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“Cobra grande”, de Frederico Filippi, é inaugurada no MAM São Paulo

Uma corrente naval envolve as árvores e, puxada por dois tratores, derruba tudo que encontra pelo caminho. Essa é mais uma das cenas de desmatamento comuns ao Brasil em derrubadas legais e ilegais. O “correntão de desmatamento”, como ficou popularmente conhecido, é base para o projeto da nova obra temporária do Jardim de Esculturas do Museu de Arte Moderna de São Paulo: Cobra grande, de Frederico Filippi.

Quem visita o Parque do Ibirapuera, vê em frente ao MAM uma corrente em tamanho real, com cerca de 40 metros de extensão, rodeando as árvores. Porém, ao se aproximar nota que o instrumento de destruição, neste caso, é feito de argila, areia e palha. “Tinha essa ideia de colocar em oposição também a forma simbólica da corrente, que é um material super agressivo, ferro fundido, algo que é representativo do universo industrial. Quando você olha, nota o elo sendo feito de terra”. 

A obra da sequência a uma pesquisa de Filippi sobre a América do Sul e o desmatamento.  “Comecei a pesquisar a história da invasão e da invenção dessa ideia de ‘América’, quais imagens surgiam desse atrito entre os que chegaram e os que já estavam lá, que tipo de tipo de movimentos peristálticos é esse de ‘digestão’ do mundo, que vai reduzindo um outro mundo e que quem está dentro dessa zona de atrito?”

Essa ideia de digestão dá nome à obra. Cobra grande retoma a figura comum a diversas cosmogonias, como criadora de mundos. “O formato que a corrente adquire conforme ela vai andando pelo mapa é um formato esguio. Ela serpenteia também. Então, o que ficava muito na minha cabeça? Essa imagem é uma espécie de de uma segunda cobra, uma outra cobra em diálogo com a entidade. Ela não deixa de ser também uma cobra grande, porque tem também essa escatologia dentro dela, é o fim daquele mundo, naquele lugar”, explica o artista. Assim, busca explicitar essa reflexão sobre a fronteira entre a floresta e a indústria: “Esse atrito entre duas entidades, cada uma representando um lado da fronteira.”

Por sua composição, a obra assume um caráter efêmero. Com as chuvas e interpéries climáticas, o trabalho irá se desfazer e será absorvido pelo solo do jardim.

A arte!brasileiros acompanhou a montagem da obra e conversou com o artista. Confira:

Adriano Pedrosa, do Masp, será curador da Bienal de Arte de Veneza 2024

Adriano Pedrosa no Masp
Adriano Pedrosa no Masp. Foto: Daniel Cabrel/Cortesia Masp

A Bienal de Veneza anunciou nesta quinta-feira (15), que Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp, será o curador da seção de artes visuais da próxima edição mostra, que acontece na cidade italiana de 20 de abril a 24 de novembro de 2024.

“Sinto-me honrado e grato por esta nominação de prestígio. A Bienal é certamente a plataforma mais importante para a arte contemporânea no mundo, e é um desafio emocionante e uma responsabilidade para mim realizar este projeto”, declarou o curador, que será o primeiro latino-americano a assumir este cargo na antiga e renomada mostra de arte internacional. A indicação veio de Roberto Cicutto, diretor geral da instituição.

Pedrosa é diretor artístico do Masp desde 2014. Foi curador-adjunto da 24a Bienal de São Paulo (1998), a Bienal da Antropofagia, que teve como curador-geral Paulo Herkenhoff. Ao lado de Cristina Freire, José Roca, Rosa Martínez, foi cocurador da 27a Bienal de São Paulo, Como viver junto (2006), que teve curadoria geral de Lisette Lagnado. Adriano Pedrosa participou ainda como curador do InSite_05 (San Diego Museum of Art, Centro Cultural Tijuana, 2005), diretor artístico da 2a Trienal de San Juan (2009), curador do 31o Panorama da Arte Brasileira-Mamõyaguara opá mamõ pupé (Museu de Arte Moderna, São Paulo, 2009), co-curador da 12ª Bienal de Istambul, curador do Pavilhão de São Paulo na 9ª Bienal de Xangai (2012), entre outros projetos. Em 2023, foi homenageado com o Prêmio Audrey Irmas de Excelência Curatorial, concedido a ele pela Central de Estudos Curatoriais do Bard College, em Nova York.

Um olhar intimista sobre Aldemir Martins

Aldemir Martins
Aldemir Martins. Foto: Chico Albuquerque

Através da apresentação de esboços, cadernos de estudo, desenhos sobre papel e uma pintura-desenho em nanquim sobre tela, Aldemir em casa traz uma celebração do desenho de Aldemir Martins, que em 1956 recebeu o prêmio máximo da Bienal de Veneza e grande reconhecimento internacional. Em cartaz até 20 de janeiro na Choque Cultural, em São Paulo, a mostra reúne obras que, em sua maioria, datam de 1948 a 1968, entre elas os primeiros esboços de gatos, um caderno da época em que o artista viveu em Roma, retratos de sua esposa, Cora, em casa, e uma parede com sete desenhos que perfazem uma linha cronológica da filha, Mariana Pabst Martins — que assina a curadoria da exposição.  

“Através de uma escolha muito pessoal dos desenhos presentes nessa mostra, eu quis iluminar a personalidade  do trabalho do meu pai, expressa na precisão e fluidez do gesto, na intimidade com a pena e o pincel, no rigor do pensamento e no prazer do traço”, explica Mariana. Como o título sugere, Aldemir em casa aborda o fazer do artista num contexto de intimidade. 

“Meu pai desenhava todos os dias, o tempo todo, no quarto ou na sala, conversando com amigos ou quieto no seu silêncio pessoal. A imagem dele desenhando vem acompanhada do barulho da pena riscando o papel e do cheiro de nanquim. O gesto elegante e fluido que resultava num traço longo e curvo convivia com a rispidez das hachuras rápidas tracejadas com vigor”, compartilha Mariana Pabst Martins.

Martins procurou colocar lado a lado as nuances gestuais que pode observar cotidianamente com Aldemir Martins em casa. Assim, o núcleo principal da mostra traz o exercício do desenho nas mais diversas abordagens, seja em trabalhos de elaboração complexa e densas, seja de mínimos desenhos de pouquíssimos traços. “Não distingui esboços, rabiscos, estudos ou desenhos aparentemente mais bem acabados: para Aldemir não havia nenhuma hierarquia entre os desenhos feitos no papel que forrava a mesa de trabalho daqueles produzidos num papel 100% algodão ou num Schoeller martelado: ambos eram dignos de serem bem emoldurados e expostos”, explica. 

SERVIÇO 

Aldemir em casa
Choque Cultural: Alameda Sarutaiá, 206 – Jardim Paulista, São Paulo (SP)
Em cartaz até 20 de janeiro. A galeria estará de recesso do dia 23 de dezembro ao dia 10 de janeiro
Visitação de terça-feira a sábado, das 11h às 18h

“Utopia brasileira – Darcy Ribeiro 100 anos”, no Sesc 24 de Maio

Retrato de Darcy Ribeiro, 1995, exposto em UTOPIA BRASILEIRA, no Sesc 24 de Maio
Retrato de Darcy Ribeiro, 1995. Foto: Bob Wolfenson

“A utopia brasileira é singela: comida, casa, escola e remédio” lê-se na parede do Sesc 24 de Maio. A frase é de Darcy Ribeiro, antropólogo, educador, historiador e ensaísta brasileiro que completaria seu centenário em 2022. Em comemoração à data, o Sesc São Paulo inaugura Utopia brasileira, exposição que evidencia a atualidade do pensamento deste intelectual, apresentado em suas várias facetas de atuação pública.

“Mais do que uma homenagem, mais do que algo memorialístico, eu quis trazer a potência e a atualidade de muitas das coisas que ele falou, sobretudo se pensarmos no que estamos vivendo hoje no País. No meu entender, Darcy Ribeiro é extremamente atual e essa é uma exposição sobre o Brasil”, diz a curadora Isa Grinspum Ferraz.

Em entrevista à arte!brasileiros, ela completa: “Num certo sentido, chegamos ao fundo do poço. Hoje há uma tremenda desigualdade social, como dizia o Darcy: rompeu-se o nervo ético da sociedade”. Para a curadora, nesse contexto, há de se retomar uma máxima do pensador: “É preciso conhecer o Brasil em profundidade para poder inventar o Brasil que a gente quer”.

Assim, a exposição nos permite caminhar entre o passado, o presente e o futuro da nação, guiados pelo olhar e pela trajetória de um de seus mais importantes intelectuais. “Nós tivemos como um parceiro fundamental a Fundação Darcy Ribeiro, que reúne todos os arquivos dele – os documentos, as correspondências. Então, pudemos mergulhar nesse material e encontrar pérolas. E eu trabalhei dez anos com ele, então conhecia muito bem seu pensamento. Não com a profundidade acadêmica, mas com essa convivência”.

A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com Isa Grinspum Ferraz. Confira:

A mostra reúne fotografias, correspondências, documentos, filmes feitos pelo antropólogo junto aos indígenas nos anos 1940, peças de sua coleção pessoal, obras de arte contemporânea, livros, música, uma instalação inédita desenvolvida por Eryk Rocha e Marcelo Ferraz e pequenos trechos de seus escritos. “Selecionei trechos muito fortes, que são quase manifestos sobre o Brasil”, destaca a curadora.

Utopia brasileira – Darcy Ribero 100 anos fica em cartaz até 25 de junho de 2023 no Sesc 24 de Maio. As visitas ocorrem de forma gratuita, de terça a sábado, das 9h às 21h, e aos domingos e feriados, das 9h às 18h.

Marina Rheingantz: “Abstrair seria quase como abrir uma janela para outro lugar”

A pintora Marina Rheingantz, em seu ateliê. Foto: Eduardo Ortega/Cortesia da artista e da Fortes D'Aloia & Gabriel
A pintora Marina Rheingantz, em seu ateliê. Foto: Eduardo Ortega/Cortesia da artista e da Fortes D'Aloia & Gabriel

Em meados de 2019, quando estava em cartaz com duas exposições simultâneas – Todo mar tem um rio, no Galpão da Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo, e Rebote, na Carpintaria, espaço da galeria no Rio de Janeiro – a paulista Marina Rheingantz era saudada como uma pintora em ascensão, sobretudo à sua escalada no mercado internacional à época, após realizar mostras no Japão, na Bélgica e nos EUA, e a seu bom desempenho em leilões – telas como Pelada caipira (2016) haviam sido arrematadas por cifras acima da expectativa em casas como a Philips.

Em cartaz até 21 de dezembro com Sedimentar, novamente no Galpão da FDAG, na capital paulista, a artista consolida uma transição também apontada no período pré-pandemia, uma virada da representação de paisagens, vista em obras como Forrest row – de 2011 e pertencente ao acervo Banco Itaú – para telas monumentais, em que, numa prática marcada pelo gestual, camadas generosas de tinta e breves pinceladas podem até sugerir, a distância, alguma figuração. Mas Marina, ela mesma, prefere deixar em aberto eventuais leituras:

“Tenho dificuldade de verbalizar sobre meu trabalho, de criar narrativas a respeito do que faço. Nem acredito que elas devam haver. A pintura tem esse lugar onde você pode inventar situações”, diz, em entrevista à arte!brasileiros. Logo em seguida, curiosamente, elabora com clareza o desenrolar de sua produção artística em anos recentes. A abstração vem de um processo mais longo, iniciado ainda na primeira metade da década passada.

“Num certo sentido, minha pintura sempre flertou com uma ideia de ficção, uma mistura entre a figuração e a abstração. Ela nunca foi uma representação fidedigna de algo, sempre misturou a ideia de um lugar com a pintura abstrata. Sempre esteve claro que era tinta, que ela estava ali, sua materialidade presente, impondo-se”, afirma.

Sobre as obras apresentadas logo antes da pandemia – como Rabetão de ouro, tela em parecia haver uma alusão aos crimes ambientais cometidos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambos em Minas Gerais – e na nova exposição, em que o distanciamento da representação de paisagens parece mais demarcado, Marina fala:

“O Rabetão de ouro foi feita logo após a eleição Bolsonaro para a presidência. Eu comecei a pintar umas fontes de lama. Como se o país estivesse imerso nelas. Era um momento pós-eleição, de desespero. Até sempre fico na dúvida se essa mudança no meu trabalho não tem a ver com estes últimos quatro anos, com esta situação tão difícil no país”, reflete. “Abstrair seria quase como abrir uma janela para outro lugar. E, de fato, essa transformação aconteceu nesse período. As coisas se relacionam. Não que seja algo tão objetivo, mas há uma tensão que aparece forte naquelas obras.”

Marina nasceu em 1983, em Araraquara, a pouco mais de 270 quilômetros de São Paulo. Filha de um engenheiro e uma socióloga, teve, na vivência no campo e na educação pelo método Waldorf – criado pelo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), e em que a aprendizagem tem forte inclinação para a manualidade e a expressão artística – dois dos estímulos criativos para o que viria ser a sua produção como pintora. Mas a carreira, em si, não ocorreu de forma tão óbvia.

Filha de um engenheiro, como já foi dito, e neta de um arquiteto, Marina conta que viajava o interior de São Paulo inteiro na infância, visitando obras. “Eles sempre apontavam os detalhes das construções, e tudo isso era algo que me interessava muito. Meu trabalho sempre teve alguma conexão com essa ideia de construção também”, avalia.

Em 2001, Marina passou seis meses na Inglaterra, fazendo intercâmbio numa escola baseada na Antroposofia, outro conceito de Steiner, que alicerça sua pedagogia Waldorf. Lá, tinha muitas aulas de trabalhos manuais, como escultura em metal, pintura, desenho, cerâmica, entre outros.

“Para mim foi uma descoberta impressionante ver a possibilidade de abrir outros caminhos, trabalhar de outras formas, de uma forma humanizada”, ressalta. “Ao voltar, comecei a pensar em estudar artes. Tinha desde a adolescência, um amigo mais velho, que já estudava artes na Faap, e ele falava diversas vezes que eu deveria fazer o curso também”. Marina iniciou seus estudos em 2003, na própria Faap. De início, no entanto, ela conta que pensava em seguir um caminho mais pedagógico, em vez de atuar como artista, profissionalmente, para o seu sustento.

“Cheguei a trabalhar como assistente de professores de artes para crianças, assistente de florista etc. Nunca imaginei que fosse um vender uma pintura. Naquela época, nem havia um mercado consolidado no Brasil. As coisas começaram a acontecer mais a partir de 2007 em diante”, conta artista, cujos trabalhos estão hoje em acervos de peso, como a Pinacoteca de São Paulo, o Inhotim e o MAM Rio, no Brasil; e, lá fora, no Rubell Museum, em Miami, assim como na coleção Pinault, em Paris, entre outros.

Durante todo o tempo na faculdade, Marina trabalhou em diversas atividades, algo que tinha em comum, ressalta ela, com seus colegas de ofício no ateliê da Casa 7, grupo formado nos anos 1980, no bairro paulistano de Pinheiros, por artistas como Nuno Ramos e Carlito Carvalhosa. “Todos tinham um trabalho paralelo: o [Rodrigo] Andrade era capista da Veja, o [Fabio] Miguez fazia livro. Então, eu também pensava em dar aulas para crianças, e paralelamente fazer meu trabalho”, conta.

As coisas começaram a mudar de figura depois que Marina passou uma temporada no departamento educativo do Instituto Tomie Ohtake e, em seguida, fez outro intercâmbio, desta vez acadêmico, numa universidade do Chile, que tinha parceria com a Faap. “Quando eu voltei, pensei: ‘Bom, agora que eu já que não gosto de fazer tudo isso, vou tentar um trabalho de assistente de produção em museu ou galeria’. Trabalhei um pouco como assistente de montagem e, na sequência, a Fortes D’Aloia & Gabriel estava abrindo vaga de estágio, e eu entrei em 2006”, conta. Na galeria, todos a conheciam como Marina Barbieri, o sobrenome de meu pai. Quando começou a pintar, assinava com o sobrenome da mãe, Rheingantz. Inclusive nos salões realizados pela Faap com seus alunos.

“No fim daquele ano (2006), [a galerista] Márcia Fortes viu a exposição anual da Faap, deparou-se com uma obra de uma Rheingantz, mas não ligou os pontos. Ela descobriu que era eu, me mandou para casa, porque só teria exposição no ano seguinte e disse para eu ir pro ateliê trabalhar”, conta Marina. “Neste começo, eu tinha muito frio na barriga. Mas como dividia o ateliê com um amigo, o Bruno Dunley, havia, de certa forma, um ambiente mais acolhedor, fazia com que eu acreditasse mais que aquilo, de fato, viria a ser o meu trabalho.”

As paisagens

Terminados os estudos na Faap, em 2007, Marina fez já no ano seguinte sua primeira individual, Algum dia, na então Fortes Vilaça. Nela, fazia “uma redução geométrica da paisagem realçando elementos que se identificam individualmente como a cerca, a casa ou o toldo”, segundo o texto curatorial que acompanhou a mostra.

“No começo, e por muitos anos, minha pintura teve uma relação bem forte com a arquitetura na relação com a paisagem”, conta Marina, lembrando de uma entrevista que deu à curadora e crítica Luisa Duarte, para o livro Pacto Visual 2 (2016). Na conversa, ressaltava-se como sua produção tinha uma forte relação com a infância no campo, quando “o mundo era enorme” e Marina vivia solta no pasto, andando muito a cavalo. Para a pintora, no entanto, esta relação depois se amplia, para a paisagem nacional.

“Eu cresci viajando o interior de São Paulo. Meu irmão era uma pessoa que viajava muito pelo Brasil todo, trabalhando numa multinacional ligada ao agronegócio, à soja, como engenheiro agroindustrial. Ele também sempre mandava muitas fotos. Uma vez, fizemos juntos uma expedição para estudar a paisagem do Piauí”, lembra. “O que me interessava de fato era a identidade do país e sua potência cultural”.

A ascensão da carreira anunciada em 2019 foi pausada pela pandemia no ano seguinte. Marina então passou um mês com a mãe em Botacatu, também no interior de São Paulo, logo no começo da crise sanitária. Com dificuldade de se concentrar no trabalho, conta que, lá, fez alguns retratos e pinturas de cavalo, para “ter alguma coisa mais palpável”. “Foi a primeira vez que eu pintei pessoas ou animais. Acho que justamente por estar vivendo aquele isolamento”, conta.

As obras mais monumentais, como Rastro, um dos destaques da mostra Sedimentar, surgiram quando Marina mudou de ateliê em 2015, de Perdizes, onde ela chegava a fazer telas de 2mx3m, para um novo espaço, na Vila Ipojuca. O objetivo era aumentar as dimensões de suas obras. “Hoje, gostaria de ter um galpão para fazer pinturas ainda maiores, chegar a dimensões como 5mx10m, por exemplo, criações mais próximas de murais, mesmo”, diz.
Nos últimos anos, conta, tem procurado dar mais atenção à sua saúde. Há 20 anos faz análise, hoje com um terapeuta “freudiano, mas não tão cartesiano”. Para as sessões, conta que leva, com frequência, questões ligadas à sua prática. “Porque eu vivo certa angústia de como lidar com o meio de arte, no sentido do trabalho, não eu, pessoa física”, explica. Ao mesmo tempo, a pintora ressalta que acha “saudável vislumbrar um lugar aonde se quer chegar” como artista, “pensar em exposições fora, para não somente mostrar meu trabalho, como levar a cultura brasileira adiante, mostrar sua importância, a riqueza que temos aqui. A arte no país é muito forte.”
Porém, diz Marina, o mais importante para ela é sua relação com o ateliê, “o que mais me entusiasma no dia a dia.” Seu trabalho, salienta, “é fruto de muita prática, de muito exercício, muito trabalho. Mais suor que inspiração. A exposição que fez no ano passado, na galeria Bortolami, em Nova York, se chamou Suor, por causa de uma pintura que demorei muito, muito para fazer”, conta.
Ultimamente, diante de crises institucionais que têm marcado o cenário artístico brasileiro, como a ocorrida e posteriormente sanada entre o Masp e as curadoras do núcleo Retomadas, da exposição Histórias Brasileiras, Marina tem também refletido sobre a importância de se estar em espaços que acolham. “Afinal, a arte é isso: é poder levar para as pessoas o que quer que seja, afeto ou indignação. Qualquer relação que surja entre o público e o trabalho de arte é saudável”.
Ela, porém, acredita que tudo tem sido “muito racionalizado, relacionado objetivamente a um ato político, a uma determinada situação” no panorama das artes. “Às vezes, mesmo que por uma espécie de oposição, meu trabalho acaba sendo também político, nesse sentido: ele não precisa levantar uma bandeira. É mais próximo ao afeto, mesmo. Ligado à importância de se olhar para o outro”, conclui.
SERVIÇO

Sedimentar
Até 21 de dezembro de 2022
Galpão Fortes D’Aloia & Gabriel
R. James Holland, 71 – Barra Funda, São Paulo – SP
Visitação: de t
erça a sexta-feira, das 10h às 19h; sábados, das 10h às 18h

O que arte tem a ver com democracia e reparação?

Em um ano de grandes mudanças estruturais e de recorrentes violências à estabilidade social, o VII Seminário Internacional, promovido pela arte!brasileiros em parceria com Sesc SP, ressaltou a importância de entender o papel da arte em defesa da democracia e de pensar estratégias de reparação após o apagamento das diferenças, econômicas, sociais, raciais e religiosas. 

Para aprofundar a reflexão, conversamos com importantes figuras da contemporaneidade sobre o papel da arte na articulação dos três conceitos-chave do seminário: cultura, democracia e reparação. Confira o conteúdo inédito:

Christian Dunker

Psicanalista, escritor e Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP, junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Obteve o título de livre docente em Psicologia Clínica, após realizar seu pós-doutorado em Manchester, na Manchester Metropolitan University. É autor de diversos livros, incluindo “O Mal Estar: Sofrimento e Sintoma” e “Estrutura e Constituição da Psicanalítica: Uma Arqueologia das Práticas de Cura, Psicoterapia e Tratamento”, vencedores do Prêmio Jabuti.

 

Claudinei Roberto da Silva

Professor, curador e artista visual formado pelo Departamento de Arte da USP. Coordenou, entre outros, o educativo do Museu Afro Brasil e coordena o núcleo artístico pedagógico do projeto multinacional A journey through African diaspora, do American Alliance of Museums em parceria com o Museu Afro Brasil e Prince George’s African American Museum. Faz parte da Comissão de Arte do Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde também é co-curador, atualmente, do 37º Panorama da Arte Brasileira.

 

Farid Rakun

Artista, escritor, editor e professor baseado em Jacarta, na Indonésia. Formado em arquitetura, atualmente atua como editor e pesquisador da iniciativa de artistas ruangrupa, coletivo de artistas que assina a documenta quinze. Projetou e construiu edifícios, produtos, instalações e intervenções, além de escrever e editar livros e publicações diversas. Trabalhou com várias instituições culturais e educacionais, como a Universidade da Indonésia, o Departamento de Arquitetura, a Cranbrook Academy of Art, a Universidade do Michigan, Hong Kong University e Goethe-Institut, dentre outras.

 

Graziela Kunsch

Artista, mãe e educadora, desenvolve o projeto Creche Parental Pública na documenta de Kassel. Além de seus projetos em performance vídeo, assume formas educativas, editoriais e curatoriais na sua prática artística e a editora da Revista Urbana, entre exposições coletivas estão a 19ª e a 31ª Bienal de São Paulo, em 2010 e 2014, e a Bienal de Oslo, de 19 e 21. É doutora pela Escola de Comunicações e Artes da USP e, entre 2017 e 2019, foi professora substituta do curso de História da Arte da Unifesp.

 

Ligia Fonseca Ferreira

Professora associada do Departamento de Letras da Unifesp, doutora pela Universidade Sorbonne – Paris 3. Sua tese versa sobre a vida e a obra de Luiz Gama. Possui pós-doutorado sobre epistolografia em Mário de Andrade e é autora e tradutora de inúmeros livros. Suas traduções mais recentes são “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon, e “Uma Africana no Louvre: O Lugar do Modelo”, de Anne Lafont.

 

Paula Macedo Weiss

A escritora tem mestrado e doutorado em Direito pela Universidade de Tubingen. Em Frankfurt, é Presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas e também membro do Conselho Diretivo do Instituto de Arte Contemporânea em Berlim. No Brasil, é membro do Conselho Consultivo Internacional da Bienal de São Paulo.

 

Sandra Benites

Nascida na Terra Indígena Porto Lindo, no Mato Grosso do Sul, é mestra e doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), consultora de programação cultural do Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, e é também professora de ensino fundamental e médio. Entre 2019 e 2022, ela foi curadora adjunta de arte brasileira do Masp. 

Chamadas abertas para artistas brasileiros e residentes no Brasil

A arte!brasileiros preparou uma lista com três editais que oferecem oportunidades para artistas de diferentes linguagens. Confira.

Ciclo de residências JA.CA

Em 2022, o JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia passou a ocupar um novo terreno no Jardim Canadá, em Belo Horizonte. Agora, a instituição convida artistas e coletivos a desenvolverem propostas e exercícios de imaginação política, social e espacial para o novo lote, que levem em consideração questões como a sua topografia, sua localização, seu entorno e sua vizinhança. A partir de experimentações, de ficções, intervenções arquitetônicas/paisagísticas temporárias ou mesmo outras estratégias, propomos um espaço para uma reflexão sobre modelos e tipos de ocupação que questionem e potencializem formas de interação com a paisagem e a comunidade do bairro.

Para isso, abrem inscrições para um novo ciclo de residências, com duração de
60 dias (6 de março a 6 de maio de 2023) e a participação de dois artistas. 
Cada selecionado contará com uma bolsa para ajuda de custo no valor total de R$ 4000 e uma verba de até R$ 2500 a ser aplicada exclusivamente na produção do projeto proposto. Os artistas que não residirem em Belo Horizonte receberão um auxílio para despesas de seu deslocamento da sua cidade de origem a Belo Horizonte e ficarão hospedados no JA.CA durante todo o período da residência.

As inscrições ficam abertas até 17 de dezembro de 2022. Leia o edital completo do JA.CA para saber mais.

Feira de Trocas Exusíacas

A Feira de Trocas Exusíacas é uma atividade da quarta edição do Escuta Festival, que acontecerá em janeiro de 2023. O evento, concebido e desenvolvido pelo Instituto Moreira Salles em parceria com artistas e coletivos artísticos independentes, tem por objetivo ressaltar e celebrar a arte, a cultura e o ativismo das periferias da região metropolitana do Rio de Janeiro. Três projetos dentre os inscritos serão selecionados para passar por uma banca de curadores, a fim de que um deles seja escolhido para receber participar de um processo de troca e orientação de seis meses.

Podem se inscrever artistas, artivistas, produtores e fazedores culturais moradores das favelas e periferias da região metropolitana do Rio de Janeiro. O projeto/ proposta de ação não precisa ser inédito, nem estar totalmente acabado. A organização incentiva projetos coletivos e sugere que se os candidatos deem um panorama de quantas pessoas podem ser impactadas pelo trabalho.

A primeira fase de seleção acontece pelo preenchimento do formulário de inscrição; a segunda acontecerá em um dos dias da 4a Edição Escuta Festival, que acontecerá nos dias 20, 21 e 22 de janeiro de 2023.

As inscrições ficam abertas até 5 de dezembro. Leia o edital para saber mais sobre a Feira de Trocas Exusíacas.

Mostra Internacional Luz del Fuego

O ano de 2022 marca os 105 anos de nascimento de Luz del Fuego (Dora Vivacqua), artista capixaba que fez de sua história e de sua arte manifestos da liberdade feminina. Neste ano a Mostra Internacional que a homenageia pergunta: como a produção cultural local pode colaborar para a abertura de mais espaço para mulheres na arte e na fotografia? Como gerar oportunidades culturais democráticas para mulheres, mediante à crise cultural e sanitária que o Brasil vive atualmente? Como inserir, em projetos de editais públicos, mulheres de comunidades marginalizadas como as da comunidade LGBTQIAP+? A segunda edição do projeto traz o  tema “Mulheres Brasileiras na Fotografia” e tem chamada aberta a ensaios e fotografias que retratem mulheres brasileiras como protagonistas de movimentos sociais, culturais, religiosos e políticos.

A mostra fotográfica acontecerá na capital do México e em Cachoeiro de Itapemirim, através de intervenções urbanas, mais conhecidas como lambe-lambe, e também através do formato de exposição virtual, no site do projeto. As vagas expositivas serão divididas da seguinte maneira: até 5 vagas para fotógrafas pertencentes à comunidade LGBTQIAP+ residentes no Espírito Santo; até 5 vagas para fotógrafas pertencentes à comunidade LGBTQIAP+ residentes em outros estados’até 5 vagas exclusivas para fotógrafas negras e/ou indígenas residentes no Espírito Santo; até 5 vagas exclusivas para fotógrafas negras e/ou indígenas residentes em outros estados; até 5 vagas exclusivas para mulheres residentes nos bairros atendidos pelo Projeto Estado Presente, iniciativa do Governo do Espírito Santo que busca a redução de taxas de homicídios, principalmente em comunidades onde o índice de violência e mortalidade de jovens apresenta-se elevado; até 5 vagas para mulheres que não se identificam com os grupos acima citados.

As inscrições seguem abertas até 10 de dezembro, leia o edital completo da Mostra Internacional Luz del Fuego para saber mais.

Mostra Piranhão de Cinema

Com objetivo de difundir as produções audiovisuais realizadas por piauienses e maranhenses, que residam nestes (PI/MA) ou em outros estados do País, o Centro Cultural Vale Maranhão (CCVM) e Produtora LABCINE Filmes promovem a Mostra Piranhão de Cinema. Esa primeira edição acontece em formato híbrido, com os filmes exibidos presencialmente de 11 a 14 de Janeiro de 2023, em São Luís do Maranhão (MA) e em Teresina (PI), e virtualmente, disponibilizados no site da Mostra vinculado à Produtora LABCINE Filmes e no canal no YouTube do CCVM.

Serão selecionadas 15 obras no total: 2 longas-metragens, 8 curtas-metragens e 5 videoclipes. As obras devem estar sustentadas nos seguintes eixos temáticos: Negritude, Cinema Periférico, Povos Originários e Cultura Regional, tendo como pontos de partida as discussões de memória, identidade e decolonialidade.

As inscrições ficam abertas até 15 de dezembro, acesse o edital da mostra de cinema para saber mais.

Contra-flecha, na Almeida & Dale Galeria de Arte

Pela primeira vez, a Almeida & Dale abre chamada para artistas interessados em expor na galeria. Funcionando como um espaço de experimentação crítica e curatorial, interessado em novas perspectivas da história da arte brasileira, o programa Contra-flecha passa a inaugurar o calendário anual de exposições da casa e busca estabelecer diálogos entre obras de seu acervo e rede — majoritariamente compostos por peças modernas do século 20 — e artistas com pouca circulação no sistema comercial ou em início de carreira. Nesta primeira edição, intitulada Arqueia mas não quebra, a curadora e pesquisadora pernambucana Ariana Nuala compõe a comissão curatorial ao lado dos idealizadores do projeto, o curador Germano Dushá e o artista Rafael RG.

O programa é focado em artistas contemporâneos que tenham pouca ou nenhuma circulação no sistema comercial de arte, ou estejam no início de suas trajetórias artísticas.  Podem participar do processo seletivo artistas brasileiros com produção em artes visuais, audiovisuais, performáticas, sonoras, textuais, entre outras.

As inscrições ficam abertas até o dia 30 de novembro. Leia o edital de Contra-flecha para saber mais.

Sobre a boa aparência do Presidente

O presidente Jair Bolsonaro discursa durante abertura da Semana das Comunicações no Palácio do Planalto.

Dia 18 de outubro último, quase meia-noite, assistindo aos comentários de jornalistas da Globonews sobre o segundo turno das eleições presidenciais que ocorreriam no dia 30, fiquei surpreso ao saber que, numa pesquisa sobre as razões que levariam os militantes a votarem em um dos dois candidatos, 27% dos partidários de Luiz Inácio Lula da Silva informaram que votariam nele, devido ao seu “desempenho na área social”. Já 27% dos eleitores de Jair Messias Bolsonaro afirmaram que votariam por sua “imagem pessoal”. Outros dados complementavam a enquete, mas, para o que pretendo refletir aqui, me bastam as declarações que assinalei.

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Entendo o que teria levado aqueles 27% dos eleitores de Lula a proclamarem que votariam nele devido ao seu “desempenho na área social”. Por mais que se possa criticar o presidente em seus dois primeiros mandatos, não restam dúvidas de que, durante aqueles oito anos (entre 2003 e 2011), Lula se notabilizou pela implantação de políticas públicas visando a inclusão social.

Mais subjetiva me parece a resposta daqueles 27% do eleitorado bolsonarista creditando seu voto à “imagem pessoal” de Bolsonaro. Segundo comentaristas do programa, alguns desses eleitores teriam associado a “imagem pessoal” do presidente com índices de seriedade, probidade, de respeito aos valores da família tradicional etc.

Essa parte do eleitorado de Bolsonaro, que percebeu em sua “imagem pessoal” (e em tudo o que ela significa), motivo suficiente para votar no candidato, fez emergir um aspecto ainda não captado do embate entre os dois presidenciáveis, que passou despercebido para muitos. Um aspecto talvez óbvio demais para, conscientemente, ser levado em conta: a “imagem pessoal” de Bolsonaro está colada àquilo que, no Brasil, convencionou-se entender como “boa aparência”. E “boa aparência”, apesar de toda a sua ambiguidade, sempre serviu (e serve) para que, no país, inclua-se ou exclua-se indivíduos nas mais diversas áreas.

A imagem pessoal de Bolsonaro, ou sua “boa aparência”, demanda alguma reflexão, pois me parece ter sido ela um fator importante para entender o fenômeno de massa que se tornou Bolsonaro, sobretudo em partes consideráveis do Sul, do Sudeste, do Centro-Oeste e do Norte do Brasil. Sua “imagem pessoal” encobre outra face do presidente e do país que, se analisada, ampliará a compreensão sobre a expansão do bolsonarismo entre nós nos últimos anos, assim como sobre a expressiva votação de Bolsonaro no último dia 30 de outubro.

Jair Messias Bolsonaro é ele e sua imagem. Ou melhor, é ele mesmo e é também uma imagem passível de absorver inúmeros sentidos. E o que vemos quando observamos um retrato fotográfico de Bolsonaro ou um vídeo de alguma atividade por ele desenvolvida? Bolsonaro é um homem relativamente alto (1,85m)[1], possui um olhar altivo, olhos azuis e – dado fundamental –, é branco.

No decorrer de sua carreira como político profissional, Bolsonaro acoplou a essa branquitude, índices de inequívoca masculinidade (ou “macheza”) –  sobretudo pela demonstração contínua de sua aversão a mulheres e a homossexuais – e um desprezo particular a todos os seres “inferiores” com que tinha de lidar: para Bolsonaro, negros deveriam ser pesados em arroba; indígenas não deveriam ter seus territórios respeitados, e nordestinos não passavam de paus de araras e cabeçudos[2].

Como homem branco, a “boa aparência” de Bolsonaro aciona todos aqueles outros sentidos – ele é machista, homofóbico, misógino, eugênico – que parecem ir ao encontro de muitos de seus apoiadores, que projetam na imagem do “mito” anseios identitários singulares. Sua “imagem pessoal” – ou seja, a fundamental branquitude de Bolsonaro –, num país preconceituoso e de maioria negra e parda, enfatiza sua “superioridade” em relação ao restante dos brasileiros[3]. Assim, tão ou mais importante do que de ter sido militar e deputado federal por quase três décadas, é o fato de que ele é branco. E não um branco “qualquer”, pois descende de italianos do norte da Itália, o que – para uma fração significativa de seu eleitorado do Sul e do Sudeste –, não é pouca coisa[4].

Ser branco no Brasil é distinguir-se da maioria da população, mas é também ser ou estar identificado com aquela parcela de brasileiros que, por sua às vezes antiga ascendência europeia, agem como se fossem exilados italianos, mas também alemães, poloneses, espanhóis e portugueses.

Assim, sua branquitude está acima de todos os outros atributos, que colocam Bolsonaro como líder de uma massa que o segue e venera, sem que nada de negativo que ele faça conspurque sua imagem[5].

***

A partir do final do século XIX, mas, sobretudo, nas primeiras décadas do século passado, começou a ser construído em São Paulo o mito do paulista como sendo o grande empreendedor, aquele brasileiro pertencente a uma raça superior de indômitos desbravadores (como os bandeirantes, seus antepassados) – características que justificariam a modernidade de São Paulo, em contraste com a morosidade decadente da grande maioria do Brasil.

Barbara Weinstein, em seu estudo sobe a formação da identidade paulista[6], explica que os brasileiros nascidos no estado de São Paulo, ao tentarem caracterizar sua hipotética excepcionalidade, precisavam escolher aqueles que seriam o seu “outro”. E quem deveria aparecer como o “outro” do paulista, todos os brasileiros restantes? Não propriamente.

Embora nunca tenham reconhecido nos gaúchos, catarinenses e paranaenses a mesma “nobreza” que os tornava tão especiais, os paulistas, embora não os vissem como iguais, os percebiam como semelhantes. Segundo Weinstein, o “outro” do paulista, ou seja, o seu oposto, fundia-se na categoria “nordestino”, uma abstração que personificava a decadência, o atraso, a barbárie.

Já em 1999, Durval M. de Albuquerque Jr. atentava para essa oposição entre São Paulo e o Nordeste, como dois lados opostos do Brasil. Em seu estudo sobre a “construção” do mito do Nordeste, o autor também chamará a atenção para o papel que o imigrante europeu – que então já se concentrava em São Paulo e no Sul do país – representava nesse processo de diferenciação entre São Paulo e o Nordeste, por alguns dos importantes intelectuais do período.

Encantados com a superioridade dos imigrantes e tendo uma visão depreciativa do nacional, intelectuais como Oliveira Vianna (fluminense) e Dionísio Cerqueira (baiano) veem no nordestino o próprio exemplo de degeneração racial, seja do ponto de vista físico ou intelectual (…) Comparando a situação econômica de São Paulo com a dos estados do Norte do país, eles atribuem ao eugenismo da raça “paulista”, à sua superioridade como meio e como povo, a ascendência econômica e política no seio da nação. A superioridade de São Paulo era natural, e não historicamente construída. O Nordeste era inferior por sua própria natureza, sendo o “bairrismo paulista” uma lenda[7].

Voltando ao texto de Weinstein, a certa altura, parafraseando o intelectual Alfredo Ellis Jr. – adepto do “racismo científico” do início do século passado –, a autora afirmava que, embora fosse possível detectar semelhanças entre os louros e castanhos “dos estados mais centrais e meridionais do Brasil”, à tal família (brasileira) não poderiam ser incluídos “cabeças-chatas mongoloides” e “negros” do Nordeste[8].

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Se para o eleitorado bolsonarista dos estados do Sul e do Sudeste, Bolsonaro se distingue por possuir a “boa aparência” de branco paulista de origem italiana, como seria a “imagem pessoal” de Lula, seu opositor?

Para essa parcela dos eleitores de Bolsonaro, Lula, o presidente recém-eleito, não passaria de um “nordestino”, ou seja, um “cabeça-chata mongoloide”, uma espécie de negro. Um “outro” que, por algum descuido ousou concorrer e ganhar por duas (agora três) vezes a presidência do país. Afronta jamais perdoada por muitos brasileiros “louros e castanhos”.

Não importa o que Lula realizou em suas duas gestões, e o que poderá realizar nesta sua terceira, o fato é que ele continuará sendo eternamente o “outro” de metade da população brasileira. Alguém que – se conseguiu renascer depois de terem querido enterrá-lo vivo[9] – deve ser destruído para que Bolsonaro – “tão igual a nós” – possa triunfar em definitivo num futuro próximo.

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Em seu livro sobre a presença do fascismo italiano no Brasil na primeira metade do século passado, João Fábio Bertonha atenta para a presença de um “fascismo difuso” no Sul e Sudeste do país[10]. Segundo o autor, não foram muitos aqueles que, de fato, se inscreveram nas hostes fascistas no país, o que, no entanto, não significa que não existisse, em vários segmentos da sociedade brasileira de então, simpatizantes do regime italiano. Por sua vez, a pesquisadora Ana Maria Dietrich afirma que, por vários motivos, também não foi expressiva a presença de filiados do partido nazista alemão no Brasil, embora também houvesse simpatizantes da “causa”[11]. Os dois pesquisadores afirmam, por outro lado, que muitos italianos e alemães, assim como seus descendentes, preferiram ingressar na Ação Integralista Brasileira, na medida em que o Integralismo aliava às demandas do fascismo internacional, questões ligadas ao nacionalismo local.

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Por esse passado não muito longínquo em que fascismo, nazismo e integralismo perpassaram vários segmentos da sociedade brasileira[12], preocupa perceber o quanto a massa bolsonarista vibra quando seu líder faz uso do jargão fascista/integralista, “Deus, pátria, família e liberdade”[13]. Ao ouvir o “mito” pronunciar tal frase seus prosélitos reivindicam uma supremacia branca, de gênese europeia, sem lugar para o “outro”: o “pau-de-arara”, o “preto”, o “molusco”.


[1] – Dado retirado de “Debate impulsiona buscas por alturas de Lula e Bolsonaro no Google, confira medidas”. O Globo. 28.10.2022. https://extra.globo.com/noticias/politica/debate-impulsiona-buscas-por-alturas-de-lula-bolsonaro-no-google-confira-medidas-25599789.html (consulta: 01/11/2022).

[2] – Sobre como Bolsonaro se referiu a quilombolas e à demarcação de terras indígenas, consultar: “Relembre 7 vezes em que Bolsonaro atacou direito de indígenas”. Yahoo/Notícias, 13 de junho de 2022 https://br.noticias.yahoo.com/relembre-7-vezes-em-que-bolsonaro-atacou-direitos-dos-indigenas-162258426.html?guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAANXQFOkpkR_8MeiSSuOXirh_TKij96Vv8Nu3z. Sobre os nordestinos, ler, de Edson Sardinha: Cabeçudo, pau de arara, paraíba. Dez vezes em que Bolsonaro foi preconceituoso com os nordestinos. UOL. Congresso em Foco. https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/cabecudo-pau-de-arara-paraiba-10-vezes-em-que-bolsonaro-foi-preconceituoso-com-nordestinos/

[3] – E a consciência de tal “superioridade” encontra-se em algumas falas do próprio Bolsonaro. Certa vez, fazendo referência ao “desaparecimento” do indigenista brasileiro, Bruno Pereira, e do jornalista britânico Don Phillips, assassinados em junho de 2022, o presidente assim se pronunciou: “Lamento o ocorrido. Os caras entraram, pô, numa área sem segurança. É eu subir o morro… uma comunidade no Rio de Janeiro com esse olho azul e essa cara à noite. Vou para o micro-ondas ou não vou?” Murilo Fagundes. “Bolsonaro diz que morreria se subisse o morro ‘com olho azul'”. Poder360. 23.06.22. https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-que-morreria-se-subisse-morro-com-olho-azul/ (Consulta: 02/11/2022.)

[4] – A assimilação do imigrante italiano no Brasil, apesar de importantes estudos, ainda aguarda maiores aprofundamentos. Embora todos eles fossem chamados de “carcamanos” – termo pejorativo e de origem incerta –, o fato é que os italianos do Sul sofriam mais preconceitos do que aqueles do Norte – o que refletia o preconceito que existia na Itália “branca” contra os meridionais. Segundo um relatório do Office of War Information norte-americano, de 1943 – do National Archives at College Park, de Maryland: “Ele [o italiano] também era chamado [no interior do estado de São Paulo] de ‘mameluco’, termo que é usado tanto para pessoas mestiças, como para aqueles italianos do sul da Itália que têm pele escura…” (NACP/Records of the Office of War Information, RG 208, 208/350/71/12/34, box 437, The Italian Community of Campinas, 23/06/1943, Apud BERTONHA, João Fábio. O Fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. Pág. 245.)

[5] – Sabemos que os problemas que ele teve durante seu período no Exército, sua nulidade como quando atuou como Deputado Federal e mesmo as denúncias de corrupção de seu governo, nada parece afetar sua imagem considerada imaculada por seus seguidores.

[6] – WEINSTEIN, Barbara. A Cor da Modernidade. A branquitude e a formação da identidade paulista. São Paulo: Edusp, 2022.

[7] – ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz. A invenção do nordeste. E outras artes. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999, pág. 43.

[8] – WEINSTEIN, Barbara. Op. cit. pág. 169).

[9] – Após ter sido anunciada sua vitória, no último dia 30 de outubro, Lula afirmou que quiseram enterrá-lo vivo, para que não concorresse mais à presidência do Brasil. Portal Terra. 31 de outubro de 2022. https://www.terra.com.br/noticias/brasil/lula-eleito-em-discurso-petista-diz-estar-preocupado-se-bolsonaro-vai-permitir-transicao-de-poder,abd63f593a4a03be2ac50f943c0847fal2rcfzpi.html

(Consulta, 11, 11, 2022).

[10] – BERTONHA, João Fábio. Op. cit.

[11] – DIETRICH, Ana Maria. Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil. São Paulo: Todas as Musas, 2012.

[12] – Ao que tudo indica, o fato desses partidos terem sido considerados ilegais no Brasil, no final da primeira metade do século passado, não significa que tenham sido extintos, de fato.

[13] – Bolsonaro costuma adicionar a palavra “Liberdade” ao tradicional bordão integralista “Deus, pátria e família”. Tal acréscimo, no entanto, não supera a origem integralista do slogan que, por sua vez, integra uma série de apropriações que faz o bolsonarismo de signos integralistas, fascistas e nazistas (sobre o assunto, assistir “Quem não quer ser comparado a um nazista não se fantasia de nazista”, do Comitê Popular de Cultura do Bixiga, baseado no artigo “Bolsonarismo e Nazismo. Iconografia e Linguagem”, de Jean Goldenbaum. Brazil247, 12/09/2002.  https://www.brasil247.com/blog/iconografia-e-linguagem-nazismo-e-bolsonarismo (Consulta: 02/11/2022).

 

A Magia do Manuscrito: o que documentos pessoais contam sobre personalidades históricas e a sociedade em que viveram

Reprodução Sesc Avenida Paulista.
Reprodução Sesc Avenida Paulista.

A exposição A Magia do Manuscrito – Coleção de Pedro Corrêa do Lago, em cartaz no Sesc Avenida Paulista, traz ao público brasileiro aproximadamente 180 documentos manuscritos de figuras de destaque da arte, da política, da ciência e da história. São cartas, fotografias assinadas, partituras e bilhetes de personalidades como Juscelino Kubistcheck, Carmen Miranda, Freud e Ronaldo Fenômeno, entre outros grandes nomes.

A curadoria é do próprio colecionador, o economista e ex-diretor da Biblioteca Nacional, Pedro Corrêa do Lago. Seu hábito de colecionar começou quando ainda era pequeno, “como um simples hobby, e o que eu colecionava eram simples assinaturas, que são os chamados autógrafos, mas autógrafo é uma palavra muito mais ampla que significa qualquer coisa escrita na sua própria letra, só que virou sinônimo praticamente de assinatura e não tem mais como mudar isso, então eu uso a palavra manuscrito… na verdade muitas das coisas que estão [na exposição, não são autógrafos], a exemplo de uma página do [Oscar] Niemeyer que não está assinada, mas é muito mais interessante do que uma simples assinatura dele no papel”.

Mesmo depois de 50 anos colecionando, Pedro afirma que sua curiosidade continua muito acesa: “O grande prazer da minha vida foi a aquisição do conhecimento, sob todas as formas. Eu tive a sorte de ter um trabalho que me fazia viajar muito, o fato do meu pai ter me levado nos postos dele como diplomata para viver em outros países quando eu era garoto me ensinou diferentes línguas, culturas e isso abriu muito os horizontes”. A coleção de manuscritos pode ser dividida em seis áreas, a história, a literatura, a música, a ciência, o entretenimento e a arte – “fico fascinado pelas cartas dos pintores, sobretudo quando é uma troca entre um e o outro, o Monet escrevendo pro Manet, por exemplo”. E, na ambição de cobrir todas, a coleção torna-se abrangente e, praticamente, panorâmica de todos esses setores, sobretudo no mundo ocidental e desde 1500, como destaca o colecionador, embora faça a ressalva que “esses documentos são patrimônio da humanidade, estão na minha posse temporária, aprecio muito tê-los, mas eu tenho uma obrigação com relação a eles. A primeira obrigação é conservá-los, a segunda obrigação é divulgá-los” – os documentos da coleção Corrêa do Lago são, não raramente, emprestados a instituições e pesquisadores, seguindo tal mote de compartilhar o conhecimento histórico que eles guardam.

Já em relação à conservação, Pedro observa algo que pode surpreender: “A maior parte desses documentos é mais forte do que a gente imagina; muitos deles estão escritos em papel de trapo que é um papel que era usado até o século XIX, que é muito mais resistente e vai continuar branco daqui a mil anos quando o papel que a gente usa hoje já tiver virado pó”. Ele aponta ainda que os grandes inimigos na conservação de tais documentos são o fogo e a umidade: “Essas peças são conservadas em arquivos à prova de fogo, seu entorno pode queimar a mil graus durante uma hora que o interior [da estrutura] não fica danificado e protege também da água que os bombeiros vão jogar para apagar esse fogo”, e brinca, “[mas] eu nunca testei, graças a Deus”. Quando expostos, no entanto, outro desafio à conservação dessas peças está, na verdade, relacionado ao que está escrito nelas, mais especificamente sua tinta, neste ponto Pedro comenta que “alguns [documentos] vão permanecer iguais, mas a maioria é sensível e pode desbotar, então eu sou muito contrário, por exemplo, a você emoldurar documentos a não ser que você os mantenha em lugares muito protegidos da luz”.

Andy Warhol (1928-1987) | Jean-Michel Basquiat (1960-1988); Josephine Baker (1906-1975; e Touro Sentado (1831-1890). Reprodução Sesc Avenida Paulista.
Andy Warhol (1928-1987) | Jean-Michel Basquiat (1960-1988); Josephine Baker (1906-1975; e Touro Sentado (1831-1890). Reprodução Sesc Avenida Paulista.

Entre descobertas e curiosidades históricas, a exposição fornece um olhar sobre a mudança dos costumes e também da sociedade em maior escala. Em meio a tantas cartas de figuras notórias é impossível não refletir sobre a transformação da comunicação nas últimas décadas. “As cartas estão fisicamente desaparecendo, mas a comunicação escrita talvez esteja até mais intensa. É claro através de e-mails, através das mensagens, mas eu tenho a impressão que a minha geração escrevia menos do que a atual”, observa Pedro, “só que a carta era a única opção possível [de comunicação] com uma pessoa distante, foi aliás por isso que os correios se desenvolveram tanto, porque elas eram fundamentais, inclusive para o comércio. Eu confesso que sou de uma geração que ainda escrevia cartas, de vez em quando uma pessoa me apresenta uma carta que escrevi há 40 anos, é uma coisa até engraçada… Isso mudou, realmente, a carta, o correio, a coisa de você escrever a mão e ir pro correio colocar, isso está se perdendo, mas, no fundo, o que não se perde é a mensagem”.

A mensagem, em alguns casos desses manuscritos, pode nunca ter visto a luz do dia antes. Desta forma, elas acabam revelando constantemente, segundo o curador, coisas admiráveis e deploráveis sobre seus autores. “Todas as grandes figuras tem momentos que nós preferimos que não tivessem ocorrido, e elas próprias, muitas vezes, lamentam essas fases… O maior erro é você julgar o que é dito em determinado contexto com a visão de hoje”.

Infelizmente, para A Magia do Manuscrito não foi possível realizar a transcrição completa dessas relíquias, mas parte da coleção foi transcrita quando de sua exposição na Morgan Library & Museum de Nova York, em 2018; embora a seleção de peças seja ligeiramente diferente – considerando sua adaptação e costura para o público brasileiro – o catálogo resultante da mostra de 2018 foi publicado pela editora alemã Taschen, traduzido para o português e pode ser conferido no Sesc Avenida Paulista. Ao comparar as duas ocasiões, Pedro exprime que a oportunidade de apresentar a coleção no Sesc foi “extremamente estimulante”, principalmente no que concerne essa nova seleção, feita junto com a equipe da instituição, para que não faltassem nomes que pudessem tocar mais o público atual, “tudo isso mostra que essa coleção está sempre em movimento, a própria apreciação do que é importante na cultura e na história está mudando constantemente”.

SERVIÇO

A Magia do Manuscrito
Coleção de Pedro Corrêa do Lago
Sesc Avenida Paulista – Avenida Paulista, 119 – Arte I (5° andar)
GRÁTIS – Livre

Visitação:

28/9/2022 a 15/1/2023
Terça a sexta, das 10h às 21h30
Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30

Jonathas de Andrade e a ambiguidade dos encontros

Caravana Museu do Homem do Nordeste, de Jonathas de Andrade, na exposição
Em 2020, Jonathas de Andrade fez uma caravana pelo interior de Pernambuco pra itinerar com alguns trabalhos. Nessa viagem, o "Museu do Homem do Nordeste" foi transformado em peça interativa, para que as pessoas construissem os seus museus. Hoje esse projeto deságua na "Caravana Museu do Homem Nordeste", que "enquanto móbile traz esse movimento constante de equilíbrio e desequilíbrio, nesse lugar de uma disputa entre individual e coletivo na configuração dos imaginários", diz Ana Maria Maia. Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo

Um convite para representar o Brasil na Bienal de Veneza, a montagem de uma exposição panorâmica de grande porte na Pinacoteca de São Paulo — uma das mais importantes instituições de arte do País — e os 40 anos completos. Tudo isso, em meio a um Brasil fervilhante de eleições e efemérides históricas. 2022 se apresenta de forma emblemática para Jonathas de Andrade. 

Quem visita a Pinacoteca Estação, em São Paulo, tem a oportunidade de conhecer um pouco de seus 15 anos de trajetória artística. O rebote do bote, em cartaz até fevereiro de 2023, reúne 20 das 40 obras produzidas pelo alagoano durante sua carreira, e vai desde seus primeiros trabalhos — Amor e felicidade no casamento (2008) e Recenseamento moral do Recife (2008) — até uma obra inédita, comissionada para a mostra — Decalque Estilhaço (2022), primeiro exercício de autorrepresentação do artista, que sempre se dispôs a mostrar a figura do outro e do coletivo. A expografia, porém, propõe um olhar não cronológico, colocando lado a lado projetos de diferentes períodos, mas que travam entre si diálogos e conflitos. Assim, convida o público a refletir sobre os conceitos, dinâmicas e dispositivos que permeiam essa trajetória artística. 

A curadoria de Ana Maria Maia busca, mais do que um enfoque nas obras em si, um olhar para a política das relações que as envolve: “ou seja, o que extrapola as imagens, que por vezes está nos bastidores ou nas sutilezas delas, que diz respeito ao modo dele trabalhar. As abordagens que ele faz, as pessoas com que ele trabalha como colaboradores, como modelos e como fornecedores. Essa espécie de performance oculta, esse jogo de corpos que ocupam certos lugares, para mim é o que existe de mais importante no trabalho do Jonathas”, afirma Maia, que acompanha o artista desde a faculdade de jornalismo, que cursaram juntos no Recife nos anos 2000. 

Jonathas de Andrade faz coro: “Olhar pra minha história não é olhar pra história desse autor antigo, que pega a pena e escreve; é uma autoria muito tramada pelo outro”. E completa: “Diante das pautas do hoje, passei a entender que não é falar pelo outro, mas é falar com o outro. Isso que é saboroso, inspirador e desafiador pra mim. É reconhecer a potência da resistência, que é tão múltipla, tão potente, e entender como é que isso de algum jeito me inspira e explicita minhas próprias questões, contradições, privilégios e fragilidades”.

A individual compõe uma programação voltada a revisões históricas na Pinacoteca, ao lado de Ayrson Heráclito: Yorùbáiano, Atos Modernos, Enciclopédia Negra etc. “Achamos que ele era um bom intérprete e um bom aliado nesse gesto de escovar as histórias brasileiras a contrapelo”, diz Ana Maria Maia, atualmente curadora-chefe da instituição. “É um artista com muito fôlego para discutirmos História. Chega trazendo esse aporte de um cara que se arrisca a mexer num vespeiro de narrativas hegemônicas, que são racistas e violentas, que exercem violências de gênero, de raça, de classe.”

À frente, "Museu do Homem do Nordeste", de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
À frente, “Museu do Homem do Nordeste”, de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
A ambiguidade como palco do mundo

Ao construir um museu dedicado ao homem nordestino, em 2013, Jonathas já dialogava com essa leitura da curadora. Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste retrata 77 trabalhadores da região. Ao fazer referência à instituição criada por Gilberto Freyre em 1979, a obra dá palco às convenções e estereótipos sobre a identidade do nordestino — atrelada à virilidade e ao trabalho braçal —, propõe um olhar às dinâmicas sexistas — ao que faz o uso da palavra ‘homem’ como humanidade, mas, simultaneamente, transforma o trabalho “num museu do homem, do macho e do homoerotismo”, explica Maia — e provoca o público da arte contemporânea a repensar questões de desigualdade social. “Esse trabalho é feito para desestabilizar e constranger, justamente porque é magnético. As imagens são, de fato, muito intensas e problemáticas, falam o quanto a gente não olha para aquelas pessoas”, completa Andrade. A obra, hoje exposta no acervo da Pinacoteca, tem um desdobramento em O rebote do bote: a Caravana Museu do Homem do Nordeste, que estende as reflexões do projeto original a partir da interação com outras pessoas.

Ambas as obras trazem um ponto central do trabalho do alagoano: a ambiguidade. “Assim como a vida, os projetos não precisam ser sobre uma coisa só, são estilhaços de possibilidades e de tensões. São sobre afeto-amor, mas também carregam diferenças, estranhamentos, que são partes das relações humanas”, compartilha. E complementa: “Acredito que é importante que a ambiguidade seja um tempero nos trabalhos, para que as obras possam requisitar de quem vê, do próprio repertório da pessoa, para que ela, então entenda o que vê com amor ou violência, como certo ou errado. Acho que esse meio termo tem um potencial pedagógico e de debate gigante.”

O rebote do bote explicita ainda mais essa proposta ao que a extrapola para a expografia. Um exemplo é a proximidade entre a Caravana do Museu do Homem do Nordeste e A Batalha de Tejucupapo — obra baseada em um episódio histórico de expulsão dos holandeses por uma comunidade de mulheres na Zona da Mata de Pernambuco, usando seus utensílios domésticos. “É uma história de protagonismo feminino e, até hoje, um conjunto de mulheres que mora nessa cidade encena a batalha, um pouco para deixar vivo esse legado de luta das mulheres da região. A proximidade dos trabalhos tensiona essa narrativa dedicada ao universo masculino”, explica Ana Maria Maia.

Ao propor essas desestabilizações, nas obras e na expografia, o trabalho de Jonathas de Andrade busca expor questões pungentes da realidade brasileira. “Os projetos não têm a intenção de reescrever a história totalmente, mas de revirar ela ao avesso, problematizá-la, dar palco às suas contradições”, diz o artista. 

O risco do flerte

Esse olhar para a história tem uma tônica particular: as relações pessoais. A ambiguidade que o artista propõe em suas obras se dá no âmbito dos encontros. 

Por um lado, pode-se pensar no contato com o público. “Estou convidando-o a completar e brincar com o que a obra está propondo. É muito saboroso, porque tem uma capoeira aí, é dança e luta ao mesmo tempo. Completar aquilo depende muito do outro, é só a interação que define”, diz o artista. Talvez o maior exemplo nesse sentido seja O peixe, também presente em O rebote do bote. O vídeo mistura documentário e ficção ao retratar pescadores em seu labor diário, mas propondo que eles abracem o peixe até a morte do animal. “Você tem o carinho e a violência”, explica o artista. A depender de quem e como assiste, é possível um efeito distinto do trabalho: “a pessoa pode rejeitar o assunto, bem como ficar completamente inebriado pela paixão que a imagem evoca”.  

As relações pessoais também estão presentes na construção dos projetos, ao pensarmos nos corpos que os compõem. Esses encontros carregam suas ambíguidades, trazem uma série de tensões e desconfortos.“No próprio processo de concepção e criação, esses trabalhos trazem mil questões, que é o que me faz de fato crescer. Então não é sobre ser questionado ou não, é sobre como essas estruturas são vivas o suficiente pra me desafiar a me reelaborar, a me confirmar ou reinventar nos processos”, explica o artista. 

Questões essas das quais somos lembrados ao andar na exposição da Pinacoteca Estação e ler, numa porta no canto da última sala: “Departamento de ética e culpabilidade”. “Foi muito bonito revisitar o Departamento de ética e culpabilidade, entender que nele tem um processo de aprendizado e o impulso do Jonathas de voltar a tomar seu assento como indivíduo. Isso envolve negociar a aparição da sua própria imagem. Isso envolve entender e cuidar tanto da formulação de trabalhos, quanto da formulação dos seus mecanismos de crédito, de repartição de lucros. Entender a dimensão ética para um artista com visibilidade e que fala dessas feridas coloniais, desde um lugar de homem que nunca se racializou e que sempre teve privilégio socioeconômicos, e também tem a ver com delimitar muito bem o seu lugar como aliado e os seus limites”, diz a curadora Ana Maria Maia. 

Para Andrade, a retrospectiva ajuda a compreender como os trabalhos ganham tempo histórico, como a percepção deles vai mudando no passar dos anos, ao que novas discussões sobre o decolonial, o lugar de fala e o olhar antropológico se travam. Assim, os trabalhos parecem ganhar uma nova camada de ambiguidades, ao que dão palco às próprias tensões de seus processos e permitem repensar as dinâmicas do mundo das artes no hoje, criar repertório para esses debates, em especial quando pensamos na relação do artista que retrata o outro e o coletivo.

“O rebote do bote tem a ver com essa dimensão das consequências, do desejo pelo outro, do desejo de abocanhar aquele outro desejo, que é da ordem de um apetite sexual, mas também de aprendizado, de convívio, de revisão histórica”, declara Maia. 

“A arte é esse organismo vivo, e eu quero me desafiar a ser esse organismo vivo também. É um desafio gigante, porque a gente cria, mas também reproduz muita coisa. A gente tem consciência e às vezes não tem. Então, o desafio é que a arte me coloque a ser uma célula viva, em transformação o tempo todo”, completa o artista.

O artista entra em cena

Com essas questões, chegamos à última sala de O rebote do bote, com a primeira autorrepresentação dessa trajetória, Decalque estilhaço. A obra põe Jonathas de Andrade em foco.

Nascido em Maceió, Alagoas, o jovem cursou anos de Direito em Florianópolis, Santa Catarina. Foi durante a graduação que se envolveu mais intensamente com os movimentos sociais e com temáticas que até hoje traz em seu trabalho. “Entendi um Sul muito intenso socialmente, uma relação muito europeia e conservadora. Foi um momento que me senti muito nordestino, uma experiência que ainda não tinha experimentado sendo um jovem classe média em Maceió. Foi uma hora de tomada de consciência de corpo.” Andrade, então, decide trocar de área, tranca o curso e se matricula na Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco. É nesse momento que conhece Ana Maria Maia – na época também estudante e hoje curadora de sua individual -, passa a fotografar exposições de arte e monta, como trabalho de conclusão de curso, sua primeira exposição individual – Amor e felicidade no casamento.

Na sequência, tem seu portfólio lido pelo curador Eduardo Brandão e é convidado a montar uma exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. Através de Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo, faz uma exposição no Banco Real do Recife. A partir desses encontros, outros se travam, Andrade viaja pela América do Sul, se une ao coletivo Dois Pontos, participa de sua primeira bienal – do Mercosul – e posteriormente da Bienal de São Paulo, curada por Moacir dos Santos, com assistência de Ana Maria Maia.

Através desses encontros ao longo da vida, cruza saberes e perspectivas. Descobre seus caminhos profissionais no diálogo entre pessoas, linguages artísticas e campos de conhecimento. “Uma série de coisas que podiam ser pra nada, mas que a arte amarrou. Então devo muito a esses encontros, e devo honrar esses encontros”, completa o artista.