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Galleries Curate: nova forma de criar mercado

Monster Chetwynd,
Monster Chetwynd, "Hokusai’s Octapai", 2004, instalação na galeria Tanya Leighton (Berlim). Foto: Cortesia Tanya Leighton Gallery

O impacto causado pela pandemia do Covid-19 tem provocado mudanças inimaginadas. A perplexidade do presente, decorrente dos protocolos de reclusão e de fechamentos temporários de galerias, museus, feiras e bienais, sacudiu o sistema de arte desde o início do ano passado. Neste contexto, o desafio de vencer a crise e buscar saída para o inesperado colapso provocou a criação da plataforma colaborativa Galleries Curate: RHE. A ideia partiu de um grupo de galeristas ligados ao comitê das três feiras Basel – Miami, Hong Kong e Basileia – com a ideia de promover exposições virtuais simultâneas em galerias dos quatro cantos do mundo, em apoio à comunidade.

A primeira exposição tem a água como tema e foi sugerida pela galerista Chantal Crousel, de Paris, uma das primeiras a abraçar a ideia. O grupo evidenciou as inegáveis limitações que seus espaços viviam naquele momento e decidiu mudar o cenário com um diálogo virtual dinâmico entre os programas individuais de cada galeria, fosse ela de Jacarta, Bruxelas, Singapura, Nova York, Rio de Janeiro, Tóquio, ou Paris.

A única galeria brasileira integrante deste pool internacional é A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, dirigida por Márcio Botner, um de seus proprietários. Engajado no comitê de Basel Miami, ele é um globetrotter do circuito, ligado a vários projetos pelo mundo e um dos mais animados com a Galleries Curate. “A ideia nasceu dos contatos virtuais de um grupo de 12 pessoas e me impressionou quando logo chegamos a 21 participantes”. Envolvido em tantos projetos, ele acredita na colaboração horizontal entre artistas, galeristas e críticos, unindo pessoas que pensam próximo aos objetivos do grupo. Cada galeria propôs o que queria mostrar e eles deram início às exposições no começo deste ano. “O que está acontecendo é algo especial. Ao mesmo tempo que temos galeristas consagrados, contamos com jovens entusiastas com menos tempo no mercado. A plataforma começou a ser pensada publicamente neste ano e as pessoas agora estão conhecendo melhor o projeto.”

O francês Clément Delépine, jovem coordenador da Galleries Curate: RHE e codiretor da feira Paris Internationale, também intermedia parte das lives do projeto. Para ele, desde as primeiras tratativas, essas conversas se constituem como uma terapia de grupo. “O projeto traz no título o enigmático símbolo RHE, medida de unidade e impermanência, definida por duas palavras gregas: panta rei, que significa ‘tudo se move’.” Delépine faz uma analogia entre o elemento água, fundamental em nossas vidas, e o esforço deles para criar alternativas na crise global. O trabalho transcende sediar exposições online, plataforma digital, pois há também a preocupação de arquivar materiais referentes às obras em exibição. Ao serem adicionados novos conteúdos, projetos passados e atuais são mixados.
As exposições têm temas múltiplos e a maioria fala do meio ambiente. Na coletiva Tempest, da galeria Tanya Leighton de Berlim, a artista Monster Chetwynd se destaca ao moldar a figura de um polvo enorme executado em látex, pintado e colocado lascivamente sobre o piso. A instalação se completa com a xilogravura ampliada em xerox e fixada na parede de um exemplar da série erótica O Sonho da Esposa do Pescador (Kinoe no komatsu), do artista Katsushika Hokusai, executada em impressão popular shunga no século 19. O trabalho e a vida de Monster Chetwynd tangenciam a performance, poética com a qual ela se identifica. Num jogo de identidades, a artista de Glasgow muda seu nome de quando em quando, assim como fazia Hokusai, artista que ela reverencia e que ao longo da vida teve mais de 30 nomes. A água aqui se apresenta como metáfora, sonho ou delírio mítico de um gozo nunca vivenciado.

Numa perspectiva mais programática do movimento ecológico, a Galleria Franco Noero, de Turim, exibe o filme de Simon Starling, Projeto para uma travessia do Vale do Rift. O still, composto de imagens paradisíacas, registra poeticamente uma canoa, construída com magnésio extraído das águas do Mar Morto usada em 2016, numa tentativa de atravessá-lo, partindo de Israel à Jordânia. A experiência avança em vários sentidos e revela que neste trecho, localizado no Vale do Rift, a água é altamente salgada e que o lugar se destaca por ser o mais baixo do planeta – está a 427 metros abaixo do nível do mar. Ainda alerta que a região é muito explorada por guardar riquezas minerais especiais: um litro de água contém 45 gramas de magnésio.

Há trabalhos filosoficamente engajados no simbolismo do tempo e sua duração. A galeria Jean Mot, de Bruxelas, mostra o filme Canção para Lupita, de Francis Alÿs, de 1998, uma animação em 16mm. A água se desloca no itinerário poético de Alÿs ao longo de toda a película. Uma mulher despeja água de um copo para outro repetidamente. A ação de fazer e desfazer é acompanhada por uma música cuja frase Mañana, mañana és breve para mi pode sugerir um prolongamento ou esperança contínua para o futuro.

A galeria A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, ancoradouro de fantasias astrais e experiências renovadoras, mostra Descompasso Atlântico, de Arjan Martins, que acontece em dois locais e com poéticas diferentes. No interior da galeria, as pinturas mantêm foco narrativo tanto na herança escravagista como na atual situação da população negra. A céu aberto, em plena praia de Ipanema, Arjan Martins realiza uma instalação colorida de inspiração geométrica que conversa com o oceano Atlântico, antiga rota dos navios negreiros. Composta por cinco birutas, objetos normalmente usados em aeroportos para controle do vento, a instalação traz em cada um deles um símbolo dos avisos marítimos: homem ao mar, carga perigosa etc. Propositalmente, a galeria abriu a exposição em 22 de abril, dia em que no ano de 1500 os colonizadores portugueses desembarcaram no Brasil. A ideologia da sobrevivência atravessada por Galleries Curate: RHE faz das declarações de intenções desse grupo um espaço ampliado de ver e registrar o novo normal.

Instalação de Birutas, 2021, de Arjan Martins, com símbolos da sinalização entre embarcações e o porto, parte do Galleries Curate
Instalação de Birutas, 2021, de Arjan Martins, com símbolos da sinalização entre embarcações e o porto. Foto: Fagner França

Repaginado, Museu da Língua renasce no centro de São Paulo

Estação da Luz, sede do Museu da Língua Portuguesa. Foto: Joca Duarte / Divulgação
Estação da Luz. Foto: Joca Duarte / Divulgação

Totalmente pronto para ser reinaugurado após seis anos de reformas, o Museu da Língua Portuguesa (MLP) já começou a aquecer os motores na expectativa de finalmente poder abrir suas portas, o que deve ocorrer no final de julho ou assim que a pandemia permitir. Além da reedificação física, que remontou a estrutura destruída por um incêndio em 2015, a instituição aproveitou a oportunidade para reorganizar-se conceitualmente e atualizar conteúdos e estratégias de comunicação com o público. De forma geral, o conceito do projeto permanece o mesmo, baseado numa perspectiva antropológica, histórica e social da língua, tal como alinhavado há quase 20 anos. 

Como trata-se de um acervo basicamente virtual, os arquivos não foram destruídos pelo fogo e foi possível remontar grande parte da mostra original. A possibilidade – e necessidade – de refazer a exposição do zero trouxe, no entanto, a oportunidade de aperfeiçoar a mostra permanente e atualizar aspectos importantes, incorporando transformações pelas quais a língua passou no período e propondo uma reflexão sobre debates contemporâneos ligados a questões identitárias, que vem mobilizando intensamente o debate nos últimos anos. 

No Museu da Língua Portuguesa: As instalações "Palavras Cruzadas", em primeiro plano, e "O português do Brasil", ao fundo. Foto: Joca Duarte / Divulgação.
As instalações “Palavras Cruzadas”, em primeiro plano, e “O português do Brasil”, ao fundo. Foto: Joca Duarte / Divulgação.

A instituição também abriu espaço para um diálogo mais intenso com variados campos da cultura, para além de sua íntima relação com a literatura, incorporando novas formas de pensar a língua também a partir de elementos do cotidiano e de outras formas de expressão, como as artes visuais. O resultado dessa nova abordagem é a primeira mostra temporária do museu, já acessível a grupos pequenos de visitantes, intitulada Língua Solta (ler aqui). “Desde lá atrás queríamos trazer objetos atravessados pela língua”, explica a curadora especial da instituição, Isa Grinspum Ferraz. Afinal, como diz o escritor moçambicano Mia Couto, em live organizada pela instituição, “a língua portuguesa não funciona em abstrato”.

Dentre as novidades trazidas pelo museu nessa nova roupagem estão também a incrementação da linha do tempo, que percorre a história da língua portuguesa desde o Lácio, na antiga Roma, até os dias de hoje, com a problematização de momentos fundamentais dessa trajetória, como o ano de 1500 – no qual foram inseridos depoimentos de líderes indígenas como Davi Kopenawa e Ailton Krenak questionando a ideia de descoberta e explicitando o processo de invasão de terras já habitadas. Em sentido quase oposto, a instalação Nós da Língua Portuguesa (“nós” tanto em termos de entrelaçamento, como de pronome que indica uma coletividade) ressalta a importância do português como língua de libertação dos países africanos, permitindo uma confluência de diferentes povos e dialetos em um projeto comum, vivenciado em países como Moçambique, Angola e Cabo Verde. Por último, dentre as novidades, Isa Grinspum destaca a nova instalação Falares, curada por Marcelino Freire e Roberta Estrela D’Alva, que cria um bosque de telas nos quais é possível perfazer um passeio, assistindo uma trama de depoimentos, de falares icônicos, sotaques e tribos do português. 

Museu da Língua
Área expositiva do Museu da Língua Portuguesa. Foto: Governo do Estado de São Paulo

Quando inaugurou, em 2006, o uso massivo da tecnologia virtual era uma das marcas fortes do MLP. Hoje, com uma maior familiaridade das pessoas com esse tipo de recurso e o aprimoramento dos equipamentos, seu protagonismo parece mais diluído. “A tecnologia veio a serviço, para contar uma história. Como a língua é impalpável, imagens e sons são muito úteis. Não buscamos a interatividade pela interatividade”, pontua a curadora. Segundo ela, o que importa é estimular ao máximo o interesse do visitante, fazendo com que saia do museu com mais perguntas do que entrou. 

Diante dos desafios impostos pela pandemia – que vem adiando sua reabertura e impõe a necessidade de encontrar novas formas de contato com os potenciais visitantes –, o museu também vem aproveitando para desenvolver novas formas de interação virtual com o público. Aproveitou o dia internacional da língua portuguesa para mostrar um pouco de sua nova cara, realizando uma série de conversas e apresentações online, que já foram vistas por mais de 15 mil espectadores, com figuras de grande relevância no pensamento do papel da língua, como Mia Couto, José Eduardo Agualusa e José Miguel Wisnik. Lançou também ciclos de palestras virtuais e pretende estabelecer ciclos de debates, formação de professores, mostras de cinema, saraus, e outras atividades capazes de espraiar essa produção para além do espaço físico. 

Ir para fora é, aliás, um dos motes do Museu da Língua Portuguesa, seja em termos de conteúdo (no que a comunicação digital pode contribuir muito) seja em termos espaciais, conectando-se de forma mais intensa com o entorno de sua sede na Estação da Luz, por onde transitam centenas de milhares de pessoas, todos os dias. 

 

Maxwell Alexandre: ‘Pardo é Papel’ ou a grandeza épica de um povo em formação

Os responsáveis pela programação do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, fizeram coincidir nas suas galerias as exposições de dois artistas afro-descendentes: Pardo é Papel, mostra itinerante do artista carioca Maxwell Alexandre; e Di Cavalcanti – Muralista, mostra do consagrado pintor modernista, curada por Ivo Mesquita. Este “encontro” nos permite acompanhar a força da história da pintura afro-brasileira em dois momentos diferentes e desde perspectivas pictóricas distantes, porém entrelaçadas. Um olhar mais paciente talvez perceberia coincidências narrativas importantes entre esses universos aparentemente dispares, mas, aqui, vamos nos concentrar neste jovem artista negro que irrompeu na cena nacional e internacional com força peculiar.

Desde o fim do século 19, no ocidente, as academias de arte estabeleceram cânones que emprestaram importância – relativa – aos variados gêneros de pintura. Desse modo, mais meritórios e dignos de consideração (e consumo) seriam os processos que resultassem em obras dedicadas à afirmação das elites de plantão, fossem elas eclesiásticas ou não. As obras que retratassem essas aristocracias estariam garantidas no topo de uma pirâmide hierárquica de valores estéticos e políticos. 

Fazer-se representar era imperioso e, na ausência do monarca, reverenciava-se a figura e autoridade expressa pela pintura ou escultura. As representações do rei ou dos nobres projetavam simbolicamente os seus poderes e, por isso, eram copiosamente realizadas e distribuídas. Da mesma forma, seus feitos recebiam grande atenção, já que a partir das pinturas de caráter histórico divulgavam-se façanhas guerreiras ou piedosas dos monarcas e seus congêneres. 

Entre nós essa pintura de tipo histórico, que resulta quase que obrigatoriamente épica na sua aparência e pretensão, foi também praticada e algumas destas obras ocupam ainda hoje um lugar central nas narrativas que vaticinam o nascimento do Estado e nação brasileiros.

UM CIGARRO E A VIDA PELA JANELA, de Maxwell Alexandre
“Um cigarro e a vida pela janela”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

No nosso caso, obedecendo aos cânones acadêmicos herdados e colonialmente impostos, essas pinturas apresentam heróis em ação, como aquela Independência ou Morte, realizada em 1888 pelo paraibano Pedro Américo (1843-1905) e hoje pertencente ao acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, onde se vê o ainda príncipe Pedro ladeado por uma comitiva e escoltado por cavalarianos erguendo a espada e decretando a independência brasileira de Portugal. 

A outra, Batalha do Avaí, também de Américo, foi concluída em 1877 e pode ser visitada no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Nela está representa uma verdadeira multidão de soldados engalfinhados em renhida batalha e que tem ao fundo um Duque, aliás, Caxias, cuja farda está aberta – ao que consta, isso provocou o desagrado do retratado -, que montado em seu cavalo branco coordena altivo e distante os movimentos da “sua” tropa fatalmente vitoriosa.  

Essas obras têm em comum as dimensões gigantescas, o profuso número de militares que protagonizam ou apoiam as ações descritas e, sobretudo, o papel subalterno e periférico dos personagens representativos da fração popular daquela sociedade, sejam negros, mulheres, indígenas ou brancos miseráveis.

A Batalha do Avaí é notória pelo número de personagens nela representados, pelo prodígio técnico implicado na sua realização e claro, pela impressionante descrição que faz de um momento crucial da batalha que descreve. Naquela profusão de personagens, de corpos em dinâmico e dramático choque, num primeiro plano central e aos pés da cena vemos o corpo de um soldado negro que jaz com a cabeça ferida – do crânio fendido escapa a massa encefálica. Os negros representados nessa batalha lutam pela soberania do país que os mantinha escravizados. No entanto, o corpo desumanizado pela escravidão é o mesmo que verte sangue e vísceras naquele combate titânico apresentado por Pedro Américo.

A LUA QUER SER PRETA, SE PINTA NO ECLIPSE, de Maxwell Alexandre
“A lua quer ser preta, se pinta no eclipse”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

As pinturas de Maxwell Alexandre expostas na mostra Pardo é papel – inicialmente mostradas no Museu de Arte Contemporânea de Lyon (França), em 2019, e depois no Museu de Arte do Rio (MAR) e na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre – também possuem um caráter épico, grandioso, consagrador e, certamente histórico. 

Elas não foram realizadas na Europa como aquela de Américo. Não são resultado de uma solicitação do Estado, nem foram pintadas em fino linho. Também não ostentam uma rebuscada moldura dourada que exibe as armas do império. Pelo contrário, as pinturas de Alexandre expostas no Instituto Tomie Ohtake foram realizadas num suporte frágil que sequer é sustentado por um chassi. A fragilidade desse suporte, o papel, é facilmente detectada e percebida nos rasgos que foram incorporados à pintura. A Arte Povera, pobre, surgida na Itália dos anos 1950 e 1960 também fazia elogio ao material barato empregado pelos artistas que aderiram a essa estética. Lá como aqui, essa escolha destaca uma atitude política. 

Assim como nos clássicos, a pintura de Maxwell Alexandre trás também multidões num movimento dinâmico. Mas, à diferença de outras obras, propositalmente os corpos ali apresentados são todos negros, inequivocamente negros, e pintados em situações corriqueiras do seu dia a dia. E não são anônimos. Apesar de não terem seus rostos esboçados, é possível identificar o poeta e sambista Cartola, o demiurgo Arthur Bispo do Rosário ou Jean-Michel Basquiat, que se aglutinam à miríade dos outros sujeitos dessa cena negra feérica que só na superfície plana do papel parece caótica, já que o espaço projetado é bem composto por cores sólidas ornadas de dourado. 

Sem título, da série Novo Poder, Maxwell Alexandre, 2019. Gabi Carrera / Divulgação

Na entrada da galeria que abriga a mostra há uma enorme pintura que representa um grupo de pessoas negras observando e comentando uma pintura apresentada como um painel, bege, ou pardo, um grande e vazio retângulo amarelo Nápoles, um amarelo muito pálido. Ali é pintura dentro da pintura, meta-pintura. Maxwell Alexandre nos faz contemplar pessoas que, por sua vez, observam um painel (dentro do painel) onde se enxerga uma única cor. Um ácido e inteligente comentário sobre o cubo branco, sobre a instituição cultural que o projeta e que reflete de maneira narcísica só a cor do branco admitido neste espaço, sem espelhar os pretos que também o ocupam. Se há referências a Basquiat na pintura de Alexandre, essa influência não tira a potência das obras do artista e, além do mais, apresenta-se legítima. Não deixa de ser consagrador que jovens artistas negros e negras possam referir-se a outros igualmente pretos, excelentes como suas influências.

A opulência do dourado sobre o azul, ouro iridescente sobre vermelho, ouro cintilante sobre o verde, estão presentes à composição dessas pinturas quase como lembrança do metal precioso que, prospectado pelos escravizados nos garimpos de Minas Gerais, fez a riqueza de muitos – menos daqueles que o extraiam. O dourado emoldura os elementos da cultura pop, do consumo, os símbolos da ascensão social promovida pelo esporte, pelo trabalho, pela arte e pela delinquência às vezes inevitável no caminho do excluído.

ÉRAMOS AS CINZA E AGORA SOMOS FOGO, de Maxwell Alexandre
“Éramos as cinzas e agora somos o fogo”, Maxwell Alexandre, 2019. Foto: Gabi Carrera / Divulgação

Pode ser que identifiquemos nas pinturas de Maxwell Alexandre algum caráter festivo, de festa profana e sacra. Nesse caso é preciso compreender o quanto a festa se traduz em resistência para aquela parcela da população que é o alvo preferencial das “balas perdidas”, das munições da necropolítica que mutilam famílias e liquidam vidas jovens ou ainda no ventre das jovens mães, mas que não contém nem dissipam o gênio insubmisso dessa insurgente arte contemporânea preta brasileira. 

Instituto Transarte: por um um futuro LGBTQ+

Iwajla Klinke, sem título, da série
Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte

As velhas certezas, ainda presentes no sistema brasileiro de arte, aos poucos se apagam com iniciativas como a Transarte, galeria pioneira na apresentação de artistas com temática LGBTQ+ e que agora vira instituto. Desde que apareceu no circuito de arte, experimenta transmutações físicas e conceituais. Agora deixa a boêmia Vila Madalena e se instala, em sede definitiva, na Gabriel Monteiro da Silva, reduto da classe alta paulistana, com outros desafios.

Iwajla Klinke, sem título, da série "Ritual Memories". Foto: Transarte
Iwajla Klinke, sem título, da série “Ritual Memories”. Foto: Transarte

Qualquer situação nova, que se acrescente a outras, chega para oxigenar um sentido de futuro. Concebida por Maria Helena Peres Oliveira, a Transarte abriu suas portas em 2012 mostrando a que veio. Expôs obras do enigmático artista norte-americano Timothy Cummings, resultado da residência de um ano realizada em São Paulo. Nenhum travelling de recuo ou de avanço conseguirá desvendar sua atormentada obra e nem mesmo os autorretratos deixam uma pista. Para Catharine Clark, galerista de San Francisco, “o trabalho de Cummings é ao mesmo tempo clássico e subversivo, formalmente lindo e tematicamente assustador”. Para Maria Helena, a fotógrafa Iwajla Klinke, de Berlim, tem qualidade insuspeita e por isso também foi convidada. Ela trabalha o feixe de luz natural como instrumento narrativo. A série Ritual Memories, com dorsos nus de jovens, mistura estranheza e sensualidade com takes sequenciais: homem só, homem espelho, homem narciso, homem viado. A operação é fluída, mas oposta à espontaneidade. Klinke os adorna ora com ratos e sapos pendurados no pescoço, ora com leves petecas de plástico ou rendas delicadas.

Na outra margem do oceano, a jovem brasileira Bia Leite descobriu muito cedo que os sonhos e a percepção se constroem no corpo a corpo com a vida. Aprendeu a desarmar seus agressores com uma pintura denunciadora. Premiada no edital Transarte LGBTQ+ com a tela Born to ahazar, que ficou conhecida por Criança Viada, ela ganhou notoriedade ao grafitar sobre a pintura xingamentos preconceituosos sofridos pelos homossexuais desde a infância. Bia tenta se desvencilhar do monstro que cresceu dentro dela, decorrente do bullying que sofre. O quadro participou da coletiva Queermuseum, no Centro Cultural Santander, em Porto Alegre, quando foi alvo de protestos, censura e tornou-se um dos vértices da alienação cultural insana do momento. Delicadeza também pode ser um ato de resistência. Silva M trabalha objetos encontrados ao acaso e, aleatoriamente constrói esculturas cuja superfície se assemelha à xilogravura. A jovem inventa resposta ativa para esse mundo disperso e abandonado, tecendo fragmentos com delicadeza desconcertante repleta de finas suturas que chegam às bordas e às reentrâncias, como um socorro dérmico.

“Sai Hétero”, de Bia Leite (2017). Foto: Transarte

A Transarte se reinventa, mas as residências permanecem nas perspectivas futuras que ocorrerão na nova sede, a casa que Maria Helena ganhou do avô quando tinha apenas 12 anos. Desde sua criação, a Transarte funciona com recursos próprios, sem apoio de leis de incentivos, por isso Maria Helena e sua companheira Maria Bonomi não pensaram em uma fundação.

A paisagem da arte é urbana e marcada pela vigilância. Para garantir espaço definitivo e legítimo para os artistas, está prevista a organização de uma iniciativa privada de longa duração para que o Instituto sobreviva depois da morte das proprietárias e já há dinheiro para isso. “Tivemos momento de avanço com a aprovação do STF de casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas agora piorou muito”, afirma Maria Helena. Expandindo o arco de ações, elas farão parcerias com residências como a Casa Florescer ou com outras instituições que também acolhem pessoas LGBTQ+ com traumas e de todas as idades. 

Os relatos dos artistas têm intensidade social e psíquica aterradoras. “Muita gente foge de seu local de origem, outros deixam a casa dos pais por ameaças ou abandonam as ruas pelos espancamentos, todos sem ter para onde ir”. Maria Helena quer propor também algo como arte-educação em forma de distração ou como suporte para as pessoas traumatizadas. Dessa forma a arte parece não ter sentido em si, mas na verdade é atravessada por outras potências, saberes, afetos, descobertas, que farão parte do conteúdo do Instituto. Será constituído um conselho com pessoas de várias áreas, não só para introduzir artistas e obras na circulação expositiva, mas também para pensar a pluralidade de projetos a serem gerados. O Instituto Transarte vai continuar contemplando exposições, editais, publicações de livros e residências artísticas. “Estamos falando de Instituto, mas seria uma ONG, sem fins lucrativos. Nossa proposta é de antimercado, começamos comercializando com preço baixo entre três e cinco mil reais, divididos em até 10 vezes, e o artista ainda pode receber adiantado, salvo as obras de estrangeiros.”

"Pyre of Persona", de Timothy Cummings (2012-2013). Foto: Transarte
“Pyre of Persona”, de Timothy Cummings (2012-2013). Foto: Transarte

O atrevimento de Maria Helena na adolescência, vivendo numa sociedade conservadora, parece ser o alicerce de sua forte e determinada personalidade de hoje. Nascida e sociabilizada numa família de elite, ela sempre se envolveu com arte, por influência da relação estreita com o tio Arthur Luiz Piza e pelo casamento com Maria Bonomi, ambos gravadores emblemáticos da história da arte brasileira. Maria Helena lembra a época dos delírios, das privações amorosas, quando um beijo em outra adolescente só era possível dentro de um elevador. Sua fala parte de um vazio que só foi preenchido depois que deixou São Paulo para se fixar em San Francisco, cidade de regras sociais pouco rígidas e onde ela se aproximou ainda mais da arte. Formada em química e com MBA na FGV, Maria Helena completou seus estudos nos Estados Unidos com mestrados em Marketing e em Arts Administration, trabalho no SFMOMA, na San Francisco Opera House e na galeria Catharine Clark.

Voltou ao Brasil em 2002 e faz produção e coordenação de exposições em vários museus. Todo esse aprendizado foi potencializado com outras iniciativas permeadas de questões sociais e políticas. No ano passado, com a pandemia do Covid-19 avançando, a Transarte buscou resposta da arte para o tema, produzindo o edital quarANTENA, que somou 400 inscrições e distribuiu seis prêmios de R$1200. Os artistas responderam à altura do chamado com trabalhos sobre esse tempo cruel de exclusão física. O Instituto Transarte surge no momento de desmonte da cultura no Brasil. O prognóstico é que esse projeto pioneiro, desafiador, de impacto artístico e social, sobreviva na direção de transformações há muito reivindicadas.

 

Carlito Carvalhosa: o caráter transitório das coisas

Foto horizontal, colorida. Instalação A SOMA DOS DIAS, de Carlito Carvalhosa, no Museu de Arte Moderna de Nova York em 2011
"A Soma dos Dias", Carlito Carvalhosa, no Museu de Arte Moderna de Nova York (2011). Foto: Cortesia da Galeria Nara Roesler e do artista
Foto horizontal, colorida. Carlito Carvalhosa está de pé, usa uma camisa branca de mangas curtas e uma calça cinza claro. Sorri. Ao fundo, a Instalação FAÇO TUDO PARA NÃO FAZER NADA.
O artista Carlito Carvalhosa em abertura de sua exposição na Galeria Nara Roesler em 2017. Foto: Cortesia da Galeria Nara Roesler e do artista

A morte prematura de Carlito Carvalhosa no último mês de maio, aos 59 anos, despertou um forte sentimento de tristeza e impotência, expresso de maneira contundente nas redes sociais de admiradores, artistas, críticos, colecionadores, marchands e todas essas categorias que compõem o difuso grupo conhecido como “circuito das artes”. A impossibilidade de realizar uma cerimônia de despedida e elaborar coletivamente o luto somou-se ao sentimento de desesperança vivido no país em consequência da tragédia sanitária, social e política em que estamos mergulhados. É sabido que o artista não morreu de Covid-19 e que há muitos anos lutava contra o câncer, mas restou uma sensação de que perdas como essa resumem o esgarçamento e a destruição de um projeto civilizatório no qual a arte desempenharia um papel fundamental. Objeto de intensas manifestações de afeto e admiração, Carlito e sua obra acabaram por corporificar essa noção de arte como elemento de reflexão e transformação, hoje tão violentamente ameaçada.

Se há algo que caracteriza de forma mais geral a obra do artista é seu desejo de atuar nas fronteiras perceptivas, transformando nossa apreensão de mundo e reafirmando o caráter transitório das coisas. Sua carreira começa na década de 1980, vinculada a um projeto de viés coletivo, junto a um grupo que incluía Fábio Miguez, Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade. O grupo, conhecido como Casa 7 (referência ao número do ateliê que dividiam), partilhava interesses comuns como a ligação com o neo-expressionismo e o uso de materiais pouco nobres como o papel Kraft e a tinta industrial. As experiências iniciais de Carlito com o desenho e a pintura pouco a pouco foram dando espaço também para pesquisas de cunho mais escultórico, para um interesse crescente pela ocupação do entorno. Ele passa a explorar o ambiente, incorporando elementos simples e brutos, mas de forte carga simbólica, como a luz, os tecidos translúcidos, a madeira e o gesso, materiais que passaram a ser frequentes em sua produção.

“Quis dar um nó nesse espaço”, confessou ele ao longo da montagem de sua primeira grande instalação site specific, realizada no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), em 1999. Nesse trabalho, intitulado Duas Águas, Carlito literalmente transferiu seu ateliê para o museu e travou um embate com a arquitetura rigorosa e retilínea de Paulo Mendes da Rocha (outra grande perda das últimas semanas), criando in loco uma série de monumentais estruturas em gesso, com formas orgânicas, que invertiam a noção de interior e exterior. De aparência leve, mas pesando oito toneladas, essas peças mantinham aquele aspecto paradoxal, indevassável, que o artista dizia buscar em seu trabalho.

Essa obra inaugura uma série de diálogos travados por ele com ambientes museológicos de grande importância institucional e arquitetônica, considerados como marcos tanto em sua produção como na importância crescente das grandes instalações na arte contemporânea brasileira. É o caso, por exemplo, da mostra Sala de Espera, que inaugurou no ano de 2013 o anexo da nova sede do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-USP), das instalações A Soma dos Dias, com versões similares apresentadas no octógono da Pinacoteca do Estado (2010) e no Museu de Arte Moderna de Nova York (2011), ou ainda da monumental escultura Já estava assim quando cheguei. A peça, exibida originalmente no MAM Rio em mostra temporária realizada em 2006 e posteriormente incorporada pelo acervo do Sesc Guarulhos, remete à imagem do Pão de Açúcar às avessas, uma montanha volumosa que flutua invertida no ar, provocando o visitante com seu caráter instável e precário. Um aspecto secundário, porém instigante, no trabalho de Carlito é a atenção que ele dá à palavra. Seus títulos trazem sempre uma dimensão poética, uma sugestão temporal ou narrativa que adere ao trabalho, somando-se ao aspecto formal e gerando outra camada de significados.

Há em comum em todos esses projetos, que jogam com luz, equilíbrio, volume, profundidade e transparência, um desejo permanente de transformar sutilmente nossa apreensão daquilo que nos cerca. Ao acionar esses espaços por meio de pequenas intervenções (como quando ergueu os heráldicos móveis da Fundação Eva Klabin, colocando sob eles frágeis copos de vidro) ou de ações de maior impacto visual ou sensorial (como as grandes espirais de tecido translúcido que compõem a cena em Soma dos Dias), cria uma espécie de lugar fora do tempo, em que as sensações de pertencimento e ausência se sobrepõem. Algo que Lorenzo Mammì definiu como um “não lugar”. Ou, nas palavras de Marta Mestre, uma situação que é extremamente ambígua, “porque vacila permanentemente entre contemplação e experiência, entre distância e aproximação, entre óptico e háptico”. Em outras palavras, a obra de Carlito Carvalhosa vai além de desafiar o espectador com instigantes provocações temporais e espaciais. Ao longo de mais de três décadas, ele problematiza a relação entre a obra de arte e o público, incorporando-se à melhor tradição da arte contemporânea brasileira.

Carta a Sidney Amaral

Bem Me Quer, Mal Me Quer (2011), Sidney Amaral, exposta em VIVER ATÉ O FIM O QUE ME CABE - SIDNEY AMARAL: UMA APROXIMAÇÃO
"Bem Me Quer, Mal Me Quer", Sidney Amaral, 2011. Foto: Coleção particular/Cortesia Sesc Jundiaí
"Gargalheira ou quem falará por nós", Sidney Amaral, 2014. Foto: Coleção particular/Cortesia Sesc Jundiaí
“Gargalheira ou quem falará por nós”, Sidney Amaral, 2014. Foto: Coleção particular/Cortesia Sesc Jundiaí

*Por Daniel Lima

Nunca te conheci, Sidney. Apesar de sermos dois artistas plásticos da mesma geração, da mesma cidade, não nos encontramos em vida. Mais raro ainda se faz este desencontro se pesarmos que somos dois artistas negros, uma exceção no mundo da arte contemporânea – mais ainda no início dos anos 2000, quando iniciamos nossas carreiras.

Logo nas minhas primeiras exposições, meu caminho bifurcou para um trajeto distante das galerias de arte. Fui parte desta geração que optou por um encontro com a cidade, com as contradições do espaço urbano. Um campo de batalha para criações poéticas num embate de escala, linguagens e contextos político-sociais.

Enquanto você desenvolvia estes trabalhos poderosos que fazem parte da exposição Viver até o fim o que me cabe! – Sidney Amaral: uma aproximação, com curadoria de Claudinei Roberto da Silva, eu estava também na lida de trabalhos poéticos com soluções plásticas e conceituais distintas. Mas os atravessamentos são os mesmos, Sidney…

Percebi estas transversalidades no meu encontro com sua obra quando estava realizando a exposição Agora Somos Todxs Negrxs?, no Galpão Videobrasil em 2018. Com a ajuda do Claudinei Roberto – que tinha sido colega na USP e que certamente pode compactuar de ser negro nestes espaços de exceção -, pude encontrar suas obras em seu habitat natural: o ateliê onde deitavam cobras douradas de dentes de garfo; barbies sem cabeça em sólido bronze; colheres armadilhas de comer. Os desenhos e pinturas de um virtuosismo da técnica em encontro com este duplo da identidade: a contradição da negritude.

Ser parte de uma imensa minoria na arte contemporânea e maioria na população nos dá esta certeza da importância de inscrever essa perspectiva afro-brasileira tão invisibilizada. Ao mesmo tempo, é certa a armadilha identitária que temos que transcender. Um duplo desafio de trazer o contexto singular que nos forjou, mas também, de atravessar os limites do que se considera como denúncia de mazelas sociais do nosso mundo. Uma contradição a ser elaborada em dois sentidos: em relação à armadilha identitária e outro, conexo a identidade, na articulação da denúncia social e do anúncio de outras perspectivas futuras.

As armadilhas são semelhantes à medida que colocam o problema de como fugir dos quadros criados para um fazer político poético. Em outras palavras, Sidney, tivemos à frente o desafio de falar a partir do lugar de indivíduos negros – e nesta operação do olhar para si mesmo é quase impossível ignorar as violências que nos atravessam – mas, ao mesmo tempo, desvestir-se da roupa identitária negra pois foram criadas para nos amarrar e tolher potências de vida. Como coloca Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra:

“Não persistirá ele próprio a se reconhecer apenas pela e na diferença? Não estará convencido de ser habitado por um duplo, uma entidade estrangeira que o impede de se conhecer a si mesmo? Não vivenciará seu mundo como um definido pela perda e pela cisão e não nutrirá o sonho do regresso a uma identidade consigo mesmo, que regride ao modo da essencialidade pura e, por isso mesmo, muitas vezes, do que lhe é dessemelhante?”

Este duplo na sua obra, Sidney, surge em ataque a si mesmo. Afirmar-se negro em imagem, plenitude, luta, dignidade, num sentido reverso à animalização histórica do negro no mundo colonizado. Simultaneamente golpeado pela certeza que algo nos enterra numa retórica de morte:

“A ameaça assombrosa, para milhões de pessoas apanhadas nas redes da dominação racial, de verem seus corpos e pensamentos operados a partir de fora e de se verem transformadas em espectadores de algo que, ao mesmo tempo, era e não era a sua própria existência” (MBEMBE).

Sidney, quando fui à África pude entender que “negro” foi criado aqui nas Américas para nos definir, dominar e diminuir. Um termo que, como coloquei no título-pergunta provocação da nossa exposição Agora somos todxs negrxs?, foi criado para “significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado”, escreve Mbembe. Mas que, pela necessidade de sobrevivência, foi ressignificado por um caminho de luta da mesma história de violência e resistência. Ser negre passou a significar que somos irmãos e irmãs, filhos e filhas da diáspora afro-atlântica. E desde então este ser negro “tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias histórias simultaneamente”.

Acredito que este duplo que reencenamos juntos com tantos outros nesta geração redefine significados de imagens consolidadas e consolidadoras de estereótipos. O menino negro com a camiseta máscara; o anjo soldado; a mulher que sorri com coroa de flores… Maneiras de recolocar imagens no mundo – e, desta forma, nos recolocamos.

Estes movimentos são conscientes da limitação em “simplesmente estabelecer novos símbolos de identidade, novas ‘imagens positivas’ que alimentam uma ‘política de identidade’ não reflexiva”, como escreve Homi Bhabha em O Local da Cultura. Por desgaste e provocação desta dupla identidade, construímos um labirinto que leva, afinal, a identidade multiplex: não fluidas, amorfas ou escorregantes, mas antes sólidas em muitos lados definidos pela negação, pelo o que não somos.

Assim, os temas, seja da escravidão como em Gargalheira ou quem falará por nós?, seja da religião católica colonial em Demiurgo ou O Pão Nosso, mas também da história recente em Diálogos/Encontro retornam como este “presente disjuntivo”, um presente quebrado em interpretações conflitantes, contraditórias. Este deslocamento incomoda muitos porque desconstrói mundos de crenças estáveis. Somente o deslocamento racial, a figura negra no contexto canônico da arte, já desloca o mundo à sua volta.

Estas imagens mito, imagens memória, imagens tempo que invadem e colonizam subjetividades, Sidney, estão sendo reinscritas por nós não como símbolos heróicos de uma política de identidade. São reinscritas na “própria textualidade do presente, que determina tanto a identificação com a modernidade quanto o questionamento desta: o que é o ‘nós’ que define a prerrogativa do meu presente?”, aponta Bhabha.

Certo que este “nós” da nação brasileira nunca nos incluiu. E, neste estágio do capitalismo, muitos começam a perceber que também não os inclui mais. O estágio atual de exploração, seja material, seja cognitiva, coloca uma grande maioria lado a lado numa fractal de segregação. “De agora em diante todos serão conhecidos genericamente como negros”, afirmava a Constituição Haitiana de 1805, fruto da única revolta negra a tomar o poder definitivo e da primeira nação americana a abolir a escravidão. “Agora somos todos negros!”, afirmavam para pactuar a resistência entre nós.

Nós pactuamos, entre trancos e barrancos, entre batalhas e guerras, entre desconstruções e descolonizações, que não vamos sucumbir ao sequestro do futuro. Reencenamos
o passado com os delírios do presente. Vejo na sua obra, Sidney, uma força nada próxima do surreal onírico, mas sim limítrofe do delírio: uma potência de fascinação e alucinação.

Sidney, tomei a vacina imunizante do vírus Covid-19 no dia que fui visitar a sua exposição Viver até o fim o que me cabe!, no Sesc Jundiaí. De manhã, já tinha preparado meus documentos. A médica que me recebeu depois da pouca espera na fila, estava sentada no drive-thru desativado. Algumas pessoas passavam perguntando qual vacina estava sendo aplicada e que dia chegaria a da Pfizer. Os olhos verdes da médica examinaram o diploma da PUC cheio de escritos dourados. Depois ela preencheu uma ficha e me perguntou sobre minha autodenominação: negro. Lembro que consigo escapar da estatística que coloca a população negra entre as menos vacinadas do país. O Brasil vacina duas vezes mais pessoas brancas do que negras (dado da Agência Pública). Escapei porque entro na faixa dos que têm diploma em Psicologia Clínica. Este é um tipo de medida que subterraneamente abre caminho para uma parcela branca – que não necessariamente tem maior risco – se vacinar antes. “Aceitar somente o diploma é medida feita para branco se vacinar”, a médica concorda. E me vejo aqui. Sim, sempre fomos a exceção, Sidney.

VIVER ATÉ O FIM O QUE ME CABE – SIDNEY AMARAL: UMA APROXIMAÇÃO
ONDE: Sesc Jundiaí (Av. Antônio Frederico Ozanan, 6600 – Jardim Botânico, Jundiaí – SP)
QUANDO: 11 de maio de 2021 a 4 de setembro 2021. Terça a sexta, das 14h às 19h e sábados das 10h30 às 13h30
Ingresso gratuito. Visita mediante agendamento prévio.

“Presente”: uma publicação que surge do zelo e do diálogo

presente
Anna Maria Maiolino, "Capítulo I", da série "Mapas Mentais", 1971. Foto: Divulgação
Anna Maria Maiolino, “Capítulo I”, da série “Mapas Mentais”, 1971. Foto: Divulgação

Híbrido entre revista e livro, lançada em formato digital e gratuito, Presente é uma publicação com características bastante singulares no universo das artes. Não se trata de uma publicação de textos críticos ou resenhas, nem de um livro focado em imagens, sejam elas fotografias ou reproduções de obras. Não é também uma reunião de artigos acadêmicos, nem mesmo uma revista de linguagem jornalística. Presente, nova publicação concebida pelo curador Paulo Miyada e pela artista Anna Maria Maiolino, tem como foco correspondências – ou podemos chamá-las de cartas – e “outros formatos de textos e produções feitas entre duas ou mais pessoas”. 

Criada em resposta aos tempos difíceis da pandemia – em que a necessidade de distanciamento social afastou, ao menos fisicamente, as pessoas -, a revista surge como propositura de diálogos e trocas, como uma forma de aproximação e até de cuidado e zelo entre os participantes. Lançada no último mês de abril, com periodicidade trimestral, Presente é o desdobramento de uma primeira correspondência trocada entre Miyada e Maiolino ainda nos primeiros meses da pandemia de Covid-19. “No primeiro semestre de 2020, quando passamos a fazer o isolamento – pelo menos quem pôde e apesar da ausência de uma política de Estado neste sentido -, eu imaginei que para os artistas a suspensão dos encontros entre eles, e também de suas obras com o público, estaria sendo algo difícil”, conta Miyada. “E tentei pensar como é que, apesar de todos os cancelamentos e suspensões, seria possível manter algum nível de diálogo com essas pessoas.” 

Castiel Vitorino Brasileiro, “Corpo-Flor”, 2016-2021
Série fotográfica. Foto: Divulgação

Foi aí que o curador passou a escrever um conjunto de cartas para artistas que admirava e com quem já possuía algum tipo de convívio. Entre eles estava Anna Maria Maiolino, para quem o curador endereçou palavras sobre aquele contexto pandêmico, tão incerto,  transparecendo seus medos e inseguranças, mas também comentando sonhos e devaneios artísticos. Um diálogo afetuoso se seguiu com a resposta da artista, e a conversa acabou sendo publicada no blog Entretempos da Folha de S.Paulo. “Meses depois, no fim de 2020, a Anna me ligou e propôs de fazermos algo, uma publicação ou uma revista, um canal de conversa não só entre nós, mas agora expandido para outras pessoas que quisessem pensar o presente”. Com o convite já veio o título, assim como a decisão de que fosse uma publicação predominantemente de correspondências.

O nome, portanto, diz respeito aos três sentidos da palavra “presente”. Primeiro, o tempo atual, o agora, “que significa colocar em primeiro plano a possibilidade da arte debater o seu tempo, fazer parte de uma esfera pública, em que os problemas éticos são parâmetro fundamental dos problemas estéticos”, explica Miyada. Este “tempo presente” só pode existir, destaca ele, ao se olhar atentamente para o passado, sem invisibilizar a memória, e tendo algum horizonte de futuro, “ao menos a possibilidade de construção coletiva e de consequência para as ações individuais”. Em segundo lugar, “presente” é a interjeição enunciada por estudantes ao responder à chamada escolar e emitida por manifestantes em uma assembleia. “E isso me parece importante já como começo de conversa, assumindo que a revista quer expandir o diálogo para além da esfera familiar ou privada. Estamos aqui, pensando em voz alta sobre a situação”, diz Miyada. Por fim, “presente” se refere ao gesto de dar algo, a dádiva, importante pilar de sociedades do passado e do presente. “É um regime de intercâmbio não baseado na moeda, nem no pressuposto de acumulação infinita, mas baseado no dispêndio e na troca. E acho que a Presente tem um pouco desse espírito.”

presente
Pat Bergantin, da série “Metal”, 2020. Frame de vídeo, 30’’. Foto: Divulgação

Um outro tempo

Assim como se distancia dos textos acadêmicos ou jornalísticos, o formato de cartas também propõe um tipo de conversa que não é o das redes sociais e aplicativos – com a dinâmica acelerada e o ar efêmero que lhe são usuais. Para Miyada, o distanciamento físico entre as pessoas acabou sendo compensado, de algum modo, pelo uso de “certos canais tecnológicos que têm virtudes, mas também têm vícios e tendem a enfatizar só um tipo de comunicação”. E ele completa: “Voltar para a lógica da correspondência, algo que leva um tempo para escrever, para ser lido, para ser respondido, é uma forma de exercitar outro modelo, que não é em si melhor ou pior, mas que acaba tendo um ritmo contrastante com o dos meios que temos usado para nos comunicar”. Presente, desse modo, dá espaço para o que Miyada chama de “textos processuais”, abertos, que surgem como uma forma de compartilhar ideias e de lidar com o momento sem reflexões que se proponham definitivas.

Ao lado de Maiolino e Miyada, participam da primeira edição de Presente – disponibilizada em pdf e com formatação para ser impressa em folha A4 -, a crítica e curadora Lisette Lagnado, a professora e psicanalista Tania Rivera, os artistas Dalton Paula e Paloma Durante e a artista e dançarina Pat Bergantin. Intercalados entre os conjuntos de correspondências, surgem nas páginas da publicação poesias de Edimilson de Almeida Pereira e obras visuais de Castiel Vitorino Brasileiro, Fernanda Gomes, Pedro Moraleida. Há ainda uma tradução inédita de ensaio de 1986 da escritora norte-americana Ursula K. Le Guin. A diversidade de campos de atuação dos autores dos textos e trabalhos reflete, portanto, na multiplicidade de temas e linguagens que percorrem a revista, para além do campo das artes visuais. Mas a amarração de tudo está, mais uma vez, na busca de diálogo e no zelo entre as pessoas, uma espécie de cuidado que se contrapõe à realidade quase distópica que se apresenta no globo.  

Pedro Moraleida, "Ave Maria Gracia Plena", da série "Casais sorridentes de mãos atadas 02", 1998/1999. Foto: Guilherme Horta/ Divulgação
Pedro Moraleida, “Ave Maria Gracia Plena”, da série “Casais sorridentes de mãos atadas 02”, 1998/1999. Foto: Guilherme Horta/ Divulgação

“No mundo contemporâneo, o que tem se exacerbado são violências muito antigas. Do racismo, do genocídio programado das populações indígenas, do ecocídio, dos atentados ambientais, da restrição de liberdade de expressão. Processos que percorrem séculos, imbricados na história do Brasil e do mundo”, afirma Miyada. “Talvez o que seja singular nesse momento é o que tem sido chamado de necropolítica, que vem com uma racionalização perversa que deslegitima o direito à vida, que vai além da restrição da cidadania e dos direitos e alcança uma banalização da própria vida. E temos visto isso ser exacerbado no contexto da pandemia, num formato ainda mais obsceno”. E ele conclui: “Então inevitavelmente um pensamento crítico hoje precisa ser feito de uma forma que não reproduza esse desprezo pela vida de cada pessoa – e penso que os artistas, pesquisadores e pensadores estejam procurando este vocabulário. Isso é uma das coisas que aparecem nas cartas da Presente“.

Documenta de Kassel mira experiências coletivas na arte

INLAND é um dos coletivos a participar da documenta 15
INLAND, 2019. Foto: Cortesia INLAND
ruangrupa, 2019. Foto: Jin Panji

Há muito que a ideia do artista isolado em seu ateliê soa como uma imagem antiquada para descrever o campo de produção das práticas contemporâneas, mas finalmente a documenta, considerada a mais importante mostra da arte atual, foca em coletivos de caráter ativista como um de seus principais eixos.

Depois de uma edição ousada, em 2017, que dividiu a parte expositiva em duas cidades, Atenas (Grécia) e Kassel (Alemanha), sob a direção do polonês Adam Szymczyk, a mostra agora tem à frente justamente um coletivo de artistas, o ruangrupa, sediado em Jacarta, na Indonésia. Em 2014, o grupo participou da 31ª Bienal de São Paulo, Como falar de coisas que não existem.

Parte do coletivo esteve em março passado em São Paulo, na Casa do Povo, onde realizou cerca de 10 encontros com 40 pessoas e grupos, do JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) à vereadora Erica Malunguinho, passando pelo Movimento Sem Terra e a líder indígena Jerá Guarani. Pela lista, não há dúvida que a documenta vai ter forte caráter ativista.

“Gladness Demo”, reencenação de “Gladness” de Endre Tót, por Kristóf Kovács como parte de GAUDIOPOLIS 2017/OFF-Biennale Budapest, 2017. Foto: Zsolt Balázs / Arquivo OFF-Biennale Budapest

“Queremos criar uma plataforma de arte e cultura globalmente orientada, colaborativa e interdisciplinar que permanecerá efetiva além dos 100 dias da documenta quinze. Nossa abordagem curatorial busca um tipo diferente de modelo colaborativo de uso de recursos – em termos econômicos, mas também no que diz respeito a ideias, conhecimento, programas e inovações”, anuncia o ruangrupa no site da documenta.

Lá, aliás, já estão elencados 14 coletivos convidados para esta edição, originários de 13 países distintos: Alemanha, Quênia, Dinamarca, Palestina, Inglaterra, Hungria, Colômbia, Cuba, Indonésia, Espanha, Mali, Nova Zelândia e Bangladesh. Entre eles está o INLAND, uma agência colaborativa iniciada em 2009 pelo espanhol Fernando García-Dory, que fornece uma plataforma para diversos atores envolvidos na produção agrícola, social e cultural. Em 2018, Dory participou do início da criação de um jardim no terraço da Casa do Povo.

INLAND, 2019. Foto: Cortesia INLAND

As temáticas desses coletivos são amplas e diversificadas, como o Project Art Works, um coletivo de artistas e criadores com sede em Hastings, no Reino Unido. Eles produzem e disseminam arte sustentada por abordagens radicais de neurodiversidade, direitos e representação, e são um dos cinco coletivos indicados para o prestigioso Turner Prize, agora em 2021. Isso mesmo, pela primeira vez são cinco coletivos indicados para o prêmio organizado pela Tate, que em 2015 já havia premiado um coletivo, o britânico Assemble.
Segundo Alex Farquharson, diretor da Tate Britain e presidente do comitê de seleção, em entrevista ao The Guardian, “o júri selecionou cinco coletivos notáveis ​​cujo trabalho não apenas continuou durante a pandemia, mas se tornou ainda mais relevante como resultado”. Não deixa de ser estimulante a sintonia entre a decisão da Tate e da documenta quinze.

Outra coincidência entre as duas instituições de arte é a cubana Tania Bruguera, que em 2019 foi responsável por ocupar a Turbine Hall da Tate Modern, e que irá participar da documenta quinze com seu coletivo INSTAR, sediado em Havana (Cuba). O Instituto de Artivismo Hannah Arendt (INSTAR) surgiu como uma instituição de alfabetização cívica, em 2015, a partir de uma intervenção artística organizada por Bruguera, onde as pessoas leram e discutiram o livro de Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, por 100 horas.
Desde o seu início, o INSTAR é pensado como um espaço democrático e horizontal, onde as decisões são tomadas por consenso. “Estamos interessados ​​em reivindicar justiça social e direitos às vezes estranhos ao contexto cubano, como salários justos, um ambiente de trabalho que seja favorável à maternidade, apoiar projetos e artistas independentes, respeito pela liberdade de expressão e construir um projeto com pessoas que pensam diferente, mas quero fazer um país para todos”, diz o coletivo sobre seu trabalho, no site da documenta quinze.

Celeiro coletivo de arroz

Um dos conceitos que o ruangrupa está lançando para dar conta dessas práticas coletivas é o lumbung, um termo indonésio para celeiro comunitário de arroz. Ele será usado como princípio norteador de valores e ideias centrais da mostra.

Nada mais adequado, após toda a adversidade atravessada pelo planeta durante a pandemia, que a arte resgate valores comunitários e de respeito à natureza. É assim, ao menos, que se percebe a ideia do lumbung, “como um modelo artístico e econômico enraizado em princípios como coletividade, compartilhamento comunal de recursos e distribuição igualitária, que está incorporado em todas as partes da colaboração e da exposição”, de acordo com a descrição do site da mostra.

Acima, desfile de moda na Trampoline House em Copenhagen (Dinamarca), 2019. Foto: Lars Vibild

A proposta de compartilhamento e colaboração se materializa, durante o processo de criação da mostra, em Kassel, em um espaço denominado ruruhaus, a poucos metros do Fridericianum, o museu que foi a primeira sede da documenta, em 1955, e vem sendo ocupado por ela há cada cinco anos. O ruangrupa anunciou agora uma experiência digital e interativa da ruruhaus, que pode ser acessada em https://ruruhaus.de. Em junho era possível responder à questão: “Que tipo de living room uma cidade precisa?”.

Em tempos de distanciamento social, a questão soa até utópica, mas, afinal, ainda bem que a arte segue acreditando em novos mundos e, como parece ser o objetivo desta documenta, apontando quem está liderando esse movimento com práticas solidárias.

As palavras no mundo das coisas 

Museu da Língua Portuguesa: Visão geral da exposição
Visão geral da exposição "Língua Solta", em primeiro plano "Olha minha língua", de Alex dos Santos. Foto: Ciete Silverio / Divulgação.

A presença generalizada da palavra no mundo das coisas, tão evidente e tão pouco retratada, é o mote da mostra Língua Solta, instalada no Museu da Língua Portuguesa (MLP) até o próximo mês de outubro. Mesclando propositalmente categorias estanques, como alta cultura e cultura popular, arte contemporânea e cultura de massas, a exposição combina num mesmo espaço e de forma não ordenada um conjunto amplo e significativo de obras de arte contemporâneas – já referendadas pelo mercado e pelo circuito – e uma vasta seleção de objetos, cartazes, embalagens, faixas comerciais ou de protesto e outros elementos da vida cotidiana. Em ambos, o foco está na língua potencializada enquanto signo. “Olhando para o entorno, procuramos reconhecer que é a língua que anima muitos dos objetos ao nosso redor”, descreve Moacir dos Anjos, que assina a curadoria juntamente com Fabiana Moraes.

Não há na seleção feita pela dupla nenhuma pretensão universalizante ou enciclopédica. Afinal, como diz Moacir, “a curadoria é sempre um recorte do mundo”. As escolhas derivam das experiências – objetivas e subjetivas – da dupla no campo da arte e da cultura. O resultado é uma mostra em que a palavra parece ricochetear, indicando diferentes caminhos de apreensão do mundo. Um dos aspectos mais evidentes é a presença clara de um discurso de reivindicação política. “São palavras que expressam desejos, identidades, queixas”, explica Fabiana, enfatizando que não há na exposição nenhum tipo de hierarquização entre uma linguagem voltada ao entretenimento, a sugestão política ou a elucubração poética. Muitas vezes o espectador é colocado diante de manifestos que expressam a urgência dos dias atuais. Há, por exemplo, um conjunto de cartas e desenhos enviados por crianças moradoras da Maré ao Tribunal, com reações à repressão policial. Ou placa em homenagem a vereadora Marielle Franco, cujo assassinato segue impune. “São como gritos”, explica Fabiana.

Mesmo não linear e organizada de forma a promover faíscas entre diferentes formas de lidar com ideias, formas e palavras, a exposição se articula em torno de seis núcleos principais: mídia, resistência, casa, rua, religiosidade e pedagogia são as palavras em torno das quais se aglutinam os vários objetos. Muitos dos trabalhos selecionados pertencem, simultaneamente, a várias dessas categorias. E estabelecem entre si diálogos enriquecedores. Há, por exemplo, uma interessante reverberação entre os slides usados por Paulo Freire nos anos 1960 para alfabetização e a obra ABC da Cana, de Jonathas de Andrade, ou ainda a pintura Esperança, de Leonilson, que também usa o alfabeto como matéria-prima.

Na exposição "Língua Solta", a obra "ABC da Cana" (2014) de Jonathas de Andrade. Foto: Ciete Silverio / Divulgação.
Na exposição “Língua Solta”, a obra “ABC da Cana” (2014) de Jonathas de Andrade. Foto: Ciete Silverio / Divulgação.

A palavra, onipresente, às vezes cede lugar para aproximações poéticas menos explícitas. É o caso do conjunto formado pelas obras de Lygia Pape, Lenora de Barros, Lia Chaia e Anna Maria Maiolino, no qual o foco se desloca do símbolo escrito para a fisicalidade da língua. A ideia de corte, mácula ou impossibilidade de controle da própria língua, algo comum ao trabalho dessas artistas, torna a aproximação entre elas muito potente.

É grande a lista de artistas representados na exposição, com raríssimas e propositais lacunas, como no caso dos poetas paulistas ligados ao concretismo. “Procuramos evitar um caráter literário, privilegiando a presença da palavra poética no campo artístico”, explica Moacir. Deixando de lado essas exceções, os grandes mestres da arte que se apropriam da palavra estão lá. Autores como Arthur Bispo do Rosário, Mira Schendel, Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Antonio Manuel, Leonilson, Élida Tessler, Vânia Mignone, Marilá Dardot, Ivan Grilo, Jaime Lauriano, dentre outros, comparecem, muitas vezes com mais de um trabalho.

"Você me dá sua palavra?", de Elida Tessler, na exposição "Língua Solta". Foto: Ciete Silvério / Divulgação.
“Você me dá sua palavra?”, de Elida Tessler, na exposição “Língua Solta”. Foto: Ciete Silvério / Divulgação.

Há um esforço permanente, em termos de montagem, de desfazer categorias, de demonstrar que a expressão artística deriva muitas vezes de um olhar atento ao mundo da rua e das coisas, sejam estandartes de maracatu, panos de prato, rótulos de cachaça ou assinaturas de pixo. Um exemplo claro desse hibridismo é o trabalho Você me dá sua palavra?, de Elida Tessler, que promove uma costura por toda a exposição. Por todo o espaço ziguezagueam, sustentados por cordas de secar roupa, milhares de pregadores suspensos. Sobre eles, uma série de pessoas convidadas pela artista escreveu uma palavra que lhe fosse especial. Em apresentação feita por ocasião do dia internacional da língua portuguesa, Tom Zé revelou a sua: “Desobediência”.

Originalmente, a mostra Língua Solta foi pensada como mais um núcleo das atividades permanentes do museu. Mas as dificuldades decorrentes da pandemia, a ausência de condições técnicas na instituição – que não possui nenhum acervo de obras de arte, portanto não conta com equipamentos como reserva técnica, equipe de conservação etc. – e a presença ampla de obras cedidas em empréstimo por coleções particulares e públicas fez com que a seleção passasse a ser exibida em caráter temporário. Em contrapartida, ganhou um espaço três vezes superior ao previsto anteriormente. É a única atividade do MLP que já pode ser vista pelo público e fica acessível a grupos específicos e mediante agendamento, até o final do mês de junho, para reabrir, junto com todo o museu, a partir do final de julho.

Paulo Mendes da Rocha: o último grande arquiteto moderno do Brasil

Paulo Mendes da Rocha em seu escritório, em 2016, em retrato feito por Luisa Sigulem e publicado agora pela primeira vez. Foto: Luisa Sigulem

Numa tarde de junho de 2016, poucas semanas após ganhar o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) recebeu este repórter em seu escritório, no centro de São Paulo, para conceder uma entrevista à revista Brasileiros. Era mais uma das muitas honrarias internacionais recebidas pelo arquiteto brasileiro nas últimas décadas – como o Pritzker, o Mies Van der Rohe, a medalha de ouro do Real Instituto de Arquitetos Britânicos (Riba) e o Prêmio Imperial do Japão – que coroavam seus cerca de 60 anos de trajetória profissional. O prêmio concedido pelo evento italiano, na verdade, foi apenas o pretexto para uma longa conversa sobre os mais variados temas, desde as percepções do arquiteto sobre as cidades, a arte e a natureza até críticas à construção de Brasília, ao conceito de “habitação popular” ou de “arquitetura verde” e ao sistema educacional no Brasil. Paulo não fazia concessões, era contundente em suas afirmações.

Ao longo de uma hora e meia de entrevista, o arquiteto deixou claro, uma vez mais, que não se pode pensar arquitetura como algo separado da vida cotidiana, da resolução dos problemas das pessoas e da busca pela satisfação das necessidades e desejos humanos. O título da matéria, publicada na edição da Brasileiros daquele mês – “O amplo sentido da arquitetura” – e a chamada na capa – “Paulo Mendes da Rocha: um pensador” – tentavam, minimamente, dar conta desta amplitude do pensamento do arquiteto que, naquele momento, era o último grande nome vivo da arquitetura moderna brasileira. 

Agora, cinco anos depois, pouco após a morte de Paulo Mendes da Rocha, aos 92 anos, em decorrência de um câncer de pulmão, a arte!brasileiros relembra alguns dos trechos mais marcantes daquela conversa. O arquiteto, nascido em Vitória e radicado em São Paulo, foi um dos principais nomes da chamada Escola Paulista de Arquitetura – ao lado de seu mestre João Vilanova Artigas. Projetou, entre muitos outros, o Ginásio do clube Paulistano, o MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia), a reforma da Pinacoteca do Estado, a Marquise na Praça do Patriarca, o Museu dos Coches (Lisboa) e o Sesc 24 de Maio. Foi professor da FAU-USP, perseguido pela ditadura civil-militar no fim dos anos 1960, e influenciou de modo marcante o pensamento arquitetônico das gerações que o seguiram. Com ênfase na técnica construtiva, na adoção do concreto armado aparente e na valorização das estruturas das casas e edifícios, suas obras são referência incontornável na arquitetura brasileira. 

Mas, para além de suas obras, foram suas ideias e posicionamentos que o tornaram um dos maiores nomes da arquitetura nacional – assim como ocorreu com Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Artigas e Lina Bo Bardi, entre outros. Leia a seguir trechos da entrevista de 2016.  

Sobre arquitetura e arte

“Nós estamos aqui, em qualquer das nossas atividades, para resolver problemas. O que há são sempre problemas, pois é muito difícil ser qualquer ente vivo na natureza. Você vê o que as espécies tiveram que inventar, desde uma libélula até uma girafa, o negócio é muito complicado. Visto por esse lado, as coisas ficam até certo ponto estimulantes, porque temos que resolver problemas. Ou, para que isso se configure, precisamos saber formular os nossos problemas”.

“Você não pode resolver problemas, no âmbito da arquitetura, do ponto de vista puramente funcional. Aí você no máximo cria máquinas. Justamente a graça da arquitetura é manter o discurso vivo de que, diante da urgência para fazer algo, já se faz também com altos ideais da visão que temos de nós mesmos. É o que os linguistas chamam de concomitância do surgimento de necessidades e desejos. Você transforma a estrita necessidade, ao mesmo tempo, em desejo. Ou seja, você resolve um problema do ponto de vista prático, quase mecânico, dando uma expressão de que aquilo ainda poderá ser mais bem resolvido no futuro”.

“Hoje em dia, vejo a expressão arte como um tanto reducionista. Não pode ser só arte, e eis aí a graça da arquitetura, que você não sabe bem se é arte, ciência ou técnica. Ou seja, tem que ser tudo isso ao mesmo tempo. É um discurso sobre o conhecimento. A impressão que tenho é que tudo que o homem faz tem uma dimensão artística. A nossa existência exige uma posição daquilo que chamamos de arte, ou de atitude artística. Na fala, no gesto, na expressão, na preocupação com o outro… No fundo, no fundo, arte significa preocupação com o outro”. 

“Há um mercado de uma pretensa arquitetura, espalhafatosa, espaventosa, que, como qualquer embalagem, o mercado produz, com um valor fictício, capaz de ser promulgado como valor. A arquitetura como mercadoria é um erro. A arquitetura não é mercadoria, ela é sempre fruto de necessidades”.

“Acho muito bonito usar essa expressão popular “arquitetar”. As pessoas dizem: o que você está arquitetando? E isso é: estar dando forma a uma ideia, a uma vontade, a um desejo. Nós estamos condenados a transformar ideia em coisa, porque senão ninguém conhece a sua ideia. Se você escreve letras em um papel, eis o poema transformado em coisa. Quando estava só na cabeça do poeta, não era nada”.

Paulo Mendes da Rocha. Foto: Luisa Sigulem
Sobre as cidades e o espaço público 

“Na verdade, a ideia de cidade não é de amparo físico, no sentido de proteger do vento e da chuva. É a de um lugar onde você possa conversar. A cidade é o laboratório do homem. Ele precisa estar junto. E para viver junto é preciso transporte público, é preciso a escola das crianças etc. Isso não quer dizer que a cidade de São Paulo, com 20 milhões de habitantes, fruto da decadência advinda de uma política colonialista, seja a cidade ideal”.

“Nesses momentos de crise, quando fica explícita a agudeza dos problemas, a cidade se transforma para dizer justamente o que ela pretende ser. Quando se ocupam espaços, quando a rua assume um caráter de assembleia, é também uma visão arquitetônica da transformação. Porque nem sempre arquitetura exige que se construa algo. Ela pode ser realizada com as atitudes humanas simplesmente”.

Sobre o homem e a natureza

“Porque existe essa tendência de pensar que falar em natureza é falar no verde. Não, natureza é, inclusive, a condição masculina e feminina do ser humano, e nunca se enfrentou isso com tanta evidência quanto diante da questão da impossibilidade de uma superpopulação no planeta. Nós não somos nada. Sempre temos que imaginar o que seremos. E quando você indaga isso, eis a dimensão política da nossa existência. O que seremos se pudermos tomar decisões sobre os nossos rumos? É evitar o desastre. No fundo é isso”.

“É preciso encarar o fato de o planeta ser um pequeno calhau desamparado girando no universo, e pela primeira vez o homem não pode negar isso.”

Sobre educação e formação

“O sistema educacional está todo errado. Nós devíamos ensinar física, mecânica elementar junto com a alfabetização. Uma criança brinca com peão na palma da mão, empina papagaio, solta foguete, joga bolinha de gude. Ou seja, ele sabe o que é uma esfera que toca um plano só em um ponto. Não se joga gude com paralelepípedo, mas com esferas perfeitas. E você amarra uma pedra num barbante e qualquer criança vai entender o que é força da gravidade, conservação da energia etc. É mais fácil ensinar física elementar e mecânica a uma criança do que ensinar o que é o Dia das Mães. O difícil, para uma criança, é entender as besteiras que falam. E aí estou falando do mundo inteiro, não só do Brasil. A educação hoje é feita para submeter o camarada aos desfrutes do mercado e da ideologia que está posta aí, de um capitalismo estúpido”.

“É mais fácil a criança entender o que é um coração se você colocá-la para sentir a pulsação com a mão, no próprio corpo, do que colocá-la para desenhar um negócio vermelho no papel, tão abstrato. O filho do pescador sabe tudo sobre vento, tempo etc. O confronto com a natureza no seu conjunto de fenômenos educa, ainda hoje, de uma maneira que serve um pouco de contraponto a essa educação oficial que temos”.

“Não tenho muita experiência, para mim o mundo é sempre novo. Eu não sei o que foi e o que será. Só sei que não tenho medo das coisas, muito menos do presente, porque ele é tudo o que temos”.