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Nunca como agora: as pinturas recentes de No Martins

No Martins
Sem título, 2021, da série "Encontros políticos"; tinta acrílica sobre tela, 200 x 180 cm. Foto: Cortesia do artista
No Martins
Sem título, 2021, da série “Encontros políticos”; tinta acrílica sobre tela, 200 x 180 cm. Foto: Cortesia do artista

Como já é possível constatar, a história recente daquela parcela da arte brasileira que convencionamos denominar contemporânea será marcada pela emergência de uma produção artística periférica, antes negligenciada, que apesar da sua atual eminência permanece acossada por múltiplas adversidades.

Esse fenômeno, de caráter global, reflete uma sensibilidade que se quer decolonizada, multicultural e policêntrica, referindo-se não apenas às populações da diáspora afro-atlântica e os povos originários, mas a todo conjunto de corpos divergentes submetidos ao epistemicídio e ao etnocídio impostos aos excluídos – como consequência da experiência, contestada, mas até aqui hegemônica, da heteronormatividade branca, que na defesa de seus privilégios cria e põe em prática a necropolítica que promove a desvalorização de toda uma produção intelectual e simbólica.

Quando efetivas, algumas estratégias organizadas por esses segmentos da sociedade instigam as instituições culturais, incluídos os meios de comunicação e a imprensa, a reverem suas políticas de exibição e aquisição de obras de arte – o que tem criado uma inédita circulação das produções realizadas a partir dessas margens.

Atento a esse fenômeno, bastante complexo, o sistema de arte através de suas múltiplas instituições têm (às vezes de maneira reticente) procurado adequar seus repertórios semânticos e seus acervos, tornando-os mais permeáveis ao diferente e, portanto, mais plurais. Num cenário social injusto caracterizado pelo racismo e desigualdade de gêneros, essa mudança de atitude é louvável e necessária, ainda que as iniciativas adotadas sejam insuficientes para coibir o déficit de representatividade negra, indígena e feminina geralmente presente aos acervos.

No Martins
Sem título, 2021, da série “Encontros políticos”; tinta acrílica sobre tela, 280 x 200 cm. Foto: Cortesia do artista

No entanto, não é difícil observar que nem todas as produções pressurosamente prospectadas e rapidamente exibidas têm um grau equivalente de qualidade. Um número não desprezível dessas produções sugerem pesquisas pobres e apressadamente desenvolvidas, mal alinhavadas no escasso tempo de suas vivências acadêmicas ou não. As dificuldades para desenvolvimento e exercício da crítica e historiografia de arte afro-brasileira também contribui para a promoção imatura de artistas ainda em formação. Como consequência existe a chance de um contingente desses artistas terem suas trajetórias olvidadas em curto espaço de tempo. O risco da impermanência dessas trajetórias artísticas pode implicar num reforço do sistema de apagamento de memórias e histórias vitimando justamente as populações excluídas que são celebradas nessas produções.

É também por isso que o projeto artístico desenvolvido pelo artista No Martins reveste-se de importância que nada tem de ordinária. Em visita recente ao ateliê do artista no bairro de Barra Funda em São Paulo, constatamos a correção do excelente juízo que a artista e professora Rosana Paulino faz dele. Artista de quem, a propósito, Martins também foi aluno. O imodesto galpão que o artista ocupa com exclusividade está localizado no tradicional bairro paulistano, de acordo com escala de algumas das suas pinturas que mesmo variando no tamanho aspiram, por vezes, ao monumental. Esta opção pela escala gigante está plenamente justificada na ambição política que as obras, velada ou explicitamente, expressam.

No Martins
Sem título, 2021, da série “Encontros políticos”; tinta acrílica sobre tela, 300 x 200 cm. Foto: Cortesia do artista

Já que nunca como agora o Estado brasileiro é omisso na proposição e execução de políticas de promoção, aquisição e manutenção de acervos de obras de arte, notadamente daqueles de extração afro-brasileira e indígena, e que o mecenato entre nós é quase uma extravagância, é justo imaginar que, salvo exceções, o destino de obras com essas características são coleções privadas que pouco fazem (porque também não são estimuladas a isso) para promover a exibição pública delas – para prejuízo principalmente daqueles que foram o motivo e o assunto da sua execução. Afinal, qual é, entre nós, o destino social de pinturas que chegam a medir dois, três, quatro metros lineares ou mais? Pode parecer contraditório que artistas engajados como No Martins se lancem nesse tipo de empreitada, mas dominando os meios expressivos que elegeu para a construção de suas narrativas, Martins entende a dimensão social e possivelmente histórica que seu trabalho pode adquirir. Nisso há um paralelo com o projeto do precocemente morto Sidney Amaral (1973-2017), com quem ele chegou a corresponder-se.

Na série designada Encontros políticos – que ganha exposição na galeria Mariane Ibrahim, em Paris, entre 21 de outubro e 27 de novembro – o artista apresentam-nos retratos de mulheres e homens negros que esboçam não apenas uma ficção sobre o futuro desejado para esse grupo social. Nessas obras ele projeta utopias que o próprio Martins vem tornando em realidade. Nessas recentes pinturas os personagens são retratados através de composições solidamente organizadas e cristalinas, composições que privilegiam os personagens constituídos a partir de desenho virtuoso e estabelecidos em arquiteturas de campos de cores brilhantes, mas nunca opressivas ou feéricas.

Sem título, 2021, da série “Encontros políticos”; tinta acrílica sobre tela, 200 x 300 cm. Foto: Cortesia do artista

Esses personagens virtuosamente construídos são dispostos em situações onde relações pautadas pelo afeto acontecem em ambientes nada disfuncionais, ambientes que não exprimem carência material e são no mínimo confortáveis, quando não francamente luxuosos. Essas ambiências tem conotação política, contrariam as narrativas onde a carência e a violência estão imediatamente associadas ao cotidiano dos negros. Nessas pinturas o indivíduo, ou os indivíduos apresentados, empoderam não a si mesmos: os sinais externos de poder ostentados por eles são resultado de uma luta mais geral e de todos. O cineasta Spike Lee, em entrevista à revista Rolling Stone, afirmou: “(…) eu estou apenas tentando obter o poder para conseguir fazer o que tenho que fazer. Para conseguir este poder, você precisa acumular um tanto de dinheiro na sua conta. E é isso que eu tenho feito. Sempre pensei de modo empreendedor. Patrimônio é o que é preciso entre os afro-americanos. Patrimônio. Ter coisas”. Para superar o capitalismo é preciso alcançá-lo. Nas superfícies lisas e brilhantes das telas de No Martins os personagens negros apresentados “têm coisas”, mas não apenas isso, eles têm “valores”, e são os valores que os consagram e os elevam, são os valores que os fazem aspirar pelo poder.

Os negros são ensinados a se odiarem. O negro sendo espelho dele mesmo foi levado pela métrica do racismo a crer que aquilo que ele vê refletido no espelho é feio e precário. Martins, nessas pinturas, propõe que o encontro entre negros será sempre um ato político e tanto mais será se a afetividade for o componente mediador desses encontros. A arte em geral e a pintura em particular ainda são, num certo sentido, uma projeção de poder. Isso fica mais evidente na pintura monumento que nos séculos 18 e 19 consagrou os protagonistas e os feitos da aristocracia e burguesia do norte ocidental. Entre os excluídos, nunca como hoje um projeto estético e ético similar a esse tem a chance de se efetivar e dar, por exemplo, nova significação aos esforços do cintilante e fugaz Jean-Michel Basquiat. Mas, entre nós, nunca como hoje artistas como No Martins podem se referir e confessar influências dos seus contemporâneos e daqueles que imediatamente os precederam, oportunidade que corre paralela à luta social promovida fora e dentro dos ateliês, das academias e das galerias. O resultado desse empenho esta espelhado nas produções de artistas como Arjan Martins, Aline Motta, Sidney Amaral, Rosana Paulino e outros que reinventam cotidianamente a representação do negro nas artes, investigando sua história para compreender o presente e também por essas produções que, em dialogo com aquelas, preveem o futuro a ser arrebatado a partir do presente – como parece ser o caso de No Martins.

“Bienal da esperança” romantiza catástrofes

Faz escuro mas eu canto
"Boca do Inferno", de Carmela Gross, com o meteoro do Museu Nacional à frente. Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Faz escuro mas eu canto, a 34ª Bienal de São Paulo é, sem dúvida, uma “Bienal da Esperança”, como prometeu a direção da instituição. Muitas são as obras que buscam apontar para um caráter de superação, de transformação pelo sofrimento, como em um dos primeiros conjuntos da mostra, um display que exibe uma rocha queimada junto com todo o edifício do Museu Nacional, em 2018, e que, por conta do calor, passou de ametista, uma variedade de quartzo de cor violeta, para citrino, de cor amarelada. “Continua sendo a mesma rocha porque soube transformar-se”, explica didaticamente o texto próximo à vitrine.

Essa visão de uma resistência, que já está afinal no péssimo título da Bienal, um trecho do poema de Thiago de Mello, de 1965, quando se associar o negro a algo negativo não era uma liberdade poética em questão como se atenta hoje, acaba reforçando ao final uma visão de meritocracia: “Porque soube transformar-se”. Ora, e todos os demais tesouros que viraram pó porque não eram rochas?

Assim, o que se percebe logo de início é que se trata de uma mostra sobre uma capacidade de resistência baseada mais em ações individualistas do que coletivas, em atos isolados do que comunitários.

Outros exemplos na mesma linha são os instigantes retratos de Frederick Douglass (1818 1895), abolicionista negro estadunidense, e principalmente do “Almirante Negro”, líder da Revolta da Chibata, João Candido (1880-1969). Preso em 1910, na masmorra da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, ele participa da “Bienal da Esperança” com dois bordados lá realizados, enquanto 16 companheiros de cela morreram asfixiados. Solto dois anos depois, foi expulso da Marinha e teve uma vida de privações. Romantizar esses bordados chega a ser perverso.

Nessa altura, é incontornável a questão de o que levou o time de curadores, composto por Jacopo Crivelli Visconti (geral), Paulo Miyada (adjunto) e os convidados Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi e Ruth Estévez a selecionarem exemplos de ações de resistência em tempos longínquos, quando se está diante da maior crise sanitária dos últimos 100 anos, que abalou a atividade artística de forma catastrófica, combinada à crise política sem precedentes no Brasil, que praticamente inviabilizou as leis de apoio à cultura. Vive-se a política da terra arrasada cultural, mas a bienal canta.

Faz escuro mas eu canto
Retratos de Frederick Douglass na Bienal. Foto: Hélio Campos Mello

Praticamente não há referência ao presente, sendo que, prevista para ser realizada no ano passado, a exposição agora em cartaz ignora as urgências de quem resiste de fato. Talvez esteja na própria boa vontade em querer dar algum tipo de esperança que a mostra se afunda em uma fuga do presente. O escritor francês André Gide (1869-1951) já defendia que “não se faz boa literatura com boas intenções nem com bons sentimentos”. O mesmo para uma bienal, é obvio.

Há mais ambiente de Bienal na mostra Dizer Não, organizada pelo Ateliê 397, em seu novo espaço na Barra Funda, do que no Parque Ibirapuera. Lá há obras contundentes, como a instalação Serpente, de João Loureiro, que abriga uma jiboia escondida no ambiente.

Presença indígena

Apesar de demasiadamente higienizada, o que inclui também a arquitetura, mesmo que inovadora nos materiais e transparências, Faz escuro mas eu canto tem uma presença histórica de artistas indígenas: Daiara Tukano, Sueli Maxakali, Jaider Esbell, Uyra e Gustavo Caboco. Não se trata, contudo, de uma pesquisa com novas descobertas, afinal todos desse grupo já estão inseridos no circuito de arte contemporânea, tendo participado de mostras na Pinacoteca do Estado – Véxoa – nós sabemos, organizada por Naine Terena, em 2020, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e até no Centro Cultural Banco do Brasil, quando da exposição Vaivém, em 2019. Sem dúvida é uma presença merecidamente conquistada, que algum dia precisa também chegar à curadoria, uma questão difícil na instituição, que segue com sub-representação na presença de mulheres e sem nenhuma representatividade negra na direção geral da mostra, no que Veneza e Kassel, com quem a Bienal de São Paulo gosta de se comparar, já estão muito mais avançadas.

A 34ª Bienal traz ainda conjuntos significativos de artistas estelares no circuito, como Antonio Dias (1944-2018), Lygia Pape (1927-2004), Lasar Segall (1889-1957) e Eleonore Koch (1926-2018). São grupos de obras sempre agradáveis de se ver, mas que parecem mais estandes especiais de feiras de arte. Koch ainda sai perdendo porque está sendo exposta em lugares de passagem, um trabalho poético que merecia estar em uma escala menor.

Mas sim, há algumas poucas obras que pensam o presente, e uma das mais contundentes
é Derrubada, de Clara Ianni, que simplesmente deixa no chão todos os mastros de bandeiras, que estão na área externa do pavilhão e que costumam celebrar a internacionalidade do evento. Derrubada é das poucas obras que apontam para o lugar de pária que o Brasil se tornou no mundo, sem diálogo possível no cenário internacional, mesmo que no catálogo isso seja visto apenas como um comentário do fim das “representações nacionais” na mostra.

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A imagem que pretendia mudar a percepção do mundo

torres gêmeas
“Tributo em luzes” em Nova York, no 20° aniversário dos ataques às Torres Gêmeas. Foto: Michael Appleton / Mayoral Photography Office, disponível em Fotos Públicas

O 11 de setembro, data que ficou conhecida e reconhecida como o dia do atentado terrorista aos Estados Unidos, é imortalizado na imagem do ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York.

Na efeméride dos 20 anos do atentado, as mesmas imagens aparecem e, repetidas, nos lembram o horror do que assistimos ao vivo, não pelas redes sociais – que ainda não existiam – mas pela repetição dos aviões que atingiam as Torres Gêmeas. Incrédulos precisávamos de texto que desse sentido ao que estávamos assistindo. Nas últimas semanas, as redes sociais nos bombardearam (desculpem o trocadilho) perguntando:
“Onde nós estávamos no dia 11 de setembro?”. Eu sei onde estava. Mas por que é tão necessário recordar este momento? Pela força de uma imagem, que nem é a melhor ou mais significativa, mas que foi escolhida para relembrar o espanto do inesperado. O que importa é que ela ficou como a marca da transformação social, a mudança do contexto histórico. Uma mudança que teve consequências que pagamos até hoje (Guerra do Iraque, Afeganistão etc.).

Muitos pensadores da contemporaneidade, Jean Baudrillard (1929-2007), por exemplo, decretaram o 11 de setembro de 2001 como a entrada no século 21 e, pela dramaticidade das imagens, uma nova era de representação imagética. As imagens não seriam mais as mesmas. Não seguiriam mais o impacto da realidade tão caro ao século passado, mas se voltariam para a sugestão da encenação que aos poucos se inseriu no século 21. Entramos, talvez, na era das imagens. Um ataque midiático montado como um verdadeiro espetáculo. A notícia não era procurada, chegava até nós. Assistimos ao vivo (quem tinha idade em 2001) o que a filósofa francesa, Marie-José Mondzain, escreveu em seu livro A imagem pode matar?: “O inimigo tinha organizado um espetáculo aterrador. Num certo sentido, ao massacrar tantos homens, ao abater as torres, [nos apresentava] o primeiro espetáculo histórico da morte da imagem na imagem da morte”. Mas será que a imagem tem este poder? Afinal, a imagem, a fotografia é uma representação, cheia de símbolos e códigos a serem desvendados, é verdade, mas sua recepção é muito mais decisiva. “As  fotografias continuam sendo interpretadas muito depois de realizadas”, lembra Boris Kossoy. A cada nova visualidade ela se altera diante dos nossos olhos permitindo sempre novas e inúmeras interpretações. A imagem-símbolo do atentado não afirma nem nega nada. É o registro de um cenário montado. Alguns jornais na época chegaram a afirmar que o tempo entre o choque dos aviões tinha sido inspirado pelos filmes de Hollywood: “Eis a imagem no banco dos réus”, relata Marie-José. Uma forma de, como diz o senso comum, matarmos o mensageiro e não a causa do atentado.

torres gêmeas
Voo 175 colide contra a torre sul do WTC em 11 de setembro de 2001. Foto: Robert J. Fisch / Wikimedia Commons

Mas não podemos negar que, no mundo “ocidental”, séculos e séculos de idolatria nos levaram a uma alienação visual. Aceitamos a imagem, não a questionamos. Nos esquecemos de que não existem olhares inocentes, mas intencionalidades por trás de quem produz ou seleciona uma fotografia e a elege como a única e possível representação de um fato. Sua repetição nos leva a crer que existe uma única forma de ver. Hoje julgamos e somos julgados pelas imagens.

Na efeméride, luzes tomaram o lugar das Torres Gêmeas, mais uma imagem dramática que nos rememora a original indelével. Talvez agora seja o momento – ou já tenha passado – de começar a decodificar as imagens, esquecendo a descrição iconográfica e atendendo mais à iconologia, o significado não tão evidente da imagem.

Como nos lembra pesquisadora de imagem francesa, Martine Joly (1943-2016), “uma imagem pode ser tudo e seu contrário – visual e imaterial, fabricada e natural, real e virtual, móvel e imóvel, sagrada e profana, antiga e contemporânea, vinculada à vida e à morte, analógica, comparativa, convencional, expressiva, comunicativa, construtora, destrutiva, benéfica e ameaçadora”.

Sua recepção necessita de códigos de interpretação, códigos estes  que se alargam ou se estreitam com o passar do tempo. A imagem que se ressignifica por conta de um olhar que só existe porque um sujeito decidiu mirá-la. Como nos lembra Kossoy, “ao longo de sua trajetória, a sua significação muda, oscilando de significados de acordo com a ideologia de cada momento e a mentalidade de seus usuários”.

Passados 20 anos, a fotografia que pretendia mudar a percepção do mundo continua lá, estática e em silêncio. Só lembrada quando alguém a tira da gaveta e a repropõe diante de nossos olhos.

Alfredo Jaar: sobre a política das imagens

"Geografia = Guerra", de Alfredo Jaar, no Sesc Pompeia. Foto: Patricia Rousseaux

Quando, no final dos anos 1980, o artista chileno Alfredo Jaar soube que na pequena cidade de Koko, na Nigéria, 3.500 toneladas de lixo industrial produzido na Itália haviam sido despejadas em barris enferrujados, contaminando a região e seus moradores, ele imediatamente voou para a África e registrou a cena.

Os custos da viagem foram bancados pela organização da mostra Magiciens de la Terre (mágicos da Terra), realizada no Centre Pompidou, em 1989, pelo curador Jean-Hubert Martin, considerada uma das primeiras exposições a rever a centralidade da produção ocidental na arte contemporânea. De fato, foi lá que Cildo Meireles despontou para sua carreira internacional com a instalação Missão/Missões, uma provocação à presença dos jesuítas no Brasil.

Outra obra icônica da mostra de 1989, Geografia = Guerra, esta de Jaar, é vista agora em uma nova versão, bem mais ampla, na retrospectiva Lamento das imagens, em cartaz no Sesc Pompeia até 5 de dezembro. “Nesse trabalho eu abordo a relação desigual entre mundo desenvolvido e subdesenvolvido, como o que ocorre com as vacinas agora”, conta Jaar à arte!brasileiros durante a montagem da exposição.

O artista chileno é reconhecido por ser um dos mais perspicazes e precisos pensadores das relações de poder no mundo através das imagens. “Não sou fotógrafo, o que me interessa é a política das imagens”, conta Jaar. Assim, ao invés de espetacularizar as fotos que trouxe da Nigéria, ele as projeta em uma centena de barris, que simulam onde estava o lixo tóxico. Nunca é possível, no entanto, se ver a imagem por completo, como a indicar que, como aquelas pessoas retratadas e seus familiares tiveram suas vidas mutiladas, é preciso uma correspondência ética entre o que se vê e o que ocorreu. Não há indiferença na obra de Jaar, afirma Moacir dos Anjos, curador da mostra, que aponta no trabalho do chileno “um empenho que requer atar estética e ética coesamente, recusando qualquer separação estanque entre essas duas instâncias norteadoras de entendimento e de atuação humanas”.

Você não tira uma fotografia, você faz uma fotografia
“Você não tira uma fotografia, você faz uma fotografia”, Alfredo Jaar. Foto: Renato Parada / Cortesia Sesc Pompeia

Apesar de ter nas imagens o centro de sua reflexão, algumas obras da exposição são textos, que por seu lado remetem às imagens. É o caso do cartaz VOCÊ NÃO TIRA UMA FOTOGRAFIA. VOCÊ FAZ UMA FOTOGRAFIA, frase atribuída ao fotógrafo estadunidense Ansel Adams (1902–1984). Aqui se percebe o caráter filosófico de Jaar, primeiro pelo aspecto reflexivo: quem visita a exposição é convidado a perceber como uma imagem é mais uma construção do que um ato documental. Depois, pelo aspecto democrático, ao partilhar sua obra, já que é permitido o cartaz.

Além do cartaz, aliás, também está disponível ao público o postal Um milhão de pontos de luz, uma foto feita do oceano Atlântico em Luanda (Angola), na direção do Brasil, de onde saiu grande parte dos escravizados que para cá foram trazidos, uma estimativa que alcança 3,5 milhões de pessoas. A imagem, no entanto, é quase abstrata, pois o que se vê é apenas o reflexo do sol no mar, mas que se distribui em pontos luminosos que evocam a violência que a travessia no Atlântico representa.

Koen Wessing
Sequência de fotografias do holandês Koen Wessing, feitas durante a ditadura na Nicarágua, parte da instalação “Sombras”, de Alfredo Jaar. Fotos: © Koen Wessing / Nederlands Fotomuseum, Roterdã, Holanda

Este é outro exemplo do tratamento que Jaar dá às imagens. A fotografia do postal está projetada em larga escala na mostra, mas quem apenas observa a imagem não percebe de imediato seu caráter político, sendo preciso ler o texto no postal para compreender a contundência da foto. “Somos analfabetos visuais”, constata o artista. Por isso, parte de seu trabalho está em provocar um estranhamento que tire o visitante da zona de conforto. Afinal, mesmo com a produção de três bilhões de imagens por dia, como diz Jaar, “ninguém ensina a ver”.

A mostra no Sesc Pompeia, local escolhido pelo próprio artista após visitar outros lugares, ocupa o espaço de maneira exemplar. “Sou arquiteto por formação, então sempre respondo ao contexto e tudo aqui está na escala do espaço”, conta o artista.

Para a exposição no Sesc, ele também criou um novo trabalho, novamente um texto, o neon roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, o famoso trecho do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, publicado na Revista de Antropofagia, em 1928. “Na confusão em que vivemos, é preciso novos modos de pensar o mundo”, afirma Jaar.

Essa confusão se reflete na famosa frase do pensador e político Antonio Gramsci (1891–1937): “Nesse claro-escuro, surgem os monstros”, escrita em 1930, durante o tempo em que esteve preso na Itália, entre 1927 e 1937 – um período de grandes conflitos, especialmente pela ascensão do fascismo, um momento politicamente muito semelhante ao atual. Os cartazes desta frase estão disponíveis na Bienal de São Paulo, nas cores da bandeira brasileira, o que está longe de ser uma coincidência. Afinal, como explica o artista, “as imagens não são inocentes”.

Colaboradores da edição #56

Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude e Viver até o fim o que me cabe! – Sidney Amaral.


Leonor Amarante é Jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, revista Veja, TV Cultura, Memorial da América Latina, colaborou com World Paper Boston e Rádio Rebelde de Cuba. Prêmio ABCA pela edição da revista arte!brasileiros (2012) e Prêmio Ministério da Cultura de Cuba (2009), pela atuação cultural naquele país.


Luzia Gomes é poeta, feminista negra, museóloga e Professora Doutora do Curso de Museologia na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordena projetos de pesquisa e extensão que versam sobre a arte literária de mulheres negras e a Museologia. Nesta edição, escreve sobre Carolina de Jesus.


Mateus Nunes é arquiteto e pesquisador. Doutorando em História da Arte na Universidade de Lisboa, com período na USP, é arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Pará. Nesta edição colabora com artigos sobre a mostra do fotógrafo Luiz Braga e o novo livro de Giselle Beiguelman.


Simonetta Persichetti é jornalista e crítica de fotografia. Mestre em Comunicação e Artes (Mackenzie), doutora em Psicologia Social (PUC-SP) e pós-doutora pela ECA-USP, leciona na Faculdade Cásper Líbero e é membro do Conselho Editorial da arte!brasileiros. Publicou diversos livros e ganhou o prêmio Jabuti de Reportagem. Estreia nesta edição a coluna Olho Crítico.


FOTOS: ARQUIVO PESSOAL | ALÊ RUARO

Uma galeria diferenciada chega ao mercado

marli matsumoto
"Poltrona tentáculo de ovo", 2020, de Raphaela Melsohn. Foto: Divulgação

Uma charmosa casa de estilo modernista com toque oriental abriga a recém-inaugurada galeria Marli Matsumoto Arte Contemporânea, na Vila Madalena. Somando experiências consistentes adquiridas em sua passagem pelas casas Nara Roesler, Raquel Arnaud e Luisa Strina, a mais nova marchand da cidade acompanhou de perto vários artistas consagrados, viu o mercado de arte crescer e se profissionalizar e agora vai colocar tudo em prática nesse projeto. Bolhas Siderais é o tema lúdico da exposição inaugural que se insere na atmosfera zen do espaço onde obras de 14 artistas, com curadoria de Juliana Monachesi, desenvolvem engenhosos modelos de deslocamentos para a compreensão da narrativa. Marli fala das bolhas particulares em que habitamos e que nos jogam para outros cosmos, bem diferentes daqueles que vivíamos há um ano e meio, com muitos deslocamentos, encontros, reuniões apressadas e contínuas. Parte das obras parece responder a esse âmbito crítico. Toda a exposição segue o princípio minimalista da casa/galeria ligada a uma aura que sugere tranquilidade, o que está evidente em todos os espaços.

Ela entende seu projeto como “dialética da transição”, traduzida como aquele momento em que você é perpassada por um movimento lento, daqueles que vão entrando num tipo de trabalho e, quase sem perceber, adentra em outros, num círculo contínuo do fazer. “Estamos no meio de uma grande incógnita, uma situação mundial da qual ninguém escapa”. Um momento de mais perguntas que respostas. Como se comportar em relação à pandemia é uma das questões que todos enfrentamos diariamente. “Em meio a tudo, temos que valorizar a manutenção do planeta, as questões que envolvem as minorias indígenas, afrodescendentes, de gêneros, enfim, com tudo o que constitui esse momento. É a hora de revisitar e rever tudo isso, nossos valores e a possibilidade de encontro com as pessoas, porque é isso que move a arte, ela precisa do espectador”. Com essa determinação, Marli decidiu fazer a exposição mesmo se contasse apenas com três ou quatro obras e pudesse chamar só uma pessoa para a ver: “Isso já teria valido à pena”.

marli matsumoto
Sem Título, 2021, de Anna Maria Maiolino. Foto: Divulgação

Quando Marli comunicou a Luisa Strina que seguiria um projeto solo, ela respondeu que hoje as coisas são diferentes, os territórios não estão demarcados, as fronteiras são mais fluidas e as pessoas fazem parcerias. Marli concordou com, inaugurou sua galeria e continua a participar de alguns trabalhos com Luisa. “Por exemplo, vou cuidar da obra da Anna Maria Maiolino e viajar com a Luisa para a Art Basel, executando coisas diferentes daquelas que faço na minha galeria”. Ainda sem um elenco de artistas definido, ela mantém uma relação próxima com alguns artistas com quem trabalhou por anos. “Para esta exposição, por exemplo, a Maiolino fez questão de me enviar uma obra nova. Tudo o que ela fez na pandemia resultou nessa escultura aqui exposta”.

Apesar da crise, algumas galerias estão abrindo filiais fora do Brasil e outras não escondem seu sucesso de vendas. Pergunto se existe um mercado realmente sólido para a arte, que não é atingido como os demais segmentos. Marli diz que sim. “Em tempos de crise a arte é uma forma das pessoas fazerem investimentos, diversificá-los. Não que a gente transforme a obra em commodities, mas de fato pode-se realizar grandes investimentos em arte e existem pessoas que iniciam suas coleções nesses períodos.”

No topo, rachadura, 2021, de Raphaela Melsohn

Formada em história pela USP, o que a ajudou nesse conhecimento de arte, Marli se interessa pela pesquisa e procura conhecer melhor os artistas com quem trabalha. “Não tenho um projeto pronto para a galeria, pretendo manter a casa aberta para ver todas as possibilidades, sentir o que se pode fazer em termos de relacionamento do mercado com a arte, com a parte institucional, com o mercado internacional.” E ela se pergunta: por que não trazer artistas de fora? Por que não usar o espaço para convidar uma galeria do exterior para expor aqui? Estas são algumas das questões que gravitam em sua cabeça.

A forma como Marli pensa a galeria/casa é um exemplo bem simples do que já está desenvolvendo. “Havia uma estante na sala, então eu convidei a Rita Mourão para ocupar aquele espaço. Ela está fazendo uma curadoria em paralelo, mas convergindo para a exposição.” Isso vai sempre acontecer na galeria porque Marli acredita que os projetos coletivos estão ganhando força e as relações se aproximam e se consolidam cada vez mais. A casa entra na exposição como um lugar de acolhimento. “A Poltrona Tentáculo de Ovo, de Raphaela Melsohn, é fruto da pandemia, está ligada ao ato de criar dentro de sua casa num espaço mais aconchegante”. Há claramente uma tentativa de dissolver o congelamento de nossa relação com o objeto. “O rolinho de espuma preso à cadeira tem mais de oito metros, são grandes tentáculos vindos do acolhimento de uma TV com uma música e que conversa com os neoconcretos da Magdalena Jitrik.” Esta obra, quase hipnótica, convida o visitante a entrar dentro dela e dialoga com a ideia do ovo da Lygia Pape, exposto no mesmo ambiente.

Marli Matsumoto
“Pedras bordadas (botão)”, 1998, de Ana Linnemann. Foto: Patricia Rousseaux

Instalada logo na entrada, a escultura de Anna Maria Maiolino se ergue elegante e ereta como uma planta ou uma espada, apontando para o universo como o epicentro de uma circularidade. Para Marli, as bolhas siderais trouxeram a ideia de como esse cosmo todo foi trazendo uma consciência diferente. “Cada artista tem algo dentro de si. A Adriana Aranha faz crochê que demanda um tempo de espera, de construção circular, tecendo um tubo feito de 2000 a 2010, bem simbólico desse período.” Um fio sobe e desce lentamente na cadeira onde ela fez o trabalho, sentada. A ideia foi reunir artistas mais jovens, na média de 30 anos, ao lado de outros com 50 ou mais, como os consagrados Maiolino e Jorge Macchi, ampliando os limites do possível e confrontando a legitimidade estética atemporal.

O sistema de arte mudou bastante nas últimas décadas e novas galerias surgem constantemente na cidade. No passado, tudo girava em torno da Bienal de São Paulo, hoje os colecionadores, críticos, diretores de museu chegam regularmente ao Brasil, durante todo o ano. “Eles primeiro vão a Inhotim, depois seguem para São Paulo e, em seguida, para o Rio de Janeiro, em um movimento vivo e constante”, comemora Marli.

Editorial: imagem, relações de poder e quebra de paradigmas

"Caçadores de Ficções Coloniais", de Denilson Baniwa, obra que estampa a capa da edição. Foto: Cortesia do artista
“Caçadores de Ficções Coloniais”, de Denilson Baniwa, obra que estampa a capa da edição. Foto: Cortesia do artista

Estamos experimentando mais uma mudança cultural, especificamente no campo das artes, que se compara as mudanças de fins do século 19, começos do século 20, com a ruptura do conceito de estética clássica proposta pelo modernismo e o advento de uma estética contemporânea, que levou as vanguardas até os anos 90. 

Dentre muitos dos filósofos e críticos de arte, o argentino Reinaldo Laddaga salientava em Estética da Emergência, em 2006, haver um “processo decisivo nos últimos anos no universo das artes, a formação de uma cultura diferente à moderna e suas derivações pós-modernas. Um signo particularmente eloquente deste processo é a proliferação de iniciativas de artistas destinadas à participação de grandes grupos de pessoas diversas, em projetos onde se associa a realização de ficções ou imagens com a ocupação de espaços locais e a exploração de formas experimentais de socialização. Estamos perante novas Ecologias Culturais”.

Essa “nova cultura” está inevitavelmente ligada a mudanças de formas de ativismo e participação nas áreas sociais, políticas e econômicas que apareceram com o esgotamento do modelo neoliberal.

Essas foram as primeiras constatações de um processo que abriu o debate para a reflexão do papel dos museus – como o conceito do Museu Vivo, onde o público além de assistir pudesse participar dos projetos apresentados, e artistas se engajar em projetos. Precursores como Lygia Clark foram devidamente lembrados nestas páginas, na ocasião do seu centenário.

Sem ir muito longe, arte!brasileiros acompanhou nestes últimos anos a premiação internacional de projetos como o Jamac/Autoria Compartilhada, criado em 2004 e encabeçado pela artista brasileira Mônica Nador, que arquitetou todo um trabalho de oficinas de pintura, stencils e impressão junto à comunidade do Jardim Miriam, na periferia da cidade de São Paulo, e que participou da mostra Somos Muit+s: experimentos sobre coletividade, na Pinacoteca de São Paulo, em 2019.

Nesta edição, a reportagem de Giulia Garcia traz a premiação do PIPA 2021 que, a partir deste ano contará com exposições anuais virtuais. Para Luiz Camillo Osorio, curador do PIPA, a escolha de Castiel Vitorino Brasileiro, Denilson Baniwa (cuja obra ilustra nossa capa), Ilê Sartuzi, Marcela Bonfim e Ventura Profana, neste ano, demonstra o momento de grande ebulição política e de forte desenvolvimento de poéticas experimentais que presenciamos no Brasil atual. Cada um deles evidencia obras em processo, em que o performativo, as novas tecnologias, a ancestralidade, a experimentação e as politicas de gênero estão todas embaralhadas, fertilmente misturadas, apontando para o desconhecido e com muita contundência poética.

Uma dos cinco vencedores, Castiel confirma: “O que faço são convites e lembretes de que nós podemos viver outra história que não essa racial e de gênero”, explica em vídeo gravado ao PIPA. Artista visual, escritora e psicóloga, Castiel constrói suas produções a partir dos diálogos entre saberes da arte, da macumba, da psicologia, da feitiçaria, do curandeirismo e mais “o que julgar ser necessário para produzir sobrevivência”. Não se definindo em uma técnica artística especifica.

Junto a este movimento, e isso Laddaga não podia ter previsto, vivenciamos hoje como nunca a presença da realidade virtual como elemento fundamental para se relacionar, para conhecer e para se informar. O poder da imagem ganhou outras dimensões, dentre elas a de se transformar em mais um mediador, entre a obra e o espectador.

Se no começo do século 20 alguns artistas viajavam para a França e se muniam de novas teorias e visualidades, desde o ano 2000 e especificamente desde 2010, com a aparição das redes de comunicação, toda e qualquer experiência ficou exacerbada. Para o bem e para o mal.

Com a pandemia então – que já dura quase dois longos anos! -,  a presença da imagem se tornou desesperadamente relevante, por vezes banalizada. Ver, ver, ver na tela: notícias, amigos, o entorno desde as janelas. Ver fake news, imagens reais dos desmatamentos e da matança de índios para garantir a ocupação de mineradoras, memes, obras em exposições em ambientes virtuais, se ver em seminários nacionais e internacionais virtuais. Ver filmes, documentários e séries nas plataformas digitais.

Nesta edição, vários textos convergem para documentar este momento, analisando este fenômeno, que deverá nos impactar e impactar na produção dos próximos anos. Entre eles, o texto do arquiteto e pesquisador Mateus Nunes sobre o novo livro de Giselle Beiguelman, Políticas da imagem – Vigilância e resistência na dadosfera, e a nossa nova coluna Olho Crítico, da professora, pesquisadora e crítica de fotografia Simonetta Persichetti, que analisa os efeitos das imagens do atentado às Torres Gêmeas nos EUA, em 2001.

A história da arte será outra após a – cada vez maior – adesão de artistas a projetos colaborativos e sua sensibilidade para o entorno, a comunicação digital e a pandemia, porque isso não tem a ver com computadores ou tecnologias, isso tem a ver com os sujeitos que produzem e os sujeitos que olham.

Um giro em falso

discussão I (variação), Ilê Sartuzi
"discussão I (variação)", de Ilê Sartuzi. Foto: Julia Thompson / Cortesia do artista

Às 18h, entramos no espaço do auroras, no bairro do Morumbi, em São Paulo. Pensada para acontecer apenas à noite, é neste horário que a individual de Ilê Sartuzi tem início. O título, A. E A de novo., “embora pareça muito cifrado para a maioria das pessoas (pela grafia esquisita), aponta uma relação formal que atravessa uma boa parte da exposição: a repetição”, explica o artista, que foi um dos ganhadores do Prêmio PIPA 2021. “Isso aparece na própria estrutura de alguns trabalhos cíclicos, nas escolhas dramatúrgicas e na reiteração de alguns elementos recorrentes na mostra”, completa. 

Pendurada em frente à entrada, há uma pequena cortina vermelha pintada em óleo sobre tela e veludo. Apesar de fechada e estática, é ela que abre nossa visita. No andar superior, as obras se distribuem por espaços que não parecem pensados como expositivos. Pequenos quadros estão pendurados nos corredores como se fizessem parte da decoração e dois cômodos parecem tomados pelas obras – como se, em certo grau, elas habitassem a casa. “Cria-se uma possível narrativa de novos moradores”, aponta o texto curatorial. Segundo Sartuzi, essa visão é recorrente, sendo reforçada nos relatos de diversos visitantes. “Isso indica duas questões: a primeira é que as intervenções criam sentido com a arquitetura; mas também, parece que o auroras volta a ser visto um pouco mais como casa, que é a sua identidade primeira”.

Essa conclusão não é aleatória, ou despropositada, a maioria dos trabalhos foi pensando diretamente para esse lugar e tendo em vista as relações que se estabelecem com cada cômodo da casa. discussão I, por exemplo, nasce do próprio quarto – no qual Ilê Sartuzi dormiu diversas vezes. Envolvido na leitura de A casa de bonecas, de Henrik Ibsen, nas quais as indignações com a sociedade burguesa e a estrutura patriarcal são latentes, o artista foi desenhando a dramaturgia, levando a uma discussão de casal que poderia tomar forma cotidianamente naquela cama. “Por outro lado, nos meus trabalhos recentes, as coisas sempre parecem estar meio girando em falso, ou elas não chegam a lugar nenhum, são esvaziadas de um sentido claro e direto. Então busquei que fosse uma discussão sobre nada, que eles conseguissem ficar discutindo infinitamente, mas que orbitassem um tema vazio”, conta. Assim, a obra se configura: dois manequins que, interpretados por Lucienne Guedes e Silvio Restiffe, através de videomapping e caixas de som, discutem sem chegar a lugar nenhum.  

“Enquanto alguns trabalhos se apresentam em condição própria e isolada, em outros casos, a iluminação parece que transforma todo um ambiente em uma única coisa composta por diferentes elementos, que ocupam aquela sala como cena”, explica Sartuzi. É o que ocorre neste quarto, decorado com quadros que retratam manequins – como o casal de personagens – e no cômodo ao lado, onde diversos pequenos objetos se conversam no espaço amplo.

Desenhada em uma pequena tela, pendurada na parede, uma cortina espelha a obra do andar inferior. Trata-se de cortina D, que parece anunciar este ato da exposição. Iluminado ao centro, o trabalho carrossel traz um boneco que gira continuamente, mas é sempre atrapalhado por um tropeço: uma pedra posicionada em meio ao seu percurso altera a dinâmica primeira do objeto, apesar de mantê-lo sempre na mesma sequência de movimentos. Na sala também está casa cabelo II. Feita com cera de abelha e cabelo, é por esses materiais que a obra se projeta como um memento mori. “O memento mori é esse lembrete constante de que o tempo está passando e a morte está à espreita”. Como explica Sartuzi, de alguma forma os cabelos ali suscitam essa ideia de ciclo que não acontece, dessa morte que se enuncia, mas não chega. 

O trabalho é também um duplo e encontra espelhamento na sala principal de exposição no andar inferior. Sobre um suporte único e sob luz direcionada, a outra casa cabelo se projeta como uma escultura em exposição, ou uma protagonista posicionando-se no foco de luz. O mesmo ocorre com discussão I (variação), espelhamento da obra original. A instalação traz duas cabeças automatizadas, “que flutuam ali, robóticas, como bonecos ventríloquos, e repetem o mesmo texto, mas em ordem completamente aleatória. O que fiz foi pegar o áudio da instalação do quarto e cortar frase por frase, então criei um banco de dados e o sistema escolhe de forma aleatória o que dizer, como dizer e quando cada cabeça fala”, explica o artista.   

Entre artes visuais e cênicias

“Longe da defesa de unidade das artes wagneriana que a ópera proporcionaria, mas o teatro possibilitou aprender muita coisa, de luz ao texto. Acho que essas qualidades me fizeram pensar em cada elemento de uma exposição, como a iluminação e as possibilidades dramatúrgicas de expografia”, conta o artista. Assim, A. E A de novo. é permeada por certa teatralidade. “Ela pode ser uma consequência de uma série de formas e temáticas que estavam surgindo no trabalho, somada a uma vontade de que esses objetos se projetassem quase enquanto sujeitos. Em última instância, a noção de teatralidade tem a ver com a relação que o objeto estabelece com o espectador.”

Em grande parte das obras, essa relação é sugerida pelo uso de novas tecnologias, como videomapping, automação e a fotogrametria. Porém, para o artista, o uso de determinadas ferramentas tecnológicas não vêm do prazer de experimentá-las, mas sim da necessidade dos próprios trabalhos, da vontade de animá-los. Ilê Sartuzi destaca que isso não leva o uso das técnicas a ser ingênuo. “Acho importante frisar que o uso de ferramentas mais ou menos tecnológicas nunca é uma escolha esvaziada de significado e consequências.” 

As questões relativas à imagem idealizada do corpo – muitas vezes fragmentado ou construído a partir de diferentes partes – e à ausência dessa figura, constantes na produção de Ilê Sartuzi até então, também estão presentes na mostra. É possível percebê-las em especial nos manequins – sejam os físicos em discussão I, ou os pintados em obras como retrato TSF-3 -, mas também na pele de látex e na videoinstalação que a acompanha. Essa obra, em especial, volta a nos suscitar o mote maior da mostra em torno da repetição, que além de aparecer nos duplos, também busca “ressoar nos trabalhos em que parece que o começo nunca inicia, ou ainda que o começo é o meio e o fim, talvez de outra maneira: existe a sensação de que o começo ou o meio ou o fim não levam à lugar algum diferente do começo, do meio e do fim”.

A obra prelúdio (or curtain call) talvez sintetize a ideia, ao apresentar uma cortina que, com auxílio de automação, abre e fecha para o nada. Assim, cria espelhamentos com as cortinas em desenho e pintura, estáticas, que vimos em outros cômodos da casa. Cortinas essas que abrem e fecham o espetáculo. “Espetáculo esse que nunca começa ou nunca termina”, finaliza Sartuzi.

SERVIÇO

A E. A de novo
auroras: Avenida São Valério, 426 – Morumbi, São Paulo (SP)
Visitação: Em cartaz até 2 de outubro, às sexta-feiras e aos sábados, das 18h às 21h, ou com agendamento prévio no período noturno.
Entrada gratuita

Para além da Semana de 22

John Graz
Sem Título, 1935, de John Graz, grafite e guache sobre papel. Foto: Divulgação

*Por Maria Hirszman e Marcos Grinspum Ferraz

Além da tradicional exaltação que costuma marcar as celebrações de grandes datas, a movimentação em torno do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 – que promete agitar o calendário do ano que vem – parece estimular a ampliação e aprofundamento dos estudos e investigações acerca da modernidade no Brasil. Ao menos é o que indicam as várias exposições abertas recentemente em diferentes museus, como a Pinacoteca do Estado, o Museu de Arte Moderna (MAM-SP) e o Museu de Arte Contemporânea (MAC USP). Para além de suas características particulares, as mostras realizadas por essas três instituições compõem em seu conjunto um interessante painel, que reafirma em seu conjunto questões, muitas vezes mantidas em segundo plano: o papel das artes decorativas na constituição desse pensamento moderno; a importância fundamental de artistas menos consagrados, mas não por isso menos relevantes, como John Graz e os irmãos Gomide; a necessidade de se atentar para informações preciosas presentes em materiais menos valorizados, como desenhos, estudos e correspondências, com presença significativa e crescente nas coleções museológicas.

“Nosso interesse é justamente olhar para outras matrizes e configurações da modernidade e do moderno que a historiografia até hoje não deu tanta atenção. Não se debruçou como deveria”, afirma Fernanda Pitta, curadora da mostra John Graz: idílio tropical e moderno, em cartaz na Estação Pinacoteca. “Muito já se disse a respeito de artistas como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Lasar Segall – que se consagraram com uma repercussão até internacional -, enquanto John Graz, Regina Gomide Graz e Antonio Gomide ficaram meio escanteados. Porque demorou muito para se entender que eles trabalharam com um ramo da arte que é extremamente importante para a própria modernidade, que tem a ver com o modo de morar e o modo de viver”, complementa Maria Alice Milliet, responsável pela exposição Desafios da modernidade – Família Gomide-Graz nas décadas de 1920 e 1930, em cartaz até agosto passado no MAM-SP.

"Índia", de Cássio M’Boy
“Índia”, de Cássio M’Boy, década 1930. Foto: Divulgação

Movimento semelhante, de investigação mais profunda das motivações e produções desenvolvidas por distintos autores nesses anos chave do modernismo no país, norteia a investigação levada à cabo na mostra Projetos para um Cotidiano Moderno no Brasil: 1920-1960, que pode ser vista até julho de 2022 no MAC. Fruto de um projeto desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa CNPq Narrativas da Arte do Século 20, a exposição reúne uma seleção de obras pertencentes à coleção do museu. E que mereciam um olhar mais sistematizado. Aliás, a presença importante desse modernismo ampliado na coleção do museu deve-se à ação ativa de Walter Zanini. “Todo mundo fala do Zanini como um historiador da arte, que se dedicou a essa chave nova de pesquisar as novas práticas contemporâneas, as práticas processuais dos anos 1960 e 1970, mas ele teve um papel muito importante no resgate de determinados nomes do modernismo brasileiro”, lembra Ana Magalhães, diretora do MAC e coordenadora da equipe de curadoria da mostra.

“O que importa é justamente essa visão mais ampla, de um projeto que não se preocupa apenas com formas modernistas, com a arte com A maiúsculo, mas que envolvia o engajamento desses artistas com várias outras frentes, como ilustradores, artistas gráficos, decoradores, designers, arquitetos e cenógrafos”, explica Ana. “Ou seja, isso também faz parte, é um valor para esse projeto modernista, que essas coisas sejam da convivência do dia a dia das pessoas”, complementa, apontando que a exposição contempla de cardápios e leques para bailes de carnaval desenhados por Gomide a desenhos de Flávio de Carvalho para o balé A Cangaceira.

"Índios", de Regina Gomide Graz
“Índios”, de Regina Gomide Graz, década de 1930, tecido. Foto: Divulgação

Alguns dos destaques da seleção atualmente à mostra, como o conjunto para sala de estar projetado por Graz (que também esteve presente na exposição do MAM) é um motivo de celebração à parte para o museu, pois representa uma das mais importantes doações recentes recebidas pelo MAC: a da Coleção Fulvia e Adolpho Leirner de Art Déco no Brasil. “Do ponto de vista da história institucional do MAC não tenho a menor dúvida, essa é – depois da coleção que o Ciccillo constituiu para a criação do MAM-SP, que foi transferido para o MAC, e talvez a doação Theon Spanudis – a mais importante doação que o museu recebeu nos últimos tempos. Até porque é mais difícil para o museu hoje encontrar colecionadores que se disponham a doar obras dessa qualidade e dessa importância”, afirma a curadora.

“Universidades são instituições duráveis. Esse acervo será estudado, conservado e divulgado em um ambiente acadêmico. Além do mais, normalmente a universidade não tem verba para compra de obras raras e únicas”, afirma Adolpho Leirner ao explicar a razão dele e Fulvia terem decidido legar as obras ao museu. Segundo ele, a realização da mostra Projetos para um Cotidiano Moderno já sinaliza esse interesse. Além dos móveis de Graz e do conjunto de mobiliário da Casa Modernista de Gregori Warchavchik, uma série de outras preciosidades dessa coleção, garimpadas ao longo de décadas, vem se somar à coleção do museu. Dentre elas é possível citar a escultura Índia, de Cássio M´Boi, um relevo em gesso de Antelo Del Debbio (encontrado por acaso pelo casal numa casa de demolições na Av. Rebouças), duas cadeiras de Flávio de Carvalho e o estudo para cartaz da exposição de Tarsila do Amaral em Moscou. A doação inclui também o arquivo com dados de todo esse material, que constitui importante material de pesquisa e que serviu de base para o livro Art Déco no Brasil – Coleção Fulvia e Adolpho Leirner, lançado ano passado pela Editora Olhares.

Abstração 2
“Abstração 2”, de Antônio Gomide. Foto: Divulgação

Essa maior abertura ao estudo e exposição do design e das artes aplicadas é celebrada por Leirner, que sublinha a importância – inclusive histórica – da coleção que montou no último meio século. O panneau Mulher com Galgo de Regina Gomide Graz estava, por exemplo, na exposição organizada por Pietro Maria Bardi em 1972 para celebrar os 50 anos da Semana de Arte Moderna e agora volta a integrar um evento em torno do centenário do evento. Aliás, foi das mãos de Bardi que o casal adquiriu a peça.

Um artista completo

Diferentemente da mostra do MAC, que reúne trabalhos de um número maior de artistas, as exposições John Graz: idílio tropical e moderno, até janeiro na Estação Pinacoteca, e Desafios da modernidade – Família Gomide-Graz nas décadas de 1920 e 1930 (que esteve em cartaz no MAM) se dedicam mais especificamente ao núcleo artístico formado pelos irmãos Gomide e por John Graz, com destaque especial para este último. Vale ressaltar que os três estão presentes também na ampla mostra Moderno onde? Moderno quando? A Semana de 22 como motivação, com curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, em cartaz no MAM.

Nascido na Suíça em 1891, Graz estudou na Escola de Belas Artes de Genebra, onde conheceu os brasileiros Regina e Antonio Gomide. Para além de frequentar um curso que abrangia desenho, decoração e arquitetura, Graz logo passou a fazer também cartazes publicitários e vitrais, aperfeiçoando suas técnicas em um período na cidade de Munique, na Alemanha, e em viagens à França e Espanha. Segundo Maria Alice Milliet, o artista teve, portanto, “uma formação muito completa”, baseada numa ideia de “arte total”. “E impressiona, ao longo de sua vida, a qualidade com que faz isso tudo: a pintura, o desenho, ou o projeto do chão, do teto, da parede, até o objeto, a pia, as fechaduras, móveis, o tapete, a luminária, os painéis em gesso, vitrais… nada escapava ao desenho do Graz. É uma concepção total do espaço.”

Mobiliário de sala de estar
Mobiliário de sala de estar projetado por John Graz. Foto: Divulgação

Pouco depois de chegar ao Brasil, em 1920, onde se casa com Regina e se estabelece até o fim da vida, Graz expõe no Salão do Cinema Central em São Paulo. Conta-se que ali Oswald de Andrade se encantou por seu trabalho e comprou uma de suas telas, oferecendo para a transação um terreno em Pinheiros – onde posteriormente Graz construiria sua casa. Foi também Oswald que o convidou, dois anos depois, para participar da Semana de Arte Moderna, onde Graz viria a apresentar sete telas. Apesar de se aproximar do movimento dos artistas modernistas neste período – ele colabora, ainda, com a célebre revista Klaxon -, Graz rapidamente passou a se dedicar mais às artes aplicadas e à arquitetura de interiores.

Se bebeu no ideário racionalista da Bauhaus, foi especialmente na explosão internacional do Art Déco – que permitia ornamentações e decorações rejeitadas pela escola alemã – que Graz se inspirou. É considerado, portanto, um dos principais nomes a trazer o estilo europeu para o Brasil, notadamente após visitar ao lado de Regina, em Paris, a Exposição internacional de artes decorativas e industriais modernas, em 1925. De sua dedicação a este universo resultou a abertura da loja John Graz Decorações, em 1930, com a qual decorou casas projetadas por célebres arquitetos modernos como Warchavchik e Rino Levi. Mas é desta atuação, também, que decorre certa rejeição ao seu nome – e dos irmãos Gomide – no panteão dos grandes artistas modernistas do país.

Regina Gomide Graz
Composição com figuras, Regina Gomide Graz, 1925, panneau em seda, feltro e lã

“Houve uma incompreensão da própria classe artística. O John Graz cria ambientes absolutamente modernos, mas isso cai na categoria ‘decoração’, não é arte. Eles não entenderam a importância que teria essa união entre a criação intelectual e a indústria, a produção de objetos para uso cotidiano. Ainda estavam muito ligados aos gêneros tradicionais da arte: a pintura, a escultura, a gravura, o desenho”, afirma Milliet. Fernanda Pitta segue a mesma linha: “Tanto naquele momento quanto na historiografia que vem posteriormente há uma tendência de diminuir o aspecto experimental e transformador do Art Déco, sem perceber o caráter de ruptura e de experimentação que essa escola apresentava naquele contexto histórico”.

O fato de olhar para as matrizes europeias do Art Déco e da Bauhaus não impediram Graz de adentrar o universo cultural brasileiro, pelo qual logo se encantou, por mais que sua visão seja considerada por vezes idealizada ou idílica. Se a exposição dos Gomide-Graz no Mam-SP deu maior destaque à essa produção decorativa dos três artistas, a mostra na Pinacoteca, que inclui 42 obras recém-doadas pelo Instituto John Graz ao museu, põe em evidência uma série de desenhos e pinturas onde Graz retrata indígenas, afrodescendentes e aspectos da cultura popular brasileira – festas de Carnaval ou do Bumba meu boi, pescadores em jangadas ou baianas carregando frutas.

Pintura de John Graz
Pintura de John Graz exposta em “Idílio tropical e moderno”, na Pinacoteca. Foto: Marcos Ferraz

“É preciso entender que faz parte de um processo mais amplo que dialoga com o que outros artistas modernos também fizeram, de apropriação e de uma relação distante, às vezes romantizada, com culturas afrodescendentes e indígenas do Brasil”, diz Pitta, sobre este aparente paradoxo. “Não é uma limitação somente do Graz. E temos que reconhecer que nesse processo de valorização há também uma apropriação e uma apagamento desses agentes.”

Com exposições, análises críticas e até mesmo o redescobrimento de obras perdidas de Graz e dos irmãos Gomide, o que se celebra é a ampliação de um debate que já poderia ter sido feito e que “refina e complexifica”, nas palavras Pitta, o entendimento sobre a arte moderna no Brasil. Até porque, como afirma Milliet, “São Paulo é uma cidade que não guarda memória, é uma cidade voraz. Então muito daquilo que estava dentro das casas, quando passou a moda do Art Déco, foi descartado pelas famílias. Além do que muitas dessas casas foram demolidas, e nelas haviam painéis em gesso, pinturas e vitrais do Graz. Até por isso essa atuação do Adolpho e da Fulvia Leirner é tão importante, de resgatar isso. E com esse reconhecimento, muitas coisas tem aparecido, por vezes de pessoas que relembram de obras e mobiliário que eram de seus avós e estavam perdidos por aí”.

Prêmio PIPA 2021: da ancestralidade às novas tecnologias

Construção
"Construção", fotografia de Marcela Bonfim feita no Quilombo de Pedras Negras em 2016. Foto: Cortesia da artista

“Ser o termômetro do que há de mais potente em cada momento histórico é o compromisso dos prêmios de arte. Mais do que apontar um único caminho das expressões contemporâneas, devemos revelar as várias bifurcações que estão constantemente sendo abertas nas rotas e narrativas hegemônicas”, defende Luiz Camillo Osorio, curador do PIPA. Foi com isso em vista que o tradicional prêmio de arte contemporânea decidiu alterar suas regras. Ao invés de concentrar-se em um só nome, selecionou cinco ganhadores em sua 12ª edição: a capixaba Castiel Vitorino Brasileiro, o amazonense Denilson Baniwa, os paulistas Ilê Sartuzi e Marcela Bonfim e a baiana Ventura Profana.

Essa não foi a única alteração do PIPA, que a partir deste ano assume um caráter mais claro de fomento – focando em profissionais com trajetórias recentes que ao serem selecionados recebem uma doação de R$ 10 mil cada, sem a contrapartida de doação de uma obra ao Instituto – e dá fim (ao menos temporário) às mostras presenciais do prêmio. De 9 de setembro a 20 de novembro, o Paço Imperial, no Rio de Janeiro, recebe os trabalhos dos vencedores de 2020, ao lado de aquisições e comissionamentos recentes do PIPA. Já os ganhadores desta edição farão uma ocupação digital. “Resolvemos que a partir de 2021 as exposições presenciais serão só da coleção do instituto e a mostra dos premiados acontecerá em ambiente virtual. A ideia é fortalecer a instituição, dar-lhe mais visibilidade e poder assim desenvolver outros projetos curatoriais”, explica Luiz Camillo. E completa: “Caso percebamos no futuro que as coletivas presenciais dos artistas selecionados são importantes, voltaremos a fazê-las. No momento, estamos convencidos que as mudanças foram positivas”.

Em sua 11ª edição, no ano passado, pela primeira vez desde sua criação o Prêmio PIPA teve mais de um ganhador, nomeando Gê Viana, Maxwell Alexandre, Randolpho Lamonier e Renata Felinto. Em 2021, a organização optou por adotar este modelo como norma. “Mais do que concentrar em um único nome, percebemos que dividir o prêmio é mais justo, tendo em vista um cenário tão plural e continental como o brasileiro, com tantas micro-cenas relevantes de norte a sul do país”, explica o curador. A premiação geral, decidida a partir da análise de portfólios e trajetórias feita por um conselho de profissionais renomados da área, passa a contar anualmente com cinco vencedores; já o PIPA Online, categoria cuja decisão reside em uma votação popular, gratifica os dois artistas mais votados – neste ano, Daiara Tukano e Ruth Albernaz.

“A seleção de mais de um artista também ajuda a descentralizar essa figura do ‘vencedor’, assim como ameniza um pouco a competitividade que assola a sociedade capitalista e neoliberal como um todo e o meio artístico em específico”, compartilha Ilê Sartuzi sobre o prêmio geral. O artista porém, acredita que a categoria ligada ao voto popular caminha na direção oposta. “Se por um lado poderia, idealmente, selecionar uma produção completamente diferente do aval do conselho de premiação, por outro, reitera a selvageria competitiva somado à promoção da autoimagem e a propaganda gratuita e massiva do prêmio.” Para Denilson Baniwa, a escolha por mais de um vencedor também soa necessária neste momento do Brasil. “Me sinto desconfortável em estar em uma disputa de território num lugar que já é super violento e desleal como a arte. Então, acho legal uma escolha na qual cabem mais corpos, e que ainda assim tem uma visão do júri.”

Vencedores do PIPA 2021

Esse crivo do júri tem um peso especial para o amazonense que há dois anos vencia o PIPA Online e agora é um dos selecionados ao prêmio geral. Se a vitória em 2019 permitiu que mais pessoas entrassem em contato com a obra de Denilson Baniwa e que ele tivesse outro olhar para seu trabalho – levando-o mais a sério e gerando uma evolução dos pontos de vista conceitual e formal -, o anúncio deste ano traz outros ecos pessoais e profissionais. “Um grupo de pessoas especializadas em artes disse que meu trabalho tem uma coisa boa, e isso era algo que eu me cobrava bastante: o que será que os críticos e curadores pensam do meu trabalho?”. Artista-jaguar e antropófago, como define a si mesmo, Denilson é considerado um dos expoentes da arte indígena contemporânea. Em seus trabalhos, envolve questões ambientais e de luta dos povos originários, ao que explora uma poética indígena ancestral e futurista. Nos últimos anos, percebe uma alteração no cenário artístico e em sua relação com o mesmo. “Acho que [em 2019] eu estava bem mais exposto a quebrar a fechadura da porta a chutes para mostrar meu trabalho e ver meus amigos e parentes indígenas junto. O Denilson de agora encontrou uma chave que abre algumas portas e consegue trazer bem mais gente.” Em suas pesquisas mais recentes, tem se debruçado sobre os deslocamentos forçados que amputam a memória de várias pessoas indígenas no Brasil, tratando dos processo de afirmação e reafirmação, da busca pela identidade perdida e das violências contra esses corpos. É nesse sentido que pretende trabalhar na exposição do Prêmio PIPA 2021, enxergando na opção pelo virtual uma outra possibilidade de investigação do formato: “Isso me desafia a pensar trabalhos que nasçam a partir do digital. Não gosto de pensar o meu trabalho sendo digitalizado, gosto de pensar a partir de onde ele é nativo”.

É também atravessado pela ideia de recuperação da identidade que o trabalho de Marcela Bonfim se configura. Formada em economia, foi apenas ao se mudar para Porto Velho, Rondônia, que a paulista se entendeu de fato como mulher negra. Se nas ruas de São Paulo buscava os discursos de meritocracia e via sua imagem como empecilho, ao fotografar na cidade amazônica encontrou um espelho. “Começo a me reconhecer nessas imagens e vê-las tão possíveis aqui neste lugar – e eu tão impossível em São Paulo.” A artista pontua que ao chegar na Amazônia pensava apenas na imagem indígena, “mas a imagem negra é parte do contexto e acaba sendo tão essencial quanto”. Hoje, afirma, “eu e a Amazônia estamos nos reconhecendo”. Nos últimos anos, Marcela tem se dedicado a um trabalho de retomada da Amazônia negra, retratando populações que vivem em lugares mais afastados da cidade: ribeirinhos, povos tradicionais, quilombolas. “É muito importante dizer que são populações, no plural, porque a palavra ‘negro’ parece uma coisa enxuta, né? Antes de ser negro, eram identidades. Mais de 500 anos depois [da chegada dos portugueses], estamos aqui, pegando essa palavra, essa redução e ampliando-a em multiplicidade.” Por isso, para a fotógrafa faz pouco sentido tratar dessas questões sem se colocar dentro da discussão. “A ideia é ressignificar esse processo, sendo como camada dessa fotografia. É nessas linhas paralelas que eu me coloco de frente pro espelho nessa Amazônia negra.”

Enquanto Marcela parte das comunidades para compreender a sua identidade, Ventura Profana parte de sua vivência particular para expressar uma outra reflexão. Criada em meio a uma tradição batista, ela busca investigar as implicações do evangelicalismo no Brasil e seus impactos nas relações coloniais. “Tento, através dessas investigações do cristianismo, entender como o processo colonial se impregnou” e como é sustentado nos dias de hoje, explica em vídeo gravado para o PIPA. Se, em sua visão, o cristianismo atua como braço missionário de implantação das dinâmicas coloniais, em sua prática pessoal e artística Ventura profetiza a abundante vida negra, indígena e travesti, buscando estratégias de cura. O faz através de colagens, música, instalações, performances e textos. “Sempre tento trazer uma mensagem de vida para corpos e sujeitos que têm isso negado – seja pelo governo, seja pelo sistema, seja pelas implicações desse colonialismo”, completa.

Castiel Vitorino Brasileiro também busca a libertação dos gestos coloniais, ao mostrar que algumas mitologias construídas para pessoas racializadas e travestis não passam de falácias. “O que faço são convites e lembretes de que nós podemos viver outra história que não essa racial e de gênero”, explica em vídeo gravado ao PIPA. Artista visual, escritora e psicóloga, Castiel constrói suas produções a partir dos diálogos entre saberes da arte, macumbaria, psicologia, feitiçaria, curandeirismo e “o que julgar ser necessário para produzir sobrevivência”. Não se definindo em uma técnica artística específica, em seus últimos trabalhos opta por experiências instalativas. “A minha produção artística tem precisado ser uma experiência de incorporação, onde compreendo o meu corpo negro, testiculado e feminino como um local de memória e utilizo dessa organicidade para produzir aquilo que venho chamando de liberdades perecíveis – que são experiências tanto no meu território existencial, em forma de cura, mas também experiências de reterritorialização dessas geografias que eu coabito”, declara.

“Quarto de Cura”, instalação de Castiel Vitorino Brasileiro na mostra da 3a edição de Frestas – Trienal de Artes. Foto: Matheus José Maria / Cortesia artista e Sesc Sorocaba

É abordando a ausência do corpo ou a sua imagem idealizada – muitas vezes fragmentado ou construído a partir de diferentes partes – que Ilê Sartuzi constrói suas obras, frequentemente permeadas pelo uso de tecnologias não convencionais. A imagem idealizada vem principalmente da presença significativa de manequins em sua produção, muitas vezes montados de formas improváveis. “Esse corpo montável e reproduzível indefinidamente dá lugar – material e conceitualmente – à uma construção em partes modulares. Sendo essa uma condição da fabricação em massa desses corpos, me parecia coerente que eles pudessem ser reproduzidos e combinados de formas distintas, o que me aproximou da figura do Frankenstein”, explica. Por vezes, esses objetos são ainda movimentados a partir de automações e acompanhados de videomapping, conferindo-lhes teatralidade. Porém, é importante pontuar que não se trata de uma pesquisa monotemática e linear, como o próprio artista explica. Em seu corpo de obras nos deparamos frequentemente com a ausência total de corpo, em especial nos vídeos realizados através da fotogrametria – processo de construção de um espaço virtual através de fotografias. Sobre esse uso frequente das novas tecnologias, ele destaca: “O uso de qualquer tecnologia não deve ser ingênuo, inclusive das tradicionais do campo artístico. Cada ferramenta carrega consigo características únicas que abrem possibilidades para a elaboração de ideias distintas. O uso, por exemplo, do videomapping, da mecânica e da automação vieram do interesse específico de animar objetos. Talvez nunca teria explorado essas técnicas não fosse a necessidade dos próprios trabalhos”.

Um retrato possível da cena atual

Para Luiz Camillo Osorio, a escolha de Castiel, Denilson, Ilê, Marcela e Ventura na edição deste ano demonstra o momento de grande ebulição política e de forte desenvolvimento de poéticas experimentais que presenciamos no Brasil atual. “Cada um deles evidencia obras em processo, em que o performativo, as novas tecnologias, a ancestralidade, a experimentação, a política, está tudo embaralhado, fertilmente misturado, apontando para o desconhecido e com muita contundência poética.”

Essas propostas poderão ser melhor entendidas pelo público na mostra online, prevista para acontecer entre setembro e outubro de 2021. Cada artista ocupará o site e as redes sociais do PIPA por uma semana, disponibilizará um trabalho original para circular virtualmente e participará de uma série de outras atividades. Além disso, ao final deste ano o novo catálogo bilíngue a ser lançado pelo instituto reunirá obras dos cinco vencedores, bem como de Daiara Tukano e Ruth Albernaz – vencedoras do PIPA Online -, e dos demais 58 indicados.