Cena de "Volando Bajo", de Calderón y Piñeros. Foto: Divulgação

“Quando o motor liga antes da decolagem, eu sempre fico nervoso”, diz a legenda – sem nenhuma voz em off – enquanto um avião de modelo DC-3 se movimenta na pista. “Não sei porque, mas sempre penso que pode ser o último voo e que decolar já é de alguma forma uma fatalidade”, segue o texto. Após um corte, a câmera acoplada à aeronave passa a sobrevoar a densa selva amazônica colombiana, enquanto memórias antigas ligadas à aviação seguem sendo contadas em primeira pessoa. Esta “pessoa”, no caso, que nos parece ser um piloto, copiloto ou outro membro de uma tripulação, é, na verdade, o próprio avião narrando as experiências de sua longa trajetória. Nos próximos 20 minutos, Volando Bajo (voando baixo, em tradução livre), da dupla colombiana Elkin Calderón Guevara e Diego Piñeros García, segue acompanhando o DC-3 e suas histórias, por vezes de ares realistas, por outras fantasiosas e oníricas. O filme estreou no Videobrasil Online, onde fica até dia 26 de setembro, e dá sequência à pesquisa da premiada dupla Calderón y Piñeros – juntos desde 2014 e conhecidos também como coletivo La Decanatura – sobre as relações entre memórias e ruínas, deslocamentos no tempo e espaço, formas hegemônicas de poder materializadas em tecnologias e a suposta ideia de progresso.

O DC-3, criado nos anos 1930 e símbolo da modernidade e do desenvolvimento tecnológico até a metade do século 20, segue sendo utilizado pelo mundo até os dias de hoje, mas de modos bastante distintos de acordo com o país. “Na época em que iniciamos o projeto, em 2017, havia mais aeronaves DC-3 voando na Colômbia do que em toda a Europa. Isso nos parecia muito curioso e significativo. Na Europa, eles são relíquias, itens colecionáveis, usados ​​para exposições ou turismo vintage”, conta a dupla em entrevista à arte!brasileiros. “Hoje voam muito poucos na Colômbia, mas ainda são utilizados diariamente, especialmente em Orinoquía e na Amazônia, para o transporte misto de carga e passageiros, fazendo rotas e escalas nos lugares mais remotos e abandonados. Apesar de sua antiguidade, ainda cobrem um território que representa 55% do nosso país, o que evidencia naturalmente o grau de abandono do Estado”, completam.

Cena de “Volando Bajo”, de Calderón y Piñeros. Foto: Divulgação

Dar voz a um avião, portanto, por mais estranho que parecesse em um primeiro momento, soou coerente quando o projeto começou a tomar forma. “O avião foi o personagem principal a ser narrado, o que faz muito sentido quando entendemos a importância de uma aeronave que já existe há mais de 80 anos – um avô -, que já presenciou muitos acontecimentos, se entrelaçando à história do século 20 desde a Segunda Guerra Mundial até hoje”, afirmam. De fato, o uso do modelo no conflito global foi especialmente marcante, em um capítulo triste de sua história, como o próprio DC-3 narra em Volando Bajo: “Eu sou uma elipse nesta história. Uma história de glórias aparentes, que repete fracassos, turbulência e planos incompletos. Mesmo sem uma caixa preta, me lembro perfeitamente dos desembarques do ‘Dia D’ na Normandia. Eu era encarregado de levar centenas de jovens dentro de mim. Tive que expulsá-los para uma morte quase certa”. A  angústia desta narração surge, no entanto, em contraste com a beleza da imagem de pessoas sendo lançadas de paraquedas em um vasto campo de grama verde – reforçando o tempo todo as ambiguidades do que representa o DC-3 na história.

Da lembrança do ocorrido na França aos tempos atuais nas florestas ou Andes colombianos, o DC-3 dá, portanto, um salto do período em que representava uma tecnologia de ponta para o momento em que se torna uma máquina obsoleta. Não deixa de ser notável, assim, que o avião é ao mesmo tempo “um persistente”, alguém que resiste ao passar do tempo, mas também um símbolo da falência de um modelo de desenvolvimento, representante da precariedade de certa visão da modernização. “A ideia de progresso na Colômbia, e talvez no resto da América Latina, não parece abarcar uma grande parte da sociedade que normalmente fica esquecida e invisível. Achamos que prevalece uma falsa ideia de progresso que só beneficiou ao longo da história um pequeno grupo de pessoas ou famílias com interesses particulares, que se encarregaram de monopolizar o poder econômico e político, independentemente do custo”, afirmam Calderón y Piñeros. “Em nossos projetos, fazemos então revisões históricas e decoloniais para nos questionarmos sobre o passado, o presente e as formas como a história foi contada, a fim de ampliar as visões e gerar novas posições críticas.”

Cena de “Volando Bajo”, de Calderón y Piñeros. Foto: Divulgação

Mulas e aviões

Também como metáfora de resistência – por mais que nunca tenha sido símbolo de modernidade – um novo personagem surge em Volando Bajo embarcando no DC-3 para um voo. O improvável passageiro, no caso, é uma mula, animal que também já fazia parte de pesquisas anteriores de Calderón y Piñeros. “A ideia de usar a mula surgiu quando vimos um esboço feito pelo arquiteto suíço Le Corbusier em uma de suas viagens à Colômbia, na década de 1940. Ele descobre que naquela época a ferrovia e o automóvel eram quase inexistentes e o país parece ter dado um salto, abruptamente, da mula ao avião”, explicam. De la mula al avión, justamente, foi o título da exposição realizada pela dupla em Bogotá ao fim de 2019 como parte do X Premio Luis Caballero. Na mostra estavam expostos justamente o filme Volando Bajo – fruto da residência que a dupla realizou na Villa Ruffieux, Suíça, como prêmio por sua participação na 20ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (2017) -, além de esculturas de mulas feitas de vime. 

A mula e o DC-3, deste modo, surgem no filme mais a partir de seus pontos em comum – por menos óbvios que pareçam – do que por suas notáveis diferenças. Em dado momento da narrativa, o avião nos conta de seu diálogo com uma mula que, assim como ele, também sabia sobre alturas, viagens, guerras, resistência no tempo, acidentes e fracassos. Mais do que isso, a mula teria lhe contado que também sabia voar: “Somos conexões entre o céu e a terra, uma espécie premonitória e híbrida, somos pégasos estéreis que voam em um tempo suspenso como um sonho”. Sobre o assunto, Calderón y Piñeros explicam: “Encontramos aí um nexo, um diálogo momentâneo entre duas formas de transporte. Eles são duas aparências supostamente opostas que representam diferentes visões ou ideias de progresso. O avião parece representar ‘o que você deseja alcançar’, a ideia de modernidade e desenvolvimento. A mula tem sido historicamente pouco tratada, até mesmo pela iconografia da arte vemos poucos exemplos em que ela seja exaltada – ao contrário do que aconteceu com o cavalo”.

Cena de “Volando Bajo”, de Calderón y Piñeros. Foto: Divulgação

Acontece, no entanto, que o progresso prometido pelo avião nunca foi realmente alcançado, enquanto a mula, sempre ligada ao trabalho de carga, segue existindo há tempos imemoráveis. “O diálogo entre um plano obsoleto, símbolo de um progresso aparente nunca alcançado, e uma mula milenar é então uma conversa pertinente, provável e, por sua vez, um símbolo de formas de resistência. Acreditamos que neste personagem da mula [que no filme ganha asas de vime] se concentram muitas das preocupações quanto a ‘querer ser’, ‘fingir ser’ e ‘poder ser”. Ela torna-se metaforicamente e visualmente um ser alado extraordinário, mas que ainda parece humilde, belo e próximo, capaz de voar ou de nos fazer acreditar que o faz, mesmo que só consiga voar baixinho”, conclui a dupla. Ao longo de Volando Bajo, portanto, enquanto se suaviza o aparente contraste entre animal e máquina – entre natureza e cultura -, fica cada vez mais claro que uma mula de asas ou um avião “que fala” nos revelam muito mais sobre a realidade concreta do mundo do que pode parecer – especialmente sobre o caso latino-americano. E ao nos abrir os olhos para ruínas, desigualdades, incertezas e fracassos, não deixam de reforçar a eterna possibilidade de resistência.

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