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MinC lança maior investimento público em cultura na história do país

Posse do conselho superior do cinema. Ministério da Cultura
Posse do conselho superior do cinema. Foto: Filipe Araújo / MinC

Foi lançada oficialmente na última quarta-feira, 27, no Museu Nacional da República, em Brasília, pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), maior inversão de recursos destinada à área da cultura na história do país até esse momento. A partir da publicação do decreto 11.740/2023, assinado pelo presidente Lula no dia 19 de outubro, o Governo Federal destinará anualmente, pelos próximos 5 anos (até 2027), 3 bilhões de reais para o setor cultural, totalizando um investimento de 15 bilhões de reais ao final do período.

Até hoje, os investimentos do Estado brasileiro em cultura nunca passaram de 3 bilhões de reais por ano, incluindo-se aí as leis de incentivo e o orçamento direto do governo. A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura é investimento direto e será executada de forma descentralizada, por meio de repasses de recursos financeiros da União aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal, mediante editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e a suas áreas técnicas. Somado ao orçamento direto do Ministério da Cultura, a Lei Rouanet, a Lei do Audiovisual e os recursos do Fundo Nacional de Cultura, além do investimento extraordinário de 3,8 bilhões de reais da Lei Paulo Gustavo, é possível afirmar que esse é um momento único para o setor cultural no Brasil, um dos que foi mais penalizado com os acontecimentos recentes – a pandemia, a guerra cultural da extrema direita, a perseguição e a censura e o negacionismo.

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, afirmou que a PNAB é estruturante (já que é voltada à consolidação do Sistema Nacional de Cultura), abrangente, plural e presta-se à resolução da necessidades atuais do setor. “É isso que faz dela uma iniciativa única e efetiva, voltada para quem está na ponta (da atividade cultural)”, afirmou. “A partir de agora, o setor tem uma política permanente, com recursos anuais de 3 bilhões de reais, que transformará os parâmetros do fomento em todo o País”, festejou a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), presente ao lançamento, assim como Mary Sá Freire, viúva do compositor Aldir Blanc, cujo nome batiza o programa.   

Para o recebimento dos recursos da Política Nacional Aldir Blanc, que começarão a ser repassados a partir de 2004 – quando serão lançados os editais, prêmios e chamamentos públicos ao setor – os entes federativos (Estados e municípios) e consórcios públicos intermunicipais devem cadastrar os planos de ação com informações (como as metas e as ações previstas) na plataforma TransfereGov. As informações servirão de base para o Plano Anual de Aplicação dos Recursos (PAAR). “A PNAB tem o caráter transformador, vai mudar e consolidar as políticas públicas da cultura do país com o aporte anual de R3 bilhões, um recurso inédito pro setor”, afirmou o secretário-executivo do MinC, Márcio Tavares. “O valor que cada ente irá receber se enquadra como despesa obrigatória, não podendo sofrer qualquer corte ou contingenciamento, assim como as despesas com educação e saúde. Isto demonstra a importância da cultura para este governo”, esclareceu Tavares.

Segundo informações da Assessoria de Comunicação do Ministério da Cultura, os entes federados devem promover discussão e consulta à comunidade cultural e aos demais atores da sociedade civil sobre a execução dos recursos da PNAB. Isso deve ser realizado por meio de conselhos de cultura, de fóruns direcionados às diferentes linguagens artísticas, de audiências públicas ou de reuniões técnicas com potenciais interessados em participar de chamamento público, de sessões públicas presenciais e de consultas públicas. “Dessa forma, será possível implementar um processo de gestão e promoção das políticas públicas de cultura, capaz de promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais, observado o respeito à diversidade, à democratização e à universalização do acesso”, informa o texto.

Para regulamentar a PNAB, o MinC afirma que realizou escutas e dialogou com a sociedade, organizações e movimentos para a construção coletiva e colaborativa do texto. Foram feitas reuniões com movimentos sociais, sociedade civil e dirigentes de cultura e debates com o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), o ConECta, Fórum Nacional de Conselhos Estaduais de Cultura e movimentos nacionais de cultura.

“A regulamentação participativa reforçou a transparência, a coletividade e o fortalecimento da cultura brasileira. A colaboração entre sociedade civil e poder público é essencial para a criação de políticas culturais que refletem as diversas realidades do país. O esforço do MinC permitirá que estados e municípios estabeleçam editais e outras medidas alinhadas com as necessidades locais e nacionais”, afirmou a secretária de Comitês de Cultura do Ministério da Cultura, Roberta Martins.

O decreto que criou a PNAB prevê a aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e a suas áreas técnicas e outros instrumentos destinados à manutenção, formação, desenvolvimento técnico e estrutural de agentes, espaços, iniciativas, cursos, oficinas, intervenções, performances e produções; desenvolvimento de atividades de economia criativa e economia solidária; produções audiovisuais; manifestações culturais e realização de ações, projetos, programas e atividades artísticas, do patrimônio cultural e de memória.

De acordo com o texto, os entes federativos priorizarão o repasse dos recursos aos agentes culturais locais de modo a valorizar práticas, saberes, fazeres, linguagens, produção, fruição artística, patrimônio, memória, diversidade, cidadania e cultura local. Já os agentes culturais que executem atividades de natureza itinerante (artistas circenses, nômades e ciganos), poderão concorrer nos editais de fomento nos locais onde exerçam atividades culturais ou estejam estabelecidos formal ou informalmente, com dispensa do comprovante de residência. No mínimo 20% dos recursos devem ser destinados a ações de incentivo direto a programas, projetos e ações de democratização do acesso à fruição e à produção artística e cultural em áreas periféricas, urbanas e rurais, e em áreas de povos e comunidades tradicionais.

A mostra ‘O Grito!’ é cancelada em Brasília, e curadora diz que isto abre precedente perigoso

Detalhe do painel da artista Marilia Scarabello, na exposição "O Grito!". Foto: Reprodução
Detalhe do painel da artista Marilia Scarabello, na exposição "O Grito!". Foto: Reprodução

Aberta no dia 17/10, na Caixa Cultural de Brasília, a exposição O Grito! foi cancelada na última segunda-feira (23). A mostra trazia críticas ao ex-presidente Jair Bolsonaro e, em uma das obras, Damares Alves (senadora e ex-ministra), Paulo Guedes (ex-ministro da Economia) e o presidente da Câmara, Arthur Lira, eram retratados dentro de uma lata de lixo, com as cores da bandeira nacional.

Para Sylvia Werneck, curadora da mostra, trata-se de censura. “Eu não tenho como entender de outra maneira. A ala conservadora da sociedade pressiona, e a exposição é vetada”, disse Werneck, em entrevista à arte!brasileiros.

O Grito! estava prevista para permanecer em cartaz até o dia 17/12. Seu objetivo, segundo Werneck, era “problematizar os 200 anos de Independência do Brasil”, e reunia criações de sete artistas. A série de colagens Coleção Bandeira, de Marilia Scarabello, foi a obra rechaçada pela oposição. Além de Damares, Guedes e Lira na lata de lixo, o trabalho também retrata Bolsonaro defecando sobre a bandeira do Brasil. A curadora ressalta que ambas imagens são meros fragmentos de um total de 600 que compõem o painel de Scarabello e afirma que a artista vem recebendo ameaças por causa das críticas.

A escolha do projeto pela Caixa Econômica Federal gerou reclamações por parte de parlamentares da oposição por ter patrocínio do banco e do governo federal. As críticas começaram depois que o influenciador Evandro Araújo, que visitou a exposição, publicou em suas redes sociais um vídeo afirmando que a mostra era “dinheiro público jogado no lixo” e que a Caixa estava “patrocinando revanchismo político”. Não demorou para a deputada federal Bia Kicis protocolar um requerimento de convocação ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para ele prestar esclarecimentos.

O cancelamento de O Grito! lembra outro episódio: em 2017, a exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira foi cancelada pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, após críticas de movimentos religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL).

Querida Patricia ou … A arte é que é isto

Detalhe de uma obra da artista plástica mineira Sonia Gomes, presente na 35ª Bienal de São Paulo. Foto: Eduardo Simões
Detalhe de uma obra da artista plástica mineira Sonia Gomes, presente na 35ª Bienal de São Paulo. Foto: Eduardo Simões

Saudade de conversarmos pessoalmente. Enquanto não o fazemos, e porque já me cansei das mensagens em grupos de WhatsApp, resolvi lhe escrever essas mal traçadas, tudo bem?

Em sua última mensagem, você me perguntou se eu já havia lido o artigo que o Rafael Cardoso publicou na Folha, no último dia 15. Pois é, li e gostei do texto porque toca num ponto preocupante do nosso ambiente artístico: a falta de consistência que hoje o caracteriza, motivada, em grande parte – mas não apenas – pela avalanche de obras discutíveis que o assolam.

Quando li o artigo, a primeira questão que me veio foi: será que o jornal decidiu publicar o texto como início de um processo de mea-culpa? Afinal, a Folha é um dos jornais responsáveis, no país, pela disseminação de textos pautados em releases de galerias, alavancando artistas e/ou exposições sem nenhum significado concreto para a arte e para a cultura. Agindo assim, a meu ver, ela acaba atuando como um agente para a concretização de tudo aquilo que Cardoso escreve.

Mas acho que o artigo do nosso amigo não é o início de nada. Para a Folha, quero dizer. Mesmo depois da sua publicação continuaremos a ver estampadas semanalmente em suas páginas um tipo de texto apressado, produzido para ser lançado na véspera ou no dia da inauguração de algum desses eventos. Resenhas com críticas consistentes às exposições, por exemplo? Nem pensar!

A mostra e/ou o artista são vistos pelo jornal como produtos que – chancelados pelos marchands e/ou por um ou mais colecionador –, no dia seguinte tornam-se cartas fora do baralho, a serem substituídos por outros na próxima semana.

Outro dado que me dei conta após a leitura do texto foi o seguinte: aquele clima geral descrito por ele tem sua origem, certamente, na própria história recente das artes visuais. Leia e depois me responda, dizendo o que pensa da questão que vou levantar agora:

A partir do final da Segunda Grande Guerra, quando as vertentes artísticas modernas começam a se institucionalizar – tomando conta dos grandes museus e de importantes coleções particulares –, ao mesmo tempo se inicia a expansão/dispersão do próprio conceito de artes visuais.

Lembre-se que, até mesmo durante o período moderno, esse campo estava fundamentalmente circunscrito às modalidades tradicionais – pintura, desenho, gravura, escultura. Na medida em que as artes visuais abriram suas portas para as neo-vanguardas, ela também se abriu para uma série de outras modalidades compostas, tanto pela fotografia e pelo cinema (ou vídeo) de autor, quanto para a performance, para a instalação etc. Assim, o terreno das artes visuais deixava aos poucos de estar voltado para assuntos apenas concernentes ao seu universo tradicional, para abrir-se a outras áreas da atividade humana. O artista-artesão –especializado em pintura ou escultura etc. –, passou a conviver com o artista-antropólogo, o artista-botânico e o artista-sociólogo, entre muitos outros.

Assim, ao mesmo tempo em que assistíamos à apoteose da institucionalização do moderno, vivenciávamos também o solapar desse processo por meio de obras ou ações que, em última instância, colocavam em xeque os pressupostos estéticos e artísticos expandidos pelo modernismo triunfante. Esta situação introduzia questões até então estranhas à arte moderna.

Não sei o que você pensa a respeito, mas para mim essa abertura trouxe um ganho para o terreno da arte. Muitas obras, hoje fundamentais para a consciência que temos do mundo contemporâneo, apenas surgiram porque os horizontes das artes visuais foram expandidos. Mas essas mudanças tão importantes não significaram que essas novas formulações do conceito de artes visuais mudaram o sistema de arte. Pelo contrário, apesar de toda a radicalidade assumida por algumas propostas, sabe-se bem que todas foram devidamente tragadas pela institucionalização. Se surgiram como alternativa ou negação do sistema da arte, esse, desde o início, abriu-se para o alternativo para abarcá-lo e, consequentemente, neutralizá-lo.

Enfim, o que estou querendo lhe dizer é que, dentro dessa situação, ganhava força a consciência de que os parâmetros artísticos e estéticos que haviam dominado as vanguardas históricas agora perdiam a hegemonia, assim como, antes, a arte tradicional também perdera a sua. A arte contemporânea não era a arte moderna.

Lembro até de um texto de Ronaldo Brito que, a meu ver, ainda resume bem essa situação. Ele escreveu – não sem ironia, é claro – que, se naquela época, alguém se colocasse escandalizado frente a uma obra de arte contemporânea e bradasse: – Mas isto é arte?! A obra responderia: – Não. A arte é que é isto.

Fico pensando: o que Brito queria despertar em seus leitores com essa espécie de parábola? Para mim, ele queria chamar a atenção para o fato de que a obra de arte contemporânea pauta – ou deveria pautar – suas próprias premissas e que, assim, ela só pode ser analisada a partir desses pressupostos, e não de outros. Está me entendendo, Patricia?

Pois bem, o problema é que tudo isso acontecia em um momento em que o circuito, supostamente buscando “democratizar” a arte, equivocadamente elevou à última potência outra afirmação que também surgia (ou ressurgia) naquela época: “Todo ser humano é ou poderia ser um artista”, máxima proferida por alguns artistas (entre eles, Beuys, mas também, e do seu jeito, Warhol, entre outros). O que muitos, equivocadamente, concluíram com essa frase? Que, se todos eram artistas, tudo poderia ser arte. Então ninguém era artista e a arte não existia.

Como em outros momentos em que foi anunciada a morte da arte, sabemos que também nesse caso, a arte e o artista não acabaram. Pelo contrário, criadores e criaturas proliferam e proliferaram prodigiosamente durante essas últimas décadas, ressoando uma situação nova, típica das últimas cinco ou seis décadas: a ampliação do número de escolas de arte, de estudantes, de colecionadores, do público para as exposições em novas e velhas galerias, novos e velhos museus, antigas e novas bienais (Hal Foster tem um texto interessante sobre isso, Patricia).

“Aberto” e “democrático” (escrevo essas palavras entre aspas porque sabemos que de aberto e democrático o circuito não tem nada), o ambiente artístico se abria para todas as novas possibilidades que a arte oferecia ou passava a oferecer, assim como – e é para isso que eu gostaria de chamar sua atenção – também se mantinha aberto para as modalidades artísticas convencionais.

Para complicar ainda mais, essa últimas – produzidas no passado remoto ou recente –, já estavam com seus maiores e melhores exemplares devidamente confinados, em coleções públicas ou privadas, e valendo cada vez mais. Impossível para a imensa maioria de colecionadores surgidos nas últimas décadas no Brasil, por exemplo, comprar um Hélio Oiticica ou uma Lygia Clark.

Por mais consagrados que sejam esses artistas, por mais que estejam representados nos melhores museus e nos mais importantes acervos particulares, esses colecionadores medianos – com ou sem muito dinheiro, mas todos sem muita cultura também – não estão, de fato, dispostos a gastar um dinheirão para poderem “pendurar no teto um monte de tecido costurado” – como os trabalhos de Sonia Gomes –, ou espalhar fios de metal pelo chão, como alguns trabalhos de Tunga. Não estão dispostos mesmo.

E é aí que eu chego a meu ponto, Patricia:

Será justamente nesse momento de desamparo dos compradores de arte – sem o apoio de um verdadeiro debate – que o mercado surgirá para “salvar” esse colecionador doido para comprar, mas sem ter exatamente o que comprar porque, ou não tem dinheiro, ou não tem real paciência com “essa tal de arte contemporânea”?

Aproveitando-se daquela permissividade e daquele relativismo que mencionei acima, o mercado providenciará uma série de novos produtos para colocar à venda, produtos preferencialmente ligados às modalidades artísticas tradicionais. Para o colecionador mediano que não pode mais comprar um Volpi, um Portinari, um Sérgio Camargo ou uma Maria Martins seria ok colocar mais uma obra de arte convencional na parede – desde que “nova” e de autoria referendada pelo repórter do jornal – uma peça que case bem com o sofá e o tapete da sala (para, quem sabe, um dia sair nas páginas das revistas de decoração).

Penso que propositadamente o circuito se esqueceu de que, se as regras da tradição e da arte moderna foram superadas, outras foram colocadas em seu lugar. Tunga e Sonia Gomes são importantes, porque são fiéis às questões que seus respectivos trabalhos determinam. Apenas por isso, e não porque são primeira página do caderno de cultura desse ou daquele jornal.

Entendendo a arte contemporânea como uma espécie de “terra de ninguém”, como um território destituído de regras, o mercado impõe as suas, é claro. Não é propriamente que “tudo é arte”, não. Na atual indigência cultural em que vivemos, é arte aquilo que está na galeria, aquilo que é produzido para o rápido consumo, incensado pela imprensa.

Obras impecáveis do ponto de vista formal ou obras com acentuado apelo político? Não importa, não interessa se a obra se resolva com qualidade ou não. Tudo vale nesse mercado, desde que ela possa ser colocada na parede ou no pequeno pedestal da sala. Ou seja: é arte aquilo que está na galeria e que se comporta como uma obra de arte “de verdade” e por um preço razoável.

A lástima é que, como diz o texto de Cardoso, grande parte dessas obras que invade o circuito e que, de lá, vai para coleções públicas e privadas – antes passando por bienais e outras grandes mostras –, não consegue ser o “isto” que deveria ser.

Você me pergunta o que fazer para mudar esse quadro, Patricia? Não sei, mas acredito que esta situação poderia começar a mudar se outros setores do circuito da arte e da cultura começassem a se sentir incomodados com essa precessão absoluta do mercado em tudo o que diz respeito à arte.

Patricia, foi mais ou menos isso o que me veio à cabeça a partir da leitura do texto de Rafael.

Fico por aqui. Beijo saudoso,

Tadeu.

Bernardo Mosqueira fala da nova sede do Solar dos Abacaxis e do cargo de curador-chefe do ISLAA

Bernardo Mosqueira, curador e diretor artístico do Solar dos Abacaxis. Foto: Mason Wilson
Bernardo Mosqueira, curador e diretor artístico do Solar dos Abacaxis. Foto: Mason Wilson

Bernardo Mosqueira não para. O Solar dos Abacaxis, do qual é diretor artístico, anunciou para o dia 18/11 a abertura da primeira mostra de artistas residentes de sua Oficina Solar, em seu novo endereço. Participarão os cariocas Ana Bia Silva, Janice Mascarenhas, Fujioka e Loren Minzú, e ainda Anti Ribeiro, de Recife (PE) e Carchíris, de São Luiz (MA); de fora do Brasil, estão Carolina Favre (Argentina) e GianMarco Porru (Itália). Antes, dia 4/11, ocorre o encerramento da exposição inaugural da nova sede da instituição carioca, Vida Transbordante e os Desejos do Mundo, uma coletiva com obras de 11 artistas, muitas delas inéditas. A proposta curatorial é assinada por Lorraine Mendes – assistente de Igor Simões em Dos Brasis –, Mosqueira, Ana Clara Simões Lopes e Catarina Duncan.

Participam da coletiva os artistas Denise Alves Rodrigues (MT), Dyó Potiguara (RJ), Efe Godoy (MG), Felipe Meres (RJ), Iah Bahia (RJ), Juno B (CE), Luana Vitra (MG), Manfredo de Souzanetto (MG), Patricia Dominguez (Chile), Rubens Takamine (RJ) e Zheng Bo (China). Neste sábado (21), Transbordante e os Desejos do Mundo realiza seu terceiro e último ciclo, uma programação especial do projeto educativo, destinada a alunos da rede pública de ensino.

O Solar também fez uma chamada aberta para o envio de obras para a exposição Corações à Desmedida, em homenagem à fotógrafa e pintora Rochelle Costi, morta em novembro do ano passado. As inscrições vão até 29/10, e os trabalhos devem ser encaminhados a instituição entre os dias 30/10 e 6/11. A mostra vai acontecer em paralelo à dos artistas residentes.

Em junho, Mosqueira foi anunciado como o primeiro curador-chefe do Institute for Studies on Latin American Art, em Nova York. Uma de suas primeiras missões no ISLAA, que esteve envolvido na exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, em 2018, na Pinacoteca de São Paulo, é a abertura ao público, em 28/10, da nova sede em Tribeca. Ao mesmo tempo, ele permanece permanece no Comitê Curatorial do Prêmio Foco da ArtRio, do qual foi idealizador, e que em 2023 completou uma década.

O Solar dos Abacaxis foi fundado em 2015, no casarão histórico do Cosme Velho que leva seu nome. Em dezembro do ano passado, a instituição se mudou para um sobrado de três andares na Rua do Senado, no centro do Rio, onde em setembro, após reformas, fez a primeira mostra inaugural. Na edição deste ano da ArtRio, fez mais uma edição de seu edição Halo Solar, o Círculo de Apoiadores da organização sem fins lucrativos, apresentando 36 fotos inéditas produzidas por Ayrson Heráclito – artista participante da 35ª Bienal de São Paulo e curador de Reversos e Transversos, em cartaz até 28/10 na Galeria Estação –, com imagens dos elementos usados no candomblé para curas e tratamentos.

Apesar do novo cargo no ISLAA, o Solar, no entanto, não perde espaço (ou tempo) na agenda de Mosqueira, um de seus fundadores. Em entrevista à arte!brasileiros, o também curador, pesquisador e escritor conta que o Solar nasceu num ambiente de “oposição ao sistema institucional do Rio”, por meio de exposições na rua ou da criação de instituições temporárias, entre outras experimentações propostas por “uma geração que estava mais radicalmente pensando a inclusão de artistas e formas de prática artística que vinham sendo relegadas às margens”.

O Solar dos Abacaxis, prossegue Mosqueira, surge de um cruzamento dos anseios de duas gerações, entre os anos 1990 e 2000: de um lado, desejava-se criticar modelos institucionais e criar novos; de outro, havia um interesse em refletir como inserir quem não estava fazendo parte de tais instituições. “Uma prática que busca construir outras modalidades institucionais que pudessem dar conta de outras formas de vida, de outras formas de sentir e pensar, de produzir resultados mais alinhados com uma certa ideia de justiça ou de construção, no presente, de outras possibilidade de viver”, explica Mosqueira.

Mais de exposições depois, Mosqueira pondera que o Solar dos Abacaxis é, hoje, um “projeto robusto”. “Estou vivendo hoje coisas que a gente sonhou e planejou lá em 2015”, diz. Sonhando a seu lado, estava o arquiteto Adriano Carneiro de Mendonça, hoje diretor executivo do Solar, cuja primeira sede era pertencente a sua família. “Quando nos conhecemos, por meio da artista Marina Simão, ele entendeu rapidamente qual era minha proposta. Com o tempo, entendemos que  o Solar, institucionalmente, não dependia da casa. Estávamos gastando mais tempo. energia e pensamento com aquele imóvel [que cogitaram comprar] do que com a nossa missão de fato”.

Mosqueira conta que ficaram “nômades” por cerca de um ano e meio, em que fizeram exposições em parceria com outras instituições, como a residência Bela Maré , outra com o MAM Rio, uma série de ações em Recife, São Paulo e outras cidades do Rio enquanto procuravam uma nova sede. Em Nova York, antes do ISLAA, Mosqueira fez um mestrado, mas reputa à experiência com o Solar a expertise que leva agora para cargo de curador-chefe do instituto.

“Aprendi fazendo o Solar, literalmente construindo-o, o que é a plasticidade de uma instituição, como é possível criar uma instituição de outras formas. Portanto é algo mais da prática institucional do que curatorial que eu trago bastante do Solar para o ISLAA”, reflete. “Um dos princípios do Solar é a ideia de que a gente não tem a menor obrigação de repetir formas de ser institucionais antigas e que não dizem respeito aos nossos valores. No ISLAA, essa experiência é muito importante porque o instituto não tem um formato convencional, não é um museu, uma galeria, uma agência, um embaixada. Não tem um modelo específico”.

Mosqueira também explica que parte de suas responsabilidades no novo cargo é cuidar da coleção do ISLAA, mas, sobretudo, organizar exposições a partir dela – segundo o curador, o acervo é muito extenso, rico e complexo – e fazer aquisições para complementá-la. Uma das futuras mostras, prevista para ser aberta em 28/10, revisita O princípio Potosí, apresentada em 2010 no Reina Sofía, entrelaçando-a com a coleção do instituto. “É um momento de grande expansão, cujo grande objetivo é fortalecer sua dimensão pública, não apenas por meio da construção da nova sede, mas ao criar novas parcerias, fazer novas publicações novas e estabelecer novos protocolos internas e externos”, diz. “Essa é das coisas que eu mais gosto de fazer: inventar a forma de fazer”.

 

 

 

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Aracy Amaral participa de bate-papo em torno da exposição ‘O curso do sol’, na Gomide & Co

Obra de Alina Okinaka, presente na exposição "O curso do sol", na Gomide & Co. Foto: Edouard Fraipont
Obra de Alina Okinaka, presente na exposição "O curso do sol", na Gomide & Co. Foto: Edouard Fraipont

crítica de arte e historiadora Aracy Amaral participa nesta quinta-feira (19), a partir das 19h, de uma conversa com o escultor e ceramista Megumi Yuasa (São Paulo, 1938), um dos artistas participantes da exposição O curso do sol, em cartaz até 14 de novembro, na Gomide & Co. A mediação será de Yudi Rafael, curador da mostra.

A coletiva, que teve consultoria de Roberto Okinaka, tomou emprestado para seu título o primeiro verso de um poema de Matsuo Bashō (1644-1694), um poeta peregrino, “um viajante, uma figura perfeita para se pensar sobre a ideia de trânsito [de pessoas, imagens e ideias] proposta por O curso do sol“, diz Rafael. São mais de 40 artistas, por meio dos quais se busca “apresentar narrativas da arte na diáspora japonesa da América Latina a partir das viagens de artistas nipo-brasileiros pela região”, segundo comunicado da galeria.

Também atravessam a mostra “os diálogos culturais que marcam o abstracionismo informal, lírico e caligráfico do período do pós-guerra, expandindo-se, ainda, para outras trajetórias ligadas a vertentes artísticas modernas e contemporâneas”, diz o texto. Para tanto, Rafael se debruçou sobre a produção pictórica e escultórica de artistas nipo-diaspóricos de Brasil, Argentina, México e Japão, “além de latino-americanos cujas obras entrelaçam-se com a cultura visual japonesa a partir de referências culturais e políticas locais”, prossegue a nota da Gomide & Co.

O curso do sol se estrutura em dois eixos: um vertical – Grupo Seibi, associação artística fundada em 1935 e, em torno da qual, reuniram-se nomes como Manabu Mabe, Tomie Ohtake e Massao Okinaka, “num contexto de muita precariedade, porque muitos desses artistas vieram para cá na infância e trabalharam na lavoura de café”, aponta Rafael; e outro, horizontal, que diz respeito à constelação transnacional da arte abstrata no pós-guerra, e que tem em Kazuya Sakai, da Argentina, um dos exemplos presentes na exposição. Há também artistas não nipônicos, como Adriana Varejão, León Ferrari, Mira Schendel e Rivane Neuenschwander, entre outros.

CONCEPÇÃO

Em conversa com a arte!brasileiros, Yudi Rafael conta ainda que as primeiras conversas para conceber a exposição tiveram início no ano passado. Segundo ele, o galerista Thiago Gomide “tem muito interesse tanto na arte japonesa em si, quanto na produção dos artistas de origem japonesa, no Brasil e restante da América Latina. E esta noção das diásporas está no centro dos debates da arte hoje em dia, mas, agora, em O curso do sol, ela destoa de posicionamentos nacionalistas, vai além, e a gente busca outras genealogias”, pondera.

Já Luisa Duarte, diretora artística da galeria, destaca que O curso do sol “se dá dentro de um programa, dentro da Gomide & Co, que tem se voltado para temas afins à América Latina. Então temos uma singularidade, uma exposição extremamente importante que acontece concomitantemente à 35ª Bienal de São Paulo, de modo similar ao que a galeria fizera há dois anos, com a mostra Nosso Norte é o Sul, montada ao mesmo tempo que a Bienal anterior”, lembra Luisa. “A exposição se dedicava a toda uma produção pré-colombiana que já tinha ali, no seu DNA, uma espécie do que viria ser um certo construtivismo geométrico no século XX. Fazia essa intercessão entre essas obras muito remotas, oriundas da América Latina, e uma produção moderna de caráter construtivo”.

Rafael ressalta que as obras expostas em O curso do sol têm particularidades de ordem cultural, ligadas ao modo de pensar e até mesmo à estrutura da língua desses artistas japoneses que vieram para o continente latino-americano. O objetivo de Rafael foi dar maior “atenção ao abstracionismo formal” que “teve uma presença forte no Brasil nos anos 1950 e 1960”, lembra o curador, e que permeia o conjunto de obras em exibição, de autoria ainda de artistas aqui radicados, como Flavio-Shiró (Sapporo, Japão 1928), extrapolando para nomes de Bolívia, Peru, México etc.

Luisa salienta ainda que o processo de feitura da exposição envolveu uma troca periódica Rafael e a equipe da Gomide, como um todo. “Em que eu tinha uma voz, o Thiago Gomide tinha outra, então é realmente um fruto dessa parceria feita ao longo dos meses, com uma rotina de encontros semanais”, conta. Já Rafael aponta que O curso do sol não “uma exposição exaustiva”, no sentido de abrangência. Temos um partido curatorial, até porque não daria para abrigar todo mundo. Muitas figuras importantes não entraram porque a gente tem os limites de tempo e de espaço”, pondera o curador.

“A gente pega um período específico, que são as décadas de 1950 e 1960, um momento fértil, em que a gente encontra diálogos na América Latina toda, dentro da abstracionismo. O Kazuya Sakai, na Argentina; o Manabu Mabe, Shiró e Tomie no Brasil, uma marca muito forte da diáspora japonesa no abstracionismo informal no continente”, conclui.

SERVIÇO
O curso do sol
Curadoria: Yudi Rafael
Até 14/11
Gomide & Co – Avenida Paulista, 2644 – São Paulo (SP)
Horários: de segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 11h às 17h
Entrada gratuita

 

Bienal Sesc_Videobrasil completa 40 anos mirando em pesquisa continuada e acesso a seu acervo

"My dreams", de Maksaens Denis. Foto: Divulgação 22ª Bienal Sesc_Videobrasil
"My dreams", de Maksaens Denis. Foto: Divulgação 22ª Bienal Sesc_Videobrasil

À frente do Videobrasil desde sua primeira edição, em 1983, Solange Farkas destaca que a mostra sempre teve como objetivo “iluminar determinadas áreas do mundo”, sobretudo a produção de regiões que hoje costumamos chamar de Sul Global, colocando artistas e obras “num contexto mais amplo da arte contemporânea internacional”. Em sua 22ª edição, intitulada A memória é uma ilha de edição, a Bienal Sesc_Videobrasil chega aos seus 40 anos, reunindo os trabalhos de 60 artistas, de 38 países, vários dos quais “não tinham sido ainda mapeados pelo sistema da arte”, diz Solange, ressaltando que este sempre fora o objetivo da mostra. A abertura ao público acontece nesta quinta (19), no Sesc 24 de Maio.

“Esta é uma edição que olha bastante para a sua história”, salienta Solange Farkas. “Estamos falando de memória, então foi um exercício bastante adensado para rever, talvez com mais clareza, de forma até mais didática, o papel que o Videobrasil teve ao longo desses 40 anos”. Para a diretora artística, o Videobrasil “operou em ciclos”, iniciando-se de forma “visionária”, observando o movimento de renovação das linguagens, uma ferramenta nova, cuja capilaridade e relevância no cenário das artes ainda não se antevia, mas com “um desejo de acolher e dar visibilidade a algo desconhecido” e sobre o qual pairava certo preconceito.

A efeméride dos 40 anos leva Solange também a uma mirada para o futuro da Bienal. Segundo ela, a reflexão agora é mais em torno do fortalecimento da instituição Associação Cultural Videobrasil “como um lugar mais potencializado para pesquisa continuada e acesso a essa produção, usando todo o potencial de seu acervo histórico, não apenas ocupando-se da questão de sua conservação e salvaguarda”, afirma. “Agora, é tentar pensar em realizar um trabalho permanente, que não se limite à perspectiva e ao esforço de organizar um grande evento”.

TRAJETÓRIA

Solange conta que, após a criação do Videobrasil, teve início outro ciclo importante, a partir dos anos 1990: o da internacionalização da Bienal, no qual a diretora artística apostou em um recorte que não abrigasse apenas artistas americanos e europeus, mas de países com histórias semelhantes à do Brasil, em termos culturais e sociopolíticos. Este momento refletia uma “necessidade de troca entre artistas, de confrontar hegemonias, de trazer referências, não apenas pensando em público, mas para uma cena que estava um pouco debilitada. Essa dissidência em relação aos eixos estabelecidos da arte, isso você via pouco, mesmo nos anos 2000”, pondera.

Mais recentemente, prossegue Solange, o Videobrasil buscou se abrir para arte a contemporânea como um todo, para todas as suas expressões, não apenas no campo do vídeo, “mas também com o vídeo se mostrando renovado e mais potente, principalmente nesse contexto global, pós-pandêmico, em que o audiovisual ocupa um papel central na vida contemporânea”. O vídeo, diz ainda Solange, é a ferramenta que colocou a Bienal, durante esses 40 anos, “num lugar que vai além de um grande evento, que ocorre a cada dois anos, um lugar para a geração de conhecimento, a criação de redes nesses territórios marginalizados no mapa mundial das artes”.

Para esta 22ª edição, Solange convidou o Raphael Fonseca e a queniana Renée Akitelek Mboya para assumir a curadoria da Bienal. Ela ressalta que Fonseca é “extremamente conectado, um curador, vamos dizer, que tem uma preocupação decolonial”. Foi de Fonseca a sugestão do título A memória é uma ilha de edição, frase retirada do poema Carta aberta a John Ashbery, de Waly Salomão (1943-2003). Já Renée foi convidada com um foco específico nos programas públicos da Bienal. “É um dos eixos importantes, e nesta edição estão completamente potencializados, intensos”, afirma.

Solange Farkas aponta que 90% dos participantes desta Bienal são artistas que nunca estiveram em qualquer edição do Videobrasil, fato não muito comum porque a mostra tem por tradição uma recorrência de nomes, que vão renovando os seus trabalhos ao longo dos anos. Há, no entanto, duas ressalvas: “Uma delas é artista fundamental para pensar a própria história do Videobrasil e a cena de arte contemporânea nesse contexto atual de conflitos e de questões ligadas ao nacionalismo, ao colonialismo e à crise palestina”, avalia.

Trata-se do libanês Ali Cherri, que iniciou sua trajetória trabalhando com o suporte audiovisual, mas que neste ano traz um conjunto de esculturas. “São obras que nos fazem pensar muito sobre a questão da originalidade do trabalho, sobre o que é uma obra de arte, nos fazem refletir sobre a arqueologia, a terra, a água, a areia, para pensar num passado colonial. E que falam, claro, de uma presença muito forte das questões que afligem em geral a população de países que vivem sobre um jugo colonial”, comenta.

Além de Cherri, Solange destaca, entre os artistas mapeados para esta edição, Antonio Pichilla Quiacain (Guatemala), Gabriela Pinilla (Colômbia), Maisha Maene (República Democrática do Congo), Samuel Fosso (Camarões), e Vitória Cribb (Brasil). Longa vida ao Videobrasil.

Assista à nossa conversa com o curador Raphael Fonseca:
PROGRAMAÇÃO DE QUINTA (19) E SEXTA-FEIRA (20)
19/10

10h30 – Mesa Câmera de ecos, com Solange Oliveira Farkas, Eduardo de Jesus, Alessandra Bergamaschi, Raphael Fonseca e Renée Akitelek Mboya.

14h – Encontro Uma cama que alberga o náufrago: construindo instituições no Sul Global, com Tirzo Martha, Mella Jarrsma com e mediação de Ana Sophie Salazar.

16h30 – Performance Fragments Untitled #5 (Images of past as images for the future), de Doplgenger. Após a apresentação haverá conversa com Isidora Ilić (Doplgenger) e Teresa Jindrova.

20/10

10h30 – Encontro Cinzas de um corpo esvaziado: imagem, raça e forma, com Maksaens Denis, Seba Calfuqueo, Vitória Cribb e mediação de Ying Kwok.

14h – Encontro Um arquipélago de fiapos do terno da memória: memorial e lugar, com Natalia Lassalle-Morillo, Youqine Lefèvre, Froiid e mediação de Nomaduma Masilela.

16h30 – Encontro Do fantasmático país do olvido: objetos, arquivos, coleções, com Leila Danziger, Eduardo Montelli, Zé Carlos Garcia e mediação de Paula Nascimento.

18h30 – Performance Solar Orders, de Kent Chan, com participação da DJ Raiany Sinara.

19h30 – Lançamento do Projeto BFVPP / Dossiê Anna Bella Geiger. Conversa com Vivian Ostrovsky e Anna Bella Geiger.

SERVIÇO
22ª Bienal Sesc_Videobrasil
A memória é uma ilha de edição
Direção artística: Solange Farkas
Curadoria: Raphael Fonseca e Renée Akitelek Mboya
Até 25 de fevereiro de 2024
Sesc 24 de Maio – R. 24 de Maio, 109, República – São Paulo (SP)
Horários: terça a sábado, das 9h às 21h; domingos e feriados, das 9h às 18h
Entrada gratuita

 

Júlio Villani leva seu ‘quintal bordado’ à Capela do Morumbi

Júlio Villani durante a criação de "Paraíso", que ele apresenta na Capela do Morumbi. Foto: Divulgação
Júlio Villani durante a criação de "Paraíso", que ele apresenta na Capela do Morumbi. Foto: Divulgação

Pouco mais de um mês depois de abrir a exposição Museu de Tudo, na Casa de Vidro, Júlio Villani presenteia o público com mais uma de suas criações. A partir deste sábado (14/10), Villani leva à histórica Capela do Morumbi a obra Paraíso (aqui se borda aqui se paga), um bordado de grandes proporções – 1520 x 520 cm – com uma alusão aos versos do poeta Manoel de Barros.

Foram necessários dois meses para completar o trabalho, executado no ateliê de Lina Bo Bardi, na Casa de Vidro, por costureiras de Paraisópolis apresentadas a Villani pelo Costurando Sonhos, um negócio social criado para acolher e empoderar mulheres da comunidade por meio da capacitação em corte e costura.

A curadoria do projeto é assinada por Roberta Saraiva, e a pré-produção da obra Paraíso (aqui se borda, aqui se paga) foi feita no Centro Universitário Belas Artes, em colaboração com os estudantes Beatriz Cereser, Laura Del’Acqua, Pedro Avila, Vinicius Amaral e Thais Borducchi.

Durante três semanas – deste sábado (14) até o dia 4 de novembro – um programa educativo vai permitir que público faça uma visita dupla, atravessando os 200 metros que separam a Capela e a Casa de Vidro.

A arte!brasileiros conversou com Júlio Villani. Leia a seguir:

ARTE!✱ – No livro It’s a game, o crítico Michael Asbury teceu observações sobre a diversidade singular de seu trabalho: essa diversidade seria menos ligada a materiais e suportes do que a um pensamento que “procura estabelecer um diálogo com a história da arte brasileira e internacional”. Em que medida a obra apresentada na Capela do Morumbi é uma continuidade desse processo criativo? Ou temos um ponto de inflexão, uma ruptura?

Júlio – Não sei se procuro estabelecer um diálogo com as histórias da arte brasileira e a internacional, ou seja, não sei até que ponto o faço intencionalmente. Se isso transparece no meu trabalho, é com certeza como resultado da existência, em mim, de influências múltiplas e cruzadas. E não só provindas do mundo da arte. Afinal, a gente é o que a gente vive, e a gente faz o que a gente é.

Aprendi a usar um pincel cursando escolas de belas artes em três países, mas, com meu pai, aprendi a cercar um pasto. Sei fazer escultura de bronze, mas também sei fazer gambiarra, e minhas esculturas com objetos garimpados com certeza são a extensão dos brinquedos que eu fazia, criança. Minha primeira ida à Europa se deu por vontade de ver de perto os grandes mestres da pintura ocidental, mas carrego nos olhos, com peso igual, a obra de Mestre Valentim. Em algum momento, estas diversas partes de mim acharam um jeito de se amalgamar e conviver.

Michael Asbury, que vive também com um pé lá e outro, cá, talvez tenha tido facilidade em enxergar, como num espelho, o fato de que em mim “dialogam a arte brasileira e a internacional”. Aliás, neste mesmo livro, ele diz que os meus Pássaros viram almost ready-mades no momento em que eu viro um almost French artist, um artista quase francês. É uma imagem da qual gosto, sobretudo porque traz a ideia de um continuum, de uma passação gradual, de um entre-dois permanente que permite recuar ou avançar num sentido ou no outro, modificando o balanço – paulista, parisiense, menino de fazenda, homem de cidade, artista, amador de gambiarra – segundo o momento da vida.

Paraíso elaborado para a Capela do Morumbi não me parece ser ponto de inflexão, mas inscreve-se justamente nesta continuidade. A técnica foi desenvolvida quando fiz uma obra site specific para a Abadia do Thoronet, em 2019. Fui convidado pelo curador, Jean de Loisy, para fazer uma instalação de lençóis bordados. Mas, ao visitar o lugar – um dormitório enorme, que abrigava todos os monges de uma comunidade cisterciana – me pareceu evidente que todos compartilhavam um mesmo sonho. E, portanto, mereciam ser recobertos por um mesmo e único lençol gigante (a obra media aproximadamente 23 x 8 metros).

Como vivo justamente neste vaivém, enquanto elaborava lá esta obra, me perguntei qual seria o paralelo no Brasil. Lembrando que estávamos em 2019, o país sendo levado num rabo de foguete por um discurso pondo deus acima de todos, enquanto, cá embaixo, “a vida, mera metade de nada, pedia soluções e explicações” (parafraseando Caetano e Gil em Cinema Novo).

Ou seja, se na França eu usei uma via láctea prenhe de textos em torno da eternidade do sentido das palavras, no Brasil me pareceu essencial falar da concretude da vida: desta, aqui e agora, e não da hipotética paradisíaca prometida aos e pelos “homens de bem” que tanto nos faziam mal. É, então, mais neste sentido, o de tecer as diversas realidades, do que no de tecer um diálogo entre a história da arte brasileira e internacional, que acho que meu trabalho se encaixa.

 

ARTE!✱ – Paraíso também traz uma apropriação de imagens, textos e objetos, um processo tido como costumeiro em sua produção mais recente? Em caso afirmativo, que objetos e o que eles ecoam, reverberam, de sua poética ou de sua visão de mundo?

Villani – Paraíso é um quintal bordado, feito de folhas e minhocas, de pedrinhas e ciscos. Reverbera, sim, grandemente, minha visão, que consiste em achar e afirmar que no inventário do mundo não há impurezas, que tudo pode conter poesia. Apesar de folhas e minhocas não poderem ser consideradas apropriações, de maneira múltipla e difusa – talvez pelo suporte, talvez pelo medium, talvez pelo fato de ser um tecido que nos recubra – acho que, finalmente, a obra tem, sim, algo de apropriação. Não diretamente, mas talvez como resultado de um processo de antropofagia contínua, que reivindico alegremente: ingeri e continuo digerindo mil influências.

Me surpreendo, assim, constatando que Paraíso talvez ecoe, pelo menos em mim, outros mantos que fazem parte do meu acervo visual e afetivo: os do Bispo do Rosário, inventário do mundo através de objetos e palavras. Os Parangolés de Hélio Oiticica, que são um chamamento à ação; ou ainda o de Divisor, de Lygia Pape, mas aqui como que exigindo que nos alcemos para romper o tecido com nossas cabeças.

Quanto a apropriação de textos, gosto de imaginar que palavras são armadilhas poéticas; combinados com desenhos, os versos de Manoel de Barros aqui são ingredientes narrativos destinados a criar um território afetivo. Enquanto elaborava o projeto, percebi que selecionara diversos versos falando de cisco e de poeira. E cheguei à conclusão de que eu estava tentando desmembrar – ou desdobrar – a poética manoelina em pó e ética, para traçar uma mediação entre narração e ação.

ARTE!✱ – Como foi o trabalho com as costureiras de Paraisópolis? A decisão de ter um trabalho com viés social foi sua?
Villani – Quer melhor lugar no mundo para procurar colaboração para fazer um Paraíso sobre a Terra do que um lugar que se chama Paraisópolis? Mais seriamente: eu poderia ter realizado esta obra com as bordadeiras com quem colaboro há 20 anos na realização de lençóis bordados. Mas Paraíso [aqui se borda aqui se paga] é obra duplamente site specific, porque foi criada para a Capela do Morumbi, e porque foi realizada voluntariamente no território do Morumbi.

 

Farol Santander de Porto Alegre destaca obras de Siron Franco da coleção Justo Werlang

Obra sem título (1977) de Siron Franco. Foto: DelRe/Stein/VivaFoto
Obra sem título (1977) de Siron Franco. Foto: DelRe/Stein/VivaFoto

Não convide o empresário gaúcho Justo Werlang para ceder as obras de sua coleção para uma coletiva – não importando o eventual recorte curatorial – que acabe por mesclar os trabalhos dos diferentes artistas que compõem seu acervo. Convide, sim, para uma exposição dedicada somente a um dos artistas que ele coleciona. Uma mostra assim revela o modo criterioso com que Werlang elabora sua coleção, um exercício que envolve certa proximidade com o artista, a observação atenta ao que há de contínuo e coeso na trajetória da pessoa, assim como a atenção aos eventuais pontos de inflexão, às possíveis rupturas ao longo do tempo.

“Não convide”, claro, é força de expressão e blague. Se solicitado o empréstimo de uma obra da coleção, Werlang prontamente atende, desde que o artista concorde em participar da exposição. O mesmo vale para uma eventual mostra de trabalhos presentes na sua coleção: atende-se, se os artistas aceitarem. Porém, caso se peça uma “mostra da coleção”, aí “é necessário que o conceito, que organiza a coleção, possa ser percebido na exposição montada”, diz Werlang à arte!brasileiros. “Ou seja, que se apresente um conjunto bastante significativo de obras de cada um dos artistas, a fim de se perceber o percurso artístico, os elementos constituintes da linguagem personalíssima de cada artista, as questões trazidas à luz, sua intenção e seu pensamento”.

Werlang pondera que, no entanto, para esse fim, é necessária uma quantidade significativa de obras, algo bastante difícil que se realize, pelo espaço físico e orçamento. A solução para que se mostre a coleção, afirma ele, é que exposição se concentre na obra de um dos artistas.

Dito isso, uma mostra exemplar do modus operandi de Werlang é a exposição Armadilha para capturar sonhos, que fica em cartaz até o dia 22/10 no Farol Santander de Porto Alegre (RS) e apresenta 63 pinturas do goiano Siron Franco (75), um dos (poucos) nomes que entram para o elenco de artistas do acervo do empresário gaúcho. Com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro, que foi curador da 33ª Bienal de São Paulo, a exposição é a segunda mirada do Farol Santander sobre a lógica do colecionismo de Werlang. A primeira aconteceu em 2017, com os trabalhos de Karin Lambrecht pertencentes ao empresário. Em seu dream team estão ainda Iberê Camargo, Xico Stockinger, Nelson Felix, Daniel Senise, Mauro Fuke e Felix Bressan, com criações adquiridas ao longo de cerca de três décadas.

O primeiro convite para realizar uma exposição de seu acervo no Farol Santander (então Santander Cultural) ocorrera em 2016. “Entendo que seria possível realizar uma mostra de trabalhos da coleção, mas não uma exposição da coleção”, diz Werlang. De tal forma, avalia o empresário, a mostra não refletiria seus propósitos como colecionador, seu objetivo de, “através de um conjunto significativo de obras, possibilitar a percepção do percurso artístico de cada um dos artistas, evidenciando o conjunto de vocábulos visuais gerados e utilizados, a linguagem personalíssima de cada um, as questões de que tratam, o pensamento ali presente e expresso”, afirma. “E, mesmo no caso dos cadernos, estudos, esboços, desenhos, realizar o propósito [de revelar] a gênese da obra”.

Em Armadilha para capturar sonhos acompanha-se 50 anos da carreira de Franco, numa expografia com sete núcleos: Cosmos, Segredos, Mitos, Homem, Biomas, Violência e Césio, que reúne um dos trabalhos mais notórios de Franco: sua série sobre a catástrofe ambiental e humana provocada em 1987, em Goiânia, pelo manuseio incorreto, por parte de catadores de recicláveis, de um aparelho de radioterapia, que levou à contaminação radioativa de várias pessoas com o isótopo Césio-137.

Os núcleos abrigam as obras figurativas de Franco, assim como as abstratas e também as fronteiriças entre um estilo e outro, por meio das quais Siron Franco se debruça sobre vida, arte e sociedade. Pérez-Barreiro nominou os núcleos e esboçou uma primeira seleção de obras. “Em razão de sua generosidade, permitiu-me sugerir a inclusão de alguns dos trabalhos. Certamente por colecionar assim, [acompanhar] tão de perto, a história, o motivo, a construção de cada um dos trabalhos da coleção, que eram muito próximos de mim”, pondera o empresário. Um das obras mais antigas de Franco, Argonauta (1973), está em exibição no Farol Santander, assim como uma das mais recentes, A grande rede, deste ano.

WERLANG

Formado em Administração de Empresas pela PUC-RS (1977) e em Direito pela UFRGS (1978), Justo Werlang tem 67 anos. Empresário, é sócio-gerente da G.A.Werlang – Gestão e Ambiente Ltda, empresa com foco em desenvolvimento sustentável. Sua relevância no panorama das artes no Brasil extrapola o notório colecionismo disciplinado e judicioso. Salta aos olhos a capilaridade de sua atuação institucional. Werlang participou da criação da Fundação Iberê Camargo (1995) – onde foi diretor e vice-presidente (1995 a 2008), diretor-presidente (2016 a 2020), conselheiro (1995 a 2016), e atualmente é diretor.

O empresário também esteve à frente da criação da Fundação Bienal do Mercosul (1995), em que foi diretor-presidente (1995 a 1997 e 2006 a 2008) e diretor vice-presidente (2003 a 2005). Desde 1997 faz parte do Conselho de Administração da Fundação Bienal do Mercosul, que atualmente preside (2023 a 2024). Fora do Rio Grande do Sul, atuou como diretor vice-presidente na Fundação Bienal de São Paulo (2009 a 2016) e seu diretor (2017 a 2018). Leia a seguir demais trechos da entrevista concedida por Justo Werlang à arte!brasileiros:

ARTE!✱ – Como se deu o início de seu colecionismo?

Justo Werlang – O que havia no começo, há cerca de 30 anos, não era uma coleção, mas um conjunto de obras. Quando entraram os trabalhos de Iberê Camargo é que houve um rompimento, que me exigiu tirar, sei lá, 80%, das obras que tinha em casa. O fio condutor da coleção surge, digamos, uns três anos depois que nós adquirimos o primeiro Iberê. Para então, com o tempo, formar um volume significativo em que se perceba o percurso do artista. Daí quando me pediam para mostrar a coleção, eu dizia que não, porque era uma coleção muito jovem, uma coleção muito jovem para o seu objetivo.

ARTE!✱ – Um desses convites partiu justamente do Farol Santander, ainda em 2016. Como sua resistência foi contornada? 

Werlang – A questão é que o conceito da coleção se desfaz à medida que alguém vai escolher uma ou outra obra lá de dentro e misturar os artistas. Não vai apresentar a coleção, mas obras dela. Porque a coleção se constituí pela linha condutora, pelo objetivo. Então, o Santander me convidou para fazer a exposição da coleção, eu disse não, mas depois respondi que, se eles quisessem, poderiam expor um artista, porque aí estariam expondo a coleção.

ARTE!✱ – Seu colecionismo pressupõe também um diálogo com os artistas, em que você busca entender suas narrativas. Como essa conversa se dá e quais os eventuais desdobramentos para você e para o artista?

Werlang – A coleção hoje é ativa nos artistas vivos, especialmente no Siron, Nelson Félix, Daniel Senise, na Karin Lambrecht e no Mauro Fuke, que continuam produzindo. Meu sistema de coleção me exige uma convivência continuada com cada um desses artistas, e isso acaba por entrelaçar outras relações, como relações afetivas, relações de amizade, uma participação em projetos. Então, essa participação em projetos começa mesmo antes de termos a coleção, quando eu comecei a financiar a produção de alguns escultores, no início dos anos 1990. Como o Xico Stockinger e o Gustavo Nakle. Mas Mantenho obras de outros artistas em casa, como Vasco Prado e Nakle, que não constituem a coleção. Fazem parte do acervo de obras.

ARTE!✱ – Por que você opta por não ter artistas estrangeiros em sua coleção?

Werlang – É uma questão de acesso à obra, ao artista. Cheguei a pensar em ter trabalhos de um artista radicado em Madri, mas é inviável fazer a coleção nos moldes como realizo, de um artista estrangeiro no país.

ARTE!✱ – Como teve início sua trajetória institucional?

Werlang – Gustavo Nakle, Maria Tomazelli e outros artistas se reuniam em um lugar chamado Poleto, para beber cerveja. Lá discutiam o fato de estarem fora do centro, de São Paulo, Rio de Janeiro. E discutiam a possibilidade de participarem mais do mercado de arte nacional. Uma das ideias era fazer uma bienal. Um dia eles se encontraram com uma senhora chamada Maria Benites, argentina radicada em Porto Alegre. E a Maria Benites é um trator de trabalho, uma realizadora. Ela se envolveu com esse grupo e disse: “Vocês precisam do apoio do estado e do apoio do empresariado”. Ela tinha um contato com a Maria Helena Gerdau Johannpeter, esposa do Jorge, e a partir dali o Jorge se envolveu, fez um jantar para o qual foram convidados empresários, galeristas, artistas e representantes do poder público. Nesse processo, apareceram as pessoas que queriam ser presidente do que viria a ser a Bienal do Mercosul. E os caras que pretendiam ser, os artistas não queriam nem saber deles. A Maria Benites começou a falar que eu tinha de assumir o posto. Falei que se o Jorge aceitasse a gente fazer um conselho, um grupo sem presidente, então eu participaria. Eu me vi obrigado a assumir, depois tive de vencer diversas inércias. Não havia capital humano para fazer uma montagem, não tinha iluminação, arquitetura, não tinha nada. Então começar a fazer isso foi bem complicado, tomou muito meu tempo.

ARTE!✱ – Em 1995, mesmo ano em que se iniciou o processo para criar a Bienal, estava também começando o projeto para a Fundação Iberê Camargo. Como foi sua atuação à época?

Werlang – O Jorge me convidou para ser tesoureiro lá. Eu aceitei porque, enfim, a gente era parceiro e eu tinha que fazer. Não gosto de ser tesoureiro, não era minha habilidade. Na Iberê eu fiquei durante 13 anos, muito ativo, até nós inaugurarmos o prédio [em 2008].

ARTE!✱ – E como se deu sua ligação com a Bienal de São Paulo?

Werlang – Quando inauguramos a sede da Fundação Iberê Camargo, solicitei meu afastamento e, coincidentemente, deixei a presidência da 6ª Bienal do Mercosul. Depois de 12 meses sem participar de qualquer evento ligado às artes visuais, resolvi ir à abertura da feira SP-Arte. Nos corredores, encontrei o Júlio [Landmann, que havia presidido a 24ª Bienal], e Heitor Martins [que presidiu a 29ª e 30ª edições, de 2009 a 2012]. Na conversa que se seguiu com Heitor, ele disse que recebeu o convite para montar uma diretoria para Bienal, e perguntou-me o que diria sobre o convite, naquele momento em que muitos haviam desistido da instituição. Minha resposta foi no sentido de que deveria sim, aceitar, pois o patrimônio de contribuições da Bienal era muito maior do que o buraco em que se encontrava. Heitor emendou então: “E você estaria junto conosco?”. De fato, o envolvimento naquele desafio não estava dentro de meu projeto. Pensei, então, no que havia significado a Bienal na carreira de Iberê, no percurso de Daniel, Siron, Karin, Nelson Felix. Assim, aceitei. Éramos um time maravilhoso, discutíamos, não concordávamos com tudo, até brigávamos, mas havia uma enorme comunhão no objetivo de reposicionar a instituição que tudo harmonizava.

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O têxtil como auto-expressão, luta e cuidado

Heloísa Marques, Dor aqui, 2022. Foto: ©Cortesia da artista
Heloísa Marques, Dor aqui, 2022. Foto: ©Cortesia da artista

Por Adélia Borges

Bordados, crochês, tricôs e toda sorte de trabalhos têxteis ficaram por muito tempo segregados, nos cânones sociais e artísticos, a uma feminilidade dócil e bem-comportada, restrita ao único espaço que caberia às mulheres – o lar. A exposição Andar pelas bordas: bordado e gênero como práticas de cuidado”, em cartaz até 21 de outubro na Arte132 Galeria, em São Paulo, é uma excelente oportunidade de apreciar um panorama da produção têxtil contemporânea no Brasil que revoluciona essa compreensão. Na seleção de obras de 47 mulheres ou coletivos de mulheres, a curadora Lilia Moritz Schwarcz mostra como o bordado tanto “serve ao afeto, à estética”, como “se presta ao campo das reivindicações políticas e sociais por direitos”.

A iniciativa não é a primeira dedicada a esse novo olhar sobre o têxtil. A própria curadora começa o alentado texto do catálogo elencando uma dezena de mostras coletivas realizadas no Brasil na última década, tais como “Transbordar: Transgressões do Bordado”, curada por Ana Paula Simioni no Sesc Pinheiros, em São Paulo – cuja visitação e reverberação certamente sofreram devido ao fato de ser apresentada em plena pandemia, em 2020. Podemos destacar também exposições individuais recentes de artistas que têm ou tiveram no têxtil um suporte importante, e que só nos últimos anos têm sido retiradas da invisibilidade, tais como Madalena dos Santos Reinbolt, Rosana Paulino e Sonia Gomes. 

As três estão em “Andar pelas bordas”, ao lado de outros nomes consagrados, como Adriana Varejão, Anna Maria Maiolino e Nazareth Pacheco, e de jovens como Rebeca Carapiá, Vivian Caccuri, Sol Casal e Tadáskia. A seleção ganha em densidade e amplitude com a inclusão de seis coletivos de bordadeiras. BordaLuta, Linhas de Sampa, Linhas do Horizonte e Pontos de Luta têm assumido mais diretamente o bordado como um instrumento de luta política por democracia e direitos humanos, inclusive com intervenções em espaços públicos. Artesãs da Linha Nove, que nasceu junto ao Instituto Acaia, em São Paulo, representa as dezenas de associações e cooperativas de mulheres que têm no bordado não só a fonte primordial de renda, mas também uma prática coletiva de fortalecimento mútuo. E Matizes Dumont, de Pirapora do Bom Jesus, em Minas Gerais, é um dos grupos que mais têm difundido o bordado em oficinas e exposições país afora. 

Embora o bordado predomine, há espaço para outras técnicas, como a escultura têxtil de Eva Soban, obras de crochê de Ana Maria Tavares e tapeçaria de Madeleine Colaço. Os ricos grafismos kene, que estão a caminho de serem reconhecidos como patrimônio imaterial pelo Iphan, estão nas tecelagens de algodão das indígenas Maria Ayani Huni Kuin e Tamani Huni Kuin. Essa mistura de autoras de diferentes procedências, gerações e contextos, sem distinções ou hierarquizações, é um dos pontos altos do recorte curatorial, que “amarra” as escolhas vinculando as práticas têxteis às funções tradicionalmente vistas como femininas de “tomar cuidado” e de curar.

Se “a arte da curadoria tem a ver com a raiz da palavra cuidar”, como diz Lilia Moritz Schwarcz no texto do catálogo, cabe lembrar aqui a coerência com que ela vem atuando em sua trajetória relativamente recente no campo da curadoria de exposições, em que contesta as divisões entre arte erudita, arte popular e artesanato e traz à luz produções até então predominantemente invisibilizadas. Antropóloga, professora da USP e da Universidade de Princeton e prolífica autora, Lilia também se tornou uma figura de destaque na cena política e cultural brasileira, com 533 mil seguidores no Instagram.

A exposição é dedicada a Telmo Porto, que abriu a Arte132 Galeria em 2021 e faleceu pouco antes da abertura da mostra.

“O debate tenta fazer barulho, provocar dissonância e distinção”

A historiadora francesa Anne Lafont
A historiadora francesa Anne Lafont

Autora dos livros Uma africana no Louvre e A arte dos mundos negros: História, teoria, crítica, recém-lançados no Brasil pela Bazar do Tempo, a historiadora francesa Anne Lafont esteve em São Paulo em agosto, a convite do MAC USP, para ministrar uma disciplina de pós-gradução, patrocinada pela Terra Foundation. Na ocasião, Lafont nos deu a seguinte entrevista:

ARTE!✱ – ​ Conte-me um pouco sobre o impacto do seu livro Uma africana no Louvre sobre o público, em torno da questão da representação do negro na arte. Houve algum desdedobramento de seus estudos por parte de outros pesquisadores? Reflexos em instituições, principalmente na França, ou talvez noutros países europeus? Elas repensaram a forma como formulam suas práticas curatoriais para suas coleções?

ANNE LAFONT – Partimos de uma ideia um tanto simples da representação do negro nas artes plásticas, principalmente na Europa e na França, e acabamos fazendo uma reflexão sobre os meios visuais do conceito de raça, como a raça se materializa visualmente. Eu diria que a mostra Le modèle noir de Géricault à Matisse, que ocorreu no Louvre [e foi ponto de partida para Uma africana no Louvre], foi um momento muito importante na história das exposições na França, uma grande exposição sobre um assunto que não tinha sido tratado nessa escala lá na França.

Foram muitos visitantes, acredito que mais de 400 mil, e isso também transformou a maneira como os museus na França passaram a trabalhar essas questões relacionadas às comunidades que formam a sociedade francesa. Houve realmente um efeito cascata no final.

No mundo acadêmico, devo dizer que há duas fases de recepção do meu trabalho. São os historiadores que inicialmente se interessaram pelo meu trabalho, mas os historiadores na França foram mais relutantes a este tipo de abordagem pós-colonial. Porém, estão começando a surgir gerações mais jovens muito mais interessadas nesses assuntos. Já no universo dos curadores de museus, demorou um pouco mais. Foram antes de tudo historiadores e antropólogos que realmente se interessaram pelo meu trabalho, e por isso que fui contratada pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, um instituto de estudos avançados com pesquisadores que são antropólogos, filósofos, sociólogos, historiadores, historiadores da arte. As coisas estão começando a mudar, mas é um processo um tanto mais longo.

Foi com, eu diria, a transformação da representação do negro de sujeito de pintura, em modelo, que no século XIX mais algumas modelos femininas foram representadas. Mas ao longo dos séculos XVII e XVIII, o que havia eram essencialmente jovem homens em posição de serviço. No século XIX, temos a chegada de uma série de modelos femininas negras que realmente vão aparecer mais na arte francesa. Acho que as mulheres negras estavam mais presentes nas colônias francesas, onde não havia um meio artístico tão bem constituído como na França continental. Os pintores trabalharam mais em Paris do que nas colônias e, portanto, somente no século XIX, quando as comunidades negras se instalaram mais na França metropolitana, houve mais mulheres presentes e representadas.

ARTE!✱ –  Até que ponto existem semelhanças e diferenças entre a representação dos negros na arte francesa em relação às suas colônias e a representação europeia em geral dos escravizados no Brasil, por exemplo?

ANNE LAFONT – Para mim são imagens que circulam no espaço atlântico e, no século XIX, em torno de Debret e da Missão Francesa no Brasil, temos imagens que são reinvestidas da cultura visual francesa. São artistas que moram no Brasil e que, portanto, descrevem o que veem, quando voltam para a França. O que talvez seja fundamental nas experiências europeias do Brasil é o acesso a uma forma de crueldade do ambiente colonial brasileiro, ou de qualquer outro lugar que não é imaginável na Europa quando estamos longe da própria experiência colonial. Um acesso a algo muito mais cru e direto sobre a experiência da escravidão, do que quando a gente fica apenas em algo que é metropolitano, que é distante em relação à escravidão. Acho que Rugendas, Debret ou outros dão mais uma vez, por meio da litografia, da gravura etc., um acesso totalmente direto às experiências dos negros escravizados no Brasil.

ARTE!✱ – Uma questão que oferece outro tipo de perspectiva histórica: é possível comparar o debate decolonial de hoje com os movimentos negros pelos direitos civis das décadas de 1960 a 1980? Por que ou por que não?

ANNE LAFONT – Isso exigiria um estudo comparativo muito, muito aprofundado, mas o certo é que precisamente o espaço crítico gerado por pesquisas como a que estou realizando, assim como aquele do interesse pós-colonial, não é estranho ao que a própria sociedade exige. Explica uma história que tem sido demasiado monolítica, ou seja, o próprio fato de a sociedade civil, por assim dizer, exigir maior justiça social não está alheio ao desenvolvimento do pensamento crítico que fornece os meios para compreender precisamente as raízes desta forma de desigualdade, e que existia, por isso não creio que os pesquisadores sejam alheios aos movimentos sociais e políticos do seu tempo.

Nesse sentido, como nos anos 1960 nos Estados Unidos, como na França hoje, o fato de a sociedade estar mais uma vez exigindo justiça social e uma melhor distribuição das coisas, isso não está em descompasso com o tipo de projeto que venho levando adiante, em que tentamos compreender a história no longo prazo, mais precisamente da história francesa em conexão particularmente com a comunidade negra. Nesse sentido, é comparável ao período da luta pelos direitos civis, ou seja, os pesquisadores são cidadãos e não estão em descompasso com o movimento que os cidadãos manifestam na sociedade. Ganhou força nas universidades e até mesmo por um tempo nas redações de jornais, bem como em setores da sociedade, através da cultura, entre outros agentes.

ARTE!✱ – Nos últimos anos, a teoria racial crítica ganhou força nas universidades e chegou até às redações de jornais como o The New York Times, bem como a setores da sociedade, por meio da chamada cultura. Entre outros autores, James Baldwyn e Frantz Fanon ressurgiram. Achille M’bembe levantou a questão da necropolítica. O racismo estrutural entrou na agenda dos governos progressistas e até das empresas, que por vezes parecem fazer um black washing – numa referência ao greenwashing, de uma falsa sustentabilidade para fins de marketing. Esta miríade de reflexões, perspectivas, proposições etc. contribui para o debate sobre a decolonialidade, ou pode por vezes criar ruídos, dissonâncias, desvios ou distrações?

ANNE LAFONT – O debate tenta fazer barulho, provocar dissonância e distinção. O próprio debate tem ese efeito, ou seja, não podemos ter uma discussão aprofundada sem que se tomem posições muito diferentes. É inevitável e, neste sentido, não significa que cada indivíduo que participa do debate cause ruídos. Mas faz parte do debate, ou seja, não podemos levantar uma questão nova, colocar ideias novas em pauta sem que isso faça barulho, atrapalhe a ordem estabelecida, perturbe necessariamente a forma de pensar. Há todos os tipos de posições que vêm alimentar este debate e, pessoalmente, individualmente, podemos escolher uma linha muito pessoal e precisa, mas que faz parte de um debate muito mais acalorado, e eu não vejo como uma sociedade se transforma sem fazer barulho, isso não é possível.

ARTE!✱ – Sabemos que o identitarismo mais pernicioso e dissimulado do mundo é o identitarismo branco, que nos Estados Unidos vem atualmente manifestando sua face terrorista com os supremacistas brancos. Ao mesmo tempo, sabemos que também existe certa cacofonia na luta identitarista negra, envolvendo, por exemplo, visões distorcidas do colorismo, assim como a criação do que, para a sociedade branca, são ressalvas, personagens midiáticos que, por sua recorrência em fóruns presenciais ou virtuais, consolidam-se como figuras de exceção entre os negros. Isso ocorre entre atrizes, atores, cantores, escritores e até mesmo já tivemos no Brasil um ministro da Suprema Corte. Eles alcançam notoriedade, não raro em detrimento da coletividade, de seus pares, e em benefício próprio. Esta segmentação ou dispersão de pensamento e ação afeta negativamente o debate decolonial?

ANNE LAFONT – Não, na verdade existe um pensamento negro plural, e isso é muito bom. Existem posições muito diferentes de um indivíduo para outro na mesma sociedade, mas ainda mais em escala mundial, das experiências das mulheres negras em Paris, àquelas das dde Benin. O pensamento negro é muito complexo e muito diversificado. É preciso ouvir as pessoas que têm algo a contribuir, mas é uma mais-valia. Não é falta de profundidade nem de eficiência, é uma riqueza que é em última análise uma pluralidade de pontos de vista, e há pontos de vista com os quais não concordo. Tem gente que não concorda comigo, e isso é muito bom para eles. Por fim, não existe um pensamento negro monolítico, existem diversas experiências, existem diversos pontos de vista, existe um pensamento crítico múltiplo, e isso é uma coisa muito boa.

ARTE!✱ –  Em todo o mundo, tem havido grande visibilidade para artistas negros que tematizam problemas históricos e contemporâneos da negritude, eles próprios resultantes diretamente de processos coloniais. Assistimos também a um boom no mercado, com um maior número de galeristas, incluindo negros, cujos portfólios são dedicados a artistas africanos ou da diáspora. As instituições e os seus curadores estão seguindo a tendência que atualmente parece estar a pasteurizar o ecossistema artístico em todo o mundo. Grandes conglomerados de luxo contratam esses artistas para colaborações de moda. Como nos disse o curador e artista Kader Attia, em entrevista: “O capitalismo tenta se recuperar, através da cultura e da arte, apropriando-se de mensagens políticas, como a da decolonização, e com isso corremos o risco de que elas se institucionalizem. Ou seja, é preciso saber cuidar da retórica, inventar uma linguagem, vocabulários sempre novos, quase novos, quem sabe abandonar a palavra “decolonial” e criar outra, por exemplo “desmodernizar”, porque decolonial não inclui o feminismo, por exemplo.” Você vê esse risco na produção artística negra atual, de um simulacro crescente de crítica a serviço do capitalismo, de um pastiche de arte decolonial?

ANNE LAFONT – A arte colonial não está mais imune que todas as formas de arte e de valorização pelo mercado, ou seja, seria muito ingênuo pensar que o capitalismo é menos forte face aos seus pensamentos. O capitalismo é sempre mais forte. O esforço artístico pós-colonial e decolonial está sujeito ao mesmo risco que todas as formas de arte. Não há razão para pensar que desta vez o mercado não iria captar uma tendência que é generalizada. O risco está sempre lá, nem mais nem menos do que todas as formas de arte que se expressam, que encontram um alcance internacional etc. Sim, penso que é um risco, mas cabe aos artistas ao mesmo tempo encontrar os meios de expressão para escapar, se quiserem fazê-lo, deste tipo de padronização por parte do mercado de arte ou por parte do capitalismo.