Estão perfeitamente contidos nas margens tortas do papel que a artista recorta com as mãos. Existe algo de Tropicalista na artista e no seu projeto, as operações que ela realiza são graves, contundentes e incisivas, contudo não trazem traço qualquer de sisudez. Pelo contrário, há um senso lírico de humor, algo ácido talvez, atravessando essas narrativas que não raro no caso dos seus desenhos e costuras se apresentam em composições de enorme delicadeza e frescor. Delicadeza que, aliás, é conferida aos desenhos pelo emprego sensível que a artista faz dos materiais de que lança mão, o lápis de cor, a aquarela, canetas, o esmalte para unhas. O núcleo familiar da artista é às vezes engajado em algumas de suas ações que implicam na construção e uso de objetos híbridos, relacionais, que investigam e propõem relações entre aqueles corpos e a arquitetura proletária que eles habitam.

Brutalidade jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (São Paulo, Editora UNESP, 2009, tradução Cristina Yamagami) é o resultado da pesquisa do professor estadunidense Christopher Dunn, pesquisador da prestigiada Tulane University de Nova Orleans. Conheci o professor quando este visitou o Museu Afro Brasil instituição em que na ocasião trabalhava como coordenador do Núcleo de Educação. Como escreve o professor: “O projeto Tropicalista manifestou-se num período de intensos conflitos políticos e culturais no Brasil, criticando simultaneamente o regime militar e o projeto nacional-popular da esquerda”. Tenho a impressão que o trabalho de max wíllà morais inscreve-se nessa “tradição” de insubmissão quando a artista refuta o engajamento político explícito tão marcado em certa parcela da produção artística afro-brasileira em favor de uma retórica de liberdade e lirismo sensualista. Esse hedonismo antes de qualquer inconsequência trabalha a favor de uma política do corpo bem ao sabor da contracultura mencionada por Dunn no título de sua obra. E pensando bem, o corpo e a obra coincidem em max wíllà morais e são, num certo sentido, um pronunciamento a favor da vida e uma ofensa e um antídoto a necropolitica e suas práticas.


*Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.

O [não] mercado da inclusão: o capacitismo no mundo das artes

Foto horizontal, preto e branco. Em meio à coreografia, João Paulo Lima tem as duas mãos e o único joelho apoiados no chão, mantendo as costas alinhadas, em uma prancha sobre o joelho. Está de perfil. Ele utiliza um figurino que remete às práticas de bondage e sadomasoquismo, com a maioria da pele exposta, semi-nu. Essa foto é um still do espetáculo DEVOTEES, apresentado no programa Zona de Criação, do Hub Cultural do Ceará PORTO DRAGÃO.
João Paulo Lima no espetáculo "Devotees", apresentado no programa Zona de Criação do Hub Cultural do Ceará Porto Dragão. Foto: Reprodução. #PraTodosVerem Imagem com recurso de texto alternativo

No Brasil, mais de 12 milhões de pessoas têm alguma deficiência física ou intelectual, o que corresponde a 6,7% da população segundo dados do IBGE. O número aumenta para 24% quando consideradas pessoas que apresentam alguma dificuldade em menor grau de locomoção, visão ou audição. Entretanto, ainda é pouco comum vermos esses corpos ocupando os palcos, ou as plateias, sendo os responsáveis pelas obras de uma exposição ou por admirá-las nos corredores dos museus, em especial quando saímos do eixo Rio-São Paulo.

“Não são as pessoas com deficiência (PCD) que não têm interesse em arte, são os produtores artísticos e culturais que não têm interesse em produzir um conteúdo que seja acessível”, afirma Moira Braga. Para a bailarina, atriz e professora, o processo é cíclico: se a produção artística não é acessível para PCDs, torna-se mais difícil delas desenvolverem interesse ou se tornarem artistas. O escultor Rogério Ratão faz coro e complementa que em qualquer caso as pessoas só gostarão das artes se forem estimuladas. “E quando temos deficiência, tem muito uma coisa das pessoas acharem que sabem o que é e o que não é necessário pra nós.”

Porém, o estímulo artístico não está em apenas sinalizar aspectos concretos de uma pintura, ou na transmissão das palavras de uma canção através da Libras. Deficiente visual, Ratão exemplifica com a acessibilidade nas artes plásticas: “Se você descreve A noite estrelada do Van Gogh, precisará explicar as pinceladas, o acúmulo de tinta e outros aspectos da obra”, pois é pela descrição que ele consegue compreender o quadro. Em seu caso, como pessoa que já enxergou, ele cria a imagem na cabeça, como quem lê um livro, mas compartilha que pessoas que nasceram cegas tendem a construir a obra em suas mentes a partir de outras referências sensoriais. Logo, se você descreve A noite estrelada apenas como uma cena de uma cidade noturna, com céu estrelado, árvores no primeiro plano e as casas na parte inferior do quadro, “a casinha que vem à mente é o mesmo desenho que uma criança poderia fazer na escola. Então quero entender qual é a casinha do Van Gogh, qual é a casinha do Cézanne, qual é a especificidade de cada artista?”.

É ao sinalizar as técnicas, o estilo e as características do pintor que se permite de fato o acesso à obra e não a um desenho qualquer. O escultor compartilha que em muitas viagens foi aos museus na companhia de seu irmão, para que esse pudesse descrever as pinturas mais detalhadamente. Em alguns casos, quando os museus tinham tempo limitado de visita frente a determinadas obras, permitiam que eles tomassem mais tempo, para que Ratão pudesse de fato admirá-las. Em outros casos, deparou-se com instituições que contavam com estruturas táteis que através de relevos o permitiam sentir os trabalhos, ou com espaços expositivos que liberavam horários específicos para que pessoas cegas ou com baixa visão pudessem tocar algumas esculturas e dessa forma melhor compreendê-las.

Em sua experiência profissional, Leonardo Castilho nos dá outros exemplos sobre o estímulo artístico. Seja na peça Cidade de Deus – apresentada em linguagem de sinais no Brasil e na França -, nas suas atividades como educador no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), no Slam do Corpo, ou nos shows de música – nos quais trabalhou com a interpretação em Libras -, ele buscou ir além da simples informação, permitindo que pessoas surdas (como ele) tivessem acesso àquela arte em forma e conteúdo. Como explica Castilho, a acessibilidade precisa ir além do protocolar. Não se trata apenas de incluir Libras ou audiodescrição, mas de transmitir a experiência estética que a arte propõe – o que envolve um refinamento dos recursos, um maior preparo sobre eles e uma consultoria constante com PCDs. “Os realizadores de eventos dificilmente pensam em públicos mais amplos quando estão concebendo o projeto e o orçamento”, explica. “Isso pode acarretar num sucateamento”, acrescenta Moira, que também tem deficiência visual, referindo-se a verba destinada aos recursos, que muitas vezes é menor do que a necessária. “O recurso de acessibilidade é uma possibilidade que você está dando de um espectador usufruir aquela obra, então se você faz de qualquer jeito quer dizer que você não se importa com esse público”, pontua.

Foto horizontal, colorida. Leonardo Castilho está de pé sobre um palco sem cenário, com paredes pretas. Está iluminado por um refletor. A mão direita está sobre o peito, com os dedos apontados para baixo. A mão esquerda, aberta, também sobre o peito, cobre a direita. Tem os ombros levemente elevados e tensionados, intensificando a expressão de dor estampada em seu rosto. Ele está vestido com uma regata preta e uma saia cinza, tem os pés descalços. Fotografia de apresentação de um poema no Slam do Corpo.
Leonardo Castilho apresentando um poema no Slam do Corpo. Foto: Arquivo pessoal. #PraTodosVerem Imagem com recurso de texto alternativo

De forma a garantir uma melhor transmissão de seus conceitos e propostas estéticas, a performer e videoartista Estela Lapponi agiu de outro modo. Nas primeiras oportunidades com recursos, os construiu em diálogo com os profissionais da área e, em um de seus últimos projetos, o filme Profanação, fez da audiodescrição não ferramenta de acessibilidade, mas linguagem, parte constituinte da obra. Porém, ela aponta que essa responsabilidade em alguns casos vai além dos produtores e artistas, está ligada às leis de incentivo e aos editais. “Penso que o que recebo ainda é muito pouco dependendo do projeto. Se não aumentar a verba, vai virar evento: é um dia só de recurso, porque não consigo tê-lo sempre.”

Seja bem-vindo ao mundo bípede

Esta postura, para Estela, tem uma raiz estrutural: vivemos em um mundo bípede. O termo está ligado ao conceito largamente utilizado pelo diretor, dançarino e coreógrafo Edu O., que não se restringe apenas à definição científica da palavra, mas à ideia estrutural de que todo corpo anda sobre suas próprias pernas, vê e ouve, desconsiderando outros corpos possíveis de existência – ou vendo-os como algo que precisa de conserto.

A experiência de João Paulo Lima corrobora com essa visão. Aos 26, ingressou no curso técnico para Intérpretes Criadores em Dança Contemporânea da Escola Porto Iracema das Artes em Fortaleza. Amputado de uma das pernas desde os 12 anos de idade, o artista conta: “Lá precisei me desvencilhar do corpo bípede. Por memória, já tinha me desvencilhado, mas socialmente não, porque acho que mesmo se você nasce com uma deficiência, é socialmente cobrado a ser bípede”. Para Moira também foi a dança que a permitiu ir além das possibilidades que entendia para si: “A gente começa a trabalhar o corpo e vai se entendendo melhor nos libertando das nossas crenças limitantes”.
Foi durante os estudos artísticos que tanto Estela quanto João passaram a se identificar com o conceito de “corpo intruso”, um corpo dissidente que causa estranhamento ao ocupar os diferentes espaços. Para eles, é por essa invisibilização da não bipedia que frequentemente não são vistos como simplesmente artistas, mas como artistas com deficiência, e assim “somente são lembrados na arte em datas comemorativas ligadas à deficiência, como a Virada Inclusiva, o Dia do Surdo etc.”, pontua Castilho. Para Estela, isso se dá porque “a inclusão é unilateral. Não existe relação de troca, pois não tem autonomia nenhuma do outro lado. Não tem desejo, é um objeto e é mercantilizado. Quem ‘inclui’ gera lucro, se põe bem na fita e isso corrobora para um pensamento da caridade – que é uma construção que alivia o Estado e que as pessoas privilegiadas se sentem garantindo seu espaço no reino dos céus”.

Por isso, como continuidade de sua pesquisa sobre o corpo intruso, a artista cria o manifesto anti-inclusão. “Quando Boaventura de Sousa Santos traz a ideia de que o pensamento ocidental é um pensamento abissal, que cria distinções, ele elucida muito bem a problemática da inclusão; porque existe uma linha que separa o mundo visível – a bipedia, a branquitude, a heterocisnormatividade – e o invisível”, explica. A performer acredita que o mundo em que vivemos – e a arte não está isenta dessa estrutura – se baseia na lógica visível e padrão. “A inclusão faz com que a gente queira cruzar essa fronteira. Só que a lógica que prevalece ainda é a privilegiada, e nós nunca vamos rompê-la se continuarmos pensando que é neste mundo que queremos estar”, explica.

Seja bem-vindo ao corpo intruso

Com hemiparesia (uma paralisia parcial), causada por um AVC aos 24 anos, Estela Lapponi se questionou por muito tempo sobre os significados de deficiência e inclusão, o que a fez transitar do teatro à dança, à dança-inclusiva, e por fim à performance e ao audiovisual. Assim ela se contrapôs à ideia de que deveria interpretar papéis com pouca movimentação, ou de que existiria um lugar específico para si de acordo com a sua “capacidade”. Em seus projetos, põe o corpo intruso em foco, como construtor de narrativas.

Para Rogério Ratão, o capacitismo se mostra claro quando alguns comentários insinuam que ele não cria as esculturas sozinho ou mostram a dificuldade de compreensão de que sua criação escultórica não se baseia no visual. O artista explica que parte do tátil para toda sua construção artística. “Toda a minha pele me dá alguma informação. Meu corpo é meu gabarito. Uso meus dedos e as minhas mãos como unidade de medida e a mim mesmo como modelo anatômico”, conta. E é essa importância do tátil que ele transmite para seus alunos – que enxergam ou não – nos cursos que leciona no MAM-SP.

João Paulo Lima também se viu frente à crença capacitante com os colegas do curso técnico, sendo constantemente questionado sobre sua capacidade de participar de determinadas aulas ou executar certos movimentos. Após iniciar suas criações autorais, ele também parte da ideia de corpo intruso e das relações que esse estabelece com o mundo e com a sociedade, seja em No’Tro Corpo – em que o artista leva sua prótese ao palco e a ressignifica ao encaixá-la de formas incomuns, contrapondo-se à pressão de usá-la -, ou em Devotees – espetáculo no qual mostra o corpo com deficiência como capaz de ser desejado e desejante.

Talvez, o que se esteja propondo nestes diferentes casos seja não mais uma inclusão, mas um outro ponto de partida, que não uma perspectiva bípede. Ou seja, a compreensão de que as identidades dissidentes são também construtoras de narrativas e conhecimentos. Como finaliza Estela: “Um corpo intruso vem pra poder modificar o sistema. Se ele não modifica, permanece intruso; se modifica, deixa de ser. Eu quero que o corpo intruso desapareça”.

Um vasto arquivo público sobre a curadoria no Brasil

Após cerca de quatro meses de isolamento social observando a movimentação nas redes sociais, o curador carioca Raphael Fonseca, 33, deu início a um projeto de fôlego. Estreou, no mês de julho de 2020, a série intitulada “1 curadorx, 1 hora”, com entrevistas gravadas com curadores e curadoras de variadas idades, regiões e áreas de interesse. Ao invés de transmitir ao vivo, Fonseca preparava as entrevistas, realizava a gravação, fazia pequenas edições se achasse necessário e postava o vídeo em seu canal no Youtube – e o áudio em formato de podcast nas plataformas. Oito meses depois, é assim que ele segue fazendo.

O resultado é o impressionante número de quase 120 conversas realizadas, cerca de 70 delas já disponibilizadas e, deste modo, a formação de um vasto arquivo público sobre curadoria de arte. A grandiosidade do projeto, feito sem apoio público ou privado, não estava em mente no início do processo e o que surgiu de modo despretensioso, em parte até para apaziguar certa solidão gerada pela quarentena, agora chega a fazer parte da bibliografia de cursos universitários. Ainda assim, mesmo com conversas densas, “1 curadorx, 1 hora” não deixa de ter um clima de informalidade e uma linguagem coloquial que tornam o conteúdo acessível também ao público não especializado.

Nos diálogos, que perpassam os processos formativos, trajetórias, memórias, experiências profissionais e ideias sobre curadoria, Fonseca parece cumprir mais um papel de repórter, entrevistador, do que de um curador que está ali para debater. “Mas de certa forma isso já tem a ver com o meu trabalho de curador. Para mim o exercício de curadoria é um exercício de pesquisa e de escuta dos artistas. Claro que você também fala, intervém, mas eu principalmente estou ali para aprender sobre arte e sobre as pessoas”, afirma. É de se destacar também a atenção dada a questões bastante pessoais das trajetórias dos entrevistados: “Me interessa muito que a pessoa conte como começou sua relação com a arte. Temos ali desde filhos de artistas ou críticos de arte até pessoas com uma trajetória como a minha, de famílias extremamente periféricas, sem nenhuma relação com a arte. Então esse dado sociológico é muito importante para o projeto”.

O papel de curador é nítido também quando Fonseca precisa selecionar os convidados – desta vez não artistas para uma exposição ou projeto, mas curadores para as conversas. E os nomes são os mais variados possíveis, passando por jovens como Tiago Sant’Ana, Pollyana Quintella, Bernardo Mosqueira, Isabella Rjeille, Hélio Menezes e Paulete Lindacelva até figuras estabelecidas há décadas como Tadeu Chiarelli, Denise Mattar, Fernando Bini, Fernando Cocchiarale, Marília Panitz, Solange Frakas e Marcus Lontra. Estão ali também Marcello Dantas, Ayrson Heraclito, Júlia Rebouças, Kiki Mazzucchelli, Fernanda Pitta, Clarissa Diniz, Naine Terena e muitos outros.

Apesar da diversidade – ou até mesmo para alcançá-la – Fonseca diz ter estabelecido alguns critérios básicos para a seleção. Em primeiro lugar, trazer pessoas que, mesmo que jovens, tenham uma prática regular de curadoria, uma bagagem na área. “Percebo que muitos curadores que atuam há muito tempo não são tão conhecidos para uma geração mais nova. E tem gente que começa a fazer curadoria e se coloca como se estivesse inventando uma coisa totalmente nova. E quando você escuta os relatos dos mais velhos você vê que muito já estava lá, já foi feito”, comenta Fonseca. Para ele, portanto, era importante aprender com as trajetórias destes profissionais e “lançar luz a curadores que atualmente não estão, digamos assim, tão no holofote como pessoas da minha geração”.

Neste sentido, Fonseca comenta que se tornou mais comum, recentemente, “ver uma pessoa que fez curadoria de uma exposição na vida e se proclama curadora”. E ele segue: “Não vejo problema, mas não sei se renderia para essas conversas do projeto.” Na verdade, Fonseca inclusive constata que parece haver uma mudança importante para esta categoria profissional na contemporaneidade: “Acho bacana que as pessoas queiram ser e se dizer curadores. Até porque usualmente é uma profissão que tem um lastro tão elitista que eu acho muito bom uma geração nova, periférica, ver que ser curador é uma possibilidade. Isso é muito empoderador. Mas se a médio e longo prazo elas efetivamente desempenharão esse papel e conseguirão ganhar a vida assim, aí eu já não sei”.

A dificuldade de ser curador no Brasil, justamente, é um dos assuntos recorrentes em boa parte das entrevistas. Fonseca lamenta a falta de um mercado estável para a área, seja no setor público ou privado, diferente do que se vê nos Estados Unidos e em outros países do primeiro mundo. “Existe uma precarização tremenda do equipamento público, e mesmo internamente há uma enorme assimetria geográfica na economia da cultura, com muitas instituições concentradas no sudeste”. Este contexto, explica ele, resulta em algumas características predominantes na trajetória dos profissionais, entre elas o fato de boa parte dos curadores ter também alguma outra profissão. Resulta também que a maioria trabalha basicamente com arte contemporânea e  brasileira – “quem no Brasil paga para que a gente vá fazer uma viagem de pesquisa curatorial no exterior? E como financiar a vinda de um artista de fora para fazer uma exposição aqui?”.

Por fim, com “1 curadorx, 1 hora”, Fonseca também tenta desmistificar a ideia do curador como uma figura poderosa, por vezes autoritária. “Talvez por existir pelo mundo um tanto de pessoas que exercem a curadoria desta maneira, acaba surgindo essa apreensão. Mas, para mim, o curador é só mais um trabalhador da cultura. Especialmente no Brasil, a figura do curador poderoso é quase uma ficção. O que mais tem são profissionais batalhando para pagar suas contas, tendo que negociar o tempo todo com esferas do poder público ou privado, cheios de planos não realizados e vivendo aos trancos e barrancos”. Se o curador no Brasil é um persistente, as duas centenas de entrevistas que Fonseca pretende concluir com seu projeto parecem ser uma prova disso.

“Acontece que somos canibais!”, diz o pop tropicalista de Glauco Rodrigues

"Pau-Brasil", 1974, Glauco Rodrigues. Foto: Jaime Acioli/Cortesia Bergamin & Gomide

A mostra Acontece que Somos Canibais!, de Glauco Rodrigues (1929-2004), tem clima de escola de samba, cheia de cores e alegorias, nascidas sob a influência da arte pop. As pinturas expostas na galeria Bergamin & Gomide são como um gesto de resgate do artista que ficou esquecido por um tempo. Para Lilia Schwarcz, que assina o texto da mostra, isso ocorreu “talvez porque ele não correspondesse ou não se encaixava de maneira óbvia nos cânones do modernismo da época”. Thiago Gomide, proprietário da galeria junto com Antonia Bergamin, lembra que eles expuseram Glauco há quase dois anos na coletiva A Burrice dos Homens (2019), com curadoria de Fernanda Brenner, do Pivô, e que pretendem trabalhar com ele, sem exclusividade.

“Retrato de Henriette Amado”, 1970, Glauco Rodrigues. Foto: Ding Musa/Cortesia Bergamin & Gomide

O universo de Glauco é povoado de personagens díspares, vindos de várias épocas, convivendo simultaneamente no presente, passado e futuro. Tudo aparentemente desconectado, mas realizado genialmente dentro de uma lógica cognitiva com um mundo ora esfuziante, ora apocalíptico. Isso chama a atenção do crítico francês Nicolas Bourriaud, que dedicou uma sala a Glauco na mostra L’Ange de l’Histoire (Anjo da História), em 2013, na École Nationale de Beaux Arts, em Paris. Na ocasião, a revista Art Press publica matéria e coloca a obra de Glauco na capa. Em 2019, Bourriaud volta a expor Glauco na Bienal de Istambul, quando foi curador geral, e quebra o paradigma de que a arte brasileira tem sempre que passar pelo projeto construtivo, dos concretos e neoconcretos.

A exposição paulistana reúne, em sua maioria, obras dos anos 1960 e 1970 feitas no clima da contracultura, guerra do Vietnã e ditadura brasileira. As pinturas são singulares, progressistas e reafirmam o lastro de um artista múltiplo, aparentemente simples, mas conceitualmente sofisticado, que transitou por vários segmentos da arte. Pintor, artista gráfico, gravador, executou figurinos e cenários para teatro, capas de discos e revistas, colocando saberes a serviço de uma revolução pessoal com imagens incluídas cruamente sobre telas de fundo sempre branco, como fragmentos gravitando no espaço. Só começou a pintar a base de seus quadros no final da ditadura militar.

Todas as obras tratam da história do país carnavalizadas dentro de um universo eclético em que mescla desde a imagem de São Sebastião, padroeiro de Bagé, sua cidade natal, e do Rio de Janeiro até garotas de biquíni, natureza tropical, fotos de amigos, Corcovado, índios, cachos de banana e passistas de escola de samba. O ideário de Glauco é profano, mesmo quando retrata Cristo e alguns santos, tudo embalado com as cores da bandeira brasileira que tingem todos os seus quadros. Com isso, ele confirma suas intenções carregadas de críticas ao momento político social da época, como a tela Acontece, Que Somos Canibais! que nomeia a exposição.

Glauco nasce em 1929, em Bagé, Rio Grande do Sul, onde começa na arte como gravador, depois transfere-se para Porto Alegre e se junta aos gravadores Carlos Scliar e Vasco Prado. Em 1958 chega ao Rio e, um ano depois, integra a primeira equipe da revista Senhor (1959-1964), onde trabalha com Jaguar, Paulo Francis, sem deixar sua arte de lado. Com a premiação no IX Salão Nacional de Arte Moderna, viaja para a Europa e participa da Bienal Jovens de Paris, em 1961. Um convite o leva a viver em Roma de 1962 a 1965 e lá participa da Bienal de Veneza de 1964, quando conhece a pop art americana. Vê Robert Rauschenberg receber o Leão de Ouro e sagrar-se quase herói. Afinal, ele foi o primeiro artista norte-americano a receber o grande prêmio na Bienal mais antiga do mundo (1895). A pop art impacta Glauco. Ele volta ao Brasil e começa sua mitologia brasileira, com estética pop futurista misturada a um tropicalismo crítico.

No Rio integra a mostra Opinião 66, no MAM do Rio, ao lado de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Antonio Dias e Carlos Vergara. Cria obras sobre o discutível “milagre brasileiro”, com a tela Nossa Comida Abundando Está! (1977). Denuncia o colonialismo e a exploração dos indígenas em Persona (1974). Faz crítica social por meio da lenda Coati-Purú, integrante da série Visão da Terra: A Lenda de Coati-Purú (1977). Em sua pintura O Derrubador Brasileiro – D’aprés Pedro Américo, Victor Meirelles, Almeida Junior e Pedro Moraes, ele revisita criticamente a obra desses artistas.

A arte de Glauco, teorizada por críticos como Frederico de Morais, Ferreira Gullar e Roberto Pontual ganha novos contornos com Bourriaud. Na entrevista ao cineasta José Teixeira de Brito para o documentário Glauco do Brasil, de 2015 (publicada depois no livro Glauco Rodrigues – Crônicas anacrônicas e sempre atuais do Brasil, de Denise Mattar), ele afirma: “O que fica evidente na obra de Rodrigues é que ele recupera fragmentos da história, restos de imagens que provêm de tempos e lugares heterogêneos. Desse ponto de vista ele é muito contemporâneo. A partir de um pequeno fragmento, reconstituir o edifício destruído é uma característica da arte atual que Glauco Rodrigues antecipou”, conclui Bourriaud.

Colaboradores da edição #54

Alexia Tala é curadora e crítica  de arte especializada em América Latina. Foi responsável por diversas mostras e bienais na região, é autora de uma série de artigos e atualmente é curadora chefe da Bienal de Arte Paiz – Guatemala e diretora artística da Plataforma Atacama, no Chile.


Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.


Miguel Groisman é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Cinema pela FAAP. Já escreveu sobre cinema e fotografia para a Revista Esquinas e foi pesquisador discente sob orientação de Simonetta Persichetti. Atualmente é repórter da arte!brasileiros.


Pollyana Quintella é curadora, professora e pesquisadora. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e doutoranda pela mesma instituição. Colaborou com pesquisa e curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR) e escreve para diversas publicações Foi curadora adjunta da mostra FARSA – Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal, no Sesc Pompeia.


Tadeu Chiarelli é curador e crítico de arte. É professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Também já atuou como curador-chefe do


Fotos: arquivo pessoal

Mapeando os papéis da subversão

impressos de propaganda comunista. Foto: Reprodução

Em um curioso paradoxo, os arquivos policiais reunidos pelo Departamento Estadual da Ordem Política e Social de São Paulo (Deops) com o intuito de reprimir e perseguir qualquer pessoa, movimento ou partido que se opusesse à ideologia dominante acabaram tornando-se um rico manancial de informações para um alentado estudo exatamente sobre as críticas que queria silenciar. Foi a partir dos dados reunidos ao longo de décadas pelas forças de espionagem e repressão que a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro estruturou sua pesquisa Impressos Subversivos: Arte, Cultura e Política no Brasil 1924-1964, que procura mapear o trabalho cuidadoso, dedicado e muitas vezes anônimo de dezenas de artistas, artesãos e militantes, que lançaram mão das artes gráficas para denunciar desmandos e desigualdades, demonstrando uma tenaz resistência e desejo de transformação política e social. “Além de arquivarem os impressos subversivos, também preservaram, por ironia do destino, a memória da intolerância”, sintetiza a autora.

Impressos de propaganda comunista com legenda do Gabinete de Investigações do Deops. Foto: Reprodução

No livro, lançado este ano pela editora Intermeios, a pesquisadora analisa um amplo acervo documental, que veio garimpando ao longo de diversas pesquisas realizadas junto aos arquivos do Fundo Deops, liberado para consulta desde 1995 e revisitado por ela em diferentes ocasiões. Cópias dessas gravuras, panfletos, publicações e outros itens que pertencem ao universo dos impressos estavam guardados em uma gaveta de seu escritório, à espera de uma ocasião para um estudo mais aprofundado, momento trazido pela epidemia e o obrigatório recolhimento doméstico. Também contribuiu para a urgência em revisitar esse vasto acervo a sensação de que vivemos um momento no qual várias das situações denunciadas pelos artistas e artesãos parecem estar se repetindo e agudizando. “É uma provocação que eu faço. Convido o leitor a se indignar com o que estamos vivendo, cobro uma posição, nestes tempos de total anormalidade, contra todas as formas de violência perpetradas por um governo tão insensível”, explica.

Afinal, resistência, crítica e desejo de mudança parecem ser o ponto em comum entre uma produção tão diversificada como os impressos estudados por Tucci Carneiro. Se nos restringirmos a analisar apenas publicações que envolvam imagens – que constituem uma ampla parte, mas não exclusiva, do corpo de estudo, que apresenta também uma produção textual, de mais fácil circulação e disseminação –, a pesquisa da historiadora se subdivide em dois grandes grupos de autores: de um lado, estão aqueles que tiveram formação artística, pertenciam à classe burguesa, transitavam pelos círculos intelectuais ou eram reconhecidos como figuras importantes das artes e da política brasileira.

Também fazem parte desse primeiro grupo de artistas profissionais um leque amplo de exilados políticos, com destaque para os refugiados das perseguições nazistas que assolavam a Europa, sobretudo no período que antecede e durante a Segunda Guerra Mundial e que são tema de grande importância na trajetória da pesquisadora. Em seu livro, Tucci Carneiro faz um amplo levantamento desses artistas, apresenta sintéticas biografias, sempre procurando traçar as relações entre as poéticas em sintonia com as pesquisas de vanguarda no campo da arte e o ideário político que conduz tais ações.

Mas talvez a contribuição singular desse estudo seja o esforço feito em dar um lugar a um segundo grupo, os autores anônimos, provenientes das classes trabalhadoras, muitos deles operários, artesãos, sem formação artística ou, em alguns casos, tendo uma base formal adquirida nos Liceus de Arte e Ofícios do Rio e de São Paulo. São aqueles que Mário de Andrade chamou de “artistas proletários”, de origem humilde, filhos de imigrantes. “Permaneceram à margem dos principais movimentos culturais e artísticos da história da arte moderna, sem dispor de um ateliê e sem frequentar os circuitos dos vanguardistas de protesto”, explica Tucci Carneiro. Apesar da clandestinidade, essencial para aqueles que não dispunham de nenhum tipo de proteção, e da grande dispersão desse material (naturalmente, a imensa maioria dos impressos de protesto produzidos no Brasil foi esquecida ou perdida), a historiadora conseguiu reunir alguns vestígios capazes de identificar alguns autores dessa militância. Há, por exemplo, Moyses Kalinas, romeno, pintor e funcionário da fábrica de papel Klabin, que chegou a ter portaria de expulsão editada, mas que até 1948 permanecia no país. Outros nomes, como Angelo de las Heras, J. B. Pelayo, J. Matheus, Otávio Falcão e Novac foram identificados. Apesar das informações rarefeitas, seu reconhecimento é uma forma de – como diz Tucci Carneiro – “dar um lugar, um espaço de memória para eles”.

Definindo-se como “historiadora das ideias políticas”, Tucci Carneiro procurou sobrepor no livro diferentes camadas de interpretação. Propõe reflexões sobre o caráter altamente repressivo de uma ditadura como a de Getúlio Vargas, que se apropria da estética vanguardista, mas adota uma estratégia sistemática de perseguição contra comunistas, anarquistas, socialistas, estrangeiros e judeus. Mas as articula com um olhar atento às estratégias artísticas e políticas adotadas no período, na tentativa de transformar a arte e a sociedade, lançando mão de referências expressionistas e debruçando-se sobre dramas humanos como tema preferencial. “O discurso do Estado ordenador assumiu, através da propaganda e da repressão policial, um tom acusatório (maniqueísta) ao apontar os grupos de esquerda como inimigos da nação brasileira”, escreve ela, demonstrando como repressão e propaganda anticomunista eram face da mesma moeda. Isso torna-se evidente, por exemplo, com a constatação de que pouca ou nenhuma ação inibidora foi lançada contra os movimentos de extrema-direita.

Em contrapartida, figuras de proa como Lasar Segall – tachado como “artista judeu, produtor de arte degenerada” pelo serviço secreto da Policia Política – ou Tarsila do Amaral eram constantemente vigiados. Há um saboroso trecho no livro que reproduz os comentários de um agente infiltrado no Clube dos Artistas Modernos (CAM) após assistir uma palestra da pintora: “Incontestavelmente, Sra. Tarsila do Amaral é a maior e mais arrojada comunista dentre todas as comunistas nacionais. É a maior porque impressiona e quase converte todos que a ouvem. É também a mais arrojada, porquanto os seus parceiros procuram sempre arrabaldes e lugares ocultos para pregarem o comunismo, ao tempo que ela se serve de salões nobres onde, sem rodeios, ensina teórica e praticamente a doutrina vermelha”.

Infinito Vão: uma abordagem singular sobre a história da arquitetura brasileira

FAU-USP, 1961, Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi. Foto: Leonardo Finotti/Acervo Casa da Arquitectura de Portugal

Infinito Vão: 90 anos de Arquitetura Brasileira, no Sesc 24 de Maio, subverte qualquer conceito de exposição do gênero. Cênica, sem ser teatral, tem narrativa centrada na hibridação de várias poéticas, como música, artes plásticas, literatura e vídeo, e deixa o visitante pluralizar esse encontro durante toda sua travessia.

Com curadoria de Guilherme Wisnik e Fernando Serapião, a mostra já foi exposta em 2019 na Casa da Arquitetura de Portugal e reúne projetos de 96 arquitetos. O arranjo temporal abarca desde os anos 1920, marcados pela Semana de Arte Moderna de 1922, até os dias atuais, com projetos de nomes já esperados como Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Lucio Costa e Lina Bo Bardi, que se somam a outros menos conhecidos para juntos contarem uma história de nove décadas.

Visitar a mostra não é um convite, mas uma recomendação de Guilherme Wisnik, “porque ela dialoga com a nossa realidade”. Uma dose emotiva embala Infinito Vão pelo momento de obscurantismo sociopolítico e cultural que vivemos. A exposição prova que a arquitetura pode representar muito mais do que ela mesma. Na abertura da mostra, Paulo Mendes da Rocha diz que “a arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.

O título, Infinito Vão, vem dos versos de Drão (1982), música de Gilberto Gil: “O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura”. Na linguagem dos arquitetos curadores, “vão é algo que se vence, um desafio a superar, é reduzir a quantidade de apoios, expandir as lajes horizontalmente, lançar-se no vazio aéreo abrindo uma imensa luz ao rés-do-chão. Na língua portuguesa é algo que não deu certo, foi feito em vão”.

Logo na entrada da exposição, sons de vídeos curtos com imagens de diferentes décadas dão o tom. Além da seleção de projetos escolhidos, músicas de Caetano, Gil, Arnaldo Antunes e Racionais MC’s se misturam com obras de artistas plásticos como Claudio Tozzi, Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Paulo Bruscky e com os textos breves de Leminski, Rem Koolhaas, Álvaro Siza, Mário Pedrosa… Todos juntos estimulam a percepção e aumentam o prazer da visita.

Nelson Leirner na exposição Infinito Vão, no Sesc 24 de Maio. Foto: Vitor Penteado/Acervo Sesc

A chave de Infinito Vão são as músicas que abrem e contextualizam cada um dos seis núcleos em que a mostra está dividida, além dos projetos arquitetônicos que representam cada um deles. Do Guarani ao Guaraná (1924-1943) parte da marchinha carnavalesca de Lamartine Babo, História do Brasil, com a pergunta que anima gerações: “Quem foi que inventou o Brasil?…”. Neste período, o país, como observa Wisnik, “salta do romantismo indígena e da escravatura para a cultura industrial e urbana”. Foi o momento da Semana de Arte Moderna e do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, preocupados com a construção da estética que incluía as raízes do Brasil. Destacam-se na mostra a primeira casa modernista do Brasil, de Gregori Warchavchik em São Paulo, marco inicial da exposição, passando pelo Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, até chegar ao conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.

A Base é uma Só (1943-1957) nasce da música Samba de uma Nota Só, de João Gilberto, que marca a criação da bossa nova, movimento carioca que colocou a música brasileira num patamar internacional. O período escolhido pelos curadores vai da Pampulha ao concurso para o plano piloto de Brasília e às novas cidades projetadas no Amapá e no Mato Grosso, que abrem o caminho para Brasília.

No núcleo Contra os Chapadões Meu Nariz (1957-1969), os arquitetos se inspiram no verso da Tropicália, música de Caetano Veloso feita em um momento de desbunde da música brasileira influenciada pela contracultura. Rubens Gerchman cria a A Bela Lindoneia (versão porta-retrato), de 1967. Na arquitetura surgem os primeiros esboços de Niemeyer antes do lançamento do concurso nacional para o plano piloto da Brasília. Em texto de 1970, e presente na mostra, Clarice Lispector diz que “Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado”.
A mostra se ilumina no núcleo Eu Vi um Brasil na TV (1969-1985), com a trilha de Bye Bye Brasil, de Chico Buarque e Roberto Menescal. Marca o período da cassação dos arquitetos Artigas e Paulo Mendes da Rocha e de outros intelectuais que são exilados. As favelas se multiplicam em São Paulo e numa outra ponta social Lina Bo Bardi transforma uma fábrica de tambores no atual Sesc Pompeia e Eurico Prado Lopes e Luiz Telles projetam o Centro Cultural São Paulo, ambos espaços lúdicos, de cultura e convivência. Claudio Tozzi, um dos artistas que melhor retratou o período da repressão, pinta uma de suas obras emblemáticas, Multidão (1968).

Maquete da Praça das Artes, projeto do escritório Brasil Arquitetura construído no centro de São Paulo. Foto: Karin Yuri

O núcleo Inteiro e Não pela Metade (1985-2001) parte da música Comida, dos Titãs. “A gente não quer só comida…”, quando o rock brasileiro lança bandas por todo o país. Na arquitetura, em contraponto aos conjuntos habitacionais construídos pela ditadura, aparecem o programa Favela Bairro no Rio e, em São Paulo, as organizações cooperativas. Nas artes, dois artistas multimidias cujas obras pertencem ao Acervo Sesc de Arte Brasileira se destacam: Nelson Leirner, com Obra Sem Título da Série Sotheby’s (1999), e Paulo Bruscky, com Poema Linguístico (1992).

Fecha a exposição Sentimento na Sola do Pé (2001-2018), nome tirado do verso de um rap dos Racionais MC’s, que fala do cotidiano violento das grandes cidades. É quando surgem também os CEUs – Centros Educacionais Unificados, criados pela prefeitura de São Paulo, no governo de Marta Suplicy. Um vídeo traz cenas do cotidiano desigual que invade as cidades brasileiras e nos faz voltar ao sábio comentário de Paulo Mendes da Rocha ao abrir essa exposição: “A arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.

Parque Novo Santo Amaro, 2009, Vigliecca e Associados. Foto: Leonardo Finotti/Acervo Casa da Arquitectura de Portugal