Mostra realizada pelo artista no Centro Cultural BNDES reúne elementos da cultura pop e afroameríndia. Foto Pedro Agilson

Para ser um grande artista não é precisar usar o crachá da arte”, defendeu o artista Cabelo, em meio a sua própria retrospectiva, em uma conversa com o líder e xamã yanomami Davi Kopenawa, no dia 19 de abril passado.

Para o artista, que introduzia Kopenawa a uma plateia de mais de 300 pessoas, “originalmente o papel da arte é o papel do xamã, mas isso se perdeu”, como a indicar que as relações ritualísticas da arte deixaram de existir na sociedade que marca o artista mais como um decorador do que um criador de imagens simbólicas.

Duas décadas da obra de Cabelo foram vistas em Luz com Trevas, que ocorreu no Espaço Cultural BNDES, no Rio, entre março e maio deste ano. Para Lisette Lagnado, curadora da “anti-exposição”, como ela mesma definiu, são “20 anos de uma criação que considero indecifrável”.

De fato, mais que uma mostra, Luz com Trevas foi uma experiência com elementos extraídos das culturas pop e afro-ameríndia, onde era difícil perceber os limites de cada obra, em uma integração que parecia de fato um imenso penetrável, com vários nichos distintos, usando aqui termos concebidos por Hélio Oiticica. Havia cantos com imensos ovos, partes de ações, outros com tecidos distintos, lugares para sentar, lugares para deitar.

A própria ideia de cinema expandido, usada também por Oiticica, é referência já no título da mostra, por se apropria do conceito de sala de cinema, afinal um espaço de luz com trevas. Muitas projeções eram exibidas em todo espaço expositivo, quase todas possíveis de serem vistas simultaneamente, provocando uma espécie de vertigem, sem começo, meio e fim.

Foi nesse ambiente um tanto caótico e um tanto alucinógeno, que Cabelo recebeu Kopenawa com um relato bastante fantástico. Ele se recordou que, em 1992, durante a Conferência Mundial do Meio Ambiente, naquele mesmo prédio “do BNDES, que financia tantas obras que acabam com os índios”, foi ver um concerto e acabou participando de uma cerimônia de aspiração da yãkõana, o pó usado nos rituais yanomami. “Lembro bem do abraço do xamã que proporcionou aquela experiência, e que para mim foi só amor”, contou Cabelo. Mas a história ganhou contornos míticos quando ele disse que somente naquele dia, o 19 de abril de 2018, quando foi ao aeroporto buscar Kopenawa e contou a ele aquela lembrança, soube que tinha sido ele próprio quem abraçou Cabelo.

A presença de Kopenawa, para além da história pessoal com o artista, de fato tinha todo sentido ali. Por mais de uma hora, ele contou das dificuldades dos povos da floresta, ameaçados especialmente pelos garimpeiros, e como são os yanomami que acabam exercendo um papel de resistência e, ao mesmo tempo, da preservação da Amazônia.

“Trabalho de pajé é proteger, preservar a mãe terra”, disse Kopenawa. “Eu sou professor também, professor da humanidade. A gente não usa lápis, mas usa a fala para ensinar e aprender”, seguiu por seu caminho dialético.

Em uma mostra onde se rechaça o papel do artista como figura de destaque, que tem uma assinatura que o diferencia dos demais, a presença de Kopenawa ajudou a ampliar a compreensão da própria mostra, sendo até crítico na homenagem pelo dia do índio. “Índio nasceu na Índia, eu sou Yanomami”, afirmou de maneira definitiva.

O jornalista Fabio Cypriano viajou a convite da organização da mostra.

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